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mestre lhe prometeu como recompensa por seus serviç<strong>os</strong>, é leal, mas cético. Com <strong>os</strong> pés <strong>do</strong> chão, ajuda o leitor<br />

a rir <strong>do</strong> demente. Como não rir? No entanto…<br />

ALMANAQUE LITERÁRIO<br />

A história logo se complica – e se faz revolucionária – em conteú<strong>do</strong> e forma. No primeiro caso, <strong>os</strong> personagens<br />

principais, inicialmente encarnações chapadas da dualidade entre ideal e real, transcendência e pragmatismo,<br />

poesia e pr<strong>os</strong>a, não demoram a ganhar contorn<strong>os</strong> e sombras demasia<strong>do</strong> humanas. A certa altura já não parece<br />

tão louco imaginar que o “louco” Quixote sabe bem o que faz, usan<strong>do</strong> a falta de juízo coo álibi para a afirmação<br />

de uma vontade radicalmente livre que não se curva ao Império, à Igreja nem a poder algum. E Sancho, a<br />

princípio porta-voz de um bom-senso camponês, torna-se cada vez mais sábio e complexo sob a influência <strong>do</strong><br />

amo. No segun<strong>do</strong> volume, quan<strong>do</strong> uma duquesa quer obrigá-lo a reconhecer a loucura <strong>do</strong> cavaleiro a quem<br />

serve, faz em vez disso uma tocante declaração de amor ao sujeito. E no capítulo final, aquele em que Quixano,<br />

derrota<strong>do</strong> e renegan<strong>do</strong> sua condição de Dom Quixote,se recolhe para morrer, o amigo tenta convencê-lo a<br />

retomar a fantasia em tom duro: “Cale-se, por Deus, volte a si e deixe de histórias”. Mas Quixano deve voltar a si<br />

ou voltar para fora de si? Deve deixar de histórias ou, ao contrário, mergulhar nelas? A humanidade contraditória<br />

d<strong>os</strong> <strong>do</strong>is amig<strong>os</strong> – como a d<strong>os</strong> personagens secundári<strong>os</strong>, inclusive <strong>os</strong> mais incidentais, quase tod<strong>os</strong> <strong>do</strong>tad<strong>os</strong> de<br />

voz própria por um narra<strong>do</strong>r que modernamente se abstém de julgament<strong>os</strong> moralistas e abraça as ambiguidades<br />

– vai se consolidan<strong>do</strong> à medida que a trama se adensa também no plano formal.<br />

Em DOM QUIXOTE, a literatura descobriu que podia fazer da consciência de ser literatura um tema literário.<br />

Ten<strong>do</strong> nasci<strong>do</strong> de uma resp<strong>os</strong>ta a<strong>os</strong> livr<strong>os</strong>, isto é, a<strong>os</strong> romances de cavalaria que satiriza e homenageia, o<br />

romance de Cervantes segue em frente entre <strong>do</strong>bras metalinguísticas e histórias dentro de histórias. O bastão de<br />

narra<strong>do</strong>r é assumi<strong>do</strong> em parte por um certo Cide Hamete Benengeli, historia<strong>do</strong>r que é apresenta<strong>do</strong> como tradutor<br />

– <strong>do</strong> árabe para o espanhol – e comentarista daquelas aventuras. Outr<strong>os</strong> personagens também tomam a palavra<br />

para contar as próprias peripécias, num jogo que chega ao requinte de incluir, no segun<strong>do</strong> volume, personagens<br />

que leram o primeiro – sem falar da crítica à “continuação” apócrifa e medíocre publicada em 1614 sob o<br />

pseudônimo de Alonso Fernández de Avellaneda, que irritou Cervantes profundamente. O que poderia ser mais<br />

moderno – e mesmo pós-moderno – <strong>do</strong> que borrar as fronteiras de arte e vida a fim de levar o leitor a se<br />

perguntar quanto haverá de fictício no real? Ou de realidade na ficção? Fenômeno editorial na Europa pelo seu<br />

diverti<strong>do</strong> valor de face, com traduções para o inglês, o francês e o italiano num intervalo de pouc<strong>os</strong> an<strong>os</strong>, a obra<br />

de Cervantes passou por um perío<strong>do</strong> de incubação em que era vista como mero entretenimento. Mas não<br />

demoraria a ganhar uma profusão de leituras condizentes com sua profundidade e riqueza.<br />

O século XX viu o apogeu dessa tendência. Especialista em virar a lógica literária <strong>do</strong> avesso, Franz Kafka<br />

imaginou Sancho Pança como o verdadeiro herói e Dom Quixote como seu demônio obsessor. Vladimir Nabokov<br />

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