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19.02.2018 Views

ALMANAQUE LITERÁRIO Certos personagens tornam-se tão icônicos que deixam até seus autores para trás, entrando no imaginário do público como forças independentes. Quixote e Sancho estão nessa categoria. Para alcançar essa fama extraliterária, uma obra de literatura precisa, em primeiro lugar, estabelecer-se com firmeza entre o público, de modo que seus personagens e cenas ressoem entre os leitores. É o que na linguagem de hoje chamamos de “viralizar”. E a obra de Cervantes “viralizou” já no século XVII, na Espanha. Quixote e Sancho eram personagens de teatro de bonecos, e suas efígies apareciam em paradas populares. O senhor demonstra que Cervantes foi crítico da ideia oficial de nacionalidade que a realeza propagandeava. Não é um paradoxo que hoje o escritor seja um símbolo da Espanha? Eu diria que isso é, menos que um paradoxo, um caso de gentrificação. Considerada a dimensão sem paralelo de Cervantes na literatura mundial, a Espanha teve de incorporá-lo. Para ser justo, é preciso admitir que várias nações se veem nessa posição diante de grandes artistas que foram críticos de sua própria sociedade. Ainda assim, é preciso ficar vigilante: ler Cervantes e DOM QUIXOTE como símbolos de fervor patriótico seria corromper o significado da obra. Cervantes, no entanto, foi um valoroso soldado da espanha. Sua obra mostra admiração pela vida militar, não? Cervantes tinha enorme admiração pelos soldados e desdém pelos políticos que desperdiçavam a vida desses soldados. Dom Quixote faz um famoso “discurso sobre as armas e as letras”, que é uma peça magistral de cirurgia literária: exalta a coragem, a lealdade e a força de quem está disposto a dar a vida por uma causa maior, mas ao mesmo tempo denigre os aparatos estatais que tratam heróis de guerra como bucha de canhão. Se o senhor tivesse a oportunidade de conversar com Cervantes em uma taverna, o que perguntaria a ele? Só perguntaria depois de muitos copos de vinho: quando ele esteve cativo dos mouros, por cinco anos, em Argel, houve uma história de amor com alguma mulher local, coo vemos na história do cativo que aparece em DOM Create PDF in your applications with the Pdfcrowd HTML to PDF API PDFCROWD

QUIXOTE? Mas Cervantes tinha um profundo senso de honra: é provável que nem o vinho nem 400 anos no túmulo fossem suficientes para que ele cometesse uma indiscrição. ALMANAQUE LITERÁRIO Fonte: Revista VEJA/ Especial 400 anos em 27/04/2016 Create PDF in your applications with the Pdfcrowd HTML to PDF API PDFCROWD

ALMANAQUE LITERÁRIO<br />

Cert<strong>os</strong> personagens tornam-se tão icônic<strong>os</strong> que deixam até seus autores para trás, entran<strong>do</strong> no imaginário <strong>do</strong><br />

público como forças independentes. Quixote e Sancho estão nessa categoria. Para alcançar essa fama<br />

extraliterária, uma obra de literatura precisa, em primeiro lugar, estabelecer-se com firmeza entre o público, de<br />

mo<strong>do</strong> que seus personagens e cenas ressoem entre <strong>os</strong> leitores. É o que na linguagem de hoje chamam<strong>os</strong> de<br />

“viralizar”. E a obra de Cervantes “viralizou” já no século XVII, na Espanha. Quixote e Sancho eram personagens<br />

de teatro de bonec<strong>os</strong>, e suas efígies apareciam em paradas populares.<br />

O senhor demonstra que Cervantes foi crítico da ideia oficial de nacionalidade que a realeza<br />

propagandeava. Não é um para<strong>do</strong>xo que hoje o escritor seja um símbolo da Espanha?<br />

Eu diria que isso é, men<strong>os</strong> que um para<strong>do</strong>xo, um caso de gentrificação. Considerada a dimensão sem paralelo<br />

de Cervantes na literatura <strong>mund</strong>ial, a Espanha teve de incorporá-lo. Para ser justo, é preciso admitir que várias<br />

nações se veem nessa p<strong>os</strong>ição diante de grandes artistas que foram crític<strong>os</strong> de sua própria sociedade. Ainda<br />

assim, é preciso ficar vigilante: ler Cervantes e DOM QUIXOTE como símbol<strong>os</strong> de fervor patriótico seria<br />

corromper o significa<strong>do</strong> da obra.<br />

Cervantes, no entanto, foi um valor<strong>os</strong>o solda<strong>do</strong> da espanha. Sua obra m<strong>os</strong>tra admiração pela vida militar,<br />

não?<br />

Cervantes tinha enorme admiração pel<strong>os</strong> soldad<strong>os</strong> e desdém pel<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> que desperdiçavam a vida desses<br />

soldad<strong>os</strong>. Dom Quixote faz um fam<strong>os</strong>o “discurso sobre as armas e as letras”, que é uma peça magistral de<br />

cirurgia literária: exalta a coragem, a lealdade e a força de quem está disp<strong>os</strong>to a dar a vida por uma causa maior,<br />

mas ao mesmo tempo denigre <strong>os</strong> aparat<strong>os</strong> estatais que tratam heróis de guerra como bucha de canhão.<br />

Se o senhor tivesse a oportunidade de conversar com Cervantes em uma taverna, o que perguntaria a<br />

ele?<br />

Só perguntaria depois de muit<strong>os</strong> cop<strong>os</strong> de vinho: quan<strong>do</strong> ele esteve cativo d<strong>os</strong> mour<strong>os</strong>, por cinco an<strong>os</strong>, em Argel,<br />

houve uma história de amor com alguma mulher local, coo vem<strong>os</strong> na história <strong>do</strong> cativo que aparece em DOM<br />

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