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044001 TEOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO LEON MORRIS ED VIDA NOVA

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T e o lo g ia<br />

do Novo<br />

T e s ta m e n to<br />

Uma teologia do Novo Testamento não se traduz<br />

necessariamente sempre em termos usados pelos autores<br />

neotestamentários, mas está implícita no que escreveram,<br />

pois o que eles dizem sempre tem por base sua compreensão<br />

dos caminhos de Deus.<br />

Precisamos ter em mente que os autores do Novo Testamento<br />

não estavam compondo tratados teológicos completos, mas<br />

concentrados nas necessidades dos cristãos aos quais se<br />

dirigiam. Seus escritos vieram como conseqüência da<br />

realidade que eles viviam e tornaram-se uma divisão<br />

eminente das Escrituras do primeiro século da igreja. Por<br />

isso, devem ser estudados à parte, com as seguintes<br />

perguntas em mente:<br />

• O que esses escritos significam?<br />

• Que teologia expressam ou subentendem?<br />

• O que há de valor permanente neles?<br />

É para perguntas como essas que Leon Morris se volta com<br />

grande talento didático e com a sensibilidade de um<br />

professor de enorme experiência. Ele não está escrevendo<br />

uma história dos tempos do Novo Testamento nem um relato<br />

da religião cristã da época. Ele parte do princípio de que os<br />

textos que formam o Novo Testamento vieram à lu m e para<br />

satisfazer as necessidades dos primeiros cristãos na vivência<br />

da fé. Mas não devemos nos apressar na conclusão de que<br />

eles constituem unicamente respostas para perguntas de<br />

então, como se fossem remédios providenciados no calor de<br />

uma emergência. Longe disso, Morris nos faz ver que há<br />

teologia por trás de todos os textos neotestamentários.<br />

Exatamente por encerrarem um profundo e amplo conteúdo<br />

teológico, devemos levar a sério as idéias que seus autores<br />

expressam ou pressupõem e que Leon Morris organiza com<br />

maestria e rigor pedagógico.


"A importância desta Teologia do Novo<br />

Testamento de Leon Morris pode ser<br />

percebida pelo grande número de<br />

seminários teológicos em todo o mundo<br />

que adotam seu livro como leitura<br />

obrigatória. Lançada em inglês pouco<br />

antes de 1990, a TNT de Morris atualiza a<br />

discussão de diversos temas pertinentes à<br />

compreensão teológica do NT que, no<br />

contexto brasileiro, eram tratados em<br />

literatura muito mais antiga. Felizmente os<br />

estudantes de fala portuguesa também<br />

poderão contar agora com esta obra de<br />

grande qualidade."<br />

Dr. Estevan Frederico Kirschner, P/í.D. em<br />

NT pelo London Bible College, Professor da<br />

área bíblica no Seminário Teológico Servo de<br />

Cristo, em São Paulo, e colaborador de Edições<br />

Vida Nova.<br />

"N a área de estudos neotestamentários,<br />

Leon Morris provavelmente está entre os<br />

dois ou três nomes mais respeitados do<br />

mundo de fala inglesa. Este livro é<br />

resultado de toda uma vida de estudos<br />

exegéticos primorosos no NT. O acesso a<br />

essa obra em português representará uma<br />

enorme bênção para estudantes e pastores<br />

em todo o Brasil evangélico."<br />

Dr. Steven N ash, PhD . em Hermenêutica e<br />

Interpretação Bíblica. Professor em várias<br />

escolas teológicas no nível de bacharelado e de<br />

mestrado. Atualmente leciona nas faculdades<br />

teológicas batistas de Perdizes e Santo Amaro,<br />

ambas na cidade de São Paulo.


<strong>LEON</strong> <strong>MORRIS</strong>, Ph.D. pela Universidade<br />

de Cambridge, ex-professor da Trinity<br />

Evangelical Divinity School, nos Estados<br />

Unidos, e um dos tradutores da New<br />

International Version (NIV), integra com<br />

destaque a galeria dos grandes estudiosos<br />

de Novo Testamento em todo o mundo.<br />

Seus escritos são respeitadíssimos e<br />

numerosos. Todos eles sobejam rigor<br />

acadêmico, talento literário e grande<br />

compromisso pedagógico.<br />

Morris já escreveu dezenas de livros e<br />

artigos, alguns dos quais traduzidos para a<br />

língua portuguesa. Edições Vida Nova já<br />

publicou de sua autoria os comentários de<br />

Lucas e lCoríntios da Série Cultura Bíblica e<br />

"A Doutrina Bíblica do Julgamento",<br />

publicado na íntegra como capítulo do<br />

livro Imortalidade. Na década de 1990,<br />

publicamos Introdução ao Novo Testamento,<br />

trabalho de sua autoria em parceria com D.<br />

A. Carson e Douglas Moo.


T e o lo g ia<br />

do Novo<br />

T e s ta m e n to


DA<strong>DO</strong>S INTERNACIONAIS PARA<br />

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)<br />

<strong>DO</strong> DEPARTAMENTO NACIONAL <strong>DO</strong> LIVRO<br />

M 876<br />

M orris, Leon.<br />

Teologia do N ovo Testam ento / Leon M orris ; tradução<br />

H ans Udo Fuchs, - São Paulo: Edições V ida Nova, 2003.<br />

4 0 8 p ,; 16x23 cm.<br />

IS B N 8 5 '2 7 5 -0 3 0 0 -X .<br />

1. Teologia. 2. Bíblia - N . T . I. Fuchs, H an s Udo.<br />

II. T ítu lo .<br />

CCD 2 30


T e o lo g ia<br />

do N ovo<br />

T e s t a m e n t o<br />

Leon Morris<br />

Tradução<br />

Hans Udo Fuchs


Título do original: New Testament T keology<br />

Traduzido da edição publicada em 1990 pela<br />

Zondervan Publishing House (Grand Rapids, Michigan, EUA)<br />

I a edição: 2003<br />

Publicado no Brasil com a devida autorização<br />

e com todos os direitos reservados por<br />

S o c i e d a d e R e l i g i o s a e d i ç õ e s v i d a n o v a ,<br />

Caixa Postal 21486, São Paulo-SP<br />

04602^970<br />

www.vidanova.com.br<br />

Proibida a reprodução por quaisquer<br />

meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos,<br />

fotográficos, gravação, estocagem em banco<br />

de. datdos, etc.), set citiçÕes bteves,<br />

com indicação de fonte.<br />

Printed in Brazil / Impresso no Brasil<br />

IS B N 85'275-0300-X<br />

D i a g r a m a ç á o<br />

S é r g i o S i q u e i r a M o u r a<br />

c a p a<br />

^ ____<br />

NOUVEA^COMLWQ^ÇâflJ<br />

C o o r d e n a ç ã o d e p r o d u ç ã o<br />

R o g e r L u i z M a l k o m e s<br />

R e v i s ã o<br />

M a r t * H e l e n a p e n t e a d o a r a n h a<br />

:^)RDENAÇÃ0<strong>ED</strong>XT(5P'<br />

R O ^ __________<br />

M AZINHÕ RODRIGUES


A B R E V IA T U R A S ............................................................................................................... 7<br />

P R E F Á C IO .............................................................................................................................. 9<br />

IN T R O D U Ç Ã O ................................................................................................................... 11<br />

PRIM EIRA PA RTE — OS ESCRITOS DE P A U L O ............................... 23<br />

1. Deus no centro........................................ .......................... 29<br />

2. Jesus Cristo, o Senhor............................................... 47<br />

3. A obra de salvação de Deus em Cristo ................................. 67<br />

4. A vida no Espírito .................................................. 91<br />

SEGUNDA PARTE — OS EVANGELHOS SINÓTICOS E A T O S .. 109<br />

5. O Evangelho de Marcos ........................................................................................... .. 113<br />

6. O Evangelho de Mateus ............................................. 137<br />

7. O Evangelho de Lucas e Atos: a doutrina de D e u s............................ .. 173<br />

8. O Evangelho de Lucas e Atos: a doutrina de Cristo...................... 189<br />

9. O Evangelho de Lucas e Atos: Deus e a nossa salvação ................... 207<br />

10. O Evangelho de Lucas e Atos: o Espírito Santo ......................... 229<br />

11. O Evangelho de Lucas e Atos: os discípulos ............................ 235<br />

TERCEIRA PARTE — OS ESCRITOS JOANINOS ........................... 267<br />

12. O Evangelho de João: a doutrina de Cristo ............................. 269<br />

13. O Evangelho de João: Deus como Pai ................................. 297<br />

14. O Evangelho d ejoão: Deus como Espírito Santo........................ 307<br />

15. O Evangelho de João: a vida cristã................................... 321<br />

16. As epístolas dejoão................................................. 347<br />

17. Apocalipse dejoão.................................................. 353


QUARTA PARTE — A S E P ÍS T O L A S G E R A IS ............................................ 361<br />

18. A Epístola aos Hebreus ....................................................................... ............... 363<br />

1 9 .A Epístola de Tiago................................................. 377<br />

20. A Primeira Epístola de Pedro ........................................ 383<br />

21. A Segunda Epístola de Pedro ........................................ 391<br />

22. A Epístola d e ju d a s.............................................................................395<br />

C O N C L U S Ã O ........................................................................................................................ 397


Abreviaturas<br />

A R A<br />

A R C<br />

BA G D<br />

BJ<br />

C B Q<br />

Chmn<br />

D I T N T<br />

E xpT<br />

H T R<br />

LB<br />

IB D<br />

IB N T G<br />

Versäo de Almeida Revista e Atualizada<br />

Versão de Almeida Revista e Corrigida<br />

W alter Bauer, A Greek-English Lexicon o f the N ew Testament and<br />

Other Early Christian Literature, ed. W illiam F. A rndt and F.<br />

W ilbur Gingrich, 2d ed., rev. F. W ilbur Gingrich and Frederick<br />

W . Danker (Chicago, 1979)<br />

Bíblia de Jerusalém<br />

Catholic Biblical Quarterly<br />

The Churchman<br />

Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, ed. Lothar<br />

Coenen e Colin Brown, 2 vols. (São Paulo, 1980-1984).<br />

The Expository Times<br />

The H arvard Theological Review<br />

The Interpreter’s Bible, ed. George A. Buttrick, 12 vols.<br />

(Nashville, 1 9 5 2 -5 7 )<br />

The Illustrated Bible Dictionary, 3 vols. (Leicester, 1980)<br />

C. F. D. Moule, An Idiom Book o f N ew Testament Greek<br />

(Cambridge, 1953)


ID B<br />

Int<br />

M M<br />

N T L H<br />

N T S<br />

N V I<br />

R T R<br />

S B K<br />

S JT<br />

T D N T<br />

Theo<br />

TynBul<br />

W T J<br />

The Interpreter’s Dictionary o f the Bible, ed. George A . Buttrick and<br />

Keith R. Crim, 6 vols. (Nashville, 1976)<br />

Interpretation<br />

James H ope M oulton and George Mulligan: The Vocabulary o f<br />

the Greek Testament (London, 1 9 1 4 -2 9 )<br />

N ova Tradução na Linguagem de Hoje<br />

N ew Testament Studies<br />

N ova Versão Internacional<br />

The Reformed Theological Review<br />

H erm ann L. Strack und Paul Billerbeck: Kom m entar zum Neuen<br />

Testament aus Talmud und Midrasch, 4 vols. (München, 1922-28)<br />

The Scottish Journal o f Theology<br />

Gerhard Kittel and Gerhard Friedrich, eds., Theological Dictionary<br />

o f the N ew Testament, 10 vols. (Grand Rapids, 1 9 6 4 -7 6 )<br />

Theology<br />

Tyndale Bulletin<br />

The Westminster Theological Journal


Prefácio do autor<br />

objetivo deste livro é fornecer uma introdução compacta à teologia do Novo<br />

Testamento. O objeto de estudo é grande, como comprova a existência de tantos<br />

volumes extensos, mas eu procurei não simplesmente acrescentar outro<br />

volume de muitas páginas. Antes, tentei seguir um meio-termo entre ser tão breve que não<br />

pudesse ajudar e tão longo e técnico que não fosse útil ao aluno ou leigo interessado. Se<br />

esses leitores se sentirem estimulados a procurar as obras maiores, estarei bem recompensado.<br />

Para alcançar meu objetivo não me aprofundei nas controvérsias que interessam apenas<br />

aos especialistas, mas espero ter escrito com suficiente noção do que os estudiosos<br />

estão dizendo. Simplesmente tentei expor minha visão dos principais ensinamentos teológicos<br />

dos livros do Novo Testamento canônico, sem tentar interagir com teorias excessivamente<br />

acadêmicas. Minha preferência era incluir uma documentação mais adequada, mas<br />

isso também teria aumentado o livro mais do que o desejável.<br />

Com algumas exceções, usei a New International Version para as citações do Antigo<br />

Testamento. Fiz minha própria tradução para as citações do Novo Testamento; isso dá ao<br />

leitor a vantagem de ver o que eu entendo ser o sentido do grego e, é claro, a desvantagem<br />

das limitações de uma tradução pessoal. Incentivo o leitor a conferir minha versão com as<br />

versões-padrão.<br />

Expresso minha gratidão a A N Z E A , publicadora da Festschrift em homenagem a D.<br />

Broughton Knox, pela permissão para usar minha contribuição para essa obra, “O apóstolo<br />

Paulo e seu Deus”.<br />

Leon Morris<br />

N a edição em português foi usada a versão Revista e Atualizada, de João Ferreira de Almeida (2a edição,<br />

©Sociedade Bíblica do Brasil, São Paulo, 1999), tanto para os textos do Antigo Testam ento quanto para os<br />

do Novo, a não ser quando outra versão (sempre identificada entre parênteses) reflete melhor a usada pelo autor<br />

(N , do T .).


Jntrodução<br />

pesar de Teologia do Novo Testamento ser o título de um grande número de<br />

livros, seu sentido exato está longe de ser óbvio. Parte do problema resulta<br />

das diferentes aplicações da palavra teologia. Rudolf Bultmann, por exemplo,<br />

tem uma obra notável em dois volumes intitulada Teologia do Novo Testamento, em que ele<br />

estuda boa parte do Novo Testamento. Duas das divisões principais chamam-se “A teologia<br />

de Paulo” e "A teologia do evangelho e das cartas de João”, mas as outras divisões principais<br />

são “Pressuposições e temas da teologia do Novo Testamento” (nesta ele inclui os<br />

capítulos “A mensagem de Jesus”, “A proclamação nos primórdios da igreja” e "A proclamação<br />

da igreja helenista independentemente de Paulo”) e “O desenvolvimento que resultou<br />

na igreja antiga”. Isso parece indicar que, apesar de o título do livro fazer referência ao<br />

“Novo Testamento”, ele encontra teologia em apenas dois lugares: nos escritos de Paulo e<br />

nos dejoão. Ele estabelece uma nítida diferença entre ensino de Jesus e teologia, conforme<br />

sua afirmação inicial: “A mensagem de Jesus é um dos pressupostos da teologia do Novo T estamento,<br />

em vez de fazer parte dela propriamente dita”.1 Da sua classificação é possível<br />

concluir que a maior parte do Novo Testamento não é teologia, e de qualquer forma<br />

parece que há duas teologias e não só uma.<br />

W . G, Kümmel, porém, escreveu um livro cujo título completo é The theology of tbe<br />

New Testament according to its major witnesses:Jesus - Paul -John . Isso parece indicar que existe<br />

algo que ele considera “a” teologia do Novo Testamento, apesar de ficar uma dúvida,<br />

Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament. New York, 1951, p. 3. S. Neill, em contraste, diz: "Toda<br />

reologiado Novo Testam ento tem de ser uma teologia de Jesus — ou não é nada” (Jesus through many eyes. P hiladelphia,<br />

1976, p. 10. Em contraste marcante com Bultmann, J. Jeremias dedica todo o vol. 1 do seu New Tes-<br />

:.-,


pois, enquanto há um capítulo chamado “A teologia de Paulo", os outros capítulos não têm<br />

essa palavra no título (“A proclamação de Jesus segundo os três primeiros evangelhos”, “A<br />

fé da primeira comunidade” etc.). Em todo caso, ele desautoriza a maioria dos escritores.<br />

Não se pode dizer que Kümmel lida com a teologia "do Novo Testamento”.<br />

Comentário semelhante pode ser feito sobre Outline of the theology of the New Testament,<br />

de Hans Conzelmann. O índice mostra que o assunto é tratado em cinco partes: A<br />

proclamação da primeira comunidade e da comunidade helenista, A proclamação nos<br />

sinóticos, A teologia de Paulo, O desenvolvimento pós-paulino, e João. Se levarmos esse<br />

esboço a sério, somente uma parte dele trata especificamente de teologia.<br />

Donald Guthrie aborda o assunto de modo temático. Ele toma os grandes tópicos<br />

de que trata o Novo Testamento e pesquisa a contribuição prestada por todos os seus<br />

escritores para cada um dos temas.2 Poderíamos continuar essa pesquisa indefinidamente.<br />

Parece que quase todo teólogo do Novo Testamento entende sua tarefa de modo diferente<br />

do que os outros praticantes da mesma arte. Gerhard Hasel mostra que, entre os onze<br />

autores que escreveram uma teologia do Novo Testamento entre 1967 e 1976, não há<br />

sequer dois que “concordam quanto à natureza, função, método e escopo da teologia do<br />

Novo Testamento”.3<br />

Está claro que “teologia” pode ser entendido de mais de uma maneira. Geoffrey W .<br />

Bromiley a define brevemente nestes termos: “Para ser exato, teologia é o que se pensa e diz<br />

sobre Deus”.4 O Shorter Oxford Englisb dictionary a vê como “o estudo ou ciência que trata de<br />

Deus, sua natureza e atributos e suas relações com o ser humano e com o universo”. Claramente<br />

ele se refere ao pensamento sistemático sobre Deus, e podemos entendê-lo neste<br />

sentido: “Um sistema coerente de idéias que interpretam de maneira lógica os assuntos<br />

relativos a Deus”. Talvez fosse melhor dizer: "... idéias que em princípio são capazes de<br />

interpretar...”, pois nossas teologias nem sempre são tão coerentes e eficientes como gostaríamos.<br />

Mas elas representam nossa tentativa de explanar de modo ordeiro nossa compreensão<br />

de Deus e da sua revelação em Cristo, e de tudo o que isso significa para os seus<br />

adoradores. “Teologia do Novo Testamento”, portanto, é a compreensão das questões<br />

relativas a Deus expressas pelo Novo Testamento, nele subentendidas ou dele dedutíveis.<br />

Ela não se traduz necessariamente sempre em termos usados pelos escritores do Novo<br />

Testamento, mas está implícita no que eles disseram, pois o que eles dizem sempre tem por<br />

New Testament theology. London, 1981.<br />

Netv Testament theology. Grand Rapids, 1978, p, 9-10. Leonhard G oppelttraz um sumário útil da história e<br />

dos problemas da teologia do Novo Testam ento em seu Theology o f the New Testament, i. Grand Rapids, 1981,<br />

p. 251-281, E interessante que nem ali nem no vol. 2 ele trata de Marcos, Efésios, das cartas pastorais ou das<br />

cartas gerais menores.<br />

Everett F. Harrison, Geoffrey W * Bromiley e Cari F, H . Henry, eds., Bakers dictionary o f theology. Grand<br />

Rapids, 1960, p. 518.


ase sua compreensão dos caminhos de Deus. Se levarmos o termo "Novo Testamento” a<br />

sério, resistiremos à tentação de descartar passagens ou livros que consideramos de importância<br />

inferior ou até não autênticos. Tudo no Novo Testamento faz parte do pensamento<br />

da igreja antiga, quer remonte ao próprio Jesus, quer a um dos seus seguidores.<br />

E inevitável que surja a questão de até que ponto devemos repetir o que os escritores<br />

do Novo Testamento disseram e até que ponto devemos interpretá-los. Nossa preocupação<br />

principal está naquilo que “eles queriam dizer” ou naquilo que “eles querem dizer"?<br />

Não há como escapar da primeira pergunta. Temos de fazer a tentativa sincera de encontrar<br />

o sentido que os autores transmitiram quando escreveram seus livros numa situação<br />

histórica específica. No entanto, obviamente, ao fazê-lo, alguns elementos de interpretação<br />

são inevitáveis. Lemos esses textos situados do outro lado de uma barreira de muitos<br />

séculos e do ponto de vista de uma cultura muito diferente. Fazemos um esforço muito<br />

grande para levar isso em conta, mas nunca somos totalmente bem-sucedidos. Neste livro<br />

procuro analisar afundo o que autores do Novo Testamento queriam dizer, e não faço isso<br />

como exercício acadêmico, mas como prelúdio necessário para compreendermos o que<br />

seus escritos significam para nós hoje.<br />

Precisamos ter em mente que os escritores dos livros do Novo Testamento não<br />

estavam escrevendo obras teológicas completas. Estavam concentrados nas necessidades<br />

das igrejas às quais escreviam. Essas igrejas já conheciam o Antigo Testamento, porém<br />

esses escritos novos com o tempo se tornaram a parte mais importante das Escrituras da<br />

comunidade de fiéis. Como tal, devem ser estudados à parte, com as seguintes perguntas<br />

em mente: O que esses escritos significam? Que teologia expressam ou subentendem? O<br />

que há de valor permanente neles?5<br />

E com perguntas como essas que este livro se ocupa. Ele não é uma história dos tempos<br />

do Novo Testamento, nem uma descrição da religião do Novo Testamento. Ele também<br />

não parte da idéia de que o Novo Testamento foi escrito como teologia. Como acabei<br />

de dizer, os escritores do Novo Testamento escreviam para responder às necessidades das<br />

igrejas do seu tempo como eles as entendiam. Mas o que eles escreveram não deve ser visto<br />

como uma coleção de reflexões aleatórias. Por trás de todos esses livros está a profunda<br />

convicção, a profunda convicção teológica, de que Deus agiu em Cristo. Em outras palavras,<br />

há teologia por trás de todos os textos do Novo Testamento. Não podemos escrever<br />

uma teologia de Pedro, de Tiago e nem mesmo de Paulo, pois em nenhum caso temos<br />

material suficiente nem mesmo uma indicação de que o escritor nos está dando o que ele<br />

Hendrikus Boers fala de uma “apresentação teológica, ou seja, sistemática do ensino religioso imutável<br />

que a Bíblia contém” (W hat is New Testament theology? Philadelphia, 1979, p. 32). Charles C. Ryrie faz diferença<br />

entre teologia bíblica, teologia sistemática e exegese: “É uma combinação em parte história, em parte exegética,<br />

em parte crítica, em parte teológica, e por isso totalmente distinta” (Biblical theology o f the New Testament.<br />

Chicago, 1982, p. 11).


considera mais importante para a teologia cristã. Todos esses escritos foram ocasionados.<br />

Mas eles se orientam pela teologia, e é bom levarmos a sério as idéias neles expressas ou<br />

implícitas.<br />

Outro problema surge da própria natureza de um projeto como este. William<br />

Wrede, há muito tempo, afirmou que “o nome teologia do Novo Testamento’ incorre em<br />

duplo erro terminológico”,6 e muitos estudiosos que o sucederam concordam com isso.<br />

Wrede argumenta que devemos levar em consideração toda a literatura do início do cristianismo<br />

e não apenas os livros do cânon, e também que o Novo Testamento está preocupado<br />

com religião e não com teologia. Na verdade, ele pensa que o assunto deve ser<br />

chamado "história da religião dos primórdios do cristianismo” ou “história da religião e da<br />

teologia dos primórdios do cristianismo”.7<br />

Contudo, será mesmo que o título está errado nos dois aspectos? É claro que é possível<br />

escrever uma teologia da igreja antiga levando em consideração toda a literatura antiga<br />

disponível. No entanto, a igreja sempre deu aos escritos canônicos um lugar especial,8 e não<br />

parece haver uma boa razão por que esses textos não devam ser estudados juntos,9 fazendo<br />

apenas referências de passagem a outros escritos antigos. A igreja sempre considerou os livros<br />

canônicos “inspirados" (como quer que se entenda o termo). É a esses livros e não a outros<br />

que os cristãos recorrem quando querem confirmar algum ensino cristão autêntico.10<br />

Wrede faz pouca diferença entre os escritos canônicos e outros textos cristãos antigos:<br />

“Nenhum escrito do Novo Testamento nasceu com a etiqueta canônico’. A declaração de<br />

que um escrito é canônico significa em primeiro lugar apenas que ele foi declarado canônico<br />

mais tarde, pelas autoridades da igreja do segundo ao quarto século, e em alguns casos<br />

apenas depois de muita hesitação e desentendimento. [...] Quem aceita sem questiona-<br />

Citado do seu artigo "T he task and methods o f‘N ew Testam ent theology”’ reimpresso em Robert M organ,<br />

The nature o f New Testament theology. London, 1973, p. 116.<br />

Ibid.<br />

C £ F. F. Bruce: “O Novo Testam ento engloba todos os escritos que têm alguma base razoável para ser<br />

considerados os documentos fundamentais ou as fontes principais da fé cristã” (The message o f the New Testament.<br />

Grand Rapids, 1983, p. 11).<br />

Cf. N orm an Perrin: “Permanece o fato de que o Novo Testam ento é uma entidade que, como tal, teve e<br />

ainda tem um papel enorme na história cristã, e não estou preparado para dissolvê-la em alguma coisa diferente<br />

sem bases muito mais fortes do que as ambigüidades históricas do processo de formação do cânon” (citado<br />

em Hasel, New Testament theology, p. 135-136).<br />

James D. G. Dunn encontra bastante diversidade no Novo Testam ento, mas considera o cânon importante.<br />

Ele "delimita a diversidade aceitável” (Unity and diversity in the New Testament. Philadelphia, 1977, p.<br />

378); “As tradições do N T têm uma autoridade normativa que não pode ser atribuída a tradições posteriores<br />

da igreja” (p. 383); “O N T é canônico [...] porque o caráter entrelaçador de tantas partes componentes mantém<br />

o todo junto na unidade de uma diversidade que reconhece uma lealdade comum” (p. 387).


mento a idéia do cânon se coloca sob a autoridade dos bispos e teólogos daqueles séculos”.11<br />

Isso, porém, é simplificar demais as coisas. Para sermos específicos devemos dizer que ele<br />

deixa de ver o fato de que nenhum bispo ou teólogo (nem mesmo um concílio) parece ja ­<br />

mais ter presumido o direito de tornar algum livro canônico ou, é claro, não canônico.<br />

O que parece ter acontecido foi mais ou menos o seguinte: alguns dos fiéis estão perplexos.<br />

Estão descobrindo que, em algumas igrejas, livros como 2 e 3João não são lidos<br />

como Escrituras sagradas, ao contrário do que acontece em outras igrejas. Algumas estão<br />

lendo livros como lClemente, Qual é o rumo certo a tomar? O que devem fazer? A pergunta<br />

é remetida a uma autoridade, um bispo, um teólogo ou um concílio. Quando uma decisão<br />

é anunciada, ela diz mais ou menos o seguinte: “Estes são os livros reconhecidos na<br />

igreja”. Quando Atanásio, por exemplo, apresentou sua conhecida lista dos livros do Novo<br />

Testamento (a primeira lista oficial com os 27 livros, nem mais nem menos), ele descreveu<br />

os livros autênticos como os que tinham sido “entregues aos pais”, e passou a alistá-los<br />

como “transmitidos e aceitos como procedentes de Deus”.12 Ele não decretou que dali em<br />

diante eles seriam canônicos; ele disse que eles tinham sido recebidos como tais, e a fórmula<br />

sempre foi parecida com isso. Nenhum cristão ou grupo de cristãos parece alguma vez ter<br />

assumido a posição de autoridade para acrescentar algum livro à lista aceita ou tirar algum<br />

dela.13 Se levarmos a sério a idéia de que Deus guia a sua igreja, temos de ver nisso um indício<br />

de que estes são os livros que ele quer que seu povo tenha. E um fato surpreendente que,<br />

numa época em que não havia uma estrutura para impor uma decisão à igreja no mundo<br />

UMorgan, Nature o f New Testament theology, 70-71. A idéia de que nenhum texto do Novo Testam ento foi<br />

escrito como canônico talvez não seja tão exata como W rede afirma. Apocalipse começa com uma bênção<br />

para quem o lê e ouve (Ap 1.3). Onde ouviriam a leitura senão na reunião de adoração dos cristãos? E possível<br />

que se pretendia que esse livro fosse lido na igreja como canônico desde o começo. H . B. Swete afirma que o<br />

autor “reivindica para seu livro a equiparação com os livros proféticos do A T " (The Apocalypse o f st. John. London,<br />

1906, p. 1). Essa também é a posição de Robert H . Mounce, The book o f Revelation (Grand Rapids, 1977,<br />

p. 66).<br />

UNicene andpost-Nicene fathers, segunda série, iv. Grand Rapids, 1957, p. 551-552.<br />

13Com isso não estou negando que alguns líderes da igreja (Ireneu, por exemplo) tiveram um papel importante<br />

nas discussões sobre o cânon, nem que, com o tempo, critérios como “apostolicidade” foram aplicados a<br />

título de teste. N o entanto, todas as evidências apontam não para uma “formação do cânon” deliberada, mas<br />

para toda a igreja chegando, em velocidades variadas e épocas diferentes, a conclusões semelhantes. Denis M.<br />

Farkasfalvy responde a uma pergunta sobre a canonicidade de Apocalipse com esta declaração: “Parece que a<br />

igreja sabia como identificar como livros apostólicos' os que ela necessitava. E, é claro, ela fazia tudo isso com<br />

base em sua convicção de que tinha em seu fundamento apostólico tudo o que precisava como ponto de partida”<br />

(W illiam R. Farmer e Denis M . Farkasfalvy, The formation o f the New Testament canon. New York, 1983, p.<br />

156). Eu chamo isso de processo mais ou menos inconsciente.


todo, exatamente os mesmos vinte e sete livros foram aceitos quase universalmente,14 Não<br />

devemos ver o cânon como uma organização arbitrária feita por alguns bispos e teólogos.<br />

Ele ocupa um lugar especial no esquema cristão das coisas,15 e não há nenhuma razão por<br />

que ele não deva ser estudado separadamente.<br />

O segundo argumento de Wrede é que “teologia” é uma palavra errada; ele insiste<br />

muito em uma abordagem histórica (cf. a referência de Morgan “ao método teológico de<br />

interpretar a tradição por métodos históricos”).16 É evidente que se pode estudar o Novo<br />

Testamento dessa maneira, mas não posso concordar que esta seja a única. Simplesmente<br />

não conheço suficientemente bem a história dos primórdios da igreja para tentar uma coisa<br />

dessas,17 e fico maravilhado com a confiança com que alguns põem as mãos à obra. A abordagem<br />

histórica é muito insegura porque nosso conhecimento da história da igreja antiga<br />

(em oposição às nossas hipóteses e deduções) é muito escasso. Os evangelhos não foram<br />

escritos para nos fornecer uma história da vida e da época de Jesus de Nazaré. Eles nos con-<br />

14A Peshita, versão siríaca do Novo Testam ento datada mais ou menos do quinto século, não contém 2Pedro,<br />

2João, 3João, Judas e Apocalipse. Alfred W ikenhauser diz que a metade oriental da igreja síria até hoje<br />

adota esse cânon; a metade ocidental (os jacobitas) tem todos os vinte e sete livros, mas, “até onde se sabe,<br />

aqueles cinco livros não são usados em sua liturgia" (Netv Testament introduction. N ew York, 1958, p. 57). A<br />

cristandade em termos gerais, porém, concordou com o cânon de vinte e sete livros. E claro que houve muitas<br />

discussões, e por muito tempo houve incerteza em alguns lugares sobre certos livros como Hebreus e Apocalipse.<br />

Mas no fim esses vinte e sete livros foram reconhecidos, não porque algum bispo ou teólogo lhes conferiu<br />

a condição de canônicos, mas porque a igreja em geral acabou vendo neles uma parte da revelação que Deus<br />

tinha dado.<br />

Cf. B. F. W estcott: “É como se, por algum instinto providencial, cada um dos mestres que estavam mais<br />

perto dos escritores do Novo Testam ento comparasse diretamente seus escritos com os deles, e decididamente<br />

se colocassem em um patamar inferior. O fato é muito significativo, pois mostra como a formação do cânon<br />

foi um ato de instituição da igreja, proveniente não de reflexão, mas efetuado no curso do seu crescimento natural”<br />

(A general survey o f the history o f the canon of the New Testament, Cambridge, 1855, p. 65-66).<br />

Morgan, Nature o f New Testament theology, p. 59. Morgan defende a separação de estudos históricos e teológicos<br />

em um artigo intitulado "A Straussian question to New Testam ent theology"' (N TS 23 [1976-77], p.<br />

243-265. Inter alia ele destaca que “foi exatamente a íntima ligação que Baur fez entre o curso da história e sua<br />

interpretação metafísico-teológica que tornou sua teologia extremamente vulnerável e sujeita à falsificação<br />

pela correção do quadro histórico" (p. 256). “Pode-se ver que historiadores e teólogos obedecem a regras diferentes”<br />

(p. 259). Naturalmente ele não está dizendo que as duas disciplinas podem ser estudadas totalmente<br />

em separado: “O que está errado em termos históricos não pode estar certo em termos teológicos” (p. 265).<br />

Mas ele náo consegue manter sua posição.<br />

É reconfortante o fato de Hans Conzelmann não ter uma seção em seu Theology o f the New Testament sobre<br />

“o problema do Jesus histórico”; e ele diz; “Esse problema é desconcertante. [..,] Mesmo assim tenho de insistir<br />

que o Jesus histórico’ não é tema da teologia do Novo Testam ento” (An outline o f the theology o f the New Testament.<br />

London, 1969, p. xvii).


am o que é importante para a nossa salvação, e a história é mais ou menos incidental.'8<br />

Com as informações que hoje temos à nossa disposição simplesmente não é possível fazer<br />

nada parecido com um relato histórico exato da vida de Jesus de Nazaré e dos primeiros<br />

tempos da igreja que resultou da sua vida, morte e ressurreição. Os estudiosos discutem<br />

quanto dos evangelhos remonta a Jesus; há debates intermináveis sobre a autenticidade<br />

dessa ou daquela afirmação e desse ou daquele incidente. Se temos de insistir numa história<br />

exata antes de poder falar de teologia, estamos realmente em má situação.19<br />

Vemos como Wrede se preocupa com a história em sua afirmação: “Em último<br />

caso, pelo menos queremos saber quais eram as crenças, os pensamentos, os ensinamentos, as<br />

esperanças, as exigências e as ambições no período mais antigo do cristianismo, e não o que certos<br />

escritos dizem sobre fé, doutrina, esperança etc.”20 Eu compartilho o desejo de Wrede<br />

quanto às informações sobre o que se cria, ensinava etc, (apesar de não entender como esse<br />

desejo pode ser satisfeito sem alguma nova e surpreendente fonte de informações), mas<br />

discordo fortemente quando ele se recusa a interessar-se no que o Novo Testamento diz<br />

sobre fé, doutrina e esperança. Eu quero realmente saber o que ele diz sobre essas coisas.<br />

Os especialistas em história certamente estão livres para pesquisar a história. A teologia,<br />

porém, é uma disciplina diferente, que pode ser estudada mesmo quando não temos certeza<br />

dos detalhes históricos que cercam os documentos que a abrigam.21 Voltar ao tempo<br />

exato em que certas doutrinas surgiram e aos primeiros cristãos que as enunciaram seria<br />

interessante, mas não é isso o que eu entendo por teologia bíblica. Bernard Weiss disse o<br />

seguinte muito tempo atrás: “A teologia bíblica não pode se preocupar com as investigações<br />

críticas e especializadas sobre a origem dos escritos do NT, porque ela é apenas uma<br />

18C f.J. Bonsirven: "Como estou escrevendo um livro sobre teologia, não é meu objetivo delinear a história<br />

do cristianismo antigo, resolvendo os problemas levantados pelas lacunas nos documentos que temos à disposição”<br />

(Theology of the New Testament. Londres, 1963, p. 157).<br />

19Rudolf Schnackenburg objeta à abordagem histórica com base em três razões principais: 1) A cronologia<br />

é incerta, e o “desenvolvimento”, muito discutível; 2) esse tipo de teologia “parece ser indistinguível das religiões<br />

comparadas”: e 3) ela destrói “a unidade da teologia do Novo Testam ento” (New Testament theology today.<br />

New York, 1963, p. 24).<br />

Morgan, Nature o f New Testament theology, p. 84-85 (itálicos de W rede).<br />

N a verdade, A dolf Schlatter vê a teologia do Novo T estamento como “uma ferramenta indispensável que<br />

a introdução crítica usa constantemente em seu trabalho” (Morgan, Nature o f the New Testament theology, p.<br />

159). Hendrikus Boers diz que o resultado do trabalho da escola da Religionsgeschichte “foi que a apresentação<br />

de tal história [isto é, a história de uma religião viva, não uma história de doutrinas] foi sendo separada não só<br />

do cânon do Novo Testam ento, mas também da sua utilidade para o cristianismo contemporâneo” (W hat is<br />

New Testament theology? Philadelphia, 1979, p. 66). Prestamos um desserviço à igreja se não reconhecemos que<br />

a teologia tem um lugar só seu, bem distinto do papel da história.


ciência histórico-descritiva e não histórico-crítica”,2' Antes, a teologia está preocupada<br />

com fé, esperança e amor, pecado e salvação, vida aqui e agora, as esperanças para o futuro,<br />

e acima de tudo com Deus e o que ele fez em Cristo.23 A abordagem que insiste em um<br />

estudo histórico detalhado de como os escritos do Novo Testamento chegaram ao que<br />

hoje são é inadequada.<br />

Com isso não se quer negar a existência de um desenvolvimento do pensamento<br />

neotestamentário. Certamente houve um desenvolvimento, mesmo que não tenhamos<br />

condições de acompanhá-lo com precisão. Em todo caso, porém, a tarefa da teologia é descritiva<br />

e não histórica. Ela se ocupa em dizer quais são os ensinos teológicos dos vários textos,<br />

não em explicá-los e em mostrar como seus vários autores chegaram a eles. Os cristãos<br />

se concentram em um grupo de livros em sua condição canônica, e não em como eles conquistaram<br />

tal condição.24 O teólogo, é claro, precisa ter alguma preocupação com a história.<br />

Os documentos do Novo Testamento surgiram em determinada época e determinada cultura,<br />

e ambas estão distantes de nós. Temos de voltar a essa época e fazer nossas perguntas<br />

sob a perspectiva dessa cultura, se quisermos entender o sentido dos documentos. O que<br />

estou evitando é a tentativa de mapear em detalhe a seqüência de eventos na igreja antiga e a<br />

maneira pela qual os documentos vieram a existir em sua forma presente, como se esse<br />

empreendimento fosse um prelúdio necessário à teologia.<br />

Pelo fato de a teologia do Novo Testamento estar preocupada basicamente com o<br />

produto final e não com o detalhamento dos passos ao longo do caminho, ela analisa o que<br />

distingue os primeiros cristãos do que criam o judaísmo ou o helenismo da sociedade do<br />

primeiro século em geral. É razoável esperar que a comunidade cristã apresentava algumas<br />

coisas em comum com cada uma dessas outras comunidades, mas também havia aspectos<br />

que lhe eram peculiares. Com certeza, como indivíduos, os cristãos tinham suas ênfases<br />

pessoais (assim como hoje). O que importa é reconhecer o que distingue os cristãos como<br />

Citado em Hasel, New Testament theology, p. 36.<br />

N ão devemos esquecer do que Floyd V . Filson disse em seu artigo “How I interpret the Bible”: “Trabalho<br />

com a convicção de que o único método de estudo realmente objetivo leva em conta a realidade de Deus e da<br />

sua atuação, e que qualquer outro ponto de vista está carregado de pressuposições que, a bem da verdade, apesar<br />

de muito sutilmente, contêm uma negação implícita da fé cristã plena” (Int 4 [1950], p. 186).<br />

24Hans Conzelmann deixa isso claro a respeito dos escritos de Lucas: “Este estudo da teologia de Lucas é,<br />

quanto à sua abordagem dos problemas, na maior parte independente de teorias literárias específicas sobre o<br />

evangelho de Lucas e Atos dos apóstolos, pois ele se ocupa com todos os escritos de Lucas, do jeito que estão.<br />

Se eles formam um esquema unificado, então, para o nosso propósito, a análise literária e crítica é de importância<br />

apenas secundária"-. Ele concorda que essa importância secundária não significa desprezo, e depois continua:<br />

“Todavia, devemos deixar claro que nosso objetivo é elucidar a obra de Lucas em sua forma presente,<br />

não investigar suas possíveis fontes ou os fatos históricos que fornecem o material” (The theology o f st. Luke.<br />

London, 1961, p. 9). D e modo semelhante, Joseph A. Fitzmyer diz: “É a teologia do produto final que precisa<br />

ser sintetizada. Isso, no fim das contas, é mais importante do que o que pode ser esquadrinhado no século vinte<br />

como a teologia d e‘Q ’ ou do ensino de Jesus” (The gospel accordingto Luke [TIX ], New York, 1983, p. 144).


grupo e como indivíduos. Neste estudo, tentarei dar uma visão geral do pensamento de<br />

ambos — dos cristãos como um todo e como indivíduos — e tentarei descobrir o que é<br />

distintivo e o que é comum a todos. As grandes afirmações cristãs deverão então aparecer.<br />

Tenho mais respeito pela insistência de Wrede na preocupação dos escritores do<br />

Novo Testamento com a religião. Só que, a meu ver, religião e teologia andam juntas, ou<br />

pelo menos deveriam andar. Uma fica empobrecida sem a outra. Uma religião puramente<br />

pragmática, sem uma teologia bem pensada, é insatisfatória. Ao mesmo tempo, uma teologia<br />

que não resulta em práticas religiosas corretas não tem muito valor. A teologia, como os<br />

escritores do Novo Testamento a vêem, necessariamente resulta em atitudes corretas e<br />

costumes igualmente corretos, e isso em relação a Deus e às outras pessoas. No entanto,<br />

nos pontos em que a teologia e a religião à qual ela aparece tão ligada puderem ser<br />

diferenciadas, este livro se ocupará da primeira.<br />

O teólogo cristão, por isso mesmo, se envolve com seu objeto. Morgan afirma que “o<br />

teólogo não tem a mesma liberdade do historiador. Ele não pode dizer que foi assim que a<br />

tradição entendeu o cristianismo, sem que isso lhe represente uma opção de vida. Se quiser<br />

continuar sendo um teólogo cristão, ele tem de poder alegar continuidade com a tradição, e<br />

isso significa tecer o desenho da sua própria posição com fios recebidos do passado”/5Em<br />

certa medida, todos os cristãos estão envolvidos nessa tarefa de identificar os fios no Novo<br />

Testamento e formar com eles um desenho. Pode ser que ninguém tenha sucesso completo<br />

nessa empreitada; não somos suficientemente grandiosos e nossa compreensão não é<br />

abrangente o suficiente para dar conta da tarefa. Pode até ser que alguns achem que a tarefa<br />

é um esforço para conciliar o que é irreconciliável.26 Todavia, pelo menos o que estamos<br />

tentando fazer em um estudo como este é englobar o ensino de todo o Novo Testamento.<br />

Estamos tentando ser, não paulinistas ou seguidores de João ou dos teólogos sinóticos,<br />

mas teólogos do Novo Testamento.<br />

Isso leva a outro problema com que se defronta todo aquele que quer escrever uma<br />

teologia do Novo Testamento nestes dias — a idéia muito difundida de que há diferenças<br />

consideráveis entre os escritores dos vários livros do Novo Testamento. Alguns argumentam<br />

que não pode haver uma teologia “do Novo Testamento”; preferem pensar em várias<br />

25 Morgan, N ature o/N ew Testament theology, p. 41.<br />

É a partir de uma convicção como essa que muitos em nossos dias preferem trabalhar com um “cânon<br />

dentro do cânon”; eles consideram um ou alguns livros canônicos confiáveis e relegam os demais a um lugar secundário,<br />

ou até os desprezam completamente. Hans Küng mostra que isso “requer nada menos do que ser<br />

mais bíblico que a Bíblia” (Stntctures o f the church. New York, 1964, p. 164). Seja como for, todas essas idéias são<br />

totalmente subjetivas; não há nenhuma razão convincente para destacar uma parte do Novo Testam ento do<br />

restante. Tudo depende da escolha pessoal do pesquisador e, seja qual for essa escolha, ela inevitavelmente resulta<br />

numa teologia empobrecida pela omissão de partes importantes das Escrituras. Hasel fez uma avaliação<br />

proveitosa do “cânon dentro do cânon” com referências à literatura (Neiv Testament theology, p. 164-170).


"teologias”.27 Eles acham que as diferenças entre os escritores são tão grandes que só podem<br />

falar de contradições e, é claro, se há contradições, é inútil procurar uma teologia comum.<br />

Ao mesmo tempo, porém, em que reconhecemos as diferenças, também temos de<br />

ver que há uma unidade. Se não existisse algum tipo de unidade, os vários livros não teriam<br />

todos sido aceitos no mesmo cânon. Apesar de todas as suas diferenças, os escritores dos<br />

livros do Novo Testamento eram todos reconhecidos como cristãos, assim como todos os<br />

outros fiéis que não escreveram livros. Havia algo que diferenciava os cristãos das outras<br />

pessoas, algo reconhecido tanto pelos próprios cristãos quanto pelos de fora que olhavam<br />

para eles. Havia o consenso entre os cristãos de que Deus agira em Jesus de Nazaré, principalmente<br />

em sua morte e ressurreição, Havia consenso de que o que Deus fizera exigia<br />

deles uma atitude de confiança (a palavra que usavam era “fé”) e uma conseqüente vida de<br />

serviço — serviço prestado ao seu Deus e às outras pessoas.<br />

Muita coisa depende do que estamos procurando. Ao comentar essa idéia de unidade<br />

na diversidade do Novo Testamento, A. M. Hunter chama a atenção para o uso de<br />

expressões variadas: nos evangelhos sinóticos, o “reino de Deus”; em Paulo, “estar em Cristo”;<br />

e em João, o “Logos que se tornou carne”. Ele continua: "Isole cada uma dessas expressões<br />

e observe o que acontece. Seu estudo do reino de Deus pode levá-lo de volta pelo<br />

judaísmo para o Antigo Testamento e talvez até (como fez Otto) à religião ariana primitiva.<br />

Seu estudo da fórmula paulina ‘em Cristo’ pode levar você de volta ao misticismo helenista<br />

(como fez Deissmann). Seu estudo do Logos pode levar você de volta por meio de Filo<br />

para Platão e os estóicos”.28 Não há uma ligação de verdade entre a religião ariana primitiva,<br />

o misticismo helenista e Filo, Platão e os estóicos. Seria fácil concluir que as três expressões<br />

citadas não têm nada a ver uma com a outra. Mas essa conclusão seria precipitada.<br />

Hunter continua: “Quando Jesus disse: A vós outros está próximo o reino de Deus' (Lc<br />

10.9) e Paulo: ‘Se alguém está em Cristo, é nova criação’ (2Co 5.17) e João: ‘O Logos se fez<br />

carne e habitou entre nós' Qo 1.14), eles não estavam anunciando verdades totalmente<br />

diferentes e sem relação entre si; pelo contrário, estavam usando termos diferentes, categorias<br />

de pensamento distintas, para expressar sua convicção comum de que o Deus vivo<br />

tinha falado e agido por meio do seu Messias em favor da salvação do seu povo”.29<br />

Isso quer dizer que não devemos presumir precipitadamente que formas distintas<br />

de expressão necessariamente indicam contradições irreconciliáveis. Existe o que se pode<br />

chamar de "unidade na diversidade", e onde ela existe devemos procurá-la. E claro que não<br />

Cf. Schlatter: “A teologia do Novo Testam ento tem de ser dividida em tantas teologias quantos são os autores<br />

do Novo Testam ento" (Morgan, Nature o f New Testament theology, p. 140).<br />

The unity o f the New Testament. London, 1943, p. 14.<br />

Ibid., p. 14'15. H unter encontra a unidade básica do Novo Testam ento no ensino sobre o kerygma, Jesus<br />

como Senhor, igreja e salvação.


estou dizendo que o exemplo de Hunter prova que todas as diversidades no Novo Testamento,<br />

quando estudadas, convergirão para uma unidade satisfatória. Estamos apenas no<br />

início do empreendimento. Não sabemos aonde ele levará. O que estou dizendo é que o<br />

que Hunter fez mostra claramente que pode haver uma unidade básica quando alguns<br />

escritores do Novo Testamento usam suas formas naturais de pensamento para expressar<br />

idéias que, à primeira vista, não têm uma relação próxima umas com as outras. Não devemos<br />

passar por cima das diversidades, mas também é importante que não negligenciemos a<br />

unidade.<br />

Talvez possamos usar uma ilustração da nossa própria experiência. Em uma igreja<br />

de pessoas que pensam da mesma forma é bem comum encontrarmos diferenças. Alguns<br />

membros estão mais bem informados e pensam mais profundamente que outros. Alguns<br />

destes talvez se expressem de maneiras que os primeiros não escolheriam, maneiras sujeitas<br />

a objeções legítimas. Mas será que elas estão necessariamente dizendo coisas incompatíveis<br />

com as formas pelas quais os mais bem informados as expressariam? Pode haver uma unidade<br />

profunda e comovente numa igreja, quaisquer que sejam as formas de expressão dos<br />

seus membros individualmente. É claro que também pode haver perversidade de espírito e<br />

opiniões que a igreja como um todo não pode aceitar. Temos de examinar o Novo Testamento<br />

e ver o que o ensinamento dos vários autores significa e se as diferenças revelam<br />

contradições irreconciliáveis ou não.<br />

Até aqui eu disse apenas que nas igrejas de hoje às vezes encontramos expressões<br />

totalmente diferentes usadas por pessoas cujas convicções básicas são praticamente as<br />

mesmas, e que a mesma coisa pode acontecer no Novo Testamento. H á autores e pensadores<br />

notáveis no Novo Testamento, mas, por maiores que sejam suas diferenças, temos<br />

de estar cientes de que eles eram membros da mesma comunidade de fé; não tinham saído<br />

de algum deserto, sem nenhuma convicção religiosa. Tinham sido todos moldados pelo<br />

contato com Cristo, mas também, até certo ponto, pela comunidade à qual pertenciam. O<br />

que eles escreveram é ensinamento cristão, por mais individual que seja sua expressão. E<br />

todos escreveram sob a tutela do mesmo Espírito Santo.<br />

Isso não quer dizer que todas as maneiras de expressar a posição cristã sejam aceitáveis.<br />

Paulo queixou-se de “outro evangelho, o qual não é outro" (G11.6-7), e durante toda a<br />

sua história a igreja sempre viu pessoas que afirmavam ser cristãs, mas se encontravam tão<br />

afastadas da fé distintivamente cristã que foram rotuladas de hereges. Temos de examinar<br />

as diferenças no Novo Testamento e também sua unidade, para ver se estamos diante de<br />

opiniões incompatíveis ou não. Uma diferença grande é que a pregação de Jesus, com sua<br />

ênfase no reino de Deus, está um pouco longe da pregação inicial da igreja, com sua ênfase<br />

na morte e ressurreição de Jesus. Nada nas cartas nos leva a pensar que os primeiros cristãos<br />

tentaram simplesmente passar adiante o que Jesus tinha dito. E claro que eles se<br />

lembravam disso, e o passaram adiante como mostra sua preservação nos evangelhos.


Mas os primeiros cristãos não tinham como voltar para a cruz e para a ressurreição.<br />

Esses fatos constituíam o centro dos grandes atos salvadores de Deus, e de uma ou outra<br />

forma todos os autores do Novo Testamento os expressam. Paulo podia falar de uma<br />

“nova criação” (2Co 5.17), que Atos mostra claramente no caso do próprio Paulo (Atos<br />

contém três relatos da sua conversão). Há uma ênfase em vida em Atos, João e Paulo, e<br />

junto com ela o destaque da importância de crer e viver em novidade de vida. E em todo o<br />

Novo Testamento há uma forte ênfase na cruz e na ressurreição: os evangelhos conduzem-nos<br />

até elas como seu clímax, e os outros livros voltam o olhar para elas como sua base.<br />

Em outras palavras, o cristianismo nos aponta um grande ato de Deus que converge na<br />

cruz (isto é crucial no sentido literal da palavra) e nos desafia a abraçar a "salvação”, que significa<br />

abandonar o antigo modo de vida e seguir num novo. Nem todos os autores do<br />

Novo Testamento expressam isso da mesma maneira e também não enfatizam aspectos<br />

idênticos. A semelhança do que ocorreu no transcurso dos séculos, também no primeiro<br />

século um aspecto da fé podia despertar mais o interesse de um cristão, e outro aspecto, dos<br />

demais, Esses autores, porém, estão todos escrevendo sobre a experiência cristã autêntica e<br />

especificamente sobre o que Deus fez por nossa salvação. Será nossa tarefa procurar a<br />

verdade teológica por trás das diversas maneiras de expressá-la.<br />

Esse assunto pode ser estudado de muitas formas diferentes. Poderíamos começar<br />

com os evangelhos, passar para Atos, tomar as cartas em ordem cronológica e terminar<br />

com Apocalipse. Ou poderíamos pôr tudo em ordem cronológica — pelo menos na ordem<br />

que conhecemos. Há outras possibilidades, como mostra amplamente a grande variedade<br />

de teologias do Novo Testamento. Na falta de um procedimento aceito universalmente,<br />

começaremos com os escritos de Paulo, pois pode haver poucas dúvidas de que eles formam<br />

a parte mais antiga do Novo Testamento. Depois disso, a datação fica complicada,<br />

mas passaremos para o Jesus retratado por Marcos, Mateus, Lucas— Atos e João — nessa<br />

ordem. Isso não significa que o ensino de Jesus seja incerto ou inatingível. Pelo contrário,<br />

os evangelhos apresentam relatos confiáveis de Jesus, e seus atos e palavras são de importância<br />

fundamental. Mas não há como negar que os relatos são posteriores aos escritos de<br />

Paulo, e devem ser estudados depois de Paulo, Hebreus virá depois, e a seguir os demais<br />

textos. Se o leitor fizer objeções a essa ordem, eu as aceitarei. Mas há objeções a qualquer<br />

ordem. E, a exemplo da observação bem-humorada que alguém fez sobre a teologia sistemática,<br />

não importa muito onde você começa; é preciso passar por todos os lugares antes<br />

de sair. Com esse pensamento estimulante diante de nós, passemos a analisar os livros do<br />

Novo Testamento.


imeira parte<br />

Os escritos de Paulo<br />

nulo era um homem muito talentoso, e seu ministério abrangente e eficaz1foi<br />

/grandemente ajudado pelo fato de que ele transitava bem em dois mundos, o<br />

judeu e o helenista (talvez devêssemos acrescentar um terceiro — o mundo<br />

romano). Ele era "israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim” (Rm 11.1;<br />

cf. 2Co 11.22), algo do que ele claramente se orgulhava. Sobre descendência e realização ele<br />

pôde escrever: “Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado<br />

ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus;<br />

quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei,<br />

irrepreensível” (Fp 3.4-6). Seu estilo de vida estava de acordo com sua profunda convicção<br />

de que o caminho para Deus não era o da obediência à lei, mas, dependendo da ocasião,<br />

podia seguir os costumes judaicos; por exemplo, Lucas nos conta que ele cortou o cabelo<br />

Edgar J, Goodspeed disse: “Paulo com certeza dominou a teologia cristã desde o primeiro século, e até<br />

hoje, em meados do século vinte, está revelando novos valores morais. (Paul. Philadelphia, 1947, p. 221). Cf.<br />

Michael Grant: "Sem o terremoto espiritual que ele causou, o cristianismo provavelmente nem teria sobrevivido.<br />

Sua importância, porém, também é muito mais ampla, além da esfera religiosa. Ele tem exercido uma influência<br />

enorme, geração após geração, sobre eventos não religiosos e maneiras de pensar — sobre política e<br />

sociologia e guerra e filosofia e todo essa esfera intangível em que os processos de pensamento das sucessivas<br />

épocas se formaram"; mais adiante ele chama Paulo de “um dos homens mais destacados que fizeram a história<br />

da humanidade” (Saint Paul, N ew York, 1976, p. 1).


em Cencréia por causa de um voto (At 18.18), evidentemente de nazireu.2 Apesar de se<br />

tornar um cristão fervoroso, vindo a dedicar-se inteiramente a viver por Cristo e a pregá-lo,<br />

ele não retornou ao judaísmo. Ele podia perguntar: “Qual é a vantagem do judeu? Ou qual<br />

a utilidade da circuncisão?” e apesar de a lógica do seu argumento nos fazer esperar a resposta<br />

“nenhuma”, ele responde: “Muita, sob todos os aspectos...” (Rm 3.1-2). Em todos os<br />

seus escritos ele faz constantes referências às Escrituras dos judeus, e está claro que até o<br />

fim dos seus dias ele prezava muito o fato de Deus ter dado tal tesouro ao seu povo.<br />

Há uma grande diferença na maneira como ele tratava os escritos gregos. Fica claro,<br />

pelo conhecimento que Paulo tinha da língua grega, que todos os tesouros da literatura<br />

grega estavam abertos para ele, mas em todos os seus textos ele cita autores gregos apenas<br />

duas vezes (lC o 15.33; T t 1.12; Lucas fala de mais uma citação, esta num sermão, em Atos<br />

17.28). O interesse de Paulo estava no Antigo Testamento; ele o cita constantemente e,<br />

muito interessante, quase sempre da Septuaginta (em grego) e não do hebraico.<br />

Paulo se identificava com Israel. Mesmo escrevendo aos gentios, ele chama Abraão<br />

e também Isaque de “nosso pai” (Rm 4.1; 9.10) e faz referência aos “nossos pais” (lC o<br />

10.1). Ele espera paz para “o Israel de Deus” (G1 6.16).3 Talvez essa identificação em<br />

nenhum lugar seja tão tocante como no tratamento emocional que ele dá ao problema da<br />

rejeição do Messias por Israel. Cristo era tudo para Paulo (Fp 3.8), mas ele podia desejar<br />

ser maldito e separado de Cristo se isso pudesse ser de proveito para seus companheiros<br />

israelitas (Rm 9.3). Fica claro, de tudo o que Paulo escreveu, que ele valorizava muito sua<br />

herança judaica. Apesar de não poder compará-la com a vida cristã (2Co 3.11), ele ainda<br />

achava que havia “glória” nela (Rm 9.4; 2Co 3.7). Ele era diferente de muitos convertidos a<br />

Alguns afirmam que esse voto não poderia ter sido de nazireu, pois nesse caso o cabelo podia ser raspado<br />

apenas em Jerusalém, Mas I. Howard Marshall cita evidências de que o sacrifício tinha de ser oferecido em J e ­<br />

rusalém, mas o cabelo podia ser cortado em outro lugar (The acts o f the apostles. Leicester, 1980, p. 300).<br />

O sentido exato dessa expressão é muito debatido. Muitos concordam com arc?: “A todos quantos andarem<br />

de conformidade com esta regra, paz e misericórdia sejam sobre eles, sobre o Israel de Deus", o que iguala<br />

o Israel de Deus à igreja. M as essa maneira de se referir ã igreja não é encontrada em nenhum outro lugar, e alguns<br />

entendem a referência como sendo ao Israel não-cristão. N a décima nova bênção acrescentada às Dezoito<br />

Bênçãos há uma oração por paz e outras bênçãos “sobre nós e sobre teu povo Israel”. Se Paulo pensava<br />

assim, ele “agora ora por seus compatriotas que ainda não aceitaram a Cristo" (Raymond T . Stamm, IB,<br />

10:591). F. F. Bruce se lembra de que Paulo espera a salvação de "todo o Israel” (Rm 11.26) e vê aqui uma<br />

“perspectiva escatológica” (The epistle to the Galatians, Grand Rapids, 1982, p. 275), N . Herman Ridderbos, porém,<br />

sustenta a primeira opinião: "Em vista do que foi dito antes (cf. 3.29; 4.28, 29), dificilmente podemos duvidar<br />

de que este Israel de Deus não se refere ao Israel empírico, nacional, como um parceiro igualmente<br />

autorizado junto com os crentes em Cristo (a todos quantos andarem de conformidade com esta regrá), nem<br />

apenas aos crentes na nação israelita, mas a todos os crentes como o novo Israel, N esta bênção, portanto, o<br />

apóstolo tem em mente os leitores da sua carta, desde de andem segundo a nova regra, mas a partir deles o escopo<br />

se abre para incluir no sentido mais amplo todos os crentes, o novo povo de Deus” (The epistle o f Paul to the<br />

churches of Galatia. London, 1954, p, 227). E, apesar de não chamar especificamente a igreja de Israel em outro<br />

lugar, ele claramente a considerava o verdadeiro Israel (Rm 2,28-29; 9.6; Fp 3.3).


uma nova religião, que se tornam amargos em relação à fé que deixaram para trás. Paulo era<br />

totalmente cristão, mas também totalmente israelita, e seus escritos não farão sentido para<br />

, 4<br />

nos se nao tivermos isso em mente.<br />

No entanto, apesar de ser totalmente judeu e, ao que parece, mesmo pensando que<br />

no começo seu ministério seria entrejudeus (At 22.17-20), seu trabalho acabou sendo feito<br />

quase só entre gentios. Ele estava preparado para isso por ser natural de Tarso, onde recebera<br />

uma boa educação e se familiarizara totalmente com a vida num mundo de cultura<br />

helenista. Ele era cidadão romano (At 16.37; 22.25-28), e nessa condição fez seu conhecido<br />

apelo a César (At 25.11). Combina com sua cidadania sua insistência a que os romanos<br />

estejam sujeitos às autoridades que os governam (Rm 13.1-7) e que se ore por reis e por<br />

todos os que exercem autoridade (lT m 2.1-3). É evidente que ele valorizava sua herança,<br />

tanto a grega como a romana.<br />

Apesar de ser judeu, Paulo deixou claro que o trabalho para o qual fora chamado<br />

devia ser feito em boa parte entre os outros povos do mundo. Ele era o apóstolo aos gentios<br />

(Rm 11.13), “ministro de Cristo entre os gentios” (Rm 15.16); seu chamado era pregar<br />

Cristo entre os gentios (G 11,16; E f 3.8). Falou de um acordo com os apóstolos de Jerusalém<br />

pelo qual ele e Barnabé deviam dirigir-se aos gentios, enquanto Tiago, Pedro e João<br />

voltavam-se para os judeus (G1 2.9). Ele se chamou de “prisioneiro de Cristo Jesus, por<br />

amor [dos] gentios” (E f 3.1), e de “mestre dos gentios" (lT m 2.7; também, em alguns<br />

manuscritos, 2Tm 1.11).<br />

Esse pano de fundo complexo complica nosso estudo dos escritos de Paulo. O mesmo<br />

acontece com o estilo literário do apóstolo. Ele corre na frente, muitas vezes deixando<br />

de fora palavras que esperava que seus leitores completassem (e que eles esperam estar<br />

completando corretamente!). Ele é um pensador original, às vezes lutando com a língua<br />

para dizer coisas que ninguém tinha dito antes. Isso aumenta nossa dificuldade e, ao mesmo<br />

tempo, torna nosso estudo mais compensador.5<br />

Naturalmente há muita polêmica sobre quais escritos são mesmo de Paulo. Em<br />

nossos dias, muitos estudiosos afirmam que as cartas pastorais não são do grande apóstolo<br />

4 W . D . Davies defendeu de modo convincente o caráter essencialmentejudaico de Paulo em (Paul and RabbinicJudaism.<br />

London, 1948). Em sua conclusão ele escreve: "Parece que o apóstolo da fé cristã era o florescimento<br />

pleno do judaísm o, o seu resultado e cumprimento; sua obediência ao evangelho era mera obediência<br />

à verdadeira forma do judaísm o. O evangelho, para Paulo, não era a anulação do judaísm o mas sua conclusão”<br />

(p. 323). David Daube mostra como Paulo era judeu em sua maneira de ser em muitas coisas em seu<br />

livro New Testament and Rabbinic Judaism , Londres, 1956; por exemplo, em seu trabalho m issionário (p.<br />

336ss).<br />

Cf. Stephen Neill: “Como grande pensador, Paulo pode ser, e muitas vezes é, terrivelmente difícil. Mas<br />

isso não é intencional. Sempre de novo ele está tentando dizer coisas que nunca tinham sido ditas antes e para<br />

as quais ele não tem vocabulário disponível. [...] Com freqüência acontece que, quando Paulo está sendo mais<br />

difícil, ele também é mais original” (Jesus through many eyes. Philadelphia, 1976, p. 42).


(apesar da possibilidade de ele ter escrito alguns fragmentos incorporados nas cartas). Não<br />

são poucos os que têm dúvidas sobre Efésios e/ou Colossenses, e 2Tessalonicenses também<br />

é rejeitada por alguns. Entrar na discussão da autenticidade de todos esses escritos<br />

exigiria uma digressão grande do meu propósito teológico principal. Por isso, permita-me<br />

simplesmente dizer que pretendo incluir todas no escopo deste estudo. Têm sido apresentadas<br />

boas razões para que elas sejam aceitas como de Paulo6 e, apesar de muitos não se deixarem<br />

convencer, pelo menos há algo em todas elas que levou a igreja a aceitá-las como<br />

produto de Paulo. No sentido mais amplo do termo, elas são "paulinas”;' destacam-se de<br />

escritos como os de João ou os sinóticos. Podemos muito bem estudá-las juntas.<br />

Alguns estudiosos mostram o desenvolvimento havido no pensamento de Paulo<br />

das primeiras para as últimas cartas, mas essa busca provavelmente é em vão. As cartas procedem<br />

todas de um período de tempo relativamente curto, perto do fim da vida de Paulo.<br />

Paulo já era cristão e havia pregado durante dezessete anos ou mais antes de escrever a primeira<br />

das cartas que temos dele. A essência do seu pensamento deve ter sido formada bem<br />

antes de ele escrever suas cartas. As diferenças entre as cartas devem ser explicadas pelas<br />

circunstâncias diferentes do apóstolo e pelas diversas situações que as provocaram, e não<br />

por um suposto desenvolvimento em sua maneira de pensar.<br />

Precisamos ter em mente que os escritos de Paulo são cartas de verdade, escritas<br />

para pessoas de verdade que enfrentavam problemas de verdade. Ele nenhuma vez tenta<br />

organizar uma sinopse da sua teologia. Pela maneira que alguns temas se repetem e diante<br />

do modo que Paulo trata deles, podemos deduzir que eles são importantes. Mas ele não<br />

Para Efésios veja, por exemplo, Markus Barth, Ephesians 1-3 . N ew York, 1974, p. 41; para Colossenses,<br />

Reginald H . Fuller, A critical introduction to the N ew Testament- London, 1966, p. 59-64; Ralph P . M artin, Colossians<br />

and Philemon. London, 1974, p. 32-40; para 2Tessalonicenses, Ernest Best, A commentary on the first<br />

and second epistles to the Thessalonians. London, 1977, p. 50-58; para as pastorais, Donald G uthrie, The Pastoral<br />

epistles and the mind o f Paul Leicester, 1977; Ronald A. W ard, A commentary on 1 and 2Timothy and Titus.<br />

W aco, 1974, p. 9-13; J. N . D . Kelly, A commentary on the Pastoral epistles. New York, 1963, p. 30-34. Donald<br />

J. Selby pensa que, com o tempo, Paulo provavelmente “tendia a dar a seus amanuenses, que também eram<br />

seus colaboradores e companheiros de viagem, cada vez mais liberdade na composição das cartas". O envolvimento<br />

deles no trabalho e crescente familiaridade com o que Paulo ensinava “tornaria essa participação<br />

na composição das cartas não apenas possível, mas inevitável” (Introduction to the N ew Testament. New York,<br />

1971, p. 323). E. Earle Ellis lembra a importância do trabalho dos amanuenses e também a inclusão de “peças<br />

já prontas — hinos, exposições bíblicas e outras formas literárias completas e que diferem da linguagem,<br />

estilo e expressão teológica do restante da carta e das outras”. Ele acredita que “qualquer conclusão<br />

sobre a autoria das cartas com base em sua linguagem, estilo e termos teológicos é no mínimo questionável"<br />

(N T S 26 [1979-80]: 498-499).<br />

Por isso A. M . H unter defende que, enquanto as pastorais não contêm mais do que fragmentos dos escritos<br />

de Paulo (como P. N . Harrison afirmou), “em sua forma presente elas são obra de um paulinista” (Introducing<br />

New Testament theology. London, 1969, p. 87 n. 1). De modo semelhante, N ils Alstrup Dahl diz que<br />

Efésios, Colossenses e as cartas pastorais “representam tradições catequéticas paulinas, apesar de não terem<br />

sido escritas por Paulo” (Studies in Paul. Minneapolis, 1977, p. 22 n. 1),


falou muito sobre assuntos não controversos, e isso inclui temas importantes como a autoridade<br />

das Escrituras ou a pessoalidade de Deus. T odas as cartas de Paulo são escritos ocasionados,<br />

não capítulos de uma teologia sistemática, e temos de tomar cuidado para não<br />

pensar que podemos apresentar uma sinopse organizada de todos os temas teológicos que<br />

ele considerava importantes. Entretanto, tudo o que ele escreve tem base teológica, e isso<br />

nos permite fazer afirmações com confiança. Podemos não ser capazes de propor uma forma<br />

sistemática da “teologia de Paulo”, mas podemos dizer com certeza que ele deu expressão<br />

a algumas idéias teológicas importantes. Constituam ou não essas idéias uma teologia<br />

completa, seu estudo pode ser compensador.<br />

Não devemos esquecer que esses textos foram produzidos em datas remotas. Não há<br />

certeza sobre algumas datas, mas a mais antiga carta de Paulo que temos deve ter sido escrita<br />

uns vinte anos após a crucificação, e o conjunto principal dos seus textos completou-se em<br />

poucos anos. Por isso não demorou para os elementos essenciais da doutrina cristã aparecerem<br />

em sua formulação paulina. Esse fato é importante, principalmente numa época em que<br />

alguns críticos dão a impressão de que, durante muitos anos, a igreja antiga estava ocupada<br />

pela tarefa de desenvolver e moldar o que veio a ser a ortodoxia cristã.<br />

Existem aqueles que afirmam que Paulo adotou muitas coisas da igreja antiga,8 mas<br />

isso levanta a pergunta: "Qual igreja antiga?” Não há motivo para duvidar da estimativa de<br />

Martin Hengel de que Paulo se converteu “entre 32 e 34”.9 Certamente houve cristãos<br />

antes de Paulo, mas não muitos. Se havia alguém que pertencia à igreja “antiga”, Paulo era<br />

um deles; e quando a tradição cristã foi estabelecida, ele fez parte do processo.10 Permita-me<br />

dizer com toda clareza que não há nenhuma razão para achar que houve grandes<br />

A. M . Hunter, por exemplo, relaciona sete ponros que Paulo assumiu: “1) o kerygma apostólico...; 2) a<br />

confissão de Jesus como Messias, Senhor e Filho de Deus; 3) a doutrina do Espírito Santo como dinâmica divina<br />

da nova vida; 4) o conceito da igreja como o novo Israel; 5) os sacramentos do batismo e da ceia do Senhor;<br />

6) as ‘palavras do Senhor”que Paulo cita ou indica conhecer em suas cartas; e 7) a esperança da parousia<br />

— da vinda de Cristo em glória” (The gospel according to st. Paul. Philadelphia, 1966, p. 12).<br />

9 Between Jesus and Paul. Philadelphia, 1983, p. 11. Baseando-se em inscrições que dão a data em que Gálio<br />

foi procônsul da Acaia, na estada de Paulo em Corinto (A t 18.11ss) e nas informações sobre eventos em Gálatas<br />

1.18, 21 ele chega a 32-34 d.C. para a conversão de Paulo; ele entende que a crucifixão ocorreu em 30 d.C.<br />

(p. 30-31). George Ogg data a ressurreição em 33 d.C. e a conversão de Paulo em 34 ou 35 (The chronoíogy o f the<br />

life ofPaul. London, 1968, p. 30). N ils A. Dahl põe a conversão de Paulo “apenas uns dois anos após a morte de<br />

Cristo” (Studies in Paul. Minneapolis, 1977, p. 2),<br />

Mesmo considerando o tempo que ele passou na Arábia (G1 1.17), que não pode ter sido muito longo,<br />

pois está incluído em um período de três anos em que ele também fez outras coisas (G 1 1.18), não houve um<br />

período longo em que Paulo esteve desligado da vida da igreja. Ele ficou por um tempo indeterminado em<br />

Tarso (A t 9.30; 11.25), mas não há razão para crer que ele estava sem contato com a igreja. O homem que tivera<br />

a experiência na estrada de Damasco e a personalidade vigorosa revelada na correspondência paulina não<br />

era pessoa de ficar à margem da vida da igreja. Não temos como não vê-lo ativo desde o começo. A opinião de<br />

Becker de que Paulo “não recebeu a tradição mas várias tradições" (Paul the apostle, p. 118-119), como outros


desenvolvimentos na teologia cristã antes de Paulo se tornar cristão. Sua teologia é muito<br />

completa e muito profunda — e muito antiga. Mas os escritos de Paulo são evidência sólida<br />

de que a posição cristã básica estava muito bem firmada antes da metade do primeiro<br />

século, menos de vinte anos após a morte de Jesus. Escritores que surgiram depois acrescentaram<br />

muito, mas a teologia de Paulo é rica e plena, e sua data antiga é um elemento<br />

importante.<br />

Todos que são beneficiados pelo que faço, fiquem<br />

certos que sou contra a venda ou troca de todo<br />

material disponibilizado por mim. Infelizmente<br />

depois de postar o material na Internet não tenho o<br />

poder de evitar que “ alguns aproveitadores tirem<br />

vantagem do meu trabalho que é feito sem fins<br />

lucrativos e unicamente para edificação do povo<br />

de Deus. Criticas e agradecimentos para:<br />

mazinhorodrigues(*)yahoo. com. br<br />

Att: Mazinho Rodrigues.<br />

veredictos, deixa de ver o envolvimento de Paulo com a igreja desde cedo. Ele faz referência à “variedade e multiplicidade<br />

de tradições pré-paulinas na igreja antiga” (p. 127). Dahl também vê Paulo como dependente de<br />

"tradições que existiam antes” (Studies in Paul, p. 10), mas também se refere ao “impacto decisivo de Paulo sobre<br />

a igreja em seus anos de formação” (p. 19), e diz ainda: “Uso aqui o termo comum de cristianismo 'pré-paulino’<br />

para me referir a ensinos que Paulo provavelmente teve em comum com outros mestres e pregadores<br />

cristãos antigos” (p. 96; itálico meu).


Capítulo i<br />

Deus no centro<br />

grande interesse de Paulo está em Deus.' Geralmente consideramos óbvio que<br />

um escritor do Novo Testamento escreva sobre Deus, e essa suposição tem seus<br />

Jw : ' motivos. Mas, via de regra, não notamos que Paulo usa o nome de Deus com<br />

freqüência surpreendente.2 Sua terminologia é realmente excepcional. Ele se refere a Deus<br />

bem mais do que qualquer outro autor no Novo Testamento. Ele tem mais de 40 por cento<br />

de todas as referências a Deus no Novo Testamento (548 em 1314) — uma proporção<br />

muito alta. E realmente extraordinário que um só escritor, cujos escritos perfazem cerca de<br />

um quarto do Novo Testamento, tenha quase metade das referências a Deus. Em Romanos3<br />

ele usa a palavra Deus 153 vezes, em média uma vez a cada 46 palavras. Não é fácil usar<br />

Cf. Dean S. Gilliland: “O primeiro fator que condicionou o pensamento de Paulo foi seu conceito judaico<br />

de Deus. [...] Deus é único, vivo e totalmente justo, executa seus propósitos no mundo, mantém comunháo<br />

com o ser humano e cria uma família para si aqui na terra. Deus no centro tornou a religião de Paulo pessoal,<br />

ética, histórica e oficialmente monoteísta” (Pauline theology & mission practice. Grand Rapids, 1983, p. 20).<br />

É interessante observar, por exemplo, que Rudolf Bultmann, em sua grande obra Theology o f the New Testament,<br />

começa seu estudo da teologia de Paulo com uma análise de sõm a, "corpo”; ele não chega a fazer um estudo<br />

sistemático do conceito central da teologia de Paulo.<br />

3 Verifiquei a freqüência com que Paulo usa a palavra em Romanos em W . W ard e Ralph P. M artin (eds,),<br />

Apostolic history and the gospel. Exeter, 1970, cap. 17: “T h e theme o f Romans”.


qualquer outra palavra tantas vezes.4 Paulo não mantém a mesma proporção em toda a sua<br />

correspondência, mas em todas as suas cartas ele fala muito de Deus.<br />

Paulo era um homem dominado pelo pensamento acerca de Deus, e falava constantemente<br />

daquele que lhe era central.5 Tudo que ele tratava, ele relacionava com Deus. Ele<br />

ensinou que Deus é soberano sobre a vida, em todos os seus aspectos, tanto que não há<br />

nenhuma parte da nossa experiência para a qual possamos dizer que Deus é irrelevante.<br />

Paulo via a importância de Deus em tudo no tempo presente, e contava com a chegada de<br />

uma época em que Deus seria "tudo em todos” (iC o 15.28).<br />

^Üm tyeus glorioso<br />

Como todo bom judeu, Paulo é um monoteísta rígido; só há e só pode haver um<br />

Deus (Rm 3.30; ICo 8.4, 6; G1 3.20; E f 4.6; lT m 1.17; 2.5). Esse único Deus ele vê como<br />

Pai do seu povo (Rm 1.7; ICo 1.3; 2Co 1.2-3; G 11.3-4; Ef4.6; 5.20; Fp 1.2; lT m 1.2; 2Tm<br />

1.2; T t 1.4), e o Pai é claramente um grande Deus. A riqueza, a sabedoria e o conhecimento<br />

mais profundos são dele (Rm 11.33); Paulo pode às vezes preferir ligar o poder e a sabedoria<br />

a Cristo, mas é sempre o poder e a sabedoria de Deus (IC o 1.24; cf. 2.5,7). O poder pelo<br />

qual Cristo vive é de Deus (2Co 13.4), e o poder abundante do cristão para viver vem de<br />

Deus (2Co 4.7; 6.7; 13.4; 2Tm 1.8). De outro ponto de vista, todo poder e autoridade civil<br />

vem de Deus (Rm 13.1-7). Paulo está interessado em diferentes tipos de poder e no fato de<br />

que, no fim, é somente Deus quem o confere (qualquer que seja ele).<br />

Relacionado com isso está o interesse de Paulo na glória (ele usa a palavra 77 vezes,<br />

quase 47 por cento das ocorrências no Novo Testamento). Uma vez ele lamenta que os<br />

pecadores ficam sem a glória de Deus (Rm 3.23; cf. 1.23), e ele pode se referir à “esperança<br />

da glória de Deus” do ser humano (Rm 5.2). O mais das vezes, porém, ele se compraz na<br />

glória de Deus (2Co 4.6, 15; Fp 2.11) ou a vê como motivação para a conduta: devemos,<br />

como Abraão, “dar glória a Deus” (Rm 4.20; cf. 15.7; ICo 10.31; 2Co 1.20; Fp 1.11). Fre-<br />

Em R om anos, as únicas palavras que Paulo usa com mais freqüência do que "D eus” são o artigo definido,<br />

KãL ("e”), €V (“em”) e avT O Ç (“ele”). M esm o palavras m uito com uns com o S e (“mas” ou “e”) e o<br />

verbo “ser” sáo usadas com m enos freqüência. D o s conceitos teológicos im portantes nesta carta, o próximo<br />

mais freqüente é "lei” com 7 2 ocorrências, bem mais atrás. D epois vêm “C risto” (65 vezes), “pecado”<br />

(4 8 ), “Senhor” (43) e “fé” (4 0 ). A s estatísticas não significam tudo, mas devemos estar cientes de que<br />

Paulo usa a palavra “D eu s” com freqüência incom um .<br />

Charles C . Ryrie escreveu: “O conceito de D eus é básico na teologia de Paulo”; e: "A doutrina de<br />

D eus é a doutrina central da teologia de Paulo" (Biblical theology o f the N ew Testament. Chicago, 1982, p.<br />

167, 203).


qüentemente ele fala de “glorificar" a Deus (Rm 15.6, 9; ICo 6,20; 2Co 9.13; G1 1.24). O<br />

Deus que é tão central em Paulo é um Deus glorioso.<br />

Algumas vezes ele faz referência a qualidades divinas. Diz que Deus é “vivo” (lT m<br />

3.15; 4.10), “fiel” (IC o 1.9; 10.13; 2Co 1.18), “vivo e verdadeiro” (lT s 1.9). Deus “não pode<br />

mentir” (T t 1.2). O apóstolo fala do Deus “da paciência e da consolação” (Rm 15.5), do<br />

“Deus da esperança” (Rm 15.13) e do “Deus de toda consolação [ou ânimo]” (2Co 1.3; cf.<br />

1.4; 7.6). Deus é o “Deus de amor e de paz” (2Co 13.11), o “Deus de paz” (Rm 15.33; cf.<br />

ICo 14.33; Fp 4.9; lT s 5.23). Paulo também nos garante que o Deus de paz “esmagará<br />

debaixo dos [nossos] pés a Satanás" (Rm 16.20); essa afirmação mostra que Deus está ativo<br />

e dá uma nova dimensão à nossa idéia de paz. A paz com certeza não é um estado de calmaria;<br />

ela é compatível com a oposição militante ao mal. Paulo, portanto, pode falar das qualidades<br />

de Deus, mas uma característica dos seus escritos é que ele se refere mais comumente<br />

ao que Deus está fazendo e não tanto à sua natureza e estado.<br />

9 í predestinação<br />

Paulo insiste muito em que a vontade de Deus está sendo feita; ele fala disso repetidamente<br />

(p. ex. Rm 1.10,12.2; ICo 1.1; 4.19; E f 1.1,4-5,11; Cl 1.1; 4.12; lT s 5.18). A verdade<br />

central do cristianismo é que Cristo “se entregou a si mesmo pelos nossos pecados”, e<br />

ele o fez “segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (G 11.4), pensamento que Paulo repete<br />

de várias maneiras. O plano de Deus é que “pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se<br />

torne conhecida, agora, dos principados e potestades nos lugares celestiais, segundo o eterno<br />

propósito que estabeleceu em Cristo Jesus, nosso Senhor, pelo qual temos ousadia...”<br />

(E f 3.10-12).7 Paulo diz que essa sabedoria está oculta e que Deus a "preordenou desde a<br />

eternidade para a nossa glória” (IC o 2.7; cf. Rm 16.25-27). Ela agora foi revelada aos "santos,<br />

aos quais Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste mistério entre os<br />

gentios” (Cl 1.26-27). Há uma forte defesa da predestinação no capítulo que inicia Efésios,<br />

onde lemos que os crentes foram escolhidos em Cristo antes da criação do mundo (v. 4) e<br />

predestinados para a adoção por meio de Jesus Cristo (v. 5). O “beneplácito” de Deus foi<br />

objetivado em Cristo (v. 9), e os crentes foram “predestinados segundo o propósito daquele<br />

que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (v. 11).<br />

C f. G eorge S . D uncan: "Ela [isto é, a cruz] náo foi apenas algo que D eus permitiu, mas que D eus Pai<br />

s-uis-, e seu propósito com isso foi a redenção dos seus filhos do atual mundo mau (T h e epistle o/Paul to the<br />

G datians. London, 1939, p. 14), D e m odo sem elhante, M , A . C . W arren observa que, na cruz, “não devemos<br />

ver uma tentativa de m udar a vontade de D eus, mas a própria expressão dessa vontade” ( T he gospel o j<br />

v.ciory. London, 1955, p. 21).<br />

Sobre a autoria de Efésios, veja, acima, a Prim eira Parte, nota 6.


A predestinação, como Paulo a entendia, dá segurança: “Aos que de antemão<br />

conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho. [...] E aos<br />

que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e<br />

aos que justificou, a esses também glorificou” (Rm 8.29-30). Moffatt traduz Romanos<br />

11.29 assim: “Deus nunca volta atrás com seus dons e chamado". Deixados por conta própria,<br />

nunca teríamos certeza de ter feito o que é necessário para nossa salvação. N o entanto,<br />

não fomos deixados assim: Deus nos predestinou e nos chamou de seus. Isso é uma<br />

maneira de dizer que toda a nossa salvação, do início ao fim, é de Deus. Temos a segurança<br />

de que Deus nos escolheu antes da criação do mundo e que ele não volta atrás em seu chamado.<br />

Nada mais pode nos dar essa segurança.<br />

Também devemos notar que Deus predestina as pessoas para realizações éticas. Paulo<br />

não vê essa doutrina como um incentivo magnífico à preguiça. Antes, fomos “criados em<br />

Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas"<br />

(E f 2.10). Por sermos os eleitos de Deus, devemos “nos revestir de ternos afetos de misericórdia,<br />

de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade” (Cl 3.12). A predestinação<br />

não é para nos dar privilégios, mas para nos dar trabalho. Ela é um lembrete de que as boas<br />

obras não são opcionais para o crente, mas o próprio objetivo da sua predestinação.<br />

^Deus julgará&<br />

Muito bem, se Deus quer que pratiquemos boas obras, conclui-se que ele não está<br />

indiferente ao modo em que vivemos. Um dia nos chamará para prestarmos contas (Rm<br />

3.19). Paulo se refere com freqüência ao fato de que as más ações são registradas diante de<br />

Deus. Por exemplo, pessoas que se orgulham de cumprir a lei, mas a infringem, não estão<br />

sendo simplesmente hipócritas e tratando a lei com leviandade; também estão desonrando<br />

a Deus (Rm 2.23); estão fazendo seu nome ser blasfemado (v. 24). Quando Paulo cita passagens<br />

bíblicas para mostrar que o ser humano é mau, os textos que cita relacionam isso<br />

com Deus: "Não há quem busque a Deus”; “Não há temor de Deus diante de seus olhos”<br />

(Rm 3,11,18). Também o problema com o “pendor da carne” é que a carne é hostil a Deus:<br />

ela não se submete à lei de Deus, nem pode fazê-lo; ela não pode agradar a Deus (Rm<br />

8.7-8). Nisso reside a tragédia do homem natural. O ser humano pode se rebelar contra<br />

Deus (Rm 9.20) e desobedecer a ele (Rm 11.30). Mesmo pessoas religiosas, dedicadas a<br />

Deus, podem não ter entendimento das coisas espirituais; podem não perceber que ajustiça<br />

que salva é a "justiça de Deus” e, assim, agir errado; podem tentar definir sua própria jus-<br />

D . B. K nox escreveu um artigo m uito bem elaborado intitulado "Castigo e retribuição: uma crítica<br />

da atitude hum anista em relação àjustiça” (Interchange 1 [1 967):5-8) em que ele enfatiza que o pecado m e­<br />

rece castigo, fato realm ente relevante para o tem a do julgam ento.


iça (Rm 10.3). Há aqueles que usam a Palavra de Deus em proveito próprio (2Co 2.17) ou<br />

com má intenção (2Co 4.2). Paulo conhece pessoas que estão sem Deus (E f 2.12) ou desligadas<br />

da vida de Deus (E f 4.18) — pessoas que não agradam a Deus (lT s 2.15) ou não o<br />

conhecem (lT s 4.5; 2Ts 1.8) ou o desprezam (lT s 4.8; cf. 2Co 10.5).<br />

Paulo, portanto, não vê o mal em suas muitas formas simplesmente como má conduta<br />

ética. Ele relaciona tudo com Deus. É desonrar a Deus, não temer a Deus, ser hostil a<br />

Deus e outras coisas mais. E Deus toma conhecimento disso. As pessoas são responsáveis<br />

por suas ações. Seremos chamados para prestar contas de nós mesmos e submetidos à<br />

punição pelas ações que ficaram longe do que deveríamos ter feito. Isso tem sido assim desde<br />

o começo, porque “o julgamento derivou de uma só ofensa [ou uma só pessoa], para a<br />

condenação” (Rm 5.16). Pouco importa se lemos "uma ofensa” ou "uma pessoa", pois tanto<br />

Adão quanto seu pecado estão em vista. Aquele pecado resultou em condenação que afeta<br />

roda a raça humana.<br />

Paulo vê Deus agindo como juiz agora mesmo. Para os crentes isso é providência compassiva<br />

de Deus, em que “somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com<br />

o mundo” (lC o 11.32). Os sofrimentos por que passamos são evidências do amor de Deus. Ele<br />

nos disciplina para evitar que soframos o destino dos mundanos. Devemos ter em mente que o<br />

julgamento faz parte do evangelho (Rm 2.16); talvez não consigamos nos adaptar facilmente à<br />

idéia de que o julgamento faz parte das boas novas, mas se quisermos entender como Paulo vê o<br />

julgamento, temos de tentar olhar para o julgamento por outras lentes.<br />

O pecado colhe o que plantou, pois os pecadores recebem, “em si mesmos, a merecida<br />

punição do seu erro" (Rm 1.27). Seria fácil ver isso como um processo natural de causa e<br />

efeito, pelo qual as próprias conseqüências inevitáveis do pecado são a punição do pecado.<br />

Contudo, apesar de Paulo reconhecer que há alguma verdade nisso, ele insiste em que a<br />

mão de Deus está em tudo. Três vezes ele diz que Deus “entregou” os pecadores gentios às<br />

conseqüências desagradáveis do seu pecado (Rm 1.24, 26, 28). Deus nunca é neutro; ele<br />

sempre se opõe ao mal. Paulo chega a dizer que, aos pecadores que “não acolheram o amor<br />

da verdade para serem salvos”, "Deus lhes mandou a operação do erro” (2Ts 2.10-11).<br />

Em passagens como essa teria sido fácil expressar o pensamento de modo impessoal.<br />

Paulo, porém, não está visualizando um processo em que um Deus inoperante fica só<br />

olhando. Deus é ativo e participa do processo, ele que fez este universo moral para que<br />

aqueles que rejeitam o “amor da verdade” acabem crendo numa mentira. Isso faz parte do<br />

julgamento divino. A conseqüência inevitável da rejeição da salvação de Deus é o engano,<br />

mas novamente Paulo não relega isso à ação de causas naturais. Deus está envolvido<br />

9 A . L. M oore rejeita com o "dualismo intolerável” a idéia de que alguns são atraídos por D eus e outros<br />

?o r Satanás: "N ão podem os aceitar isso nem por um instante. P or isso, enquanto nos versículos 13s,<br />

Deus é apresentado com o responsável por todo o processo da salvação, nos versículos l i s . ele tam bém<br />

não é excluído da atividade no processo de incredulidade que leva à condenação" (1 and 2 Thcssalonians.<br />

London, 1969, p. 105). F. F. Bruce diz a m esm a coisa com outras palavras: “Ser iludido pelo erro é a condenação<br />

divina em que incorrem inevitavelmente neste universo m oral aqueles que fecham os olhos para<br />

i verdade" ( W ord biblical commentary: 1 Sr 2 Tkessalonians, W aco , 1982, p. 174).


nisso.10 No mesmo espírito ele cita de Isaías palavras que dizem que Deus dá aos pecadores<br />

um “espírito de entorpecimento" (Rm 11.8). Os pecadores se desligam da vida real e se restringem<br />

a um entorpecimento total e à horrível incapacidade de ver as boas dádivas de<br />

Deus pelo que são. E a mão de Deus está nisso também. Paulo não deixa lugar para um<br />

Deus ausente.<br />

De outro ponto de vista, o juízo de Deus é mostrado nas perseguições e aflições que<br />

os cristãos tessalonicenses sofreram (2Ts 1.5). Essas tribulações lhes foram enviadas como<br />

disciplina amorosa de Deus, e é porque a mão de Deus está nessa disciplina, e porque eles<br />

estão cientes disso, que os cristãos são capazes de suportar tão bem as tribulações.<br />

Todavia, apesar de o julgamento presente ser uma realidade inegável, para Paulo é<br />

mais importante o julgamento futuro, o julgamento que ocorrerá no fim dos tempos. Deus<br />

irá “julgar os segredos dos homens” (Rm 2,16), ele escreve, e claramente essa verdade é básica:<br />

nada pode ser escondido de Deus, e ninguém escapará ao exame (Rm 2.3; 14.12). O ju l­<br />

gamento será universal, e os que estão fora da igreja são mencionados especificamente<br />

(IC o 5.13). Além de julgar a todos, Deus o fará com justiça perfeita, imparcial (Rm 2.11), e<br />

com “justo juízo” (Rm 2.5; 2Ts 1.5-6), de acordo com a verdade (Rm 2.2). Aqueles que<br />

amam a lei são advertidos de que dar ouvidos à lei não é suficiente; ser justo diante de Deus<br />

significa obedecer à lei (Rm 2.13). Isso parece uma referência a discussões judaicas. Alguns<br />

rabinos pensavam que bastava ouvir a lei, e que todos os israelitas seriam salvos.1' Paulo<br />

insiste em que a lei tem de ser não apenas ouvida, mas também obedecida, se quisermos ser<br />

justos perante Deus. O julgamento de Deus é um assunto muito mais sério do que muitos<br />

dos seus compatriotas pensavam. Eles não tinham uma solução fácil.<br />

Paulo tem um argumento interessante ao falar da objeção à sua perspectiva da salvação<br />

do pecador. Parece que algumas pessoas perguntavam: “Se Deus salva os pecadores<br />

gratuitamente, ele não é injusto ao atingir os perdidos com sua ira?” O apóstolo não revida<br />

a objeção diretamente, mas faz uma pergunta em troca: “Se esse fosse o caso, como Deus<br />

julgará o mundo?” (Rm 3.5-6). O fato de que Deus julgará o mundo é tão certo que não<br />

precisa ser provado; pode ser aceito sem sombra de dúvida. Tudo o que não se enquadra<br />

com o fato de que Deus julgará precisa ser descartado sem hesitação.<br />

De vez em quando Paulo diz que as pessoas receberão louvor de Deus no julgamento<br />

(Rm 2.29; ICo 4.5), porém, na maior parte das vezes ele está preocupado com a verdade<br />

de que, quando pensamos no julgamento, pensamos naqueles com quem Deus não está<br />

"D eus não engana. O engano é obra do iníquo (v, 10). O que ele envia é o erro e suas conseqüências<br />

morais, seus resultados" (Ronald A . W ard , Com m m tary on 1 &■ 2 Tbessalonians. W aco , 1973, p, 162).<br />

Eleazar de M odim disse: ‘"Se ouvires’ (Ê x 15.26) é a regra mais universal (o princípio fundam ental),<br />

em que (toda) a Lei está contida” (SBK 3:87). Q uanto à salvação de todo o Israel, não há falta de afirm a­<br />

ções com o esta de R . Levi: "N o Além , A braão ficará sentado à entrada do G eena e não deixará nenhum<br />

israelita circunciso para lá descer" (G en. Rab. 48.8).


satisfeito (IC o 10.5), os que enfrentam a destruição eterna (IC o 3.17; 6.13). Mesmo<br />

assim, não importa como se veja o julgamento, para o apóstolo a coisa básica é que Deus se<br />

ocupa em executá-lo.'*<br />

O ãtnor de ^Deus<br />

De tudo isso seria fácil deduzir que Paulo visualiza Deus como um Deus de grandeza<br />

suprema, que criou todas as coisas, que está executando seus planos na criação e é impiedoso<br />

na punição daqueles que se opõem aos seus planos, Isso, no entanto, seria errado. O<br />

grande interesse de Paulo em Deus não está tanto no seu poder e majestade e no julgamento<br />

que trará, mas em seu amor e preocupação com seu povo. Com seu povo! E interessante<br />

que Paulo não diz muitas vezes que Deus ama a Cristo, apesar de o pensamento ocorrer:<br />

Cristo é “o Amado” (E f 1.6). Sua ênfase, porém, está no pensamento totalmente inesperado<br />

de que Deus, que é tão bom e tão grande, não pensa na raça humana, pecadores que<br />

somos todos, simplesmente com tolerância e magnanimidade, mas com amor. É de chamar<br />

nossa atenção o fato de Paulo tantas vezes referir-se a Deus como “Pai”; de fato, ele o<br />

chama assim em todas as suas cartas. A combinação das idéias do poder de Deus e da sua<br />

paternidade significa, como diz William Barclay, que "obtemos a idéia completa e acabada<br />

de Deus como um Deus cujo poder é sempre motivado pelo seu amor, cujo amor é sempre<br />

apoiado pelo seu poder”.13<br />

Numa passagem muito importante Paulo nos diz que “Deus prova o seu próprio<br />

amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores”<br />

(Rm 5.8). Isso é totalmente estranho à experiência humana. Nós sabemos que eventualmente<br />

alguém dá sua vida por outra pessoa, mas faz esse gesto incrivelmente nobre em<br />

favor de uma pessoa boa ou por alguém a quem está ligado de alguma maneira, ou talvez<br />

por uma boa causa. Ninguém morre voluntariamente por alguém que não estima. Porém,<br />

enquanto o ser humano ainda era pecador e, assim, indigno aos olhos de Deus, Cristo morreu<br />

por ele. Esse é um pensamento essencial em Paulo e está por trás de muitas coisas que<br />

ele escreve. Deus dá seu amor indistintamente; ele o derramou em nosso coração pelo<br />

Espírito Santo (Rm 5.5).<br />

12 T ratei do tem a do julgam ento de modo bem mais abrangente em meu livro The biblical doctrine o f<br />

judgment (London, 1960; integralm ente reproduzido em português nas p. 1 7-62 de Imortalidade, Russell<br />

Shedd e A lan Pieratt, eds., São Paulo, V ida N ova, 1992). Jo h n A . T . R obinson diz que “nosso conceito<br />

básico de julgam ento vai de encontro ao de D eus”. Ele ainda observa que “julgam ento é ajustificação de<br />

Deus, a comprovação m anifesta e final do propósito do am or. E D eus não term inou enquanto não o tiver<br />

feito — enquanto não for tudo em todos” (On being the church in the world. London, 1960, p. 1 39-140),<br />

15 The mind o f it. Paul. N ew Y ork, 1958, p. 33,


E seu amor é todo-poderoso. Numa magnífica passagem retórica, Paulo chega ao<br />

seu ponto alto com o pensamento de que nada em todo este mundo ou fora dele pode separar<br />

do amor de Deus aquele que é de Deus (Rm 8.38-39). “O amor de Deus” faz parte natural<br />

da bênção (2Co 13.14), e os cristãos são os “filhos amados” de Deus (E f 5.1). Deus faz<br />

coisas pelo seu povo. Podemos traduzir assim Romanos 8.28: “Deus age em todas as coisas<br />

para o bem...” ou: "T odas as coisas cooperam para o bem...”14 Independentemente de como<br />

traduzimos a frase, a idéia é que Deus traz boas dádivas ao seu povo (“coisas” não cooperam<br />

por si). O amor de Deus está em ação em nós e por nós (cf. o pensamento semelhante<br />

em lC o 2.9). Deus é realmente "rico em misericórdia” e por isso nos amou com um grande<br />

amor, apesar de nossa pecaminosidade (E f 2.4). Ele dá com generosidade aos que o amam,<br />

e espera que eles respondam dando aos outros. Quando o fazem, descobrem que “Deus<br />

ama a quem dá com alegria” (2Co 9.7). Não devemos passar por cima da ênfase de Paulo<br />

no amor de Deus e no seu constante cuidado em favor dos que ele criou. Esse amor divino é<br />

tão característico, que Paulo fala com naturalidade dos crentes como “amados de Deus”,<br />

“chamados para ser santos” (Rm 1.7; cf. 2Ts 3.5; T t 3.4).<br />

Os versículos acima mostram que amor e eleição andam juntos, e esse vínculo também<br />

pode ser visto em outras passagens (p. ex. Rm 9.25; 11.28; Cl 3.12; lT s 1.4; 2Ts<br />

2.13).15 As pessoas nem sempre percebem isso, e algumas entendem a eleição como um<br />

processo lúgubre em que Deus arbitrariamente predestinou certas pessoas para a perdição<br />

eterna. Como Paulo a entendia, porém, a eleição operada por Deus é um meio de resgatar<br />

pessoas, não de condená-las. E o exercício do amor de Deus. E é eficaz. Ninguém pode<br />

levantar acusações contra os eleitos de Deus (Rm 8.33). Paulo vê esse princípio em ação na<br />

história de Israel, em que “o propósito de Deus, quanto à eleição” está claro (Rm 9,11). E<br />

verdade que nessa passagem somos informados da rejeição da Esaú bem como da eleição de<br />

Jacó, mas Paulo rejeita de modo determinado e enfático a acusação de que Deus é injusto.<br />

Seu argumento é complexo, mas está claro que ele insiste em que o propósito de Deus é<br />

4N V I e B J aceitam a variante que diz: “D eus coopera em tudo...”, enquanto A R A e N T L H subentendem<br />

“o Espírito" (sujeito do verbo precedente, v. 27) com o sujeito. C . K . B arrett e C . E. B. Cranfield<br />

são a favor de “todas as coisas cooperam ...”, enquanto C . H . D odd e F. J. Leehardt argum entam em favor<br />

de "D eus opera...”<br />

5 Provavelm ente devemos incluir aqui esta citação de M alaquias: “A m ei Jacó, porém me aborreci de<br />

Esaú" (R m 9.13). A m elhor m aneira de entender essas palavras é com o referência a nações e não a indivíduos,<br />

e com o uma indicação de eleição. C . E . B. C ranfield tom a as palavras nesse sentido e acrescenta:<br />

“C ontudo, mais um a vez, precisa ser sublinhado que o mesm o que acontece com Ism ael acontece com<br />

Esaú: o rejeitado continua sendo, de acordo com o testem unho da Bíblia, objeto do cuidado compassivo<br />

de D eus” (A criticai and exegetical commentary on the epistle to the Romans, ii. Edinburgh, 1979, p. 4 8 0 ). Cf.<br />

Gênesis 2 7,39-40; D euteronôm io 23.7.


misericórdia (Rm 9.15).16 Tudo depende dessa misericórdia (Rm 9.16), e Paulo conduz<br />

tudo ao clímax com a declaração de que Deus tornou a todos prisioneiros da desobediência<br />

“a fim de usar de misericórdia para com todos” (Rm 11.32). Depois disso faz seu apelo aos<br />

cristãos de Roma com base nas misericórdias de Deus (Rm 12.1). Em outro lugar, ele argumenta<br />

que é “segundo a sua misericórdia” que Deus nos salvou (T t 3.5: cf. ICo 7.25; 2Co<br />

4.1; lT m 1.13, 16). Ele considera as dádivas de Deus e seu chamado irrevogáveis (Rm<br />

11.29); Deus não volta atrás em seu chamado. Paulo pode falar do “prêmio da soberana<br />

vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp 3.14), e ora para que seus convertidos se mostrem<br />

dignos dessa vocação (2Ts 1.11).<br />

Um aspecto interessante do chamado, que obviamente significava muito para Paulo,<br />

é que Deus não escolheu os atraentes e promissores entre as pessoas deste mundo, mas<br />

os tolos, os fracos, os inferiores e até “as coisas que não são" (IC o 1.28). Deus não segue a<br />

trilha da sabedoria como este mundo a conhece, que de qualquer forma não pode nos levar<br />

até Deus (IC o 1.20-21; 3.19). Não devemos deixar de ver que, apesar de Deus, em sua<br />

sabedoria, chamar pessoas que não impressionam sob nenhum aspecto humano, ele não as<br />

deixa como estão. Ele as transforma em algo especial, pois as chama à santidade (lT s 4.7).<br />

Deus, portanto, está agindo em pessoas que náo são promissoras. E por ser ele o<br />

tipo de Deus que é, um Deus “rico em misericórdia”, ele estende a mão aos que não merecem,<br />

aos pecaminosos e fracos. Sua auto-revelação é um exemplo de como isso ocorre.<br />

T oda revelação, não importa como a entendamos, é uma manifestação do amor de Deus.<br />

D. B. Knox mostra que Deus está sempre em ação: ele “controlou a migração dos siros de<br />

Quir e dos filisteus de Caftor, do mesmo modo como trouxe os israelitas do Egito (Am<br />

9.7)”. Nós, porém, não consideramos os movimentos dos siros e dos filisteus como revelação.<br />

Deus não os interpretou para nós. “Para um evento ter a natureza de revelação, ele precisa<br />

ser interpretado pelo próprio Deus”,'8 É Deus quem deixa claro ao ser humano o que<br />

dele pode ser conhecido (Rm 1.19-20).<br />

16R u d olf Bultm ann lem bra que os estóicos consideravam eX éO Ç “uma doença da alma [...] indigna do<br />

sábio”. E ra considerada uma em oção, e por isso, “na prática judicial, £ÀeOÇ dá idéia de parcialidade”<br />

^T D N T , 2:478). Ele diz tam bém : “A menção da €À£OÇ de D eus nem sem pre é uma referência expressa<br />

ao evento de C risto, P od e sim plesm ente denotar a graça de D eus, com uma indicação m aior ou m enor<br />

de que essa graça nos alcançou por meio de C risto’’ (p. 4 8 4 ). A ssim , de outro ponto de vista vemos que<br />

Deus está em ação, e m isericórdia é sem pre m isericórdia de D eus.<br />

1 Ernest B est m ostra que “elas são os santos’, os santificados, que pertencem ao dom ínio de D eus”, Ele<br />

ainda com enta que, apesar de o escravo ou o hom em livre cham ado para ser cristão perm anecerem escravo<br />

ou hom em livre, "o impuro chamado para ser cristão não pode perm anecer impuro, porém precisa<br />

buscar a santificação” (A commentary on thefirst and second epistles to the Thessalonians. London, 1977, p.<br />

168).<br />

1SR T R 19 (1 9 6 0 ):5 -6 .


Devemos entender aqui também as referências aos “oráculos” de Deus (Rm 3.2) e à<br />

palavra de Deus (p. ex. Rm 9.6; ICo 14.36; E f 6.17; Cl 1.25; lT s 2.13; lT m 4.5). Dessas<br />

maneiras Deus está ativo, revelando-se. Paulo, o servo de Deus, pode ser prisioneiro e<br />

achar que sua atividade está restrita, mas a palavra de Deus "não está algemada" (2Tm 2.9).<br />

Ela está ativa, realizando de modo infalível o propósito de Deus.<br />

Outra maneira de se referir à revelação é atribuí-la ao Espírito de Deus (IC o 2.10).<br />

Novamente, toda Escritura é “inspirada por Deus”, pronunciada por Deus, e por isso útil<br />

(2Tm 3.16). Algumas cartas do Novo Testamento contêm o pensamento de que Deus<br />

deixaria claro para a igreja antiga o que era necessário ao cristão como indivíduo; esse<br />

conhecimento não era definido, como as Escrituras, mas constituía direção para a vida diária<br />

(Fp 3.15; cf. ICo 14.26). Em tudo isso, Deus está ativo. Ele provê o que os pecadores<br />

precisam para que possam experimentar a salvação.<br />

E Deus vem ao nosso encontro não apenas com o conhecimento. Ele vem com o<br />

evangelho, que Paulo conhece como o “evangelho de Deus” (Rm 1.1; 15.16; 2Co 11.7; lT s<br />

2,2, 8-9) e o “evangelho da glória do Deus bendito" (lT m 1.11). As boas notícias da salvação<br />

de pessoas pecadoras se originaram em Deus. Em seu evangelho, seu poder tem expressão,<br />

pois o evangelho é poder; ele não apenas fala de poder (Rm 1.16; ICo 1.18; cf. 2.5). E<br />

pelo evangelho que Deus nos traz para sua família; podemos chamá-lo de “Pai" (Rm 8.15;<br />

G1 4.6-7; 2Ts 1.1-2; 2.16; Fm 3), e nós somos “filhos” (Rm 8.14, 16, 19; 9.8; G1 3.26; Fp<br />

2.15), "herdeiros de Deus” (Rm 8.17). E como filhos de Deus que sabemos o que significa<br />

entrar na glória da liberdade (Rm 8,21).<br />

S? saloâçâo de ^Z)eus<br />

O Deus que ama de modo tão profundo não abandonará os pecadores à perdição, e<br />

toda teologia e experiência religiosa de Paulo estão baseadas diretamente no que Deus fez<br />

em Cristo em favor da nossa salvação. Foi ele quem a começou, pois a encarnação é obra de<br />

Deus; ele enviou seu Filho (Rm 8.3; G14.4). Nós geralmente lembramos que Cristo morreu<br />

por nós, e está certo que o façamos. Mas não devemos esquecer que Deus “não poupou<br />

o seu próprio Filho, antes, por nós todos o entregou” (Rm 8.32).19 O Pai estava atuante na<br />

obra da expiação e, é claro, a ressurreição é corretamente atribuída a Deus (p. ex. Rm 4.24;<br />

8.11; 10,9). E importante ver que, para Paulo, a encarnação, a morte expiatória e a ressur-<br />

9 C f. D . M artyn Lloyd-Jones; “Foi D eus quem agiu no Calvário. Ele! Q uem agiu ali é aquele que nos<br />

dará todas essas outras coisas. E eu sei e estou certo disso, por causa do que ele já fez lá! D eus agiu por<br />

meio de pessoas, usando-as como instrum entos, mas a ação foi de D eus” (Rom ans: an exposition o f chapter<br />

8.17-39. G rand Rapids, 1980, p. 3 83-384).


eiçáo de Jesus devem ser entendidas como manifestações do amor de Deus, redundando<br />

em nossa salvação. Deus não é passivo, apenas concordando com uma salvação obtida por<br />

Cristo. Ele está ativo. Ele efetua tudo.<br />

Arrependimento é dom de Deus (2Tm 2.25), assim como a vida eterna que segue<br />

(Rm 6.23). A salvação se deve à "justiça de Deus” (Rm 1.17; 3.5, 21-22, 25-26; 10.3; 2Co<br />

5.21; Fp 3.9; cf. Rm 8.33; observe que Paulo não diz "justiça de Cristo", apesar de essa frase<br />

ter uma história longa e honrosa entre os cristãos). A expressão precisa ser entendida com<br />

cuidado. Em inglês, a palavra "justiça” [justice] geralmente é substituída por seu sinônimo<br />

"retidão” [righteousness], denotando uma virtude ética, como acontecia entre os gregos. Os<br />

hebreus, porém, entendiam que o termo apontava para uma posição legal, como pode ser<br />

visto, por exemplo, na maldição pronunciada sobre os que "ao justo negam justiça” (Is 5.23<br />

ARA, BJ; N V I e N T L H parafraseiam a frase assim: "que [...] negam justiça ao inocente”).<br />

Com o sentido de uma virtude ética, a retidão não pode ser tirada de ninguém. O profeta<br />

está dizendo que juizes injustos estão privando da “posição correta” pessoas que tinham<br />

direito a ela; estavam declarando culpadas pessoas que na verdade estavam com a razão.20<br />

Às vezes, no Antigo Testamento, justiça e salvação estão vinculadas, como quando<br />

Deus diz: “A minha salvação durará para sempre, e a minha justiça não será anulada" (Is<br />

51.6), e quando o salmista escreve: "O Senhor fez notória a sua salvação; manifestou a sua<br />

justiça perante os olhos das nações” (SI 98.2), Deus não esquecerá seu povo. E certo que ele<br />

o liberte, e ele o fará. O fato de Deus agir de acordo com o direito não quer dizer que há<br />

uma lei ou norma acima dele à qual ele tem de obedecer. Na Bíblia, Deus é revelado como<br />

grande, e não há ninguém nem nada acima dele. Ele age de acordo com o que é justo, porque<br />

é um Deus justo. E-lhe natural agir com justiça.<br />

E importante entender que Paulo, quando diz que Deus salva, está querendo dizer<br />

que ele salva de uma maneira que é segundo a justiça. Esse é um aspecto da salvação que chamou<br />

a atenção dos reformadores, mas se perdeu em muitos escritos recentes, onde a ênfase<br />

tende a ser na libertação do poder do mal e em outras coisas do gênero.<br />

Por exemplo, Ernst Kãsemann resume assim seu estudo da “justiça de Deus' em<br />

Paulo”: “Sua doutrina da ô i k q l OCJVVT) deoí) demonstra isto: o poder de Deus alcança o<br />

mundo, e a salvação do mundo está em ser recapturado para a soberania de Deus. Exatamente<br />

por essa razão ela é dádiva de Deus, assim como a salvação do indivíduo quando se<br />

torna obediente à justiça divina”,21 Em outro lugar Kãsemann faz referência a aspectos<br />

forenses da justificação e inclui ajustiça em seu estudo, mas então, ao resumir o que Paulo<br />

~°George Buchanan G ray dem onstrou que a palavra traduzida por ju s to ’’ preserva seu “sentido forense<br />

original” (A critical and exegetical commentary on the book o f Isaiah, Edinburgh, 1 9 1 2 ,1 :9 4 ). M ais recentemente<br />

Jo h n M auchline explicou que a expressão indica que se retém “do inocente a absolvição a que tem<br />

iire ito ” (Isaiah 1 -3 9 , London, 1962, p. 86).<br />

E rnst Kãsem ann, N ew Testament questions o f today. London, 1969, p. 181-182.


quer dizer com “justiça de Deus”, ele só fala de poder e soberania. Nem é preciso dizer que<br />

poder e soberania são importantes (também para Paulo), mas nenhum desses conceitos<br />

nos ajuda a entender o que a Bíblia quer dizer com justiça, Com certeza sua associação com<br />

o direito é fundamental.<br />

Às vezes Paulo usa a expressão para revelar uma qualidade de Deus, como quando<br />

diz: “A nossa justiça traz a lume a justiça de Deus” (Rm 3,5); a justiça é inerente a Deus, e<br />

podemos nos basear nela para agir com justiça. O que mais caracteriza a expressão, porém,<br />

é que ela indica uma posição correta que vem de Deus e é dádiva dele. E a "justiça de Deus”<br />

que obtemos “mediante a fé” (Rm 3.22). E importante ver que “justiça” é um “dom”, um<br />

presente (dõrea, Rm 5.17). No sentido em que geralmente usamos a palavra, o de virtude<br />

ética, a retidão não pode ser dada (assim como vimos há pouco que ela não pode ser tirada).<br />

Tem de ser obtida por realizações éticas. O fato de ser uma dádiva indica uma ação judicial.<br />

Deus confere a posição de ser justo”. Ele credita a justiça à parte das obras (Rm 4.6).<br />

Há outras maneiras de compreender a salvação, além de uma posição legal, e Paulo<br />

usa várias. Por exemplo, Deus oferece Cristo como “propiciação” (Rm 3.25). Algumas pessoas<br />

não entendem palavras como propiciação, e isso acontece mais porque os estudiosos de<br />

hoje não consideram importante o conceito da “ira de Deus”. Para nós, porém, deve estar<br />

claro que Paulo visualiza um Deus irado com os pecadores.<br />

Esse é o foco do seu longo argumento em Romanos 1.18-3.20. A passagem é iniciada<br />

com a declaração de que a ira de Deus é revelada do céu contra toda forma de mal (Rm 1.18),<br />

e depois ira aparece mais três vezes (2.5, 8; 3.5). Em uma passagem em que Paulo podia muito<br />

facilmente ter dito que o pecado traz consigo suas próprias conseqüências temíveis, ele<br />

declara que "Deus os entregou” a essas conseqüências (Rm 1.24, 26, 28). O que é isso, senão a<br />

ira de Deus em ação? De fato, Paulo deixa isso subentendido, incluindo as palavras no desenvolvimento<br />

do seu tema de que a ira de Deus se revela contra toda impiedade (v. 18). O apóstolo<br />

diz diretamente que “ira e indignação” estão guardadas para os pecadores (Rm 2.5, 8) e<br />

que Deus é quem faz os pecadores sentirem a sua ira (Rm 3.5; 9.22).<br />

O conceito da ira de Deus de forma alguma está restrito aos capítulos iniciais de<br />

Romanos. Paulo se refere a ele com freqüência. Por exemplo, ele nos diz que a ira de Deus<br />

vem sobre os desobedientes (E f 5.6; Cl 3.6); as pessoas são por natureza “filhas da ira” (E f<br />

2.3). Para quem continua no pecado, essa ira não tem fim (lT s 2.16).<br />

A palavra propiciar significa “desviar a ira”, geralmente por meio de uma oferta. Se<br />

ela não tem esse sentido em Romanos 3.25, o que houve com a ira que Paulo deixou tão evidente<br />

no trecho anterior? Como os pecadores são salvos dela? Não estou dizendo que devemos<br />

basear tudo na aplicação que se dá a uma palavra e não em alguma outra; podemos<br />

preferir outra palavra em lugar de propiciação. E o conceito que importa, e em Romanos 3 o<br />

argumento requer alguma expressão que inclui a idéia de afastar dos pecadores a ira que<br />

Paulo mostrou de modo tão convincente como aquilo que eles podem esperar.<br />

A Bíblia diz que é pelo que Cristo fez que somos salvos da ira (Rm 5.9; lT s 1.10).<br />

Deus “não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus


Cristo” (lT s 5,9). É paradoxal o fato de que o próprio Deus é quem remove a sua ira (cf. SI<br />

78.38: “Muitas vezes desvia ele a sua ira e não dá asas a toda a sua indignação”). Achar que o<br />

paradoxo é difícil ou até rejeitá-lo não nos faz escapar do argumento de Paulo.“* Ele vê um<br />

Deus atuante, que trata da situação criada por sua ira, que, em essência, é sua oposição forte e<br />

vigorosa a tudo o que é mau.~<br />

Deus é considerado ativo de outras maneiras na obra salvadora de Cristo, na maioria<br />

das vezes iniciando-a. Assim, reconciliação é reconciliação com Deus (Rm 5,10; 2Co 5.20),<br />

reconciliação que Deus efetua (2Co 5.18-19), Deus confirmou a aliança (G1 3.17), perdoou<br />

pecadores (E f 4.32), considerou Abraão justo, justificando-o (G1 3.6; o verbo “imputar” é<br />

passivo, sem definição de sujeito, mas a passagem mostra claramente que é Deus quem imputa).<br />

Ele “fez pecado por nós” o Cristo que “não conheceu pecado” (2Co 5.21),<br />

O pensamento de que salvação é pela graça percorre todo o Novo Testamento, e<br />

essa graça é "a graça de Deus” (Rm 5.15; ICo 1.4; 3.10; 15.10; 2Co 1.12; 6.1; 8.1; 9.14; G1<br />

2.21; E f 3.2, 7; Cl 1.6). “A graça do nosso Senhor Jesus Cristo” vem-nos facilmente à boca e<br />

é, naturalmente, bíblica. Porém, devemos ter em mente que, no Novo Testamento, graça é<br />

ligada a Deus de modo tão provável como é a Cristo.<br />

91 oida cristã<br />

A atividade de Deus é vista em vários aspectos da vida coletiva dos salvos. A igreja é<br />

de Deus (IC o 1.2; 10.32; 11.22; 15.9; 2Co 1.1; G 11.13; lT m 3.5,15; cf. o plural “igrejas de<br />

Deus”, ICo 11.16; lT s 2.14; 2Ts 1.4). Assim, também, Paulo fala do “Israel de Deus” (G1<br />

22C . F. D . M oule observa que "há quem ainda siga a tradução propiciar”’, mas ele diz que "eles são induzidos<br />

à reductio ad absurdum de D eus propiciar a si m esm o” (M ichael G oulder, ed., Incarnation and<br />

mytb: tbe debate continued. London, 1979, p. 86n.). Pode ser que sim. Todavia, aqueles que rejeitam "propiciar"<br />

não estão levando as palavras de Paulo totalm ente a sério. O apóstolo descreve a oposição de Deus<br />

ao pecado com o a “ira de D eus” (R m 1.18) e atribui a rem oção dessa ira ao próprio D eus, Q u e outra palavra<br />

denota a rem oção da irai M oule parece pender para “expiar”, mas isso não tem nada a ver com ira,<br />

Q uem usa “propiciar" não está tentando ser difícil ou absurdo. Está tentando preservar duas verdades b í­<br />

blicas: que a ira de Deus se volta contra todo pecado, e que sua ira não se volta mais contra os crentes, por<br />

causa da m orte expiatória de C risto. O s que a rejeitam dificilm ente podem deixar de ver que Paulo se referiu<br />

à ira de D eus; parece que, para eles, a salvação não faz nada em relação à ira.<br />

V eja ainda meus artigos em E x p T 6 2 (1 9 5 0 -5 1 ):2 2 7 -2 3 3 ; lxiii (1 9 5 1 -5 2 ):1 4 2 -1 4 5 ; N T S 2<br />

. 1955-56):3 3 -4 3 , e a análise mais longa em Apostolic preaching o f the cross. London, 1965, cap. 5-6; T he atonement.<br />

Leicester, 1983, cap. 7. V eja tam bém David H ill, Greek words and H ebrew meanings. Cam bridge,<br />

1967, cap. 2; G eorge E . Ladd, A theology o f the N ew Testament. G rand Rapids, 1975, p, 4 2 9 -4 3 3 (publicado<br />

em português pela H agnos com o Teologia do N ovo Testamento).


6.16),"4 da “habitação de Deus” (E f 2.22) e de membros da "família de Deus” (E f 2.19). Próximo<br />

disso está a idéia de que os crentes são o templo de Deus, e o fato de que o templo é<br />

sagrado (IC o 3.16-17) nos diz algo sobre o relacionamento dos crentes com Deus.’" A<br />

igreja, além de pertencer a Deus, constitui um grupo no qual ele está ativo. Ele “pôs” algumas<br />

pessoas nela, com mais destaque aos apóstolos, mas também outras (IC o 4.9; 12.28);<br />

ele "coordenou” os membros do corpo (IC o 12.24).<br />

Paulo vê a Deus interessado também nos indivíduos. Deus dá boas dádivas a cada<br />

um dos seus; ele dá a cada um deles um "carisma” (IC o 7,7), atribui a cada um deles um<br />

lugar na vida (IC o 7.17), atua em todos (IC o 12,6) e lhes dá prosperidade (IC o 16.2), Ele<br />

dá um espírito de “poder, de amor e de moderação” (2Tm 1.17). Quando ele dá o dom de<br />

profecia, mesmo quem não é membro da igreja será obrigado a dizer: “Deus está, de fato,<br />

no meio de vós” (IC o 14.25). Os crentes conhecerão essa presença, é claro, mas é uma presença<br />

que, às vezes, pode se manifestar assim aos de fora. Quando o corpo de Cristo cresce,<br />

é Deus quem o faz crescer (Cl 2.19). A atividade de Deus até mesmo vai além da sua atuação<br />

em seu povo e em favor deste. Uma informação paralela interessante na explicação da<br />

ressurreição apresentada por Paulo é sua afirmação de que Deus dá a cada semente um<br />

“corpo” (IC o 15.38); mesmo uma pequena semente não cresce independente dele.<br />

Deus nos fez para seu propósito específico e nos deu o Espírito (2Co 5.5). Ele nos<br />

fortalece e unge (2Co 1,21), e essa unção é uma referência ao Espírito. De modo semelhante,<br />

pode fazer toda graça ser abundante em nós (2Co 9.8). Ele nos ensina (lT s 4.9) e supre<br />

todas as nossas necessidades (Fp 4.19). A armadura com que somos equipados é a “armadura<br />

de Deus” (Ef 6.11,13), e nessa armadura temos poder para destruir as posições do inimigo<br />

(2Co 10.4). Os crentes não confiam em sua própria capacidade, mas nesse<br />

equipamento de Deus, e Paulo pode dizer: “Nossa suficiência vem de Deus” (2Co 3.5).<br />

Deus está no começo da vida cristã, pois ele nos "destinou” para receber a salvação, não a ira<br />

(lT s 5.9). Paulo diz que Deus o "separou” desde o ventre materno e o chamou (G 11.15), e<br />

que ele designa esferas de trabalho para os seus (2Co 10.13). Ele diz que Deus é quem abre<br />

aporta para o trabalho (Cl 4.3) e abre caminhos (lT s 3.11). Está claro que Paulo vê a vida<br />

cristã dependente de Deus e de seu chamado, não de alguma idéia esplêndida do crente. E o<br />

trabalho do cristão, ele vê executado sob a direção de Deus e com o equipamento fornecido<br />

por Deus. Deus está em todas as coisas.<br />

Paulo tem muito a dizer sobre o trabalho para Deus, e aqui é que vemos pela primeira<br />

vez que é a Deus que se espera que os crentes sirvam. A salvação não é apenas um privilégio,<br />

mas também uma responsabilidade — especificamente, uma responsabilidade<br />

Q uanto a essa expressão, veja a nota 3 da Prim eira Parte.<br />

W illiam F. O rr e Jam es A rthur W alth er com entam sobre o adjetivo “santo" aplicado à igreja: “Ela<br />

participa do num e do próprio D eus” (ICorinthians. N ew York, 1976, p. 174).


para com Deus. Ao falarmos de trabalho, devemos enfatizar o que Deus faz no servo e não<br />

o que o servo faz ao servir. Assim Deus atua nos seus (Fp 2.13); e quando os servos trabalham<br />

bem, é Deus quem dá o crescimento, não eles (lC o 3.6-7). Deus trabalhajunto com<br />

eles, tanto que podem ser chamados “cooperadores de Deus” (lC o 3.9).26 Na proclamação<br />

do evangelho da reconciliação, é Deus quem insiste com os pecadores para que se deixem<br />

reconciliar (ainda que fazendo isso por meio dos pregadores; 2Co 5.20).<br />

Por outro lado, Paulo exortou os romanos a se oferecerem a Deus (Rm 6.13; cf.<br />

12.1); eles são escravos de Deus (Rm 6.22; 12.11; cf. 1,1; lT s 1.9). Devemos entender que<br />

isso não significa que eles sejam empregados, mas que são de Deus de todo o coração; a linguagem<br />

é de devoção total."7 É importante que eles agradem a Deus (Rm 14.18) e que o<br />

adorem (lC o 14.25), e em relação a isso não devemos nos esquecer das referências à oração<br />

(Rm 10.1; 15.30; lC o 11.13; E f 6.18-19). Os crentes precisam ter em mente que existem<br />

"ordenanças de Deus" (lC o 7.19; T t 1.3) e que mesmo a liberdade dos cristãos não significa<br />

que eles estejam “sem lei para com Deus” (1 Co 9.21). “Mandamentos” e “lei" nesses versículos<br />

não devem ser entendidos no sentido de restrições penosas, mas da provisão<br />

graciosa de Deus pela qual ele concede orientação aos seus para que saibam que caminho<br />

seguir.<br />

O reino de CL)eus<br />

Os evangelhos sinóticos têm muito a dizer sobre o “reino de Deus", Esse não é o<br />

tema favorito de Paulo, mas aparece em seus escritos. Ele diz que esse reino não é uma<br />

26 A passagem tam bém pode ser entendida com o cooperadores uns dos outros, pertencentes a Deus<br />

(“com panheiros de trabalho no serviço de D eus”, N T L H ) . Parece mais provável, todavia, que o grego<br />

signifique "cooperadores de D eus” (com o em A R A , A R C , N V I, B J), H ans Conzelm ann com enta: "A<br />

tônica está em O eov, "de D eus" ( ICorinthians, Philadelphia, 1975, p. 74).<br />

27 À s vezes é sugerido que o uso que Paulo faz da palavra “escravo", referindo-se a si m esmo, não tem<br />

nada de humilde, nem está ele se colocando no mesm o nível com outros cristãos quando a usa. “Antes,<br />

ele está usando o título honorífico dos hom ens de D eus no A T ” (E rn st Kãsem ann, Commentary on Romans.<br />

G rand Rapids, 1980, p. 5). Pode haver aí um vestígio do uso veterotestam entário, mas não se pode<br />

deixar de ver que Paulo aplica o conceito aos crentes em geral, e não som ente a si m esmo. A lém das passagens<br />

citadas no texto, veja IC o rín tio s 7.22, Efésios 6,6 e 2T im ó teo 2.24; ôovXevCú (“servir com o escravo”)<br />

é aplicado aos crentes várias vezes (R m 7.6; 12,11; 14.18; E f 6.7; Fp 2.22; C l 3.24; l T s 1.9).<br />

2SC . K . Barrett pensa que é bem possível entender o genitivo com o uma referência a VÓ/IOÇ, que está<br />

implícito, dando assim o sentido de “não sujeito à lei de Deus", opinião apoiada por M oule, B lass-D e-<br />

brunner e D odd. M as ele prefere ver o genitivo com o referência a Paulo, que, então, está dizendo que ele<br />

não "está sem a lei de D eu s” (A commentary to thejirst epistle to the Corinthians. London, 1978, p. 2 1 3 -2 1 4 ).<br />

A prim eira maneira de entender a expressão parece preferível, mas nas duas m aneiras Paulo está dizendo<br />

que o crente está sujeito à lei de Deus.


questáo de comida e bebida, mas que se ocupa da justiça e de coisas do gênero (Rm 14.17;<br />

cf. ICo 8.8); em outras palavras, com qualidades que Deus aprecia e não com desejos<br />

humanos. O reino tem mais a ver com poder do que com palavras (IC o 4.20); o poder de<br />

Deus (não o esforço humano) é primordial. Isso não quer dizer que o esforço humano não<br />

tenha seu lugar (Cl 4.11), mas que não é a coisa mais importante. Mais uma vez, é Deus<br />

quem considera os tessalonicenses dignos do reino (2Ts 1.5).<br />

Há um aspecto presente do reino, mas também uma nítida ênfase escatológica, à<br />

qual Paulo várias vezes dá espaço. Ela reflete sua convicção de que Deus estará em ação nos<br />

últimos tempos. Assim, ele nos diz que malfeitores de vários tipos não herdarão o reino<br />

(G1 5.21) e, mais uma vez, que carne e sangue não podem herdá-lo (IC o 15.50), Em sua<br />

forma final, este corpo físico e terreno não tem lugar nele (os valores do corpo são conservados<br />

na ressurreição, mas isso é outro assunto). É "no fim” que toda autoridade terrena<br />

será eliminada, e o reino será entregue a Deus, que será "tudo em todos” (IC o 15.24-28).<br />

A ressurreição pertence a Deus. Foi Deus quem ressuscitou a Cristo (p. ex. Rm<br />

10.9; Cl 2.12; lT s 1.10); via de regra a Bíblia fala da ressurreição dejesus dizendo que ele<br />

foi ressuscitado,29 apesar de algumas vezes dizer que Jesus ressuscitou (p, ex. Rm 14.9; lT s<br />

4.14). E no fim dos tempos é Deus quem ressuscitará os mortos (IC o 6.14). A morte é<br />

poderosa demais para que possamos vencê-la. Mas não é poderosa demais para Deus, e no<br />

fim ele a derrotará definitivamente (IC o 15.50-57).<br />

Mesmo quando não usa a terminologia do "reino”, Paulo está muito ciente do fato<br />

de que Deus é soberano em tudo na vida. Ele muitas vezes apela a Deus como testemunha<br />

de que está dizendo a verdade (p. ex. G 11.20; Fp 1.8; lT s 2.5, 10; 2Tm 4.1). Ele apela ao<br />

conhecimento que Deus tem das situações (2Co 11.31; 12.2-3; G14.8-9). O que os cristãos<br />

dizem, eles dizem na presença de Deus (2Co 2.17; 12.19; lT s 2.2). E "na presença de Deus”<br />

(2Co 4.2), que Paulo expressa a verdade para se recomendar à consciência das pessoas; ele é<br />

conhecido por Deus (2Co 5.11), e sua preocupação com os coríntios é “diante de Deus"<br />

(2Co 7.12). Se sua conduta é desembaraçada, isso também se dá diante de Deus (2Co<br />

5.13). Ele pede que Deus dê santidade aos convertidos de Tessalônica (lT s 3.13; essa santidade<br />

é escatológica; está à espera dap a r u s ia ). Ele recorda aos colossenses que eles morreram<br />

para a antiga maneira de viver e agora sua nova vida está “oculta juntamente com<br />

Cristo, em Deus” (Cl 3.3).<br />

Mais poderia ser dito; está claro que Paulo imagina Deus presente com o crente o<br />

tempo todo e em tudo o que ele faz. Deus é um Deus atencioso e atento. Não para nos apa­<br />

A . W . Argyle diz que apenas oito das sessenta e quatro referências que tem os no N ovo T estam ento<br />

à ressurreição de C risto dizem que ele ressuscitou; todas as outras afirmam que o Pai o ressuscitou. Essa<br />

ênfase m ostra "que a vitória sobre o túm ulo pode ser uma realização, não da natureza hum ana, nem m esmo<br />

da natureza hum ana perfeita de Cristo, mas de D eus. D eus estava em C risto, e foi D eus quem o ressuscitou”<br />

(E x p T 61 [1 9 4 9 -5 0 ]:1 8 7 ).


nhar em algum mal para poder nos castigar. Paulo pensa, pelo contrário, em um Deus<br />

preocupado com a vida dos seus e, por isso, está com eles o tempo todo, pronto para lhes<br />

prestar ajuda e orientação de que necessitam.<br />

Deus é um Deus que tem prazer em abençoar. Ele chamou seu povo em paz (ICo<br />

7.15), e qualquer que seja a vocação do crente, ele pode “permanecer diante de Deus” (ICo<br />

7.24). Deus faz todas as coisas contribuírem para o bem daqueles que o amam (Rm 8.28).<br />

Paulo encontra na Bíblia uma referência às coisas maravilhosas que Deus nos concede gratuitamente<br />

agora (IC o 2.12). “A paz de Deus” está com o povo de Deus (Fp 4.7; Cl 3.15).<br />

A salvação é de Deus (Fp 1.28) e também a misericórdia (2.27).<br />

Que mais posso dizer? Essa breve visão panorâmica de forma alguma esgotou a<br />

noção que Paulo tem da incessante atividade de Deus, mas é suficiente para destacar algo<br />

que muitas vezes deixamos de ver: que Paulo é um homem na presença de Deus. Mais do<br />

que qualquer outra coisa, está preocupado com o fato de que o grande Deus, o único Deus,<br />

agiu para a salvação de pecadores, e essa atuação tem muitas facetas, Ela se concentra na<br />

cruz, mas também está manifesta em uma variedade extraordinária de formas. Aonde quer<br />

que Paulo olhe, ele vê a Deus.


Capítulo 2<br />

‘Jesus Cristo, o Senhor<br />

uitos cristãos costumam referir-se ao nosso Salvador como “Cristo”, porém<br />

poucos estão cientes de que esse é um hábito que devemos a Paulo, Ao contrário<br />

dos outros autores do Novo Testamento, Paulo usa o título “Cristo"<br />

com grande freqüência. Das 529 ocorrências no Novo Testamento, 379 se encontram nas<br />

cartas de Paulo; isso dá a proporção extraordinária de quase 72 por cento. O número maior<br />

de ocorrências num texto não-paulino está em Atos com 25 casos (Paulo tem 65 em<br />

Romanos, que é bem mais curto). É evidente que o uso que Paulo faz do termo é muito<br />

diferente do uso de qualquer outro escritor do Novo Testamento.<br />

A palavra "Cristo” é, naturalmente, a transliteração de uma palavra grega que significa<br />

“ungido”, assim como “Messias” é a transliteração de uma palavra hebraica com o mesmo<br />

sentido. No Antigo Testamento, várias pessoas eram ungidas, com destaque para o rei<br />

de Israel, conhecido como “o ungido do Senhor” (ISm 16.6; 2Sm 1.14). Também lemos<br />

que os sacerdotes eram ungidos (Êx 30.30; Lv 4.5) e, com menos freqüência, os profetas<br />

vlR s 19.16). Em cada caso a ação significava que a pessoa em questão era solenemente<br />

separada para o serviço de Deus.<br />

Com o tempo, porém, surgiu a idéia de que um dia viria, não simplesmente um ungido,<br />

mas o ungido, que faria a vontade de Deus de maneira particularmente importante. O<br />

termo “Messias”, como tal, é encontrado apenas raramente no Antigo Testamento (Dn<br />

9.25-26, A R C ), mas a idéia é bem mais comum e, às vezes, na história de Israel, de forma


nítida na época do Novo Testamento, havia uma grande expectativa de que o Messias estava<br />

por chegar.<br />

O título não foi aplicado muitas vezes a Jesus durante a sua vida terrena (17 vezes<br />

em Mateus, 7 em Marcos, 12 em Lucas e 19 em João). Mas os primeiros cristãos reconheceram<br />

que Jesus era esse escolhido por Deus, como se vê claramente no uso livre que Paulo<br />

faz da expressão e no uso mais eventual pelos outros escritores. Discute-se se Paulo a<br />

entendia como um título (“o Messias") ou como nome próprio, C. E. B, Cranfield afirma<br />

que a ordem “Cristo Jesus” em que Paulo muitas vezes coloca as palavras mostra que ele a<br />

entendia como um título,1mas é difícil que a razão seja mesmo essa. Mais convincente é o<br />

argumento de Vincent Taylor de que, no mundo gentio, “Cristo” era um título sem muito<br />

sentido (enquanto algo como “Senhor” seria muito expressivo).2 Ao aceitarmos essa posição<br />

não estamos esquecendo que Paulo às vezes usa a palavra com o sentido de “Messias”.<br />

Ele sabia muito bem o que ela significava. Via de regra, porém, não podemos insistir no<br />

sentido em um texto paulino.3<br />

E interessante que Paulo também usa o nome “Jesus”, com bastante freqüência, Ele<br />

ocorre 214 vezes — estando atrás apenas de João (que o usa 237 vezes). Intrigante é que,<br />

enquanto Paulo se refere a tão poucos incidentes na vida terrena de Jesus, ele usa tantas<br />

vezes o nome que lembra sua vida terrena. Pode ser que ele esteja evidenciando a verdade<br />

de que a natureza humana de Jesus foi real e importante. Quando junta os dois nomes,<br />

como faz muitas vezes, Paulo prefere a ordem “Cristo Jesus” (83 casos) a “Jesus Cristo” (26<br />

casos).4 Quando, porém, ele inclui o título “Senhor”, a ordem normalmente é invertida: ele<br />

diz “nosso Senhor Jesus Cristo" mais vezes (54) do que “Cristo Jesus nosso Senhor" (8). O<br />

título completo aparece 62 vezes nos escritos de Paulo, enquanto no restante do Novo<br />

Testamento há apenas 19 ocorrências.<br />

Paulo usa o título “Senhor” 275 vezes, 38 por cento do total de 718 no Novo T e s­<br />

tamento. Essa palavra, como em nossa língua, pode ser usada como tratamento comum<br />

numa conversa formal ou, num sentido mais restrito, na referência a uma pessoa de posição<br />

social elevada. A palavra é usada no primeiro sentido na parábola em que Jesus fala<br />

do filho que disse ao seu pai: “Sim, senhor [eu vou trabalhar na vinha]; porém não foi"<br />

A critical and exegetical commentary on the epistle to the Romans. Edinburgh, 1975, vol. 1, p. 51. V eja tam ­<br />

bém O scar Cullm ann, T he christology o f the N ew Testament. London, 1959, p. 134.<br />

T he name o f Jesus, London, 1953, p. 18-23.<br />

M artin H engel entende que Paulo adotou o título “C risto” da “comunidade helenista pré-paulina<br />

em jerusalém ”. Ele pensa que “ele expressava o fato de que Jesus crucificado e ninguém mais é o executor<br />

escatológico da salvação, y e s ü m e s ihãjá era a confissão m issionária mais im portante na comunidade palestina<br />

mais antiga” (Between Jesus and Paul. Philadelphia, 1983, p. 77).<br />

Esses núm eros precisam ser considerados aproximados, já que a ordem nos m anuscritos difere com<br />

grande freqüência.


vM t 21.29). Todavia, precisamos ter em mente que as cartas de Paulo, em sua maioria,<br />

foram dirigidas a pessoas do mundo grego da época, em que "Senhor” era aplicado muitas<br />

vezes não só a um nobre, mas a alguém ainda mais exaltado — um deus. Um convite bem<br />

conhecido para um jantar traz as seguintes palavras: "Antônio, filho de Ptolomeu, convida<br />

você para jantar com ele à mesa do senhor Sarápis...”5 Esse é um convite para uma refeição<br />

no templo de um ídolo (cf, lC o 8.10); participar de refeições em lugares como esse parece<br />

ter sido um hábito muito difundido. Proclamar Jesus como Senhor fazia muito sentido no<br />

mundo grego da época.6 Era também especial para os leitores judeus, pois quando o Antigo<br />

Testamento foi traduzido para o grego, essa palavra foi usada para traduzir o nome divino<br />

’Javé”. Aqueles que conheciam essa tradução estavam familiarizados com “Senhor” como<br />

maneira de se referir a Deus (costume que vemos até hoje em algumas versões, em que<br />

S E N H O R [grafado em versal-versalete] é a maneira comum de traduzir "Javé”).7<br />

Paulo chama Jesus de "Filho de Deus” 4 vezes, e outras 13 vezes ele escreve “seu<br />

Filho", “seu próprio Filho” ou algo parecido. Esse é um título que pode ser muito ou pouco<br />

importante; por isso, ele é atribuído aos crentes em geral (Rm 8.14), mas também para<br />

Jesus, quando adquire importância máxima. Assim, Paulo diz que a ressurreição mostra<br />

que Jesus é o “Filho de Deus com poder" (Rm 1.4). Ele diz que Deus o revelou (G 11.16) e<br />

enviou (Rm 8.3; G1 4.4). Deus não poupou seu próprio Filho (Rm 8.32), declaração que<br />

nos leva à “morte do seu Filho” (Rm 5.10) e ao evangelho do Filho (Rm 1.9). Paulo viveu<br />

pela fé no Filho de Deus (G1 2.20), e Deus predestinou os crentes a serem conformes à<br />

'imagem” do seu Filho (Rm 8.29). Por causa disso, o Filho é pregado (2Co 1.19), e aqueles<br />

que respondem são chamados “à comunhão” do Filho (lC o 1.9); eles são “transportados<br />

’ Bernard P. G renfell e A rthur S . H u nt, eds., The Oxyrhynchus papyri, parte 3, London, 1903, p. 260.<br />

Cf. W . Foerster: “[Paulo] não faz nenhum a distinção entre d e ó ç e KVpLOÇ, com o se KvpLOÇ fosse<br />

um deus interm ediário; não há nenhum exemplo de tal uso no mundo dos prim órdios do cristianism o”<br />

T D N T 3, p. 1091).<br />

M aurice Casey argumenta que existe “m aterial anterior a Paulo inserido nas cartas", m ostrando que<br />

'S en h or" e “C risto” “surgiram am bos com seu sentido pleno bem menos de vinte anos após a m orte e ressurreição<br />

d ejesu s” (M . D . H ooker e S . G . W ilson , eds,, Paul andpaulinism . London, 1982, p. 124). D uvido<br />

um pouco de que haja m uito material “pré-paulino”, mas, se ele existe, a posição de Casey parece ser<br />

bastante razoável, U m a cristologia bem elevada rem onta a pelo m enos quinze anos após a crucificação.<br />

D e fato, o uso de “Senh or” provavelmente indica uma data ainda mais antiga. H á algumas evidências de<br />

cue, quando os escribas copiavam a LXX, escreviam o nom e divino em hebraico (por reverência). Josep h<br />

Fítzmyer, porém, estudou os indícios e concluiu que os judeus da Palestina usavam “Senhor" para se referir<br />

a Javé. Ele argum enta que “a transferência desse título para Jesus sem dúvida ocorreu no próprio terrirório<br />

palestino, Isso significa que a antiga confissão Jesu s é Senh or’ ( lC o 12,3; R m 10.9) foi<br />

conseqüência do próprio kerygma antigo e não produto da atividade m issionária durante a evangelização<br />

do leste do M editerrâneo" (T h e gospel according to Luke I - I X . N ew Y ork, 1983, p. 202).


para o reino do Filho do seu [de Deus] amor” (Cl 1.13).8 O conhecimento pleno do Filho<br />

ainda fica para o futuro (E f 4.13) e, de fato, esperamos o Filho que vem do céu (1Ts 1.10).<br />

O Espírito é do Filho de Deus (G14.6). Está claro que, quando Paulo pensa em Jesus como<br />

o Filho de Deus, ele o imagina ocupando o lugar mais elevado/ Nos escritos de Paulo<br />

devemos conferir a esse termo o sentido máximo, não o mínimo.<br />

Paulo usa ainda outros termos. De vez em quando ele fala de Jesus como Salvador<br />

(E f 5.23; Fp 3.20; 2Tm 1.10; T t 1.4; 2.13), apesar de não com tanta freqüência quanto<br />

esperaríamos. Mas esse é claramente um título exaltado, pois também lemos de “Deus,<br />

nosso Salvador” (lT m 1.1; 2.3; 4.10; T t 1.3; 2.10; 3.4). Uma expressão interessante que<br />

Paulo atribui a Cristo em ICoríntios 15.45 é “último Adão” (cf. Rm 5.12-21). Há outras<br />

expressões, mas eu as analisarei no contexto da exposição como um todo.<br />

(]esus, o homem<br />

Mesmo essa rápida visão geral da terminologia que Paulo usa é suficiente para mostrar<br />

que ele tinha um conceito muito elevado da pessoa de Cristo. No entanto, não devemos<br />

deixar de ver que ele também tinha certeza da genuína humanidade de Jesus. E<br />

verdade que, em comum com a tradição epistolar de todo o Novo Testamento, ele não faz<br />

referência a muitos fatos da vida terrena de Jesus. Mas ele diz mais do que às vezes se pensa.<br />

Por exemplo, ele nos diz que Jesus era homem (IC o 15.21), nascido de mulher (G1 4.4),<br />

descendente de Davi (Rm 1.3) e pobre, apesar de sua linhagem real (2Co 8.9). Tinha<br />

irmãos (IC o 9.5) e, portanto, sabia como era a vida em família, Era manso e benigno (2Co<br />

10,1), obediente ao Pai (Fp 2.8) e sem pecado (2Co 5.21). Seu ministério era entre os<br />

judeus (“Cristo foi constituído ministro da circuncisão, em prol da verdade de Deus”, Rm<br />

15.8). Tinha apóstolos (entre os quais Cefas ejoão, G1 2.9), que chamava de “os doze”<br />

(IC o 15,5). Instituiu a ceia (IC o 11.23-25). Foi morto pelos judeus (lT s 2.15), pelo método<br />

da crucificação (G1 6,14), foi sepultado e ressuscitou depois de três dias (IC o 15.4).<br />

A expressão nos lem bra do "reino de D eus”. P, T . O ’Brien o entende com o “um período in term e­<br />

diário entre a ressurreição de Jesu s e a vinda definitiva do reino de D eu s” ( W ord biblical com m entary:<br />

Colossians, Philemon. W aco , 1982, p. 28). Eduard Schw eizer m ostra que “Filho do seu am or" ( TOV v l o v<br />

T fjç ayciTTr/Ç aVTOV) “é uma form ulação sem ita e significa pouco mais que ‘Filho am ado”’; mas acrescenta:<br />

“Apesar de, no grego, a ênfase m aior estar provavelmente no am or” (T h e letter to the Colossians.<br />

M inneapolis, 1982, p. 53).<br />

G raham S tan to n vê Jesu s com o ‘“Filho de D eu s’ em sentido único". Ele pergunta ainda: “Será que<br />

Paulo achava q u ejesu s era 'divino'? A resposta parece estar clara: Jesus m antinha o relacionam ento mais<br />

íntim o possível com Deus, pois sua expressão favorita ‘seu F ilh o’ aponta para a semelhança, por assim dizer,<br />

entre D eus e Jesus, e não para a ‘diferença’” entre os dois (M . G oulder, ed„ Incarnation and myth: the<br />

debate continued. London, 1979, p. 154, 157; itálico de Stan ton),


Paulo sabia o suficiente sobre o ensino de Jesus para poder citar algumas de suas<br />

palavras (IC o 7.10; 9.14). Ele também sabia que havia alguns temas em relação aos quais<br />

ele não tinha nenhuma palavra de Jesus (IC o 7.12, declaração que implica que ele tinha um<br />

bom estoque dessas citações). Ele apresenta alguns reflexos dos ensinos dejesus, coisas que<br />

ele expressa à sua própria maneira, mas claramente derivadas do seu Mestre (p. ex. Rm<br />

12.14; 13.9-10; 16.19; ICo 13.2). E evidente que seu conhecimento dejesus não era superficial.<br />

O fato de dois autores dos evangelhos estarem com ele quando escreveu Colossenses<br />

e Filemom (Cl 4.10,14; Fm 24) mostra que ele tinha acesso a boas fontes de informação. E<br />

em tudo o que ele diz fica claro que Paulo via a Jesus como realmente homem^Não há<br />

nenhum indício de um Cristo do docetismo, que parecia humano mas não era. Para Paulo,<br />

Jesus era totalmente "um de nós”.<br />

Cristo e ^eus<br />

Paulo, portanto, é bem claro quanto à genuína humanidade dejesus. Seu interesse<br />

maior, no entanto, não se concentra nisso. Toda a sua vida fora revolucionada por seu<br />

encontro com Jesus na estrada de Damasco. Esse confronto significou que todo um modo<br />

de vida ficara para trás e uma nova vida começara, uma nova vida cheia de poder espiritual<br />

que Paulo atribuiu a Jesus. Sobre essa nova vida ele podia dizer: “Para mim, o viver é Cristo”<br />

(Fp 1.21) e: “Vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por<br />

mim” (G1 2.20). Isso envolvia que ele se tornasse pregador do evangelho (IC o 1.17), “pregador<br />

e apóstolo” (lT m 2.7), e nessa função ele viu o poder de Cristo em ação na vida dos<br />

seus convertidos. Suas cartas são obra de uma personalidade vigorosa e dinâmica, ocupada<br />

sem cessar em seguir o chamado divino que recebera e em dar expressão às suas profundas<br />

convicções em relação àquele que fizera tanto por ele e por meio dele.<br />

De várias maneiras, Paulo denota o aspecto mais-que-humano de Cristo. Um dos<br />

seus hábitos é ligar seu Salvador a Deus, referindo-se a ele no mesmo fôlego como Deus<br />

Pai. Assim, ele normalmente começa suas cartas com a saudação: “Graça a vós outros e<br />

paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (Rm 1.7; IC o 1.3; 2Co 1.2; G1<br />

1.3; E f 1.2; Fp 1.2; 2Ts 1.2; lT m 1.2; 2Tm 1.2; T t 1.4; Fm 3).'° De vez em quando ele une o<br />

Pai e Cristo na oração: “O nosso mesmo Deus e Pai, e Jesus, nosso Senhor, dirijam-nos o<br />

caminho até vós” (lT s 3.11; cf. 2Ts 2.16-17). Ele pode falar de Deus como “o Deus e Pai do<br />

nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 15.6; 2Co 1.3; 11.31; E f 1.3; cf. E f 1.17; Cl 1.3). Esse rela-<br />

É possível que Colossenses e lT essalon icenses com ecem da mesm a maneira, pois nos dois casos alguns<br />

m anuscritos contêm essas palavras. A m aioria dos estudiosos, porém , é da opinião que nessas duas<br />

cartas a saudação m enciona apenas o Pai.


cionamento pode ser entendido como de subordinação, isto é, que Deus é o Deus de Jesus.<br />

Mas também pode ser entendido no sentido de que conhecemos a Deus apenas à medida<br />

que Jesus o tornou conhecido. Ele não é uma divindade abstrata e remota, mas o Pai de<br />

Jesus Cristo." Nesse espírito, épor meio de Cristo que Paulo oferece ações de graça a Deus<br />

(Rm 1.8; 7.25; E f 5.20), ou, ele dá graças ao próprio Cristo pelo poder que lhe deu e por<br />

colocá-lo no ministério (lT m 1.12). Cristo é “poder de Deus e sabedoria de Deus” (IC o<br />

1.24), e isso não é muito diferente de ver a Cristo como sendo ele mesmo a fonte de poder<br />

(IC o 5.4; 2Co 12.9).<br />

Paulo tem muito a dizer sobre o Espírito Santo, que é claramente um personagem<br />

muito exaltado. E ele é o “Espírito de Cristo” (Rm 8.9; Fp 1.19). As pessoas podem invocar<br />

o nome de Cristo do mesmo modo como invocam o nome de Deus (IC o 1.2; cf. 5.4); elas<br />

podem “rogar pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (IC o 1.10), dar ordens nesse nome<br />

(2Ts 3.6) e procurar que esse nome seja glorificado na vida dos crentes (2Ts 1.12).<br />

Há algumas passagens importantes em que Paulo se detém no relacionamento de<br />

Cristo com Deus. Filipenses 2.5-11 é uma delas; muitos a consideram um hino antigo adotado<br />

por Paulo. E possível que seja esse o caso; ele contém alguns termos incomuns, e<br />

vários estudiosos organizaram o material como uma poesia. Não há razão por que o próprio<br />

Paulo não pudesse ter composto o hino, nem adotado um hino escrito por outro.<br />

Neste caso, com certeza ele o tornou seu (aqueles que o consideram um poema geralmente<br />

reconhecem algumas inserções em prosa, que pensam terem sido feitas por Paulo para<br />

expressar com mais clareza seus pontos de vista).<br />

Muitos estudiosos de hoje insistem que a passagem deve ser entendida em termos<br />

soteriológicos, ou seja, que ela fala do que Cristo fez por nossa salvação, não da essência da<br />

sua natureza. Paulo certamente está enfatizando o que Cristo fez por nós, mas isso não significa<br />

que o que ele diz não nos ajuda a compreender a natureza de Cristo.1" Paulo diz que<br />

Cristo, “subsistindo em forma de Deus”, “não considerou que o ser igual a Deus era algo a<br />

que devia apegar-se” (v. 6, N V I). Essas duas frases com certeza denotam divindade.13 Não<br />

nJ , C . O ’N eill com enta sobre a passagem de Rom anos: “N o presente contexto, presum e-se que Deus<br />

já seja claram ente conhecido, e a bênção pede que a congregação agora se una num a só voz para louvá-lo<br />

com o ‘Pai do nosso Senh or Jesus C risto’" (Paul’s letter to the Romans. H arm ondsw orth, 1975, p. 237).<br />

12C ullm ann enfatiza a obra salvífica de C risto e afirma: "A cristologia funcional é a única que existe".<br />

M as ele diz tam bém : “N ão podem os falar sim plesm ente da pessoa sem a obra, nem da obra sem a pessoa"<br />

(T h e christology o f the N ew Testament, p. 326).<br />

13 Carmen Christi, de Ralph P . M artin (Cam bridge, 1967) é um estudo exaustivo dessa passagem. A o<br />

resum ir sua análise do v. 6b, c, ele diz: “O C risto pré-encarnado tem, com o posse pessoal, a dignidade<br />

singular do seu lugar na D ivindade com o EIKOJP ou fio p íp l] de D eus. [...] Ele tinha a igualdade divina,<br />

podem os dizer, de jure, porque existiu eternam ente na 'form a de D eus’” (p. 148). Johannes Behm vê uma


é fácil entender a “forma de Deus” como significando algo menos do que isso.'4 Pode-se<br />

dizer o mesmo sobre qualquer outro ser humano ou anjo? A segunda expressão não vê a<br />

igualdade com Deus como um avanço na posição de Cristo.15 Se é este o caso, que outra<br />

posição poderia ele ter, senão a de Deus?<br />

Paulo, em seguida, diz que Cristo veio para se tornar “em semelhança de homens” e<br />

que ele se humilhou16 e se tornou “obediente até à morte e morte de cruz” (v. 7-8). Não<br />

devemos deixar de ver que mesmo essa declaração de inferiorização tem implicações de<br />

divindade. A morte, para nós, não é uma questão de escolha, mas de necessidade; para ele,<br />

foi resultado de obediência, e por isso mostra que há algo nele que é maior que seu caráter<br />

humano. Essa posição de inferioridade, no entanto, não foi definitiva. Deus "o exaltou<br />

sobremaneira” e, além disso, “lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao<br />

nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse<br />

que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (v. 9-11). Isso não deve ser entendido<br />

no sentido de que, como recompensa por sua submissão voluntária, Deus lhe deu<br />

uma posição mais elevada do que a anterior (não existe posição mais elevada do que subsistir<br />

“em forma de Deus”); o contraste é com a posição inferior a que ele desceu. Se ele tem o<br />

nome que é acima de todo nome, e se toda a criação se curva diante dele e o confessa como<br />

Senhor, isso implica divindade.17 Paulo não está levantando Jesus como um Deus rival ou<br />

como alguém que de alguma forma diminui o lugar especial do Pai, pois tudo é “para glória<br />

de Deus Pai”. Não há oposição nem rivalidade, mas uma unidade profunda e perfeita.<br />

Não se pode dizer que a passagem seja fácil de entender. Há exegetas que pensam<br />

que ela retrata Jesus como alguém superior aos setes criados, porém inferior a Deus. Deus<br />

não o exalta e lhe àá o nome acima de todo nome?James D. G. Dunn explica esse texto nos<br />

termos da tipologia de Adão. O sentido é que “toda escolha com alguma conseqüência, feita<br />

por Cristo, era uma antítese das escolhas de Adão; cada estágio da vida e do ministério<br />

referência à “imagem da majestade divina soberana”; o “sinal externo específico” da “igualdade divina essencial”<br />

ie Cristo é a “jiopcprj deov” (T D N T 4:751).<br />

14M artin com enta que a expressão “volta-se para a existência pré-tem poral do nosso Senh or com o Seíiind<br />

a Pessoa da Trind ade” (T h e epistle ojP aul to the Philippians. G rand Rapids, 1969, p. 96), F. W . Beare<br />

hesita em entender a expressão como “sendo Deus", mas defende que “não deve ser entendida com o mera<br />

irarição , mas com o form a de existência que, em certo sentido, m ostra a verdadeira natureza de C risto”<br />

A commentary on the epistle to the Philippians. London, 1969, p. 7 8 -7 9 ),<br />

’ G . Stáhlin explica L


de Cristo teve o caráter de uma posição de queda assumida espontaneamente”.18 Isso,<br />

porém, não faz justiça à linguagem que Paulo usa: “subsistindo em forma de Deus”, "a si<br />

mesmo se esvaziou”, “tornando-se em semelhança de homens”, “reconhecido em figura<br />

humana”: isso é mais do que tipologia de Adão.19 Algumas coisas talvez não sejam expressas<br />

como esperaríamos que Paulo as expressasse. Mas se ele estava adotando e adaptando<br />

um hino escrito anteriormente, estava até certo ponto limitado às palavras que empregou.<br />

Em todo caso, a força da linguagem permanece. O ponto central é colocar Cristo junto<br />

com Deus, não com os seres criados.<br />

Outra passagem importante é Colossenses 1.15-20."° Ele diz que o “Filho do seu<br />

amor" (v. 13) é "a imagem do Deus invisível" (v. 15). “Imagem” (eikõn) pode significar cópia;<br />

p. ex., a imagem do imperador numa moeda. Mas a palavra também pode ser usada para<br />

indicar, não dessemelhança (uma imagem, não a coisa real), mas semelhança (a imagem é<br />

exatamente igual, não diferente). É este segundo sentido que se exige aqui. Paulo está<br />

dizendo, não que o Filho é diferente do Pai, mas que é exatamente igual a ele.2' Além disso,<br />

ele é “o primogênito de toda a criação”. Isto não quer dizer que ele foi o primeiro a ser criado;22<br />

antes, significa que a relação que ele tem com toda a criação é a que o primeiro filho<br />

tem com os bens do seu pai. Na antigüidade, uma grande propriedade envolvia uma multi­<br />

18 Christology in the making. London, 1980, p. 121.<br />

9Cullm ann declara: "T od as as afirmações de Filipenses 2.6ss, devem ser entendidas da perspectiva da<br />

história de Adão no A ntigo T estam ento". Ele, porém, chega a uma conclusão bem diferente do pensam<br />

ento de D unn: "A o contrário de Adão, o H om em Celestial que, em sua preexistência, representava a<br />

verdadeira imagem de Deus, hum ilhou-se em obediência e agora recebe a igualdade com D eus, da qual<br />

não tom ou posse como usurpação"’ (Christology, p. 181). D unn tam bém cham a a atenção para C . K . B arrett:<br />

“C om isso tem os de comparar a história de Adão: em cada ponto há uma correspondência negativa"<br />

(p. 72). J. L. H oulden considera a tipologia de Adão inadequada; o autor “diz que C risto existiu pessoalm<br />

ente antes de entrar nesse m undo. [...] Essa idéia da preexistência de C risto que surge de m odo tão rápido<br />

na história da igreja talvez encontre aqui sua prim eira afirmação" (Paul’s letters from prison. London,<br />

1977, p. 75).<br />

Essa passagem, com o Filipenses 2.5-11, é por m uitos considerada um hino anterior a Paulo que o<br />

apóstolo adotou e adaptou com acréscimos próprios. R . P. M artin apresenta uma útil descrição das análises<br />

da passagem em Colossians and Philemon. London, 1981, p. 61-66.<br />

C f. H . K leinknecht: “Im agem não deve ser entendida com o uma m agnitude alheia à realidade e presente<br />

apenas na consciência. E la tem parte na realidade. N a verdade, ela é a realidade" (TDNT 2:389).<br />

M artin diz: “A expressão ‘imagem de D eus’ não é explicada com pletam ente pelo sentido de 'representante<br />

de D eus”, por mais perfeita que se pense que essa representação seja. A frase precisa incluir a idéia de<br />

que o próprio D eus está pessoalm ente presente, Deus manifestus, em seu Filho” ( Carmen Christi, p.<br />

112-113).<br />

22J . B. Lightfoot nos lembra de que os pais da igreja no quarto século cham aram a atenção para o fato<br />

de que a palavra não ê T T p ü J T Ó K T K T T O Ç (“prim eiro criado”) mas T rp o jT Ó T O K O Ç ("prim ogênito”; St. Paul’s<br />

epistles to the Colossians and Philemon. London, ed. 1927, p. 145). Ele entende que a palavra indica soberania<br />

e tam bém prioridade.


dão de pessoas — dependentes, empregados e escravos — que tinham graus variados de<br />

importância. Porém, o primogênito do pai, o filho que era seu herdeiro, era a mais importante<br />

de todas. O termo prim ogênito indicava uma relação de importância, e esse é o sentido<br />

aqui. O Filho é o mais importante de tudo o que existe, porque tem um relacionamento<br />

com o Pai que nada nem ninguém tem em toda a criação.23<br />

Na verdade, a criação se deu “nele" (v. 16); isso pode significar que ele foi o agente de<br />

Deus em ocasioná-la (cf. IC o 8.6), ou pode estar perto do pensamento de Paulo em outros<br />

lugares de estar "em Cristo” (veja em At 17.28 a idéia de estar “em” Deus); tudo o que existe<br />

está abrangido por sua atividade criadora.24 O apóstolo passa a descrever isso em termos de<br />

lugar (no céu ou na terra), visibilidade (visível ou invisível) e autoridade (tronos, soberanias<br />

etc.); nada fica de fora. E, além de toda essa criação fantástica ter sido realizada “por meio<br />

dele", ela também foi feita "para ele” (o que também édito do Pai; Rm 11.36; ICo 8.6). Ele é<br />

o fim e o objetivo de tudo; tudo caminha em direção a ele como o alvo definitivo. Ele é o<br />

Alfa e o Ômega de toda a criação, seu começo e fim. Ele é "antes de todas as coisas” (v. 17).25<br />

A referência é primordialmente ao tempo; ele existiu antes de tudo, e isso traz consigo o<br />

pensamento de que ele, naturalmente, tinha preeminência sobre todas as coisas. Além disso,<br />

ele não só criou todas as coisas, mas também as sustenta; é nele que “tudo subsiste”<br />

(synestêken). A criação não funciona sem sua mão para sustentá-la.<br />

Paulo passa à questão de que essa pessoa suprema é cabeça do corpo, que é a igreja<br />

(v. 18), e depois diz que ele é o “princípio” (archê); o termo provavelmente reúne os sentidos<br />

de prioridade no tempo e origem (cf, Hb 2.10). Ele é “o primogênito de entre os mortos”,<br />

uma referência clara à ressurreição. Ralph P. Martin cita Lohse para apresentar a idéia de<br />

que a combinação de "princípio” e "primogênito” indica que ele é o fundador de um novo<br />

povo (cf. Rm 8.29; será que existe um elo entre a criação e a nova criação?)."6 O propósito<br />

(hina) disso é que ele "em todas as coisas tenha a primazia”. Não podemos perder de vista o<br />

fato de que Paulo está atribuindo a Cristo o lugar mais elevado que se pode imaginar. Há<br />

algo do mesmo pensamento em sua próxima declaração de que toda a "plenitude" estava<br />

~3“Ele é o Senh or da criação e não tem rival na ordem criada” (M artin, Colossians, p. 58).<br />

' 4D u nn com enta: "Isto pode sim plesm ente ser a maneira do escritor de dizer que Cristo agora revela o caráter<br />

do poder que está por trás do mundo” (Christology in the making, p. 190; itálico de D u nn). Todavia, não é isso o<br />

que Paulo diz. Isso não leva a sério o sentido direto das palavras usadas.<br />

Sobre eUTLP Lightfoot com enta: “O im perfeito T]Ppoderia ter sido suficiente (com p. Jo 1.1), mas o<br />

presente eU T lu declara que essa preexistência é existência absoluta” (Colossians, p. 153).<br />

"6 M artin, Colossians, p, 59.


nele, termo que denota a totalidade dos poderes divinos.27 Para Paulo, os poderes divinos<br />

não estão, é claro, dispersos por múltiplas divindades, mas concentrados num só Deus, e<br />

esse Deus, em toda a sua plenitude, habita em Cristo."8 A isso se acrescenta a informação<br />

que sua ação reconciliadora não só trouxe libertação às pessoas na terra, mas também é eficaz<br />

no céu (v. 20).<br />

Esse é um impressionante conjunto de descrições, que deixa muito claro que Paulo<br />

não via a Cristo apenas como o homem de Nazaré, mas também como detentor de significado<br />

cósmico.29 Ele é supremo sobre a igreja, porém é muito mais do que isso. Ele foi o<br />

agente de Deus ao trazer a criação à existência, e é supremo sobre toda autoridade, seja<br />

celestial, seja terrena. A passagem é uma expressão impressionante da suprema grandiosidade<br />

da pessoa de Cristo.<br />

ÇJs funções díoinas<br />

E no contexto de tudo isso, mesmo sem expressá-lo em termos tão complexos, que<br />

Paulo concebe a Cristo como alguém que existia antes da encarnação. Sobre a rocha que os<br />

israelitas encontraram no deserto, ele diz: “A. rocha era Cristo” (lC o 10.4). Essa é uma afirmação<br />

com aspectos difíceis, mas não há nenhuma dúvida de que Paulo tinha certeza da<br />

preexistência de Cristo (cf. 2Co 8,9; G14.4; Fp 2.6).30<br />

?L ightfoot vê nisso “um term o técnico reconhecido na teologia que denota a totalidade dos poderes e<br />

atributos divinos” (Colossians, p. 157; veja tam bém seu excurso, p. 2 5 5 -2 7 1 ). A palavra certam ente foi<br />

usada pelos gnósticos mais tarde para indicar a totalidade dos poderes divinos. Se essa idéia já existia na<br />

época de Paulo, ele está negando que C risto fosse apenas parte do TrXrjpüjpa; todo o poder divino residia<br />

nele.<br />

C .<br />

H . D odd entende o 77A jíp iü /ia com o “o próprio D eus considerado nos seus atributos e não em<br />

sua identidade pessoal” (Abingdon Bible commcntary. N ew Y ork, 1929, p. 1255).<br />

9M arkus B arth argumenta contra a tendência que vê em escritores com o A . V ógtle, E. Schw eizer e J.<br />

M u rp h y -0 ’C onnor de restringir a obra salvadora de C risto à salvação do ser hum ano (“C h rist and ali<br />

things” em Paul and Paulinism, M . D . H ooker e S , G . W ilson , eds., London, 1982, p. 160-1 7 2 ). D iz ele;<br />

“N o N ovo T estam ento, o M essias ou Filho do hom em é, em pessoa, o sinal e a garantia, o m ediador e<br />

substância da salvação e da renovação de todas as coisas, bem com o de pessoas de todas as nações” (p.<br />

170). C f. Paul Beasley-M urray: “C om o imagem do D eus invisível, ele tem dom ínio sobre toda a criação.<br />

C om o prim ogênito, é Senh or soberano sobre toda a criação. T odas as coisas devem sua origem a ele. T o ­<br />

das as coisas convergem nele. Ele é senhor de tudo!" (Pauline studks, D onald A . H agner e M urray J . H arris,<br />

eds., Exeter e G rand Rapids, 1980, p. 179).<br />

C f. Jo h n K nox: “Paulo não só fala da preexistência de C risto, mas obviamente pressupõe que o conceito<br />

era conhecido dos seus leitores e que eles não precisavam ser convencidos da sua veracidade. Ele nenhum<br />

a vez o explica ou defende. N enhu m a vez o debate, Isso deixa claro que, pelo menos em suas


Além disso, ele atribui várias funções indistintamente a Deus e a Cristo. Assim,<br />

por exemplo, ele se refere ao reino de Deus (Rm 14.17) e ao reino de Cristo (IC o<br />

15.24-25; Cl 1.13); é o reino dos dois em Efésios 5.5. O dia de Deus no Antigo Testamento<br />

se torna o "dia do nosso Senhor Jesus Cristo" (ICo 1.8). Ele fala da graça de Deus (ICo 1.4) e<br />

da graça de Cristo (Rm 16.20), do “evangelho de Deus” (Rm 1.1) e do “evangelho de Cristo”<br />

vRm 15.19), da “igreja de Deus” (IC o 10.32) e das "igrejas de Cristo” (Rm 16.16), do “Espírito<br />

de Deus” (ICo 2.11) e do “Espírito de Cristo” (Rm 8.9), da paz de Deus (Fp 4.7) e da paz<br />

de Cristo (Cl 3.15), do tribunal de Deus (Rm 14.10) e do tribunal de Cristo (2Co 5.10). Ele<br />

também diz que Deus julgará os segredos de todos por meio de Cristo (Rm 2.16). O pecado<br />

normalmente é contra Deus, mas também é contra Cristo (IC o 8.12). Paulo espera o dia em<br />

que Deus será tudo em todos (IC o 15.28) assim como Cristo é tudo em todos (Cl 3,11).<br />

Na mesma categoria geral estão passagens em que Paulo fala de coisas como a vontade<br />

de Deus em Cristo (lT s 5.18), de testemunhar diante de Deus e de Cristo (e dos<br />

“anjos eleitos”, 1Tm 5.21) e de ver a glória de Deus na face de Cristo (2Co 4.6). Estar sem<br />

Cristo é igual a estar sem Deus (E f 2.12). Às vezes, Paulo aplica a Cristo palavras que se<br />

referem a Deus no Antigo Testamento (p. ex. Rm 10.13; IC o 1.2; 2.16; Ef4.8; Fp 2.10-11;<br />

Cl 1.16). A palavra que a Septuaginta usa para se referir a Javé, "Senhor”, ele também usa<br />

livremente em relação com Cristo.3'<br />

Há uma referência ao “mistério de Deus, Cristo” (Cl 2.2), bem como ao “mistério de<br />

Cristo" (Cl 4.3; também E f 3.4). Ora, a palavra grega mystêrion, que traduzimos por “mistério”,<br />

não tem exatamente o mesmo sentido em nossa língua. Ela não significa algo difícil de<br />

descobrir, alguma coisa que poderemos desvendar se nos esforçarmos e nos concentrarmos<br />

nas pistas certas. Pelo contrário, ela significa algo impossível de descobrir, algo como<br />

“segredo”, porém geralmente um segredo já revelado.<br />

A palavra é aplicada com freqüência ao evangelho, e essa é uma ilustração esplêndida<br />

do termo. Quem poderia ter imaginado que nossa salvação jamais é produto dos nossos<br />

próprios esforços? Nem nossas boas obras, nem nossas orações, nem nosso estudo da Palavra<br />

de Deus e dos caminhos de Deus, nenhum empenho humano. Quem teria adivinhado<br />

que ela exigiria a vinda do Filho de Deus em condição inferior, como um bebê em Belém,<br />

para viver em relativa obscuridade e morrer rejeitado? Essas verdades tiveram de ser reveladas.<br />

Elas constituem um mistério divino, o evangelho.<br />

Falar de Cristo como o “mistério de Deus” é colocá-lo na frente dessa obra de salvação;<br />

ele é o centro e o coração de tudo. E falar do mistério como sendo de Cristo é colocá-lo<br />

ijreja s, e provavelm ente tam bém em outras, a idéia estava bem difundida quando suas principais car-<br />

MS foram escritas, entre quinze e vinte anos após a crucificação de Jesus" (T h e humanity and divinity of<br />

Christ. Cambridge, 1967, p. 10-11). Joh n A . T . Robinson, em termos semelhantes, defende que o conceito<br />

da preexistência de C risto é m uito antigo (Tw elve N ew Testam ent studies. London, 1962, p. 143 n. 12).<br />

A V eja na nota 7 acima a opinião de que o uso de “Senhor" com o referência a Javé é pós-cristão.


ao lado de Deus. Isso é reforçado por passagens que associam a revelação com Cristo, como<br />

Paulo faz quando fala da "revelação de Jesus Cristo", que lhe ensinou tudo (G 11.12). Isso<br />

com certeza também é o significado da "palavra de Cristo” (Cl 3.16) ou das suas “palavras”<br />

(lT m 6.3). A pregação, kêrygma, é "de Cristo”, e há muitas referências a pregar a Cristo<br />

(IC o 15.12; 2Co 1.19; 4.5; Fp 1.15-18). O evangelho é, naturalmente, o “evangelho de<br />

Cristo” (p. ex. Rm 15.19. ICo 9.12; 2Co 4.4; 9.13; G 11.7).<br />

Os judeus se orgulhavam da revelação que Deus lhes dera por Moisés, mas Paulo<br />

afirma que eles não entenderam Moisés. Quando os textos da antiga aliança são lidos, há<br />

um “véu” que os impede de entender o verdadeiro significado. O véu, porém, é tirado “em<br />

Cristo” (2Co 3.14-16). Em outras palavras, a chave da revelação, mesmo no Antigo Testamento,<br />

é Cristo, Em comum com os outros escritores do Novo Testamento, Paulo afirma<br />

que o Antigo Testamento, quando lido corretamente, leva a Cristo (G 11,7).<br />

Claramente, tudo isso significa que Cristo é o centro da mensagem que Paulo proclamou.<br />

E, também é claro, essa mensagem vem de Cristo. Isso não é o mesmo que afirmar<br />

expressamente que Cristo é divino, mas que ele chega muito perto de viver como se fosse.<br />

Foi o que Cristo fez, especificamente em sua morte expiatória, e o que Cristo revelou a<br />

Paulo que formou o coração e a essência, não só da sua pregação, mas também do seu pensamento<br />

e da sua vida. E o que está no centro é Cristo.<br />

Cristo é ^eus ?<br />

Será que alguma vez Paulo se refere nitidamente a Cristo como Deus? Pode-se<br />

interpretar certas passagens dessa maneira, A mais destacada é Romanos 9.5, que a NVI<br />

traduz: "Cristo, que é Deus acima de todos, bendito para sempre!", e a A R A : "Deus bendito<br />

para todo o sempre”. Algumas considerações de peso favorecem a primeira tradução: 1) A<br />

estrutura da frase, pois se espera que "o qual" se refira a “o Cristo" (que o precede) e não a<br />

"Deus” (que vem depois). A construção é semelhante à de 2Coríntios 11.31, onde não há<br />

dúvida de que o "que” se refere ao que o precede.3* 2) Se as palavras não se referem a Cristo,<br />

elas formam uma bênção que louva a Deus, e essa bênção normalmente começa: "Bendito<br />

seja Deus...” A ordem das palavras não apóia a versão da A R A . 3) A referência a Cristo<br />

“segundo a carne” faz-nos esperar outra declaração, a título de contraste. A expressão não<br />

pode ser deixada em aberto, como ficaria se aceitarmos a tradução da A R A , 4) Uma doxo-<br />

O participio ítV não ocorre m uitas vezes no N ovo T estam ento com uma frase prepositiva e tam bém<br />

um substantivo a que se refere, por isso é improvável que O b)V £TTL TTClVTíúl' se refira a B e o ç . O utro<br />

ponto a favor é que a pontuação em nossos textos, obviamente, não é original, de modo que não podem os<br />

ter certeza se Paulo teria posto um ponto depois dcddpK ã (com o a N V I na nota de rodapé) ou um a vírgula<br />

(com o a N V I no texto).


logia de júbilo, que louva a Deus, dificilmente se enquadra no contexto, que, de modo geral,<br />

tem um tom triste, mas é admissível logo depois da menção de Cristo, sublinhando sua<br />

grandeza e, em conseqüência, a magnitude da dádiva oferecida a Israel. 5) A atribuição da<br />

bênção a Deus exige uma mudança abrupta de sujeito.<br />

O argumento mais importante em favor de “Deus bendito...” é que Paulo, em<br />

nenhum outro lugar, chama Cristo de "Deus" de modo categórico. Esse é um argumento<br />

forte. Com todas as suas declarações sobre a grandeza de Cristo, Paulo tantas vezes usa<br />

termos distintos de “Deus”. Mas o fato de ele não fazê-lo em outro lugar não significa que<br />

ele não o faça aqui. Diante de tudo isso, devemos levar o sentido natural do texto grego a<br />

sério e relacionar as palavras a Cristo.33<br />

Devemos observar mais algumas passagens. Paulo fala da "graça do nosso Deus e<br />

Senhor, Jesus Cristo” (2Ts 1.12, N V I nota) e do “nosso grande Deus e Salvador Cristo<br />

Jesus’ ’ (T t 2.13).34 Nos dois casos, é fácil entender a frase grega como referência a apenas<br />

uma pessoa, definida tanto como “Deus” quanto como “Cristo”, Nos dois casos o artigo<br />

definido vem antes de “Deus” e não é repetido antes de "Senhor [Salvador] Jesus Cristo”,<br />

construção esta que é mais natural entender como indicação de que se está falando de apenas<br />

uma pessoa. Isso não é totalmente indiscutível, pois os escritores do Novo Testamento<br />

não aplicam a gramática sempre com tanta correção. Em todo caso, "Senhor” quase sempre<br />

é definido, mesmo sem o artigo; pode ser traduzido com o sentido de “o Senhor”.35 Pode-<br />

’5Essa posição é apoiada por C . E. B . Cranfield, Romans 2 :4 6 4 -4 7 0 . D iz e le :"... a superioridade dos argumentos<br />

em favor do v. 5b com o referência a C risto é tão grande que garante a afirmação de que é quase<br />

totalm ente seguro que eles devam ser aceitos" (p. 4 6 8 ). V eja tam bém O scar Cullm ann, Christology, p,<br />

306-314; Bruce M . M etzger em Christ and Spirit in the N ew Testament, B. Lindars e S. S . Sm alley, eds.,<br />

Cam bridge, 1973, p. 95-1 1 2 ; D . E . H . W hiteley, T he theology ofst. Paul. Philadelphia, 1964, p. 118-120;<br />

\V. L, Lorim er, N T S 13 (1 9 6 6 -6 7 ):3 8 5 -3 8 6 ; O . M ichel, D er B rief an die Römer. G öttingen, 1966, p.<br />

228-229. M aurice F. W iles diz que R om anos 9 .5 ' e aplicado de modo invariável e sem hesitação ao Filho<br />

e não ao Pai por todos os pais da igreja" ( The divine apostle. Cam bridge, 1967, p. 8 3 ). O fato de o grego ser<br />

a língua m aterna de m uitos deles torna isso ainda mais im portante.<br />

^Ronald A . W a rd cita as palavras e m T ito 2.13 da ARA: “N osso grande D eus e Salvador Jesus C risto”,<br />

e com enta: “Pode haver poucas dúvidas de que essa seja a tradução correta” (1 and 2Tim othy &■ Titus, p.<br />

261), W illiam H endriksen considera o único artigo im pressionante e vê apoio para essa interpretação<br />

no fato de que em nenhum lugar no N ovo T estam ento eT T Lcfiaveia (“m anifestação”) é aplicada a mais<br />

de uma pessoa, e essa única pessoa é sempre C risto (New Testam ent commentary, exposition o f the pastoral<br />

epistles. G rand Rapids, 1957, p. 3 7 3 -3 7 5 ). P or outro lado, J. N . D . Kelly, apesar de respeitar a referência a<br />

Cristo, decide-se contra ela, pois em nenhum outro lugar (com a possível exceção de R m 9.5) Paulo diz<br />

que C risto é D eus, e, nas cartas pastorais, C risto norm alm ente é colocado ao lado de D eus, com o sendo<br />

duas pessoas. N essas cartas, Kelly pensa que o relacionam ento de C risto com D eus é de dependência (I e<br />

II Timóteo e Tito, introdução e comentário, p. 223).<br />

’’ M ostrei isso em meu livro T he first and second epistles to the Thessalonians. G rand Rapids, 1959, p. 212,<br />

onde acrescentei: “A o m esmo tem po não devemos deixar de notar que Paulo faz uma ligação m uito es-


mos dizer, porém, que nos dois casos existe a possibilidade de que Jesus Cristo esteja sendo<br />

chamado de “Deus”.’6<br />

O amor de Cristo<br />

Já que Cristo tem uma ligação tão próxima com Deus, e já que Paulo tem tanto a<br />

dizer sobre o amor de Deus, não é de admirar que ele também escreva sobre o amor de<br />

Cristo. Isso é especialmente verdadeiro porque ele considera a cruz de Cristo de importância<br />

central, a cruz em que Cristo, em amor, morreu pela raça humana em pecado.<br />

Naquela que talvez seja a passagem mais comovente em todos os seus escritos, ele<br />

aplica o sacrifício de Cristo a si pessoalmente: “...o Filho de Deus, que me amou e a si mesmo<br />

se entregou por mim" (G12,20). Numa declaração semelhante em que Paulo se junta a<br />

outros crentes, os efésios são exortados a andar em amor, "como também Cristo nos amou<br />

e se entregou a si mesmo por nós,,.” (E f 5.2). Vemos o mesmo vínculo entre o amor de<br />

Cristo e sua entrega à morte na maneira como seu amor pela igreja se manifesta (E f 5.25).<br />

O amor do Filho é relacionado claramente com o amor do Pai, e Paulo pode ligar os dois<br />

numa oração que começa assim: "Ora, nosso Senhor Jesus Cristo mesmo e Deus, o nosso<br />

Pai, que nos amou e nos deu eterna consolação...” (2Ts 2.16).37 Os dois são, é claro, inseparavelmente<br />

associados em uma passagem lírica em Romanos 8. Depois de perguntar:<br />

“Quem nos separará do amor de Cristo?”,38 Paulo diz que fomos feitos “mais que vencedores,<br />

por meio daquele que nos amou”, e depois expressa sua convicção profunda de que nada mesmo<br />

“poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (v.<br />

treita entre os dois termos. O simples fato de haver essa dúvida, se um ou os dois estão em vista, já indica a ligação<br />

íntima que havia entre eles na mente de Paulo. Ele não faz grande distinção entre eles”.<br />

E m alguns círculos o conceito de que Jesus C risto é Deus encarnado é seriam ente posto em dúvida<br />

ou até rejeitado por escritores cristãos, com o em Jo h n H ick (ed.), T he myth o f G od incarnate. London,<br />

1977; M ichael G oulder (ed.), Incarnation and myth: the debate continued. London, 1979. Essa posição é<br />

com batida em textos com o o de M ichael G reen (ed.), T he truth ofG od incarnate. London, 1977. N este livro<br />

não posso discutir a controvérsia com detalhes, mas parece que a linguagem de Paulo é encarnacional;<br />

qualquer que seja o veredicto quanto ao sentido exato de um a passagem em particular, sua posição<br />

geral é que C risto é D eus.<br />

37 Apesar de term os o sujeito com posto “nosso Senh or Jesus C risto" e “D eus, o nosso P ai”, os verbos<br />

estão no singular, sinal interessante de que Paulo considerava os dois intim am ente relacionados, possivelmente<br />

até a m esm a pessoa, em certo sentido. T alvez essa passagem deva ser acrescentada às do trecho<br />

anterior que podem indicar que C risto é Deus,<br />

38 H á aqui um problem a textual, A m aioria dos estudiosos concorda que devemos ler “C risto", alguns<br />

bons m anuscritos contêm “D eus”, e um ou dois, as mesmas palavras do v. 39: do am or de D eus, que<br />

está em C risto Jesus, nosso Sen h or”. A passagem inteira, no entanto, entrelaça o am or de C risto e o am or<br />

de D eus.


35-39). Em outra passagem lírica, ele ora para que seus leitores, “arraigados e alicerçados<br />

em amor (o amor deles por Cristo ou o amor dele por eles?), [possam] compreender, com<br />

rodos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o<br />

amor de Deus, que excede todo entendimento” (E f 3.17-19). “O amor de Cristo nos constrange”<br />

(2Co 5.14), tanto que esse amor é eficiente em todo o nosso serviço cristão.39<br />

A vista de tudo isso fica claro que o amor de Cristo é intimamente ligado ao amor do<br />

Pai, e esse conceito predomina. A ênfase de Paulo no amor é, às vezes, estranhamente<br />

esquecida. Ele é considerado alguém dado a brigas, sempre disposto a entrar em debates<br />

calorosos, muito mais notável por sua disposição para discutir do que por algum sentimento<br />

de ternura. Paulo, porém, tem certeza absoluta da maravilha do grande amor de Deus<br />

por nós, amor este que o levou à cruz e nos trouxe salvação. Veremos mais adiante que esse<br />

amor desperta uma resposta de amor nos crentes. Aqui vemos que o amor é característico<br />

de Deus Pai e também de Cristo. Não é exagero dizer que Paulo passa a entender o que é<br />

esse amor quando está diante da cruz, um amor que é o amor de Deus assim como é o amor<br />

de Cristo; é o amor de Deus em Cristo. Todas as outras coisas perdem importância quando<br />

comparadas com esse grande amor.40<br />

S? sãlvãçâo e Cristo<br />

No capítulo 3, olharemos mais de perto como Paulo entendia a salvação. O que nos<br />

ocupa aqui é apenas que, não importa como seja entendida, a salvação é efetuada por Cristo.<br />

Aos olhos de Paulo, o fato de que Cristo é quem realizou a salvação do mundo é um<br />

sinal da sua grandeza. Cristo é o Salvador que esperamos do céu (Fp 3.20; cf. T t 3.6), e a<br />

salvação é por meio dele (lT s 5.9; 2Tm 2.10). Fiá expressões gerais, como: “Cristo morreu<br />

pelos ímpios” (Rm 5.6; cf. v. 8), e ênfase na sua morte (Rm 8.34; 14.9,15; lC o 8,11; 15.3; G1<br />

39 C . K . Barrett lembra a possibilidade de lerm os o texto com o referência ao nosso am or por C risto, e<br />

que H . Lietzm ann entende que há nele “um duplo sentido m ístico”. M as ele diz com firmeza: O pensam<br />

ento fundam ental aqui tem de ser o am or de C risto por nós, pois som ente este pode proporcionar uma<br />

introdução adequada ao que segue” (A commentary on the second epistle to the Corinthians. N ew Y ork, 1973,<br />

p. 167), N a mesm a direção, Philip H ughes diz que a conduta de Paulo "é pautada pelo am or de C risto<br />

^não tanto o seu am or por C risto — apesar de este fazer parte, inevitavelmente — mas o am or de C risto<br />

por ele, que antecede o seu am or por C risto e o explica..,") (Paul’s second epistle to the Corinthians. G rand<br />

Rapids, 1962, p. 192).<br />

^ Pau lo usa o verbo áyaTráü) 33 vezes, o substantivo dyánr] 75 vezes e o adjetivo âyarrrjTÓÇ 27 vezes,<br />

um total de 135 das 318 ocorrências das palavras no N ovo T estam en to. E le usa essas palavras mais<br />

do qualquer outro escritor. João, que costum a ser considerado o “apóstolo do am or”, as emprega 4 4 vezes<br />

no evangelho e 62 vezes nas cartas, num total de 106 casos.


2.21), Pode-se entender que essa morte efetua a reconciliação (Rm 5.10-11; 2Co 5.18; E f<br />

2.16; Cl 1.20), o que é a mesma coisa que fazer as pazes (E f 2.14-15; cf, Fp 4.7),<br />

Paulo diz que a redenção é "em Cristo Jesus” (Rm 3,24). Em outro lugar ele declara<br />

que Cristo “nos resgatou da maldição da lei”, o que o leva ao outro pensamento, de que ele<br />

se tornou "maldição em nosso lugar” (Gl 3.13). Cristo é ligado à nossa justificação (Gl<br />

2.17), perdão (Cl 3.13) e vitória (lC o 15.57). Ele trouxe paz (Rm 5.1), esperança (E f 1.12;<br />

Cl 1.27; lT s 1.3; lT m 1.1), filiação (E f 1.5), a promessa da vida (2Tm 1.1), vida eterna<br />

(Rm 5.21; 6.23), luz (E f 5.14) e riquezas em glória (Fp 4.19; cf. "as insondáveis riquezas de<br />

Cristo”, E f 3.8). O “dom gratuito” que traz a justificação é de Cristo (Rm 5.15ss), e os crentes<br />

são "co-herdeiros com Cristo” (Rm 8.17).<br />

De outro ponto de vista, Cristo é o único fundamento sobre o qual os cristãos edificam<br />

(lC o 3.11) e, também, a pedra fundamental (E f 2.20). Ele se ofereceu por nós em<br />

sacrifício (E f 5.2); Paulo pode falar de um sacrifício específico, e chama Cristo de “nossa<br />

Páscoa" (lC o 5.7). Cristo nos recebeu “para a glória de Deus” (Rm 15.7), o que quer dizer<br />

que sua obra de salvação é eficaz onde importa.<br />

Em termos proibitivos, Cristo pôs fim ao caminho da lei (Rm 10.4). O mesmo pode<br />

ser dito em relação à circuncisão. O homem que se submete a esse rito se põe debaixo da<br />

obrigação de obedecer a toda a lei; todo aquele que segue esse caminho rejeita o que Cristo<br />

está oferecendo e não recebe nada (Gl 5.2-4). Em Cristo, não importa ser circuncidado<br />

nem deixar de sê-lo. O que importa é "a fé que atua pelo amor" (Gl 5.6; cf. 6,15). Toda a<br />

função da lei se resume em levar as pessoas a Cristo.<br />


eles eram cristãos antes que ele se convertesse. Os “fiéis em Cristo Jesus" (E f 1.1) são claramente<br />

os cristãos, e o mesmo vale para os “irmãos no Senhor" (Fp 1.14; cf. ICo 1.30; Fm<br />

16). A expressão pode ser ligada ao começo da vida cristã, como quando lemos que Rufo<br />

fora “eleito no Senhor” (Rm 16.13) e que o escravo "foi chamado no Senhor” (IC o 7.22).<br />

Ela pode se referir à concretização da salvação, pois quem está "em Cristo” é nova criação<br />

2Co 5.17) e, também, quem estava longe foi, em Cristo, trazido para perto (E f 2.13; o versículo<br />

faz referência ao “sangue de Cristo”, que efetuou isso). Em Cristo Jesus, Paulo gerou<br />

os cristãos em Corinto, “pelo evangelho” (IC o 4.15).<br />

Além disso, provavelmente devamos entender o "eterno propósito [de Deus] em<br />

Cristo Jesus, nosso Senhor” (E f 3.11) como referência ao seu propósito de salvação, e essaé<br />

claramente a intenção quando Paulo diz que “nenhuma condenação há para os que estão<br />

em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Esse também é o caso quando ele nos diz que "a bênção de<br />

Abraão chega aos gentios, emjesus Cristo” (G1 3.14), e quando lemos sobre a “promessa<br />

[de Deus] em Cristo Jesus” (E f 3.6).<br />

A expressão pode sinalizar as atitudes que devem caracterizar os cristãos. Eles<br />

devem “pensar concordemente, no Senhor” (Fp 4.2); as contendas não combinam com<br />

estar em Cristo. E eles devem “permanecer firmes no Senhor” (Fp 4.1; lT s 3.8; cf. Ef6.10),<br />

pois ceder à oposição também não combina com estar em Cristo, Timóteo era “fiel no<br />

Senhor" (IC o 4.17). Paulo tinha “confiança, no Senhor" (G1 5.10; Fp 2.24; 2Ts 3.4). Ele<br />

cita as Escrituras para mostrar que o crente que se orgulha, deve gloriar-se no Senhor (ICo<br />

1.31); é um orgulho que se concentra no que Cristo fez nos convertidos. Os cristãos são<br />

pessoas livres, com liberdade em Cristo Jesus (G12.4); Cristo os libertou “para a liberdade”<br />

VG1 5.1 — um versículo que dá uma forte ênfase em nossa liberdade). Ou a ênfase pode<br />

estar nas emoções. Os crentes têm "consolação” em Cristo (Fp 2.1). Eles se alegram no<br />

Senhor (Fp 3.1; 4.4, 10). E Paulo fala do seu amor pelos coríntios como amor "em Cristo<br />

Jesus” (IC o 16.24) e de Amplíato como seu "amado no Senhor” (Rm 16.8).<br />

Há muitas maneiras de evidenciar a verdade de que o trabalho cristão genuíno é feito<br />

“em Cristo”; os que trabalham a serviço do Senhor são "cooperadores em Cristo Jesus”<br />

tRm 16.3, 9), e foi “no Senhor” que Arquipo recebeu seu "ministério” (Cl 4.17). Paulo<br />

escreve aos tessalonicenses sobre pessoas “que [os] presidem no Senhor” (lT s 5.12) — evidentemente<br />

os que ocupam cargos de liderança na igreja local. Ele se esforça para apresentar<br />

“todo homem perfeito em Cristo” (cl 1.28; cf. Apeles, “aprovado4“ em Cristo”, Rm<br />

16.10). Os coríntios são “fruto do trabalho” de Paulo e o “selo” do seu apostolado no<br />

Senhor (IC o 9.1-2). Há muitos “preceptores em Cristo” (IC o 4,15) e o próprio Paulo “fala<br />

'~A OKI jl OÇ significa "aprovado, que passou no teste”. Cranfield acha que a palavra é aqui usada “possivelmente<br />

porque Paulo sabia que, em alguma dificuldade específica, ele provara ser um cristão fiel”, ou<br />

Paulo talvez não pretendesse nada mais do que sim plesm ente variar o elogio (Romans, 2:791). A prim eira<br />

opção parece ser a mais provável.


em Cristo” (2Co 2.17; 12.19). Os cristãos trabalham no Senhor (Rm 16.12) e são abundantes<br />

no trabalho do Senhor (IC o 15.58). A abertura de uma porta no Senhor (2Co<br />

2.12) é uma oportunidade para mais trabalho. Tíquico era um “servo fiel no Senhor” (E f<br />

6.21, afirmação repetida em Cl 4.7). Quando Paulo se tornou “prisioneiro no Senhor” (E f<br />

4.1), ele evidentemente não viu sua prisão como um desastre imenso, mas como uma<br />

oportunidade de prestar um serviço cristão proeminente.<br />

Um versículo interessante nesse contexto é Romanos 16.22. Tércio pode ter simplesmente<br />

escrito uma saudação no Senhor, nas “no Senhor” fica no extremo oposto da<br />

frase que começa com “saúdo”, logo depois de “escrevi esta epístola”. Se ele quis dizer que<br />

escreveu a carta no Senhor, surge uma pequena questão provocante quanto ao sentido exato<br />

de “escrever no Senhor”. Podemos entender que Tércio considerava o ato de escrever a<br />

epístola como um tipo de serviço cristão.43<br />

Para Paulo, toda a vida é vivida em Cristo. Ele fala dos seus “caminhos em Cristo<br />

Jesus" (IC o 4.17) e instrui os colossenses a “andar nele” (Cl 2.6). Febe devia ser recebida<br />

“no Senhor" (Rm 16,2); devia receber as boas-vindas cristãs. O casamento é um aspecto<br />

importante da vida que Paulo relaciona com esse conceito, quando diz que as viúvas devem<br />

se casar "no Senhor” (IC o 7.39). Os cristãos são um “santuário santo no Senhor” (E f 2.21,<br />

NVl); eles são “santificados em Cristo Jesus" (IC o 1.2). E num nível um pouco inferior<br />

Paulo faz uma saudação amigável “no Senhor" (IC o 16.19). Nenhum aspecto da vida é<br />

grande ou pequeno demais para ser relacionado com o Senhor. Paulo instrui as crianças a<br />

obedecerem a seus pais “no Senhor” (E f 6.1),44 E, na outra ponta da vida, os crentes que<br />

morrem “dormem em Cristo” (IC o 15.18). Isso quer dizer que eles têm esperança em Cristo;<br />

sua esperança não é apenas para esta vida (IC o 15.19).<br />

Os crentes são "todos um em Cristo Jesus" (G1 3.28); há um forte elo que os une.<br />

Muitos dizem que a expressão de Paulo deve ser entendida nos termos do conceito hebraico<br />

da personalidade coletiva, "conceito esse que lhe permitia pensar na comunidade em termos<br />

do líder que a representa”.45 Isso aponta ao mesmo tempo para a vida em comum dos<br />

cristãos e para Cristo, o único que torna essa qualidade de vida possível. Enquanto “em<br />

Cristo” é corretamente aplicado a indivíduos, não devemos esquecer o forte caráter coleti-<br />

Cranfield favorece a posição de que T ércio fala de “saudar no Senhor”; se, porém , quis dizer que 'e s ­<br />

creveu no Senhor", “poderíamos entender que T ércio expressa com EV KV píw certa idéia da im portância<br />

daquilo em que ele teve um papel vital, ou sim plesm ente com o indicaçáo de que ele o fizera com o cristão,<br />

com o parte do serviço para seu Senhor” (Romans, 2:806).<br />

Alguns bons m anuscritos (incluindo B D) om item “no Senhor”, mas a impressão é que as palavras<br />

devem ser mantidas.<br />

A. M , H u nter, T he gospel according to st P au l Philadelphia, 1966, p. 34.


vo do estado para o qual a expressão aponta.46 É uma grande manifestação da unidade de<br />

todos os cristãos. Nós, que somos crentes, pertencemos uns aos outros, mas não estamos,<br />

acima de tudo, nessa ou naquela igreja, mas “em Cristo”. Há uma unidade genuína e<br />

próxima em Cristo.<br />

As vezes Paulo diz isso de outra forma. Assim como é verdade que o crente está<br />

“em” Cristo, é verdade que Cristo está “no” crente. Paulo pode dizer simplesmente: “Cristo<br />

vive em mim” (G1 2.20). Ele deseja ansiosamente que essa seja também a experiência dos<br />

outros, pois fala do seu sofrimento (a palavra refere-se a "dores de parto”) "até ser Cristo<br />

formado em vós” (G1 4.19). Cristo está “nos” coríntios (2Co 13.5) e “nos” romanos (Rm<br />

8.10). Paulo quer que Cristo seja engrandecido no corpo dele (de Paulo; Fp 1.20) e diz que<br />

tem provas de que Cristo fala “nele” (2Co 13.3). Ele ora para que Cristo habite no coração<br />

dos efésios (E f 3.17).<br />

Essa flexibilidade destaca a certeza de Paulo do vínculo estreito que une Cristo e os<br />

crentes. Eles estão nele; ele está neles. O apóstolo prefere a primeira maneira de expressar<br />

isso, mas não é contrário à segunda. De qualquer forma, a maravilha da presença de Cristo<br />

motiva o servo de Deus.<br />

Paulo também tem muito a dizer sobre estar "com” Cristo. Ele evidencia como a<br />

cruz é central em nossa salvação, ao dizer que o crente "morreu com Cristo” (Rm 6.8); Cl<br />

2.20; 2Tm 2.11). E torna isso um pouco mais específico, dizendo que foi "crucificado com<br />

Cristo” (G1 2.19) e que “foi crucificado com ele o nosso velho homem” (Rm 6.6). Claramente<br />

Paulo considera importante que nos identifiquemos com a morte de Cristo. Ele<br />

passa ao pensamento de que fomos sepultados com Cristo no batismo (Rm 6.4; Cl 2.12).<br />

Há um simbolismo muito rico nesse sacramento. Paulo, no entanto, não pára com a morte.<br />

Ele avança para o pensamento de que ressuscitamos com Cristo (Cl 2.12; 3.1), ou seja,<br />

fomos vivificados junto com ele (E f 2.5; Cl 2.13).<br />

Todas essas expressões mostram com traços vivos aprofunda experiência espiritual<br />

do cristão. A morte de Cristo resolveu o problema do pecado dos crentes e lhes trouxe uma<br />

maneira de viver totalmente nova. Eles morreram para seu passado não regenerado e ressuscitaram<br />

para um estilo de vida totalmente novo, para uma vida em que Cristo é tudo:<br />

'Para mim, o viver é Cristo” (Fp 1.21). A vida dos crentes está “oculta juntamente com<br />

Cristo, em Deus” (Cl 3.3); eles viverão pelo poder de Deus (2Co 13.4). A morte leva à ressurreição:<br />

“Se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos” (Rm 6.8).<br />

Cristo "morreu por nós para que, quer vigiemos, quer durmamos, vivamos em união com<br />

40 “Estar ‘em C risto' significa ser um m em bro da ordem final, escatológica, da comunidade divina do<br />

amor, presente em term os prolépticos e parcialm ente concretizada na igreja, cujo espírito é o próprio<br />

Espírito de D eus e a própria presença do C risto ressurreto” (John K nox, Chapters in a life o f Paul. London,<br />

1954, p. 158).


ele" (lT s 5.10). Paulo tem tanta certeza da maravilha que Cristo fez por nós que vê o crente<br />

ligado a Cristo agora, em toda a novidade que a vida em Cristo passa a significar.<br />

Contudo, por mais maravilhoso que isso seja, não esgota as riquezas da vida que<br />

Cristo disponibilizou. Paulo espera o dia em que o Deus que ressuscitou a Jesus "também<br />

nos ressuscitará com Jesus” (2Co 4.14). Ele quer “partir e estar com Cristo”, que ele considera<br />

"incomparavelmente melhor" (Fp 1.23), pois então o crente "estará para sempre com<br />

o Senhor" (lT s 4.17; cf. 2Tm 2.11-12).<br />

O sofrimento é uma parte inevitável da sorte do cristão aqui e agora, mas se sof<br />

mos com Cristo agora, seremos glorificados com ele depois (Rm 8.17; cf. Cl 3.4).47 Paulo<br />

resume muita coisa quando diz: "Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por<br />

todos nós o entregou, porventura, não nos dará com ele graciosamente todas as coisas?”<br />

(Rm 8.32). Paulo não está partindo de alguma base abstrata, teórica, mas do que Deus já<br />

fez. A cruz é evidência eloqüente do amor e do cuidado de Deus com seu povo. E se Deus já<br />

fez tudo isso, para Paulo é inimaginável que ele vá parar agora. Podemos estar absolutamente<br />

certos de que o Deus que já fez tanto conduzirá a obra de salvação até o final.<br />

Facilmente poderíamos acrescentar muitos outros pensamentos. Paulo vê todas as<br />

coisas à luz de Cristo. Os crentes são chamados à comunhão do Filho de Deus (IC o 1.9) e<br />

devem viver à luz desse fato. As igrejas a que eles pertencem são igrejas de Cristo (G 11.22).<br />

Tudo na vida é de Cristo, e o fim de todas as coisas é o “dia do nosso Senhor Jesus Cristo"<br />

(IC o 1.8). Mas já dissemos o suficiente para demonstrar que, para Paulo, Cristo é supremo.<br />

Ele é Senhor de tudo e de todos. Seu senhorio se estende para além desse mundo e dessa<br />

vida. Estende-se até o céu e abrange toda a eternidade.48<br />

A d o lf D eissm ann defende que a form ulação “com C risto” “quase sempre significa a com unhão dos<br />

fiéis com C risto depois da m orte deles ou da sua vinda” (Lightfrom the anúent East. L ondon, 1927, p. 303<br />

n. 1). E le pode achar que esse é o caso na igreja antiga; com o vimos, essa expressão ocorre no N ovo T e s ­<br />

tam ento, mas há passagens im portantes que aplicam “com C risto” à experiência presente dos cristãos.<br />

N ão há um desenvolvimento significativo da cristologia nas cartas, de m odo que essa teologia rica e<br />

plena deve ter se desenvolvido antes de 50 d.C. A lém disso, Paulo claram ente espera que seus leitores entendam<br />

os títulos e conceitos cristológicos, e isso nos leva a crer que eles são ainda mais antigos. M artin<br />

H engel pergunta que retrato de C risto teve Paulo depois do seu encontro na estrada de Dam asco, “a<br />

ponto de se tornar o fundam ento do seu evangelho, sem a lei”, e continua com uma segunda pergunta;<br />

"T em os alguma razão para supor que a cristologia de Paulo mudou em pontos essenciais durante sua<br />

atividade na Síria e na Cilicia, nos anos que seguiram?" (Bctween Jesus and P au l Philadelphia, 1983, p. 31;<br />

cf. tam bém 3 9-40), Se a essência da sua cristologia foi form ada na estrada de D am asco, ela é realmente<br />

antiga.


Capítulo 3<br />

J<br />

A obra de salvação de<br />

Deus em Cristo'<br />

que aconteceu na estrada de Damasco teve importância decisiva para Paulo.<br />

( Sua visão de Jesus causou uma reviravolta em seu mundo. Daquele momento<br />

em diante ele tinha a certeza de que Jesus Cristo é absolutamente supremo e,<br />

como vimos no capítulo 2, não pode ser considerado menos do que Deus. Quanto, então,<br />

uma pessoa tão importante vem a este mundo trazer salvação, algumas coisas seguem inevitavelmente.<br />

Uma é que a raça humana devia estar em situação realmente má. Outra é que<br />

i obra de salvar a raça era grande demais para ser efetuada com recursos humanos; para ser<br />

realizada, ela exigia algo bem maior do que nós pecadores podemos oferecer.<br />

Isso não quer dizer que Paulo tirou todas essas conclusões do nada. Ele não era um<br />

teórico da doutrina, e no seu passado, antes de ser cristão, ele estivera bem contente com<br />

sua situação (Fp 3.4-6). Ele não começou com a idéia de que todos somos pecadores, procurou<br />

uma solução e finalmente se fixou em Cristo. Foi o encontro com Cristo que mudou<br />

O tema deste capítulo é tratado mais minuciosamente em meu livro T he cross in the N ew Testament.<br />

G rand Rapids, 1965, cap. 5-6.


tudo. Esse encontro o colocou num caminho completamente novo. Jesus entrou neste<br />

mundo para tratar da nossa necessidade, e sua morte foi central nisso tudo (IC o 1.23). Um<br />

alto custo implica uma grande causa: somos todos pecadores necessitados de redenção.<br />

Não conseguimos viver à altura do melhor e mais elevado que conhecemos, e isso atrai o<br />

desastre sobre nós. O Deus sobre quem Paulo escreveu não vai eliminar as conseqüências<br />

do pecado; por isso, o mal que fazemos necessariamente nos acompanhará. A vinda de<br />

Jesus ensinou a Paulo algumas coisas importantes sobre o significado da salvação. Se quisermos<br />

entendê-la, talvez seja melhor começar com a catástrofe em que a raça humana se<br />

envolveu quando caiu em pecado.<br />

Gscmoos do pecãdo<br />

O pecado tem múltiplas facetas, e Paulo usa vários termos para mostrar isso,2 Ele<br />

não tem uma idéia simplista do que seja o pecado. E, apesar de certamente enfatizar sua<br />

seriedade, não está obcecado com ele como alguns dos seus detratores têm afirmado. Ele<br />

usa a palavra traduzida por pecado (hamartia) 64 vezes, 48 das quais em Romanos, carta em<br />

que ele trata do assunto com mais vagar. Portanto, em todas as outras cartas juntas a palavra<br />

“pecado” ocorre apenas em catorze casos.<br />

Na maior parte das vezes, Paulo usa a palavra no singular: o pecado não é só um mal<br />

que fazemos, mas um poder que nos mantém em sujeição. Mais de uma vez ele diz que em<br />

geral somos “escravos do pecado” (Rm 6.17, 20), e numa imagem viva nos vê como “vendidos<br />

à escravidão do pecado” (Rm 7.14). Assim como um escravo é vendido a um senhor<br />

(quer goste, quer não), nós estamos sob o controle do pecado (quer gostemos, quer não).<br />

Paulo diz sobre si mesmo que foi feito “prisioneiro da3 lei do pecado” (Rm 7.23), em que a<br />

figura é da captura de um prisioneiro de guerra. Uma referência à “lei" nesse contexto é<br />

inesperada, mas, como diz Cranfield, “é uma maneira convincente de mostrar que o poder<br />

que o pecado tem sobre nós é uma caricatura terrível, uma paródia grotesca da autoridade<br />

A palavra básica é a p a p T Í a , "errar o alvo” (que Paulo usa 64 vezes), com os substantivos correspondentes<br />

á p a p T l j / i a (2 vezes), á p a p T b J À Ó ç (8) e o verbo â / i a p r á l / ú J (1 7 ). Pecado tam bém é àÔ L K ia,<br />

"injustiça” (12); os cognatos são aSlKOÇ, "injusto" (3) e aSLKeiú, “agir mal” (9). Pecado tam bém é avo-<br />

p í a , "iniqüidade” (6), com ã v o p o s , “iníquo” (5) e â v ó p o j ç , "de modo iníquo” (2); T r a p a K O lj, “desobediência"<br />

(2); âoéfíeia, "impiedade” (4), com á a e P T jç , "ím pio” (3); T r a p á f ia a í Ç , "passar do limite,<br />

transgressão” (5), com T T a p a f3 á T T jÇ , “transgressor” (3); T r a p á T T T íO fia , “dar passo em falso” (16);<br />

TTCúpMOLS, “endurecer” (2); K d K Í a , “maldade” (6), com K & K Ó ç , "mau” (26) e K a K O V p y O Ç , “m alfeitor”<br />

(1); ijrT T Jfia , "derrotar" (2); TTOVrjpía, “malignidade” (3), com n o is ijp ó ç , “maligno” (1 3 ); 6V 0X 0S,<br />

“culpado” (1).<br />

É inesperada a preposição €V com “lei” ( è v TÔ v óp ú j), mas o sentido não parece estar em dúvida.


que, por direito, é da santa lei de Deus”.4 Paulo está dizendo duas coisas: 1) o pecado não<br />

tem o direito de nos controlar (nós que somos feitos à imagem de Deus) e 2) mesmo assim,<br />

ele assumiu o controle. Por isso é que, apesar de talvez servirmos5à lei de Deus com nossa<br />

mente, nas atuais circunstâncias, na carne, servimos à lei do pecado (Rm 7.25).<br />

O apóstolo não tem dúvidas quanto à sujeição da raça humana ao pecado. No<br />

começo de Romanos ele faz uma exposição incisiva para mostrar a universalidade do pecado.<br />

Começa com os gentios, que, "tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como<br />

Deus” (Rm 1.21). Eles não tinham a lei revelada no Antigo Testamento; por isso não<br />

podem ser acusados de infringi-la. Mas os gentios “servem de lei para si mesmos” (Rm<br />

2.14); sua conduta mostra que eles sabem o que é certo e o que é errado (Rm 2.15). Por<br />

isso, quando pecam, são “indesculpáveis” (Rm 1.20), e Paulo pinta um quadro desanimador<br />

do que isso significa (Rm 1.21-32). No entanto, não só os gentios são pecadores; o<br />

mesmo se aplica aos judeus. Estes se orgulhavam de possuir a lei, mas o que conta é obedecer<br />

a ela, não apenas ouvi-la (Rm 2.13). Ser judeu, membro do povo de Deus, é sê-lo por<br />

dentro, não só por fora (Rm 2.28). Paulo chega ao clímax com uma série de citações do<br />

Antigo Testamento que afirmam que todas as pessoas são pecadoras (Rm 3.10-18). O<br />

judeu não pode fugir disso, dizendo que todas as declarações se referem aos gentios, pois a<br />

lei fala aos que a têm, os judeus (Rm 3.19). O que a lei traz é o conhecimento do pecado<br />

;vRm 3.20). Em seguida, Paulo diz francamente: “Todos pecaram e carecem da glória de<br />

Deus" (Rm 3.23).<br />

Essa é uma nítida referência aos atos de maldade reais que cometemos, mas Paulo<br />

também defende a idéia de que o pecado é parte de nós. Ele fala da “lei do pecado que está<br />

nos [nossos] membros" (Rm 7.23)6 e diz que somos, “por natureza, filhos da ira” (E f 2.3).<br />

Crianças não santificadas pela fé de um dos pais são “impuras” (IC o 7.14). Essas passagens<br />

parecem estar dizendo que pecamos por causa do que somos.7 Nossa própria natureza nos<br />

leva a agir mal (algo que todos podemos verificar na experiência pessoal; todos temos dificuldades<br />

para ser virtuosos, ao passo que escorregamos com facilidade para o mal). Há<br />

solidariedade na raça humana: "Somos membros uns dos outros" (E f 4.5). Em grupos aceitamos<br />

padrões inferiores, como, por exemplo, na política externa das nações, ditadas por<br />

A critical and exegetical commentary on the epistle to the Romans. Edinburgh, 1975, vol. 1, p. 364.<br />

’ A ovA evti), “servir com o escravo”, rege as duas orações.<br />

“O pecado não é uma força externa, fora do ser hum ano. Paulo entendia que o pecado fixa sua residência<br />

dentro da pessoa e a ocupa com o um inimigo ocupa um país conquistado" (W illiam Barclay, The<br />

'Kind o f st. Paul. N ew Y ork, 1958, p. 190).<br />

“O ser hum ano peca porque é um pecador no relacionam ento errado com D eus. [...] O pecado é algo<br />

cue, de alguma forma, obteve dom ínio sobre a raça hum ana com o um todo” (W illiam H ordern, T he case<br />

new Reformation theology. Philadelphia, 1959, p. 130).


interesses próprios descarados, E todo grupo tende a adotar uma atitude condenatória<br />

para com os de fora, enquanto promove de modo resoluto suas próprias causas.8<br />

Paulo tem muito mais a dizer sobre esse assunto, mas isto é suficiente para mostrar<br />

sua posição de que todos cometemos pecados. E não apenas isso, também não conseguimos<br />

nos livrar dessa condição. Estamos presos ao poder e às conseqüências do mal que praticamos.<br />

Estamos escravizados.<br />

$7 carne<br />

“Carne” é um termo que Paulo usa com grande freqüência e com uma variedade<br />

impressionante de significados. E uma das suas palavras características, pois são dele 91<br />

das 147 vezes em que ela é usada no Novo Testamento. João, em contraste, a emprega apenas<br />

13 vezes, o que evidencia o caráter paulino do termo, A rigor, denota a parte mais flexível<br />

do corpo humano, como na expressão “carne e sangue” (IC o 15.50), e a partir disso o<br />

termo é empregado mais ou menos no sentido de "corpo", como quando Paulo se refere a<br />

uma “enfermidade física” (G14.13; cf. a referência ao corpo de Cristo em Cl 1.22). Depois<br />

vem a significar o que é humano, como quando Paulo diz: “... em mim, isto é, na minha carne”<br />

(Rm 7.18) e também quando pergunta: “Ao deliberar, acaso delibero segundo a carne?”,<br />

isto é, “de modo humano” (2Co 1.17; “de modo mundano”, N V l) . Nesse sentido<br />

estamos todos envolvidos “na carne”; “andamos na carne” (2Co 10.3; "somos humanos”,<br />

N T L H ). I s s o é inevitável. Se somos humanos, estamos "na carne”.<br />

A carne física, no entanto, é fraca, e a fraqueza física pode nos levar a pensar na fraqueza<br />

moral; "de modo humano” muito facilmente passa a significar “humano, sem Deus"<br />

e “humano, oposto a Deus". "Carne” facilmente passa a significar aquilo que está ligado à<br />

vida no corpo, mas se opõe às coisas de Deus.9 Nesse sentido, tem ligação estreita com o<br />

pecado. Apesar de Paulo talvez servir à lei de Deus com a mente, "segundo a carne” ele serve<br />

à lei do pecado (Rm 7.25). Não é de admirar que ele se refira à “carne pecaminosa” (Rm<br />

8 Jo h n Burnaby m ostra que há uma operação de resistência à vontade de D eus, que não pode ser restrita<br />

ã “operação da liberdade pessoal”. Ele acrescenta: “A resistência já está presente na rede de muitos<br />

fios pela qual o indivíduo está preso à sociedade em que está colocado e, no fundo, à espécie à qual ele pertence.<br />

[.,.] D ificilm ente podem os olhar para a ju stiça própria aparentem ente incorrigível, o farisaísmo<br />

desavergonhado que se m ostra no com portam ento coletivo de todo grupo hum ano — social, político, nacional<br />

ou eclesiástico — sem sermos obrigados a reconhecer que, na natureza hum ana com o a vemos,<br />

existe uma essência que, em todo lugar, se opõe à persuasão do Espírito” ( Theol 62 [1 959]:15).<br />

9 G ünth er Bornkam m destaca que, apesar de Paulo freqüentem ente usar a palavra "carne” com sentidos<br />

encontrados no A ntigo T estam ento, muitas vezes ele a emprega com um sentido mais com pleto:<br />

“Então ela designa o ser e a atitude do ser hum ano com o opostos e em contradição a Deus e ao Espírito de Deus”<br />

(P au l London, 1971, p. 133; itálicos de Bornkam m ).


8.3), a “paixões pecaminosas” que agiam em nossos membros quando estávamos “na carne”<br />

(Rm 7.5) e a estar “enfatuado na sua mente carnal” (Cl 2.18) — uma advertência para não<br />

entendermos que “a carne" necessariamente indica pecados grosseiros, principalmente os<br />

de natureza sensual. Estes podem estar incluídos no termo, mas “carne" também pode ser<br />

muito cerebral. É esclarecedor perceber que as “obras da carne” incluem “prostituição,<br />

impureza, lascívia”, mas também “idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras,<br />

discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas”<br />

(G1 5.19-21). Está claro que, do ponto de vista humano, “carne" pode ser atraente e altamente<br />

sensual. Mas sempre que as pessoas se concentram no que é puramente humano e<br />

no favorecimento de interesses apenas desta vida, há pecado.10<br />

Paulo deixa claro que quem tem mentalidade carnal está se encaminhando para o<br />

desastre: “O que semeia para a sua própria carne da carne colherá corrupção” (G1 6.8).<br />

“Quando vivíamos segundo a carne, as paixões pecaminosas postas em realce pela lei operavam<br />

em nossos membros, a fim de frutificarem para a morte” (Rm 7.5). A que outra coisa<br />

a concentração na carne poderia levar? Numa passagem notável, Paulo começa ressaltando<br />

que a lei não podia fazer o que objetivava porque está “enferma pela carne" (Rm 8.3; cf. G1<br />

5.17 NVI: “Vocês não fazem o que desejam"). Ele continua caracterizando os cristãos como<br />

os que "não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rm 8.4). Em contraste com<br />

eles Paulo coloca os que "se inclinam para a carne”, pessoas que “cogitam das coisas da carne”<br />

(v. 5). Elas estão em sérias dificuldades porque “o pendor da carne dá para a morte" (v.<br />

6); ele “é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar”<br />

(v. 7). Por isso, “os que estão na carne” simplesmente “não podem agradar a Deus” (v. 8).<br />

Paulo não está dizendo que a “mentalidade da carne" acarreta a morte como punição. Ele<br />

diz que ela é a morte. Propor-se a satisfazer a pura natureza humana equivale a entrar num<br />

estado de angústia. Podemos estar seguindo os movimentos da vida, mas, desligados de<br />

Cristo, "que é a nossa vida” (Cl 3.4), e do "Deus vivo e verdadeiro” (lT s 1.9), o que temos<br />

não passa de uma caricatura da vida. E a tragédia dos de mentalidade mundana, dos que<br />

vivem no nível da carne, que, ao mesmo tempo em que afirmam ter vida em abundância<br />

("aproveitando a vida!”), nem mesmo entendem o que é "vida”.<br />

Os cristãos foram libertados da servidão à “carne”. Mas isso ocorreu por causa da<br />

obra salvadora de Cristo; antes de crer, estavam aprisionados como qualquer outra pessoa.<br />

Todavia, não estão mais "na carne" (Rm 8.9); eles “se despojaram do corpo da carne” (Cl<br />

2.11), deixando implícito que antes estavam vestidos dele. “Outrora” viviam “segundo as<br />

inclinações da carne” (E f 2.3). Libertar-se da carne não é uma conquista natural.<br />

“Apesar de a carne em si não ser má, o pecado invade o ser hum ano através dela, pois é a via mais fácil.<br />

O pecado pode até se fortalecer na carne e causar o caos em cada departam ento da vida, Pode criar uma<br />

natureza inferior na carne, que guerreia constantem ente com a inspiração divina e resulta num estado de<br />

tensão e confusão interna" (W . David Stacey, T he Pauline view o f man. London, 1956, p. 162).


S? lei<br />

Uma das categorias importantes de Paulo é a lei. Ele usa a palavra "lei” (nomos) 119<br />

vezes, bem mais que a metade (62 por cento) do total de 191 ocorrências no Novo Testamento.<br />

Além de usar o termo com grande freqüência, ele o emprega de várias maneiras, das<br />

quais algumas são difíceis de entender. Apenas a título de exemplificação, ele fala da “lei do<br />

pecado” e da "lei da mente” (Rm 7.23), da “lei do marido” (Rm 7.2) e da “lei do Espírito da<br />

vida, em Cristo Jesus” e da “lei do pecado e da morte” (Rm 8.2). Na maioria das vezes ele<br />

tem em mente a lei que Deus concedeu por intermédio de Moisés, e a vê como uma boa<br />

dádiva de Deus: “A lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom” (Rm 7.12); “a lei é<br />

espiritual” (Rm 7.14), e é “boa” (Rm 7.16; lT m 1.8).11A lei não contradiz as promessas de<br />

Deus (G1 3.21).12<br />

Contudo, é fácil entender mal o lugar da lei, e Paulo afirma que, de modo geral, seu<br />

povo fez exatamente isso. É verdade que nos textos judaicos há algumas declarações belas e<br />

comoventes sobre a graça e o perdão de Deus, mas os escritores judeus não estavam dizendo<br />

a mesma coisa que Paulo. Para eles, obedecer à lei é fundamental, e a misericórdia de<br />

Deus atua dentro dessa moldura.13 Os judeus recebiam corretamente a lei como um grande<br />

bem que Deus lhes havia concedido.14 Contudo, eles equivocadamente a promoveram a<br />

11A palavra é KCtXÓç, que tam b ém sig nifica "belo ", en q u an to em ou tro lugar (R m 7 .1 2 ) ele usa<br />

a y a d o ç p ara re ferir-se ao m and am en to.<br />

12C f. W . D . Davies: “A concentração da nova vida ‘em C risto’ é a essência da posição de Paulo em relação<br />

à lei, que não é descartada por ele, mas transposta para uma nova posição” (M . D . H o oker e S. G ,<br />

W ilson , eds., Paul and paulinísm, London, 1982, p. 4).<br />

°M o rn a D . H o oker cita uma declaração im pressionante dos m anuscritos de Q um ran, que com eça assim:<br />

“Q u anto a mim, m inhajustificação é com Deus. N a sua mão estão a perfeição do meu cam inho e a<br />

retidão do meu coração. Ele apagará minhas transgressões por meio da sua justiça...” Ela diz que isso soa<br />

com o algo que Paulo poderia ter escrito, mas há diferenças: “O autor do docum ento de Q um ran entende<br />

que a ju stiça de D eus funciona no âm bito do sistem a da lei; ela funciona para aqueles que aceitam os<br />

m andam entos de D eus e a eles obedecem ”. Ela diz ainda que a idéia de Paulo d eju stiça sem a lei “com certeza<br />

teria chocado o escritor de Q um ran" (A preface to Paul. N ew Y ork, 1980, p. 39). Bornkam m afirma<br />

praticam ente a mesma coisa (Paul, p. 139).<br />

E. P. Sanders, em uma obra im portante, argumenta que os cristãos nem sempre compreenderam<br />

isso (Paul and Palestinianjudaism . London, 1977). Ele destaca a idéiajudaica de que D eus elegera a nação e<br />

lhe dera a lei. V ê a ênfase na escolha do povo por D eus e rejeita a idéia de que os judeus diziam que obedecer<br />

à lei lhes garante a salvação. O que diferenciava Paulo dos judeus ortodoxos era sua rejeição de<br />

qualquer outro modo de salvação, fora de C risto (p. 550). Sanders nos desafia a pensar novam ente sobre<br />

com o os judeus entendiam a graça e a lei, e isso tem valor. N o fim das contas, porém, os judeus estavam<br />

bastante ocupados com detalhes legais (se e/ou com o tinham cumprido sua obrigação). C o m toda sua


meio de salvação/3erro que o próprio Paulo cometera antes de sua conversão (Fp 3.4-6).<br />

Alguns diziam que a posse da lei em si ou o seu estudo eram suficientes. O grande Hillel<br />

afirma: “Quanto mais estudo da lei, mais vida”.15 Posições como essas recebiam oposição<br />

acirrada de outros. Simeão, por exemplo, filho do Gamaliel com quem Paulo estudou (At<br />

22.3), disse: “Expor [a leij não é o mais importante, mas praticá-la; quem multiplica as<br />

palavras, dá ocasião ao pecado”. O resultado de discussões como essa não foi a maravilha<br />

com a graça de Deus, mas um profundo respeito pela lei, que muito facilmente desandou<br />

para o legalismo.18<br />

Paulo insiste em que pelas “obras da lei” ninguém será justificado diante de Deus<br />

(Rm 3.20; G12.16; 3.11); esse nem é o propósito da lei. A função da lei não era acabar com<br />

o pecado, mas revelá-lo. Ela veio “para aumentar o mal” (Rm 5.20, N T L H ; cf. 3.20). Paulo<br />

usa o singular. Ele não está dizendo que a lei causou mais transgressões, mas que expôs claramente<br />

o que é a transgressão. Uma lente de aumento não aumenta o número de marcas<br />

de sujeira, mas revela com mais nitidez as que existem e nos permite ver algumas que não<br />

percebíamos a olho nu. Segundo Paulo, a função da lei é, de modo análogo, deixar claro o<br />

que é o pecado. Ela não traz salvação,19 mas prepara o caminho para ela. A lei nos mostra<br />

com clareza nosso pecado (e nossos pecados) e, com isso, nossa necessidade de salvação. A<br />

lei existe para nos levar a Cristo, “a fim de que fôssemos justificados por fé” (G1 3.24).20<br />

Paulo declara a mesma verdade com outras palavras, quando diz que a lei traz a<br />

morte. Ele afirma que estava vivo “sem a lei”, antigamente, mas, "sobrevindo o preceito,<br />

ênfase na aliança e em coisas do gênero, o “legalismo” continuava sendo um conceito im portante para<br />

eles. Paulo o repudiou,<br />

15Bornkam m cita algumas declarações judaicas im pressionantes sobre a fidelidade de D eus e sua m isericórdia.<br />

M as ele continua e diz que as declarações judaicas “estão sempre no contexto da relação única<br />

de D eus com seu povo escolhido, e nunca implicam o questionam ento da lei com o meio de salvação”<br />

[Paul, p. 139).<br />

16 Abotb 2.7, tradução de D anby. V eja a declaração de Eleazar de M odim (cap. 2, n. 11, acima),<br />

1?M ishná, A botb 1.17, tradução de D anby. C f. tam bém Josefo, Ant. xx,44.<br />

1SN em sempre o resultado era esse, e há algumas belas afirmações na literatura rabínica e nos m anuscritos<br />

de Q um ran celebrando o am or perdoador de D eus. M ais comuns, porém, são exortações à obediência.<br />

l9N ils Alstrup D ahl contesta a posição de alguns estudiosos judeus de que Paulo "não podia ter conhecido<br />

bem a doutrina judaica clássica de que a T orá é a revelação de D eus que dá vida”. Ele continua e<br />

afirma: “Isso sim plesm ente não se sustenta. Paulo sabe m uito bem que osjudeus se alegram por possuir a<br />

lei (R m 2.1 7 -2 0 ), Porém ele nega explicitam ente que a lei tinha o poder de dar vida (G1 3.2 1 )” (Studies in<br />

Paul. M inneapolis, 1977, p. 1 34-135).<br />

2°N a verdade, Paulo diz que a lei era nosso n a íS a y ú jy Ó Ç . O term o denotava um escravo que tinha a<br />

responsabilidade específica de cuidar dos m eninos em uma família rica, Ele lhes ensinava boas maneiras,<br />

por exemplo, e os levava à escola. A ssim , zelava para que recebessem educação, apesar de não ser ele m esmo<br />

o instrutor, “Q uando o jovem se tornava adulto, o 77. não era mais necessário” (BA G D , p. 603).


eviveu o pecado, e eu morri” (Rm 7.9); o mandamento trouxe a morte (v. 10). A lei mostra<br />

às pessoas que elas são pecadoras e, por isso, merecedoras da morte.2' Paulo não teria<br />

conhecido o pecado se não fosse a lei. Ele achou o mandamento “não cobiçarás” especialmente<br />

importante (Rm 7.7). É comparativamente fácil controlar nossas ações, mas os<br />

desejos no íntimo são outra coisa. E a lei proíbe cobiçar. Ela denuncia a cobiça como algo<br />

perverso.<br />

Dessa maneira, a lei se torna uma aliada do pecado. Paulo diz que o pecado faz do<br />

mandamento sua "base de operações” (Rm 7.8, l l ) .22 A personificação do pecado evidencia<br />

que a boa lei, o bom mandamento, não impediu o pecado, antes serviu de meio para que ele<br />

avançasse. Cranfield lembra que “a limitação compassiva imposta ao ser humano pelo<br />

mandamento, com a intenção de preservar sua liberdade e dignidade genuína, pode ser<br />

mal-entendida e deturpada como algo que priva dessa liberdade e ataca a dignidade, dando<br />

ocasião para ressentimento e rebelião contra o Criador divino, o verdadeiro Senhor do ser<br />

humano”."3Não se esperaria que a lei se tornasse nossa inimiga, mas foi isso o que aconteceu<br />

quando ela se aliou ao pecado.*4 Vemos isso de outro ângulo quando nos é dito que<br />

“está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro<br />

da lei, para praticá-las” (G1 3.10).*’<br />

À luz de tudo isso não é de surpreender que Paulo considera a lei o exato oposto do<br />

caminho da salvação. Cristo, diz ele, é “o fim da lei” (Rm 10.4); fim no sentido de cumprimento,<br />

de término para o qual ela aponta. Ele também é o fim no sentido de que a lei não<br />

pode atuar para trazer salvação diante da obra salvadora de Cristo. Se for possível alcançar<br />

a justiça pela via da lei, "segue-se que morreu Cristo em vão” (G12.21). Paulo fala muito das<br />

promessas de Deus, mas "se a herança provém de lei, já não decorre de promessa” (G13.18).<br />

Ele contrasta estar “debaixo da graça” com estar “debaixo da lei” (Rm 6.14-15; cf, 11.6).<br />

À s vezes, o judaísm o reconhece isso: “N ó s que recebem os a lei e pecamos, m orrerem os, assim como<br />

nosso coração que a recebeu”. M as o escritor continua para exaltar a lei: “A lei, porém, não perece mas<br />

perm anece em sua glória” (4Esdras 937; cf. v, 32).<br />

A palavra que Paulo usa é d c p o p p 7], “lit. o ponto de partida ou base de operações de uma expedição,<br />

depois, genericamente, os recursos necessários para im plem entar um em preendim ento” ( b a g d ) .<br />

23 Romans 1:350.<br />

C f. G . Aulen: “O fato de a lei ser vista com o um poder hostil não depende apenas ou principalm ente<br />

de condenar inexoravelm ente o pecado. A verdadeira razão é mais profunda. O cam inho da ju stiça legal<br />

que a lei recomenda, ou, antes, exige, jam ais pode levar a salvação e vida. Ele conduz, como o cam inho do<br />

m érito hum ano, não a Deus, mas para longe de Deus, e cada vez mais fundo no pecado. [...] P or isso, a lei<br />

é um inimigo, de cuja tirania C risto veio nos salvar" (Christus victor. London, 1937, p. 84).<br />

C f. M artin N o th : "C om base nessa lei, existe som ente uma possibilidade de o ser hum ano ter sua<br />

própria atividade independente: transgressão, deserção, seguida de maldição e condenação. E assim, de<br />

fato, 'todos os que confiam nas obras da lei estão sob maldição'" (citado em H ooker e W ilson , Paul and<br />

paulinism, p. 28-29).


E óbvio que Paulo está se rebelando contra a insistência do judaísmo no caminho da<br />

lei — o caminho que ele tentara e constatara ser insuficiente.26 Agora que ele conhecia o<br />

caminho da graça, podia ver a lei somente como inimiga: longe de trazer salvação, ela era aliada<br />

do pecado. As pessoas precisavam ser libertas da lei. Mentalidade legalista é escravidão,2"<br />

S? morte<br />

No conceito comum que temos da morte, ela é inevitável. Um corpo como o nosso<br />

precisa morrer, mais cedo ou mais tarde, No entanto, não era assim que Paulo pensava na<br />

morte. Quando ele diz: "Em Adão, todos morrem” (lC o 15.22), ele não está dizendo que a<br />

mortalidade é o destino comum a todas as pessoas. Ele está dizendo que o pecado de Adão<br />

trouxe a morte ao mundo. Por Adão ter pecado, e por estarmos “em Adão”, morremos. “O<br />

salário do pecado é a morte" (Rm 6.23); o salário foi morte para Adão, e é morte para nós. O<br />

pecado efetua a morte em nós (Rm 7.13); quem peca é “passível de morte” (Rm 1.32). Entregar-se<br />

ao pecado acarreta a morte (Rm 6.16); o resultado do pecado é a morte (Rm 6.21).<br />

Já vimos que as pessoas podem ser escravas do pecado, e isso inevitavelmente leva à<br />

morte (Rm 6.16); pecado e morte andam juntos. E o pecado que dá à morte o seu aguilhão<br />

T C o 15.56). Não é partir dessa vida que é aterrorizante, mas a morte como realmente a<br />

conhecemos. Se todos fôssemos sem pecado, sem dúvida no devido tempo terminaríamos<br />

nossa caminhada e passaríamos por alguma forma de transição para o mundo futuro. Isso,<br />

porém, não seria o horror que a morte representa; não haveria “aguilhão”. O “aguilhão" é o<br />

resultado do pecado.<br />

A morte é hostil até o fim: ela é o “último inimigo”. Todavia, ela é o último inimigo,<br />

não o último vencedor; seu fim é a derrota (lC o 15.26). Há esperança nessas palavras. Por<br />

mais hostil e forte que seja, a morte será derrotada. Definitivamente. Com essa posição em<br />

relação à morte, Paulo e os outros cristãos estabeleciam um nítido contraste com as outras<br />

pessoas do mundo antigo em geral. Para estas, a morte era o fim de tudo, e elas só podiam<br />

pensar no assunto com muito pessimismo. Para o crente, a morte foi derrotada.<br />

6 M artin Dibelius recorda o ensino rabinico sobre a graça e acrescenta: “É verdade que, com o cristão,<br />

Paulo escreveu com o se, antes de se converter, nunca tivesse tido conhecim ento das idéias sobre a graça<br />

de Deus; mas pode ser que o convertido tenha entendido as conclusões lógicas da religião da lei com mais<br />

clareza e imparcialidade do que lhe era possível antes” (Paul. Philadelphia, 1966, p, 23).<br />

~ M uitas vezes se faz distinção entre a “lei m oral” e a “lei cerim onial”. Ela é antiga, e M aurice F. W iles<br />

demonstra que tal distinção era feita de modo generalizado pelos pais da igreja exegetas ( T he divine apos-<br />

:.í. Cambridge, 1967, p, 68), A distinção, porém, não foi feita por Paulo, nem por qualquer outro escritor<br />

da Bíblia.


S? ím de *2)eus<br />

Deus não aceita o pecado como algo normal. O pecado inevitavelmente leva ao que<br />

Paulo chama a "ira de Deus”, ou simplesmente “a ira”. Essa ira "se revela do céu contra toda<br />

impiedade e perversão” (Rm 1.18). Veja que ela é algo que "se revela", não resultado da<br />

observação humana, e que se volta contra “todas” as formas de maldade. Um pouco adiante,<br />

Paulo, dirigindo-se a um oponente hipotético que condena quem faz certas coisas erradas<br />

mas pessoalmente as pratica, declara: “Segundo a tua dureza e coração impenitente,<br />

acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, que<br />

retribuirá a cada um segundo o seu procedimento: [...] ira e indignação aos facciosos, que<br />

desobedecem à verdade e obedecem à injustiça. Tribulação e angústia virão sobre a alma de<br />

qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao grego” (Rm 2.5-9). Ele está<br />

claramente se referindo à ira escatológica, como quando fala da “ira vindoura” (lT s 1.10).<br />

Ele pode estar se referindo à mesma coisa ou à atividade presente de Deus, quando diz: “A<br />

ira de Deus vem sobre os filhos da desobediência” (E f 5.6; Cl 3.6), ou quando nos declara,<br />

“por natureza, filhos da ira, como também os demais” (E f 2.3).<br />

O que está claro é que Deus não está passivo diante do pecado, mas se opõe vigorosamente<br />

a ele, verdade que Paulo expressa com outras palavras quando diz que as pessoas<br />

estão “alheias à vida de Deus” (E f 4.18; Cl 1.21) ou são “inimigas” de Deus (Rm 5.10; Fp<br />

3.18; Cl 1.21). Uma parte disso diz respeito à hostilidade das pessoas más, mas o retrato<br />

característico que Paulo faz de Deus é o de quem age contra o mal.<br />

Há quem diga que devemos entender a “ira de Deus” como um processo impessoal<br />

de causa e efeito, ou seja, “o pecado sempre leva ao desastre”.28 Isso, porém, não é o que Paulo<br />

diz, e também não os autores do Antigo Testamento, cujos textos ele considerava Escrituras<br />

sagradas. E evidente que não devemos entender a ira de Deus como vingativa. Ela é o<br />

outro lado do seu amor; é seu amor irrompendo em indignação furiosa contra o mal no<br />

amado. E a hostilidade da natureza santa de Deus contra toda forma de pecado, Paulo não<br />

vê a Deus como alguém neutro onde há alguma forma de mal nem como incapaz de intervir.<br />

O Deus de Paulo se opõe resolutamente a toda forma de mal. Talvez “ira” não seja uma<br />

palavra ideal em nossa cultura para descrever a postura divina. Mas temos outra melhor?<br />

Importa, a todo custo, preservar a verdade que Paulo está transmitindo quando usa termos<br />

28Isso foi feito de modo notável por C , H . D odd em T he epistle o f Paul to the Romans, London, 1944, p.<br />

2 0-24; T he Johannine epistles. London, 1961, p, 25-27; The Bible and the Greeks, London, 1954, cap. 5. A . T .<br />

H anson defendeu essa posição em T he wrath o f the Lam b, London, 1957. C ontra essa posição, veja A lan<br />

Richardson, An introduction to the theology of the N ew Testament. London, 1958, p. 75-79, e meu livro T h e<br />

apostolic preaching o f the cross. London, 1965, cap. 5-6. Jam ais vi alguém explicar o sentido de um processo<br />

impessoal de ira em um universo genuinam ente teísta.


como ira e julgamento, indicando com eles que Deus se opõe ativa e diametralmente ao mal<br />

sob qualquer forma e aparência.<br />

0 julgãmenlo<br />

Vimos antes que Paulo tinha certeza do julgamento de Deus, julgamento que já<br />

acontece aqui e agora e que ocorrerá amplamente no fim dos tempos. Toda a raça humana<br />

está sujeita ao julgamento divino e, por sermos todos pecadores, essa é uma perspectiva<br />

assustadora. Podemos nos consolar com a reflexáo de que a morte nos libertará de algumas<br />

das forças que nos oprimem — por exemplo, a carne. Mas a morte não evita o julgamento.<br />

Todos seremos ressuscitados e compareceremos perante o tribunal de Deus.<br />

Um aspecto importante do julgamento é que o juiz será Cristo. Ele é “o Senhor, reto<br />

juiz”, que dará a “coroa da justiça” no dia do julgamento (2Tm 4.8). Em certo sentido isso é<br />

confortador; ele morreu por nós, e podemos ter certeza de ser julgados por alguém que nos<br />

ama e se importa profundamente conosco. Em outro sentido, é preocupante; depois de ter<br />

se dado tão integralmente em sacrifício por nós, não podemos esperar que ele aceite de nossa<br />

parte um serviço morno epela metade. Todos serão julgados, vivos e mortos (2Tm 4.1).<br />

Não podemos achar que escaparemos (Rm 2.3). Poderíamos enfrentar o julgamento com<br />

bastante calma se pudéssemos ter certeza de que certas coisas não virão à tona, mas o julgamento<br />

será minucioso. “Deus, por meio de Cristo Jesus, [vai] julgar os segredos dos<br />

homens” (Rm 2.16); o Senhor “trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, [e] também<br />

manifestará os desígnios dos corações” (lC o 4.5).<br />

O julgamento, nos textos de Paulo, é invariavelmente de acordo com as ações cometidas<br />

(Rm 2.6; lC o 3,8), apesar de o apóstolo enfatizar tanto que a salvação é totalmente<br />

pela graça. Geralmente, Paulo, a exemplo de outros escritores do Novo Testamento, trata<br />

de cada um desses temas separadamente, sem relacioná-los entre si. Porém em pelo menos<br />

uma ocasião ele os liga. Ele diz com clareza: “Ninguém pode lançar outro fundamento,<br />

além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo" (lC o 3.11). A obra salvadora de Cristo (a salvação<br />

pela graça) é o fundamento de toda a vida cristã. Em nossa vida cristã, porém, edificamos<br />

sobre esse fundamento, alguns com ouro, prata ou pedras preciosas, outros com<br />

madeira, feno ou palha (v. 12). O dia do julgamento servirá de teste para o que construímos;<br />

o que foi mal-feito será queimado no fogo examinador, e apenas o que é valioso sobreviverá<br />

(v. 13-15). Paulo deixa claro que está se referindo aqui apenas aos salvos. Sobre a<br />

pessoa cuja obra é queimada ele diz: “Esse mesmo será salvo, todavia, como que através do<br />

fogo” (v. 15). Está em harmonia com as evidências afirmar que a salvação depende do fundamento,<br />

da obra salvadora de Cristo. Se temos Cristo por fundamento, estamos salvos.<br />

Mas nosso julgamento (e nossa recompensa no céu) depende do que construímos, do que<br />

investimos na vida cristã.


O julgamento, portanto, é um aspecto importante da posição de Paulo. Ele crê que<br />

todos, cristãos ou não, darão contas a Deus. E deixa claro que, se não tivermos nada além<br />

das nossas realizações miseráveis para apresentar, estaremos em situação difícil no dia do<br />

julgamento,<br />


A maioria dos exegetas crê que Paulo está se referindo a esses seres quando fala de<br />

estar escravizado aos “rudimentos do mundo” (G14.3; a N T L H traduz “os poderes espirituais<br />

que dominam o mundo", e a BJ, “elementos do mundo”, explicando-os como espíritos em<br />

nota de rodapé)/0 apesar de alguns preferirem o sentido “os princípios elementares do mundo"<br />

(N V I; cf. V. 9)/1Não pode haver dúvidas quanto aos “principados e potestades" contra<br />

quem lutamos, expressamente diferenciados de “carne e sangue” e ligados ou identificados<br />

com os “dominadores deste mundo tenebroso” e as "forças espirituais do mal, nas regiões<br />

celestes” (E f 6.12). Afirma-se de modo categórico que os “principados e potestades” foram<br />

criados por Cristo (Cl 1.16) e, é claro, ele é soberano sobre todos (Cl 2.10). Esses seres não<br />

têm poder suficiente para nos separar do amor de Deus em Cristo (Rm 8.38-39), mas a<br />

implicação clara da passagem é que eles são hostis, e devemos esperar que tentem fazê-lo.<br />

A idéia da existência dos espíritos maus não é comum em nossa época, apesar de<br />

muitos agora aceitarem o elemento “demoníaco”. Ê inegável que o mal perpassa boa parte<br />

da vida moderna. Fato curioso, porém deprimente, é que pessoas civilizadas cometam barbaridades<br />

maiores do que as cometidas pelos bárbaros. Os horrores das bombas atômicas,<br />

da guerra química e de multidões que morrem de fome, sem falar das políticas comerciais<br />

dos países ricos que mantêm elevadas as taxas de desemprego (e da conseqüente miséria)<br />

nos países em desenvolvimento — esses são alguns produtos dos povos civilizados.<br />

O mal está tão difundido e tem tanto poder que muitos acham que a pobre humanidade<br />

não pode levar toda a culpa por ele! Quer aceitemos, quer não, essa posição, devemos<br />

ter certeza de que Paulo a aceitava. Não podemos entender seu conceito da importância da<br />

obra salvadora de Cristo se não o virmos sob a perspectiva do mal e da futilidade neste<br />

mundo, um mundo habitado por espíritos maus, além de pessoas más. O apóstolo sabia<br />

muito bem que todos os nossos recursos são inadequados para vencer as forças do mal.<br />

Paulo não era um pessimista. Seus escritos vibram com o triunfo de Cristo. Mas ele certamente<br />

era realista quanto à magnitude das forças que, de uma forma ou outra, escravizam<br />

ou oprimem a raça humana.<br />

3°Peter O 'B rien entende, “com a m aioria dos com entaristas recentes, que a expressão denota ‘os espíritos<br />

elementares do universo’, os principados e potestades que se empenhavam em tiranizar a vida das<br />

pessoas” (W ord Biblical commentary: Colossians, Philemon. W aco , 1982, p. 110; e veja p. 1 29-132). F. F. B ru ­<br />

ce cita com aprovação H . H . Esser, que diz que essas palavras “abrangem todas as coisas em que o ser humano<br />

coloca a sua confiança à parte do D eus vivo; elas se tornam seus deuses, e ele, escravo delas” (T he<br />

epistle to the Galatians. G rand Rapids, 1982, p. 204).<br />

31 R . A . C ole está ciente da posição da m aioria mas prefere “os estágios elementares da experiência religiosa<br />

(judaica ou gentia) pelos quais eles passaram, mas que com C risto se tornaram obsoletos" (T he episúe<br />

o f Paul to the Galatians, London, 1965, p. 113-1 1 4 ). J. B. L ightfoot aceitou o sentido "ensino elem entar”<br />

.Saint Paul's epistle to the Galatians. London, 1902, p. 167; St Paul’s epistles to the Colossians and to Philemon.<br />

London, 1876, p. 180).


S? cruz<br />

Paulo informa aos corintios que, quando chegou à cidade deles, estava decidido a<br />

“nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado” (IC o 2,2). Ele diz sobre si e<br />

seus companheiros: “Pregamos a Cristo crucificado” (IC o 1.23). Ele lembra aos cristãos da<br />

Galácia que, quando estava entre eles, “Jesus Cristo foi exposto como crucificado” diante<br />

dos olhos deles (G13.1). Passagens como essas deixam claro que, para Paulo, a crucificação<br />

era central,32 e toda a mensagem da sua correspondência destaca isso. Ele sempre volta à<br />

cruz.33 Foi a morte expiatória de Cristo e não sua vida exemplar que trouxe salvação aos<br />

pecadores, e Paulo nunca se cansa de enfatizar isso. Ele influencia o vocabulário cristão até<br />

hoje. Por exemplo, nem percebemos que, com exceção das narrativas da crucificação e de<br />

uma referência em Hebreus, Paulo é o único escritor do Novo Testamento que se refere à<br />

“cruz”. Ele o faz repetidas vezes (IC o 1.17-18; G1 5.11; 6.12, 14; E f 2.16; Fp 2.8; 3.18; Cl<br />

1.20; 2.14; a única referência não paulina é Hb 12.2); ele também faz referência à crucificação<br />

(IC o 1.23; 2.2, 8; 2Co 13.4; G1 3.1; cf. referências a estar crucificado com Cristo, Rm<br />

6.6; G1 2.20). Paulo, mais do que ninguém, menciona a "morte” de Cristo. Outros usam<br />

expressões como o “sangue”(cf. IPe 1.19) que, é claro, Paulo também usa (Rm 3,25; 5.9; E f<br />

1.7 etc.). Não pode haver a menor dúvida quanto ao centro do evangelho cristão, como<br />

Paulo o entendia.<br />

As vezes, Paulo parece indicar que a morte de Cristo está ligada à morte que os<br />

pecadores deveriam sofrer. Eles deviam morrer porque a morte é o “salário do pecado”<br />

(Rm 6.23). Paulo diz: “Um morreu por todos; logo, todos morreram” (2Co 5.14). Não é<br />

fácil ver o que isso significa, exceto que Cristo sofreu a morte dos pecadores.<br />

Paulo continua dizendo: “Aquele que não conheceu pecado, ele [Deus] o fez pecado<br />

por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21). Esse é um versículo<br />

muito difícil. Mas vejamos primeiro que ele se refere a um ato de Deus. Isso muitas vezes é<br />

obscurecido quando o versículo é mal citado, como se dissesse: “Cristo foi feito pecado...”<br />

O verbo, porém, não está na voz passiva; Paulo está falando claramente do que Deus fez. O<br />

amor de Deus pelos pecadores é tal que resolve o problema do pecado mesmo pagando o<br />

C f. A . J . B. H iggins: “A ênfase de Paulo é sempre na cruz e na m orte de C risto” (S T J 6 [1953] :283);<br />

Richard N . Longenecker: "N ão se pode fugir da conclusão de que o foco da pregação de Paulo era a im ­<br />

portância redentora da obra de C risto” ( T he ministry and message o f P au l G rand Rapids, 1971, p. 90).<br />

33Para Paulo, a mensagem da cruz era tão im portante que resolvia m uitos problem as. Leander E. K eck<br />

com enta sobre as facções da igreja em C orinto: “Paulo confrontou todas as facções, sem distinção, com o<br />

centro do seu evangelho — a cruz de C risto. Q uando a lógica da cruz é entendida, não pode mais haver<br />

facções, porque essa lógica destrói a base que as form a” ( T he N ew Testam ent experience o f faith. S t. Louis,<br />

1976, p. 85).


preço de tornar seu Filho “pecado” em favor deles. O sentido parece ser que Cristo tomou o<br />

lugar dos pecadores e sofreu o que os pecadores deviam sofrer. No fim, temos de admitir<br />

um elemento de mistério, mas o fato de que Jesus Cristo suportou o que os pecadores<br />

deviam sofrer parece estar suficientemente claro.<br />

Isso fica evidente quando Paulo diz: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo<br />

-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que<br />

for pendurado em madeiro)” (G1 3.13). A referência do Antigo Testamento (D t 21.23)<br />

mostra que é a maldição decorrente da transgressão da lei de Deus que está em vista (Dt<br />

27.26), como Paulo de fato diz de modo categórico. Não é fácil entender o que significa o<br />

feto de Cristo ter sido feito maldição por nós, exceto que ele incorreu na maldição que, de<br />

outra forma, teria caído sobre nós (“até o nosso inferno pertence a ele”, diz Bouttier),34<br />

Agora estamos “redimidos”, A maldição não paira mais sobre nós. A morte de Cristo a<br />

35<br />

retirou permanentemente.<br />

Junto com a ênfase de Paulo na morte de Cristo devemos ver sua alegria na ressurreição,<br />

ato poderoso de Deus que ele menciona em todas as cartas às igrejas, com exceção<br />

de 2Tessalonicenses. Ele às vezes diz que Deus ressuscitou a Cristo (Rm 8.11; IC o 15.15;<br />

E f 1.20; Cl 2.12), e isso é afirmado com mais freqüência do que Cristo “foi ressuscitado”,<br />

que é a mesma coisa (Rm 6.4, 9; IC o 15.12,13,14 etc.), e mais raramente que Cristo "ressurgiu”<br />

(Rm 14.9; lT s 4.14). Ele se refere a Cristo exaltado, “assentado à direita de Deus”<br />

(Cl 3.1; cf. E f 1.20-21; Fp 2.9). Não devemos separar a morte e a ressurreição, a fim de decidir<br />

qual das duas era mais importante. Elas andam juntas e formam um só ato divino de<br />

poder, expiatório. Paulo não vê a morte como uma derrota; ela foi o meio pelo qual Deus<br />

triunfou sobre toda forma de mal.<br />

A ressurreição mudou todas as coisas. Ela saudou uma nova era. Isso aconteceu<br />

porque Deus atuou de modo tão óbvio e poderoso na ressurreição que nada mais pode ser<br />

o mesmo depois dela. A morte está derrotada. Há nova vida. A ressurreição "surge primeiro<br />

como uma pequena parte da época futura, que caiu em nosso mundo”.36 Como tal, ela<br />

nos certifica da realidade da “época futura”.<br />

54 M ichel Bouttier, Christianity according to P au l Naperville, 1966, p. 35.<br />

” E possível que, quando algum cristão m al-instruído dizia: "Jesus é m aldito" (IC o 12.3), estivesse refierindo<br />

o ensino de G álatas 3.13. D avid E. Aune, porém , acredita que a exclamação “não foi pronunciada<br />

na comunidade de C orinto, mas num construto hipotético de Paulo, criado com o antítese à<br />

exxlamação que distinguia os cristãos: "Jesus é Senhor!’” (Prophecy in early Christianity and the ancient M editerranean<br />

world. G rand Rapids, 1983, p. 257). Essa últim a posição parece ser m enos provável.<br />

'^Lucien Cerfaux, T he Christian in the theology o f st. Paul. London, 1967, p. 62.


S? libertação<br />

Numa subdivisão anterior vimos que os pecadores estão em situação desesperadora<br />

sob vários pontos de vista. Contudo, de qualquer ângulo que se veja sua condição, Paulo vê<br />

a cruz como a resposta. Por exemplo, o poder do pecado é rompido e nossa escravidão ao<br />

pecado é eliminada. “Morremos para o pecado” (Rm 6.2) é um pensamento repetido de<br />

outras maneiras: “Foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado<br />

seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos" (v. 6); “Quem morreu está justificado<br />

do pecado” (v. 7); “Considerai-vos mortos para o pecado" (v. 11); "O pecado não terá<br />

domínio sobre vós" (v. 14); “Éreis escravos do pecado" (v. 17, 20), em que o tempo passado<br />

se refere a uma situação que desapareceu; fostes “libertados do pecado” (v. 18, 22). Todo o<br />

capítulo é uma exposição exultante da derrota completa do pecado, que a salvação efetuada<br />

por Cristo significa. Há outras passagens que ensinam a mesma coisa, mas essas são<br />

suficientes para o nosso propósito.<br />

O mesmo ocorre com "a carne”. Há um contraste entre as “obras da carne" e o “fruto<br />

do Espírito" (G15.19-23); nesses versículos está claro que a carne não está mais no controle.<br />

Como isso pode acontecer? “Os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, junto com<br />

as suas paixões e concupiscências” (G15,24). Antes, os cristãos estavam “na carne”, mas isso<br />

é coisa do passado; eles não estão mais nessa condição (Rm 7.5); agora “não estais na carne”<br />

(Rm 8.9). Contudo, apesar de o poder da carne ter sido vencido, os salvos ainda são convocados<br />

para se opor a ela. Eles devem mortificar a carne (Rm 8.13; cf. Cl 3.5), não aprovisioná-la<br />

(Rm 13.14), purificar-se da sua imundície (2Co 7.1) e coisas assim. É uma situação<br />

do tipo “torne-se o que você é”,<br />

A morte de Cristo nos libertou da escravidão à lei; “estamos mortos para aquilo a<br />

que estávamos sujeitos”, e agora a lei não tem mais poder sobre nós (Rm 7.6). "Morremos<br />

relativamente à lei, por meio do corpo de Cristo" (Rm 7.4). Para os crentes, Cristo é "o fim<br />

da lei, para justiça” (Rm 10.4); sua justiça não é alcançada pelas boas obras, mas pela obra<br />

de salvação de Cristo. Ele veio especificamente “para resgatar os que estavam sob a lei" (G1<br />

4.5). Essa linguagem forte é um repúdio de todas as tentativas de cumprir a lei como meio<br />

de adquirir justiça diante de Deus. Ê o que Cristo fez, especificamente sua morte, que<br />

liberta de todos os tipos de lei.3/<br />

W ilfred K nox sublinha a im portância da atitude de Paulo em relação à lei: "À parte da sua atitude<br />

revolucionária em relação ã lei, não há nada nesse sistem a que não fosse uma inferência legítima das convicções<br />

dos discípulos mais antigos. N ão sabemos de nenhum conflito em torno de algum outro aspecto


O cântico triunfal de Paulo em ICoríntios 15 mostra que a morte não é mais um<br />

rirano a ser temido. A fraqueza humana não ganhou força contra a morte, mas não é a fraqueza<br />

humana que conta. E o poder de Deus em Cristo, o poder que vimos manifestado de<br />

modo tão esplêndido quando Cristo derrotou a morte e ressuscitou em triunfo. Paulo concorda<br />

que a morte é o último inimigo, mas ele tem certeza de que ela será destruída (ICo<br />

15.26). Há um magnífico desafio em seu cântico de vitória, quando ele se dirige à morte no<br />

ponto culminante desse capítulo: “Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó morte, a<br />

rua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" (IC o 15,54-55; as palavras são citadas de<br />

Is 25.8; Os 13.14). Ele continua exclamando: “Graças a Deus, que nos dá a vitória por<br />

intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo” (IC o 15.57). Nesse espírito ele diz que, “havendo<br />

Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre; a morte já não tem domínio sobre<br />

ele” (Rm 6.9). Ele também diz que os crentes foram “ressuscitados com Cristo” (Cl 3.1) e<br />

que “os que recebem a abundância da graça e o dom dajustiça reinarão em vida por meio de<br />

um só, a saber, Jesus Cristo” (Rm 5.17); eles são “mais que vencedores, por meio dele” (Rm<br />

S.37). A morte não é mais um tirano poderoso, mas um inimigo derrotado. Cristo obteve a<br />

vitória definitiva.<br />

A ira de Deus não paira mais sobre os crentes: “Sendo justificados pelo [ou em] seu<br />

sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5.9). “Deus não nos destinou para a ira, mas<br />

para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo” (lT s 5.9). Paulo não minimiza<br />

a forte oposição que Deus sempre faz a toda forma de mal. Esse é um dos fatos da<br />

rida. Mas para o crente o que importa é que a morte de Cristo desvia a ira divina; Deus<br />

colocou Cristo como “propiciação” (Rm 3.25),38 ou seja, como um meio de desviar sua ira.<br />

De ainda outro ângulo, Paulo anuncia a verdade de que a morte de Cristo traz libertação.<br />

Cristo nos liberta de todas as outras forças que nos escravizam. “Despojando os<br />

principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”<br />

VC1 2.15). Sempre que Paulo menciona esses poderes espirituais malignos, ele indica que<br />

eles foram derrotados por Cristo e agora não têm poder sobre o cristão. A escravidão aos<br />

rudimentos do mundo é coisa do passado (G14.3).<br />

Mais uma vez, o julgamento de Deus não precisa ser temido. Não que ele não seja<br />

real, é coisa séria. Mas, por causa do que Cristo fez por nós, não precisamos mais ter medo<br />

dele. Porque “o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação”, mas a isso Paulo<br />

pode opor o “dom” que "transcorre de muitas ofensas, para a justificação" (Rm 5.16).<br />

Assim, também, o “dom dajustiça” significa que os salvos "reinarão em vida por meio de<br />

um só, a saber, Jesus Cristo” (Rm 5.17).<br />

A? ensino de Paulo. [...] N o entanto, todo o centro de gravidade foi m udado” (St. Paul, N ew York, 1932,<br />

p. 50).<br />

Para um estudo dessa palavra, veja acima p, 40-41.


T oda a criação se tornou fútil, mas “será redimida do cativeiro da corrupção, para a<br />

liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). E "Cristo “se entregou a si mesmo pelos<br />

nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso<br />

Deus e Pai” (G 11.4). Imagine nosso inimigo como você quiser, mas Paulo o vê vencido pela<br />

tremenda obra de salvação que Deus realizou em Cristo.<br />

S?justificação<br />

Paulo usa com muita freqüência a categoria legal” da justificação, especialmente em<br />

Romanos e Gálatas.40 O termo foi muito estudado nos últimos tempos, e a justificação tem<br />

sido explicada de várias maneiras.41 Comecemos observando que justificação é basicamente<br />

um termo legal. Nesse sentido, um documento antigo instrui os juizes que, quando estiverem<br />

resolvendo um caso no tribunal, devem “justificar o justo e condenar o culpado” (Dt<br />

25.1). Isso quer dizer que devem pronunciar seu veredicto de absolvição sobre os que estão<br />

com a razão (e o veredicto de condenação sobre os que estão errados, mas essa não é nossa<br />

preocupação imediata). Paulo deixa claro que somos todos pecadores (Rm 3.23), todos<br />

enfrentaremos o julgamento (2Co 5.10)42, e Deus é um juiz justo (2Tm 4.8). De que<br />

maneira o pecador poderá escapar?<br />

39 T , R . Glover diz sobre Paulo: “Seu relacionam ento com D eus e C risto obviamente vai além da expressão<br />

em term os legais” (Paul ofT arsu s. London, 1925, p. 92). Em term os gerais isso é, naturalm ente,<br />

verdade. M as não faz ju stiça ao fato de Paulo escolher exatam ente term os legais para expressar parte do<br />

seu pensam ento, N ão lhe farem os ju stiça se deixarmos de ver isso.<br />

G ünther Bornkam m é um exemplo dos que entendem que ajustificação pela fé é essencial à teologia<br />

de Paulo. Ele diz que ela é “o tem a básico em sua teologia”, e afirma que “toda a sua pregação, mesmo<br />

quando ele não diz nada expressamente sobre justificação, pode ser entendida corretam ente apenas<br />

quando ligada estreitam ente a essa doutrina e relacionada com ela" (Paul. London, 1971, p. 116; cf. T a m -<br />

bém p. 135). Ele não vê oposição entre isso e o ensino de Jesus, antes que “apenas o evangelho de Paulo,<br />

da justificação pela fé, com bina com Jesus se voltando para os ím pios e os perdidos” (p. 237).<br />

P o r exemplo, Joach im Jerem ias diz: “Justificação éperdão e nada mais, por causa de C risto” (T h e central<br />

message o f the N ew Testament. London, 1965, p, 57). Stephen N eill parece entender que justificação<br />

significa essencialm ente perdão (Jesus through many eyes. Philadelphia, 1976, p. 5 9 -6 0 ). T . W . M anson a<br />

considera mais um ato real do que judicial, com o sentido de anistia ou perdão (On Paul and John . L on ­<br />

don, 1963, p, 57). Bornkam m diz que ela tem o m esmo sentido de reconciliação (Paul, p. 141). Essas opiniões<br />

não fazem ju stiça à linguagem que Paulo decidiu usar.<br />

É interessante que Stepehn N eill diz que Paulo ensina “a certeza do julgam ento, do qual, no entanto,<br />

o cristão está livre” (Jesus through many eyes, p, 4 6 ), S e os cristãos estivessem livres, não haveria problem a.<br />

A questão é que, de acordo com Paulo, os cristãos enfrentam essa perspectiva, Q u e outro sentido teria<br />

2C oríntios 5.10 (só para citar um exemplo ao acaso)?


A resposta de Paulo é que Cristo proporciona uma saída. Somos “justificados pelo<br />

seu sangue” (Rm 5.9), Somos justificados gratuitamente, “por sua graça, mediante a redenção<br />

que há em Cristo Jesus" (Rm 3.24). Somos justificados "por graça” (T t 3.7). Paulo tem<br />

muitas maneiras de mostrar a verdade de que em nada contribuímos no processo da nossa<br />

justificação. Por exemplo, nossos esforços para guardar a lei não adiantarão nada (Rm<br />

3.20; G12.16; 3.11); no fim, todos nos apresentaremos como culpados. Paulo, no entanto,<br />

também insiste em que Deus nos justifica. “E Deus quem os justifica. Quem os condenará?”<br />

(Rm 8.33-34). Ele diz aos coríntios; "Fostes justificados em o nome do Senhor Jesus<br />

Cristo e no Espírito do nosso Deus” (iC o 6.11), de tal maneira que as três pessoas da T rindade<br />

estão, de algum modo, envolvidas. Devemos logo acrescentar, porém, que essa ênfase<br />

é no que Cristo fez, especificamente em sua morte.<br />

Como a morte de Cristo pode modificar o veredicto dos pecadores, de "culpados”<br />

para "inocentes"? Algumas pessoas realmente têm dito: “Transformando os culpados, de<br />

modo que não mais sejam pessoas más, porém boas”. Ninguém quer minimizar a transformação<br />

que ocorre numa conversão genuína ou obscurecer o fato de que essa é uma parte<br />

importante de ser cristão. Todavia, essa transformação não se encaixa na terminologia da<br />

justificação. Às vezes se diz que o verbo normalmente traduzido por "justificar” (dikaioõ)<br />

significa “tornar justo” e não “declarar justo”. Isso, porém, não está em harmonia nem com<br />

a formação da palavra nem com seu uso. Os verbos que terminam em -oõ e se referem a<br />

qualidades morais têm um sentido declarativo;43 não significam “tornar — ”. E a palavra<br />

nunca é usada para conotar a transformação do acusado, mas sempre para a declaração da<br />

sua inocência.<br />

Observamos anteriormente, quando analisamos a expressão “justiça de Deus”, que<br />

ela se refere ao “estado correto”, uma dádiva de Deus para nós. Isso é o que significa justificação:<br />

Deus nos colocou no estado correto, de modo que recebemos o veredicto de absolvição<br />

quando somos julgados. Ele "justifica os ímpios” (Rm 4.5). E faz isso com base na<br />

morte expiatória de Cristo. Tradicionalmente isso tem sido interpretado no sentido de<br />

que a morte de Cristo, vista de certa perspectiva, significa que ele assumiu as conseqüências<br />

penais do pecado. Já que a pena foi paga, não há mais nada para pagarmos.44 Por isso,<br />

estamos "justificados”.<br />

4’ P o r exem plo, á ljló b ) significa “considerar digno”, “reconhecer com o digno”, e não “tornar digno”;<br />

0[1010ÚJ significa “declarar ser com o".<br />

" C f . W illiam Barclay: “N ão é possível entender essas declarações [isto é, 2C o 5.21; G1 3.13] com qualquer<br />

outro sentido que não o de Paulo, que aquilo que deveria ter acontecido a nós aconteceu a Jesus<br />

Cristo, e que ele tom ou sobre si o sofrim ento e a vergonha que deveríamos ter recebido”; “alguém deve ter<br />

pago a pena devida; e esse alguém foi Jesus C risto, N ó s somos, com o disse Paulo, justificados por seu<br />

sangue” ( T he mind o f st Paul. N ew York, 1958, p. 1 0 4 ,1 0 6 ). A . M . H u nter diz que as mesmas passagens


Essa maneira de olhar a cruz preserva a verdade importante de que Deus não apenas<br />

salva os pecadores, mas o faz de uma maneira que está em harmonia com o que é direito.<br />

Algumas maneiras de ver a salvação parecem quase seguir a linha de "poder é direito”: Deus<br />

é mais forte que Satanás (ou o mal), e usa seu poder para nos libertar. Ê claro que há um<br />

aspecto da salvação em que algo assim pode ser dito; já vimos que Cristo obteve a vitória.<br />

Mas isso não é tudo. A salvação é muito grande para ser abrangida por uma só das nossas<br />

categorias. Precisamos de todas elas e, especificamente, precisamos saber que nossa pena<br />

está paga e nossa absolvição foi obtida de uma forma correta.<br />

^Üma expiação complexa<br />

Paulo faz uso de várias figuras interessantes para mostrar o que a obra salvífica de<br />

Deus obteve e para ajudar seus leitores a compreender o que ela significa.45 Às vezes, por<br />

exemplo, ele fala de redenção (p.ex, Rm 3.24; lC o 1.30; G1 3.13; 4.5; E f 1.7; Cl 1.14),6 termo<br />

que facilmente podemos entender mal, já que seu uso dizia respeito a atividades com as<br />

quais não estamos familiarizados. Ele era usado originariamente em relação com o ato de<br />

resgatar prisioneiros de guerra. Estes deviam estar em sua terra natal, mas um inimigo mais<br />

forte os mantinha sob seu poder, A liberdade podia ser-lhes restaurada apenas se fosse<br />

pago o preço estipulado (chamado “resgate”). Redenção também era aplicada à soltura de<br />

um escravo após o pagamento do valor apropriado, o que nos lembra dos vínculos de escravidão<br />

que prendiam os pecadores. Isso dá sentido à exortação de Paulo: “Para a liberdade<br />

foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo<br />

de escravidão” (G1 5.1). De vez em quando se exigia um resgate para livrar alguém da sentença<br />

de morte (p.ex. Êx 21.28-30), e por isso é importante ter em mente que os pecadores<br />

estão debaixo de uma sentença de morte (Rm 6.23), da qual Cristo pode livrá-los. Redenção<br />

significa o pagamento do preço estabelecido para libertar alguém (cf. lC o 6.20; 7.23).<br />

Em todo o Novo Testamento ninguém jamais faz a pergunta: “A quem esse resgate foi<br />

“revelam o santo am or de D eus enfrentando de modo terrível, na cruz, o pecado do ser hum ano. Cristo,<br />

por vontade de D eus, morre a m orte do pecador e, assim, remove o pecado, Existe m aneira mais simples<br />

de dizer tudo isso do que afirmar que C risto levou sobre si nossos pecados e que o seu sofrim ento foi o<br />

que, por falta de palavra m elhor, podem os chamar apenas de 'penal’?” (T h e mspel according to st, Paul. P h i­<br />

ladelphia, 1966, p. 26).<br />

45 Analisei algumas delas em meus livros The apostolic preaching oj the cross. London, 1965, e T he atonement.<br />

Leicester, 1983.<br />

’ "A redençáo por m eio da cruz de C risto form a o cerne do pensam ento de P a u lo ” (R u d o lf<br />

Schnacken burg, N ew T estam ent theology today. N ew Y o rk, 1963, p, 7 4 ).


pago?" A pergunta é descabida. Os escritores do Novo Testamento estão preocupados<br />

com o preço pago por nossa salvação, não com um eventual receptor do valor.<br />

Outra figura que aparece nos escritos de Paulo, quando ele explica a última ceia,<br />

está nas palavras dejesus: "Este cálice é a nova aliança no meu sangue" (IC o 11.25). Fundamental<br />

na vida dos judeus era o fato de que Deus fizera uma aliança com a nação: ele era o<br />

Deus deles, e eles, o seu povo (Êx 24.4-8; cf. 19.3-6). O povo, porém, sempre violava a<br />

aliança, e a certa altura Jeremias profetizou que haveria uma "nova aliança” (Jr 31.31-34). A<br />

maneira como Paulo registra as palavras dejesus mostra que ele entendia que a morte do<br />

Salvador devia ser vista como a causa de uma mudança profunda, a confecção da nova<br />

aliança predita pelo profeta. Era uma aliança que não se caracterizava pela ênfase em<br />

padrões externos de conduta, mas no interior, na lei escrita no coração Qr 31.33). E estaria<br />

baseada no perdão Qr 31.34). O cristianismo, por isso, não deve ser entendido como um<br />

Judaísmo com algumas pequenas mudanças. Ele é radicalmente novo, com seu perdão e<br />

caráter interior, e fundamenta-se nas firmes promessas de Deus.<br />

Outro conceito de Paulo é a reconciliação, um meio de olhar para a cruz que<br />

nenhum outro escritor do Novo Testamento utiliza.47 Muitos, hoje em dia, consideram<br />

este o principal elemento na visão paulina da expiação.4S Ele certamente é importante, mas<br />

tal opinião é difícil de substanciar. Ela está longe de grassar nos escritos do apóstolo, sendo<br />

encontrada em apenas quatro passagens (Rm 5.10-11; 2Co 5.18-20; E f 2.11-16; Cl<br />

1.19-22). Mesmo se as ampliarmos para incluir as referências a "fazer as pazes” e outras<br />

parecidas, o conceito não se torna dominante.<br />

T odavia, apesar de não devermos exagerar a importância do conceito de reconciliação,<br />

também não devemos minimizá-lo. Reconciliação é uma categoria pessoal; significa<br />

fazer as pazes depois de uma briga ou de um estado de hostilidade. Três das quatro passagens<br />

nos identificam como "inimigos” de Deus, ou falam de "inimizade” ou "hostilidade”,<br />

portanto, um processo bem real de reconciliação está em vista. Às vezes se enfatiza que<br />

nenhuma passagem do Novo Testamento diz que Deus foi reconciliado com pessoas,<br />

sempre é um processo de pessoas reconciliadas. Mas isso é muito simples. A questão não é<br />

a hostilidade das pessoas em relação a Deus, que ele superou pela cruz. Antes, é a exigência<br />

áe Deus por justiça, ligada ao fato de que somos todos pecadores. Reconciliação não significa<br />

nma mudança em nós, que faz com que não sejamos mais hostis. Indica uma nova situação<br />

criada pela "morte do seu Filho” (Rm 5.10) epelo fato de Deus “não imputar aos homens as<br />

suas transgressões" (2Co 5.19). A reconciliação é “mediante a cruz", que acabou com a ini­<br />

Leonhard G oppelt acha improvável que alguém da igreja antiga tenha usado esse conceito antes de<br />

P iu lo . N a verdade, “em toda a literatu ra cristã do p rim eiro século a palavra é en con trada apenas em<br />

P au lo”. E le acrescenta: "Isso correspondia à sua maneira de entender a obra de salvação de C risto estririm<br />

ente com o obra de D eus” (Theology o f the N ew Testament. G rand Rapids, 1982, 2:139).<br />

Isso é defendido por R alph P. M artin em Reconciliation: a study o f Paul’s theology. Atlanta, 1981.


mizade (E f 2.16); a paz foi obtida “pelo sangue da sua cruz”, a reconciliação foi efetivada<br />

“no corpo da sua carne, mediante a sua morte” (Cl 1.20, 22). Todas essas passagens apontam<br />

para o pecado como a causa da hostilidade, e para a morte de Cristo como a solução<br />

para o pecado.49 Depois que a causa da hostilidade foi removida, ocorre a reconciliação.<br />

Mas nenhuma dessas passagens seria fácil se fôssemos entender reconciliação essencialmente<br />

como um processo que se dá em pecadores.<br />

A maioria das traduções recentes evita o termo “propiciação” (Rm 3.25), mas essa<br />

parece ser uma categoria importante para Paulo. Os lingüistas mostram que o sentido é<br />

“propiciação” e não “expiação”, e Paulo leva a “ira de Deus” a sério, pois vê que ela se volta<br />

"contra toda impiedade e perversão dos homens” (Rm 1.18). Naturalmente é verdade que<br />

propiciação é uma palavra difícil, e concordo que seria mais fácil substituí-la. A idéia, e não<br />

a palavra, é que é importante. O problema é que os substitutos sugeridos até agora não preservam<br />

a idéia. “Expiação” com certeza não serve, apesar de toda a sua popularidade em<br />

alguns círculos, porque é uma palavra impessoal. Expia-se um crime ou um pecado, não<br />

uma pessoa. Os pecadores, porém, enfrentam a ira de uma pessoa divina. E uma das coisas<br />

que Paulo diz que a morte de Cristo faz por nós é remover essa ira.<br />

No mundo antigo o rito religioso universal era o sacrifício. Em todo o mundo<br />

daquela época as pessoas ofereciam animais em seus altares, confiando que seus deuses<br />

aceitariam os sacrifícios e que seus pecados seriam perdoados. O sistema de sacrifícios dos<br />

judeus é delineado em Levítico, e Paulo vê a Cristo como o sacrifício que cumpre de modo<br />

perfeito tudo o que é projetado no sistema levítico, o único sacrifício que realmente remove<br />

o pecado. Via de regra ele usa termos gerais, como quando diz: “Cristo nos amou e se entregou<br />

a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus...” (E f 5.2), ou quando ele faz referência<br />

ao sangue de Cristo, pois a manipulação de sangue era um aspecto central na<br />

maioria dos sacrifícios. De vez em quando ele se refere a uma oferta especial, como o sacrifício<br />

da Páscoa (IC o 5.7), e também à oferta pelo pecado (Rm 8.3; cf. N V I). Nessas passagens,<br />

Paulo está dizendo que tudo de que os sacrifícios eram apenas sombras está<br />

cumprido de modo perfeito em Cristo. Ele fez o que os sacrifícios de animais jamais<br />

poderiam fazer.<br />

Paulo não faz tanto uso da categoria do perdão como poderíamos esperar. Mas ele o<br />

menciona, dizendo simplesmente: "O Senhor vos perdoou” (Cl 3.13; cf. Ef4.32), e associa<br />

isso com a cruz, por exemplo quando se refere a Cristo, “no qual temos a redenção, pelo seu<br />

49C f. Em il Brunner: "N ão é, em prim eiro lugar, um sentim ento de culpa que precisa ser removido, mas<br />

a m ancha do próprio pecado. M uitas pessoas não têm praticam ente nenhum sentim ento de culpa; ele só<br />

brota depois que elas entram em contato com C risto. E é só em C risto que todos acabamos por saber<br />

qual realm ente é nossa culpa. O prim eiro elemento, portanto, no ato da reconciliação não é a remoção<br />

desse sentim ento de culpa subjetivo, mas o conhecim ento de que nossa culpa foi remida” (T h e mediator.<br />

London, 1946, p. 522).


sangue, a remissão [perdão] dos pecados” (E f 1.7; cf. Cl 2.13). Ele também declara:<br />

“Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas" (Rm 4.7, citando SI 32,1).<br />

Apesar de não ressaltado por Paulo, esse é um aspecto do seu pensamento. Somos pecadores<br />

culpados, mas, em Cristo, Deus nos perdoou. Nossos pecados não existem mais para<br />

nos condenar.<br />

Adoção é outra figura que Paulo emprega (Rm 8.15; G1 4.5; E f 1.5; futura, Rm<br />

8.23). O costume era mais romano que judaico; Paulo conseguia encontrar ilustrações da<br />

ação salvadora de Deus em qualquer área da vida. N a adoção, alguém que não pertencia a<br />

dada família era integrado nessa família como membro pleno, com todos os direitos e obrigações<br />

que faziam parte disso. De modo semelhante, raciocina Paulo, nós, que não fazíamos<br />

parte da família celestial, fomos adotados nela, A morte de Cristo está envolvida nisso,<br />

pois ele veio “para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de<br />

filhos" (G14.5).<br />

Paulo usa outras figuras; não tentei aqui ser exaustivo, Essa seleção é feita simplesmente<br />

para mostrar um pouco da riqueza e da complexidade do pensamento do apóstolo.<br />

Para ele, a salvação de Cristo tinha muitas facetas, e ele usa todo o seu vocabulário para<br />

expressar uma pequena fração da grandeza que Deus fez em Cristo.<br />

0 ãmor em ação<br />

Paulo não faz muita diferença entre o amor de Deus e o amor de Cristo, e na verdade<br />

fala “do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 8.39), e também do<br />

“amor com fé, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo” (Ef6.23). Esse amor pode ser<br />

visto principalmente na morte expiatória de Cristo. E essa morte por nós, enquanto ainda<br />

éramos pecadores, que nos mostra o amor de Deus (Rm 5.8); no versículo 5 se afirma que o<br />

amor “é derramado em nosso coração”. A misericórdia e o amor de Deus não estão longe<br />

um do outro, pois Deus, “sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que<br />

nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos...” (E f 2.4-5). Para Paulo, a fé é muito<br />

importante, e ele nos diz que vivia toda a nova vida “pela fé no Filho de Deus, que [o] amou<br />

e a si mesmo se entregou por [ele]” (G1 2.20). A fé, ao que parece, perde o sentido sem o<br />

amor de Cristo (nas cartas pastorais o amor é mencionado dez vezes, e em nove delas é ligado<br />

à fé). Paulo também entende que o amor de Cristo é por todos os cristãos, pois ele “nos<br />

amou e a si mesmo se entregou por nós, como oferta e sacrifício a Deus” (E f 5.2).<br />

Fica claro, a partir de muitas coisas que Paulo escreve, que o amor de Deus o fascinava.<br />

Ele conhece a Deus como “o Deus de amor e paz” (2Co 13.11); o amor é absolutamente<br />

central em nossa compreensão de Deus. Igualmente, na conhecida bênção, ele fala<br />

não só da "graça do nosso Senhor Jesus Cristo”, mas também do “amor de Deus” (2Co


13.14), No mesmo espírito ele cita e aplica as palavras do profeta, de que Deus chamou<br />

“amada, à que não era amada” (Rm 9.25, citando Os 2.23); foi em amor que Deus trouxe<br />

salvação a pessoas que estavam desesperadamente necessitadas de amor. Paulo, é claro, às<br />

vezes diz que os destinatários das suas cartas eram “amados” do Senhor (Cl 3.12; lT s 1.4;<br />

2Ts 2.13). Foi por amor que o Senhor Jesus e Deus Pai nos deram “eterna consolação eboa<br />

esperança, pela graça” (2Ts 2.16).<br />

O amor de Deus é todo-poderoso (Rm 8.35-39). Nada pode derrotá-lo. E essa<br />

grande verdade que domina o pensamento de Paulo e é sua motivação no serviço cristão<br />

(2Co 5.14). Ela muitas vezes encontra expressão em lugares em que a palavra “amor” não é<br />

mencionada. Que outra conclusão devemos tirar, por exemplo, das palavras: “Pela graça<br />

sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus” (E f 2.8)? Nenhuma das<br />

palavras traduzidas por amor é usada aqui, mas a passagem é uma expressão eloqüente do<br />

amor que trouxe salvação a pessoas que nada mereciam. Na verdade, esse é o sentido de<br />

graça, palavra que Paulo usa 100 vezes, do total de 155 ocorrências no Novo Testamento.<br />

Duas de cada três ocorrências dessa importante palavra cristã estão nos textos de Paulo.<br />

Para ele, a graça era uma realidade gloriosa, e o apóstolo estava sempre se referindo a ela de<br />

alguma forma. Não é exagero dizer que, para Paulo, tudo o que Deus faz é pela graça; é<br />

tudo expressão da graça. E como podemos entender a graça sem o amor divino?<br />

Ás vezes, sem que o percebam, os cristãos pintam um quadro de um Deus severo e<br />

exigente, que requer retidão na vida e preside um tribunal que condena a todos os que não a<br />

apresentam. Ele é juiz de todos, e em suas mãos os pecadores enfrentam uma perspectiva<br />

desanimadora. Nesse quadro entra um Filho amoroso, que morreu por nós e assim nos<br />

libertou do seu Pai inflexível. Não se sabe a origem de tal caricatura, mas ela não está em<br />

Paulo. O apóstolo não separa o Pai e o Filho, Eles são um, um em amor, um na árdua atuação<br />

do amor que traz salvação aos pecadores, um no constante amor derramado sobre os<br />

salvos para suprir todas as suas necessidades (Fp 4.19), um no amor que preserva os cristãos<br />

no caminho certo.<br />

Amor, do começo ao fim, é a maneira como Paulo vê a Deus em Cristo, e é esse<br />

amor que traz salvação.


Capitulo 4<br />

A vida no Sspíríto<br />

o mundo antigo não era desconhecida a idéia de que de vez em quando um<br />

espírito divino vinha a este mundo e se apossava de algum adorador. Por isso,<br />

as pessoas entendiam o que significava dizer que o Espírito estava "nos” crentes<br />

(p. ex. Rm 8.9,11; ICo 3.16). No entanto, não devemos achar que os cristãos simplesmente<br />

repetiam um lugar-comum da teologia do primeiro século. Na verdade, eles<br />

confrontavam seu mundo com um conceito radicalmente novo.<br />

Havia duas diferenças especialmente importantes na maneira como os cristãos<br />

entendiam a presença do Espírito, A primeira surgia do fato de que os antigos em geral<br />

pensavam que o espírito divino vinha apenas sobre algumas poucas pessoas de destaque.<br />

Era uma experiência muito incomum, reservada para os que estivessem especialmente próximos<br />

da divindade. Os cristãos, porém, insistiam em que todos os crentes têm o Espírito.'<br />

Nesse sentido, Paulo diz afirmativamente: “Todos os que são guiados pelo Espírito de<br />

Deus são filhos de Deus" (Rm 8. 14), e em termos negativos: “Se alguém não tem o Espírito<br />

de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9). E tolice falar de um cristão que não tem o Espírito.<br />

C f. M artin D ibelius: “Paulo podia sim plesm ente pressupor, no que dizia respeito às suas igrejas e<br />

tam bém a outras, que todo cristão recebia o Espírito com o um dom sobrenatural, ju n to com sua conversão’’<br />

(Paul. Philadelphia, 1966, p. 92). O bserve que ele pressupõe isso ao escrever aos romanos, m embros<br />

de uma igreja não fundada por ele.


Isso é uma contradição de termos. Uma característica do sistema cristão é que o crente<br />

mais simples tem em si a presença do Espírito de Deus.<br />

Em segundo lugar, há uma diferença na maneira em que o Espírito é conhecida. Os<br />

pagãos acreditavam que, quando o espírito vinha sobre alguém, ocorriam fenômenos físicos<br />

interessantes, talvez do tipo “feiticeiro que gira” (os sacerdotes de Cibele, que giravam<br />

com suas facas, causando ferimentos em muitas pessoas), talvez falando em êxtase (Platão<br />

refere-se favoravelmente às mulheres santas em Dodona e Delfos, que concediam grandes<br />

benefícios à Grécia quando estavam loucas — isto é, possessas por um espírito divino —<br />

mas pouco ou nenhum benefício quando estavam de mente sã).2 Paulo, no entanto, diz: “O<br />

fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,<br />

mansidão, domínio próprio” (G1 5.22-23; cf. E f 5.9). E a conduta ética, não o comportamento<br />

extático, que demonstra a presença do Espírito. Isso pode ser visto no nome pelo<br />

qual os cristãos o conheciam — o “Espírito Santo” (não Espírito poderoso, Espírito sábio,<br />

ou coisas assim).<br />

Paulo tinha certeza de que o Espírito é divino; ele é o “Espírito de Deus” (Rm 8.14;<br />

ICo 2.11; 2Co 3.3; cf. a referência à espada do Espírito como a “palavra de Deus”, E f 6.17).<br />

Assim, também, ele é o “Espírito de Cristo” (Rm 8.9), o “Espírito dejesus Cristo” (Fp 1.19) e<br />

o "Espírito do seu [de Deus] Filho” (G14.6). Mas ele não é idêntico nem ao Pai nem ao Filho,<br />

pois pode ser mencionado ao lado de ambos (2Co 13.14). Ele é “o Espírito que vem de Deus<br />

[to ek tou theou]" (ICo 2.12), e Deus o “enviou” (G14.6), O Espírito “perscruta até mesmo as<br />

profundezas de Deus” e conhece “as coisas de Deus” de dentro, assim como o espírito do ser<br />

humano conhece “as coisas do homem” (IC o 2.10-11). Quando Paulo diz: “Sois santuário<br />

de Deus e o Espírito de Deus habita em vós” (ICo 3.16; cf. 6.19), está dizendo que o Espírito<br />

é divino; ele é Deus morando em nós.<br />

Muitos entendem o Espírito como uma força ou influência. Paulo, porém, parece<br />

ter entendido o Espírito como uma pessoa. Conceder dons parece ser atividade de uma<br />

pessoa, ainda mais depois que Paulo conclui sua lista de dons, informando a seus leitores<br />

que a divisão é feita “como lhe apraz” (IC o 12.4-11). Ele fala da mente do Espírito (Rm 8.6,<br />

27) e exorta as pessoas a não “entristecer” o Espírito (E f 4.30). O amor de Deus é derramado<br />

em nosso coração pelo Espírito (Rm 5.5), e o mesmo Espírito gera amor em nós (G1<br />

5.22), duas atividades evidentemente pessoais. A expressão “o amor do Espírito" (Rm<br />

15,30) pode ser entendida como o amor que Paulo tem pelo Espírito ou o amor que o Espírito<br />

tem por ele; de qualquer modo, o Espírito é uma pessoa. E isso pode ser afirmado a<br />

partir do fato de o Espírito guiar os crentes (G15.18). Não deve haver dúvidas de que, para<br />

Paulo, o Espírito é uma pessoa, de fato uma importante pessoa divina, mas uma pessoa e<br />

não uma influência impessoal.<br />

Fedro, 244B .


A vista de tudo isso, não é de surpreender que Paulo veja o Espírito se envolver em<br />

atividades importantes. Ele pode dizer que os crentes estão “no” Espírito, assim como disse<br />

que eles estão “em” Cristo (apesar de não fazê-lo com freqüência). Os crentes não estão “na<br />

carne, mas no Espírito” (Rm 8.9); eles podem falar “no Espírito Santo” (IC o 12.3); devem<br />

‘andar no Espírito” (G1 5.16); a consciência de Paulo atua “no Espírito Santo” (Rm 9.1).<br />

De modo semelhante, Paulo fala dos que “se inclinam para o Espírito [kata pneumatos]”<br />

(Rm 8.5; G14.29), e dos que andam “segundo o Espírito” (Rm 8.4; cf. 2Co 12.18), ou que<br />

"andam no Espírito” (G1 5. 16, 25), Todas essas expressões significam que a presença do<br />

Espírito é o fator dominante na vida do crente. O cristão é capacitado e guiado pelo Espírito<br />

de Deus, que mora nele.<br />

Está claro que, para o apóstolo, o Espírito é uma pessoa real, que vive nos crentes<br />

(ICo 6.19; 2Tm 1.14), os fortalece para o serviço (Rm 8.26; 2Co 3.6; E f 3.16) e lhes ensina<br />

o que devem dizer (IC o 2.13). O resultado é uma série de virtudes cristãs, como justiça,<br />

paz e alegria (Rm 14.17; c£ lT s 1.6), a esperança dajustiça (G15.5) e a admissão à presença<br />

do Pai (E f 2.18). Isso está muito perto da “salvação, pela santificação do Espírito” (2Ts<br />

2.13; cf. T t 3.5) e da “mente do Espírito”, que é “vida e paz” (Rm 8.6). Quem “semeia para o<br />

Espírito”, “do Espírito colherá vida eterna” (G1 6.8).<br />

Os dons do Gspíríto<br />

Paulo também fala de certos “dons” do Espírito (charismata). Esperava-se que as virtudes<br />

de que falamos no parágrafo acima estivessem presentes em todos os crentes, mas<br />

não os dons. Todo crente precisa ter justiça e paz, mas nem todo crente tem, digamos, o<br />

dom da cura. Há um só Espírito em ação, mas há “diversidade de dons” (IC o 12.4; cf. “a um<br />

[...] a outro [...] a outro” nos v. 8-10). Paulo compara a igreja a um corpo com muitos membros<br />

diferentes (IC o 12.12ss) e, apesar de isso se referir a talentos naturais, também se aplica<br />

aos dons espirituais. E quando ele chega à sua série de perguntas que começa com: “São<br />

todos apóstolos?” (IC o 12.29-30), a única resposta possível em todas elas é: “Não!”<br />

Pelo tom geral das referências que Paulo faz aos dons fica claro que os coríntios os<br />

valorizavam muito e que o uso desses dons conferia a beleza da espontaneidade à vida da<br />

igreja em Corinto. Paulo, porém, adverte essa igreja para que não venha a “se ensoberbecer”<br />

vlCo 4.6 et a!.);4 pode ter havido um elemento de competição entre os crentes (“Meu<br />

charisma é melhor que o seu!”). Esse pode ser o objetivo da inclusão do maravilhoso<br />

m ento.<br />

Cada pergunta é iniciada por p j], que indica que se espera uma resposta negativa.<br />

O verbo é (j)V(JlÓ(i), encontrado seis vezes em IC o rín tio s e apenas uma no restante do N ovo T e s ta ­


capítulo sobre o amor (IC o 13) no meio do estudo dos dons; parece ser uma maneira de<br />

mostrar aos coríntios algo muito melhor do que competir por evidências espetaculares da<br />

atuação do Espírito. Paulo não minimiza os dons, na verdade ele instrui os coríntios a<br />

“procurá-los com zelo” (IC o 14.1), e orgulha-se de falar em línguas mais do que todos eles<br />

(IC o 14.18). Acima de tudo, porém, os dons devem ser usados para a edificação (ICo<br />

14.12, 26); eles são dados para que os crentes cresçam na vida espiritual, e por isso não<br />

devem ser usados para realização pessoal.<br />

Um aspecto interessante dos dons é que, apesar das alegações confiantes de muitos,<br />

é difícil descobrir com precisão o que eles denotam. Veja a lista de ICoríntios 12.28.<br />

Embora esteja claro que apóstolos são pessoas “enviadas”, há fortes discussões sobre se o<br />

termo significa “missionário" em geral ou se deve se restringir aos doze (com alguns poucos<br />

acréscimos, como Paulo). É impossível ter certeza. Será que “profeta” é alguém como as<br />

grandes personagens do Antigo Testamento? Ou será que ele se parece mais com um pregador<br />

em uma igreja moderna? Não sabemos. No caso dos “mestres” achamos que temos<br />

mais certeza, mas será que temos? Conhecemos pessoas com aptidão natural para o ensino<br />

(um professor nato!) e pessoas que são professores porque aprenderam a ensinar em uma<br />

escola. Mas que é o charisma do ensino? “Poderes” (dynameis) parecem ter sido milagres,<br />

mas é difícil discernir quais milagres eram distintos da cura (que é outro dom). Quanto à<br />

cura, a expressão é “dons de curas” (com os dois substantivos no plural). Isso significa que a<br />

pessoa tinha vários dons de cura? Ou que uma podia curar um tipo de doença e outra curava<br />

outro tipo? Sobre antilêmpseis podemos dizer apenas que a palavra tem algo a ver com<br />

ajudar, mas que tipo de ajuda exigiria um charisma especial? Não sabemos, Há a mesma<br />

dificuldade com kybemêseis, palavra ligada a pilotar (kybemêtês era o piloto de um navio).<br />

Isso está bastante claro, mas não temos nenhuma informação sobre o tipo exato de "pilotagem”<br />

realizado na igreja antiga.5 Quanto a “línguas”, alguns entendem que isso significa<br />

falar em uma das línguas inteligíveis do mundo — uma língua não aprendida por quem<br />

fala, enquanto outros acham que significa falar com sons incompreensíveis.6 Em vista das<br />

U m a obra padrão com o BA G D não dá nenhum a indicação da incerteza transm itida pela palavra<br />

quando diz: “administração; o plural denota provas de capacidade para ocupar um cargo de liderança na<br />

igreja”. U m a idéia sem elhante é encontrada em N V I , B J, M as que evidências tem os de que a igreja antiga<br />

estava organizada a ponto de ter lugar para pessoas com dons de “adm inistração”? U m a administração<br />

carism ática é quase uma contradição de term os.<br />

Charles C . Ryrie m antém as duas possibilidades em aberto (Biblical theology o f the N ew Testament.<br />

Chicago, 1982, p. 194).


dificuldades, é bem surpreendente que alguns interpretem os dons com tanta confiança.<br />

Não é exagero dizer que nenhum dos dons pode ser identificado com certeza absoluta.7<br />

Hoje em dia os dons carismáticos às vezes são ligados à necessidade (e à possibilidade)<br />

de um ministério regular. Dizem que a igreja antiga era totalmente carismática, e quando<br />

o Espírito vinha sobre alguém, essa pessoa exercia alguma forma de ministério (ICo<br />

14.26). Contudo, não havia “ocupantes de cargos”. Paulo geralmente é citado como principal<br />

testemunha dessa posição. Mas é muito duvidoso que isso possa ser provado.<br />

Não pode haver dúvidas quanto ao entusiasmo de Paulo pelos dons, mas isso não<br />

parece ter exaurido sua compreensão do ministério da igreja. Pelo menos ao escrever à igreja<br />

em Filipos, ele se referiu a "bispos e diáconos” (Fp 1.1; é claro que há muitas referências a<br />

bispos, presbíteros e diáconos nas cartas pastorais, mas muitos acham que elas não são de<br />

Paulo, por isso vou deixá-las fora do estudo por enquanto). E com certeza ele tem algum<br />

ministério em mente em uma de suas primeiras cartas, quando fala dos “que vos presidem<br />

no Senhor e vos admoestam” (lT s 5.12; eles também devem ser alvos de muito amor “por<br />

causa do trabalho que realizam", v. 13). É mais do que difícil dirigir qualquer grupo pelo<br />

tempo que seja sem algum tipo de ocupante de cargo, e há bons indícios de que a igreja antiga<br />

não tentou fazê-lo. Levou algum tempo até que o ministério cristão pleno surgisse, mas<br />

algumas formas de liderança existiam desde o começo. O interesse de Paulo pelos apóstolos<br />

(ele usa o termo 34 vezes, das 79 ocorrências no Novo Testamento) combina com isso.<br />

O mesmo vale para sua instrução aos coríntios de “se sujeitarem” a pessoás como Estéfanas<br />

(ICo 16.15-16). E, pelo menos nas cartas pastorais, urncharisma era conferido pela imposição<br />

de mãos (lT m 4.14; 2Tm 1.6), ato que muitos vêem como referência à ordenação ou<br />

consagração para o ministério.<br />

O Espírito, portanto, está ativo na vida do crente e da igreja. Ele faz coisas como dar<br />

testemunho com nosso espírito (Rm 8.16), interceder por nós (Rm 8.26-27) e nos santificar<br />

(Rm 15.16). Ele tem um papel na justificação (IC o 6.11) e na revelação (IC o 2.10; cf.<br />

lT m 4.1). Quando cremos, fomos “selados” com o Espírito (E f 1.13; 4.30); isto é, a presença<br />

do Espírito nos crentes é a marca de propriedade de Deus (como o selo que as pessoas<br />

aplicavam às suas propriedades no primeiro século). O Espírito nos ensina (IC o 2.13) e<br />

vive em nós (2Tm 1.14). Ele nos capacita (hikanõsen, 2Co 3.6).<br />

Isso náo deve ser entendido com o um a negação da realidade da atuação do Espírito Santo no movim<br />

ento carism ático m oderno. R econheço com alegria que o Espírito de D eus age de m aneiras fantásticas<br />

em m uitos desses grupos. T u d o o que estou dizendo aqui é que devemos nos precaver contra uma identificação<br />

m uito apressada dos dons alistados no N ovo T estam ento. Pode ser que eles estejam sendo repetidos<br />

com exatidão em nossos dias, M as tam bém pode ser que o Espírito de D eus esteja fazendo coisas<br />

novas. N ão podem os solucionar nossas dificuldades exegéticas apelando a experiências atuais.


S? igreja<br />

A vida no Espírito tem um nítido estilo coletivo. Os salvos em Cristo são trazidos<br />

para a comunhão da igreja.8 Paulo presume que todos os que põem sua confiança em Cristo<br />

se tornam membros da igreja, e ele tem um grande interesse nessa instituição (62 dos<br />

114 exemplos de ekklêsia estão em Paulo, mais da metade). Basicamente ele pensa na igreja<br />

local (cf. “como, por toda parte, ensino em cada igreja”, ICo 4.17; cf. também referências à<br />

igreja reunida, IC o 11.18; 14.19-28). Ele fala da "igreja de Deus” (IC o 1.2; G 11,13), das<br />

“igrejas de Deus” (IC o 11.16; lT s 2.14) e das “igrejas de Cristo” (Rm 16.16; cf. G11.22). Às<br />

vezes ele fala das igrejas de determinada região, p. ex. “as igrejas da Galácia” (IC o 16.1; G1<br />

1.2; cf. ICo 16.19; 2Co 8.1; G 11.22; Cl 4.16; lT s 1.1; 2Ts 1.1).<br />

Outras vezes está pensando na igreja como unidade menor — a “igreja na casa” (Rm<br />

16.5; IC o 16.19; Cl 4.15; Fm 2). O que exatamente isso significa não está claro,9 porque<br />

não havia igrejas com templos naquela época e é provável que todas as igrejas se reunissem<br />

em casas particulares. Igrejas em casas, porém, são especificamente mencionadas e parece<br />

que se referem a grupos ainda menores do que os outros. Não eram divisões, pois recebiam<br />

saudações no âmbito das cartas enviadas à igreja como um todo.<br />

Às vezes, Paulo tem em mente a igreja universal, em contraposição à igreja local.<br />

Nesse sentido ele diz que Deus estabeleceu os apóstolos “na igreja” (IC o 12.28; apóstolos<br />

não eram líderes locais) e que ele mesmo perseguiu “a igreja” (IC o 15.9; G11.13). Essa visão<br />

se aplica especialmente, porém, ao seu conceito da igreja como corpo de Cristo (Cl 1.24),<br />

do qual Cristo é a cabeça (E f 1.22; 5.23; Cl 1.18). A igreja está sujeita a Cristo (EF 5.24) e é<br />

por meio da igreja que a “multiforme sabedoria de Deus” se faz conhecida nas regiões celestiais<br />

(E f 3.10). Cristo amou a igreja e se deu por ela (E f 5.25), e continua a alimentá-la (E f<br />

5,29). Apesar de a ênfase estar no cuidado divino, Paulo também diz que “a preocupação<br />

com todas as igrejas” pesa sobre ele (2Co 11,28); há uma área de responsabilidade humana.<br />

Paulo ilustra a igreja de várias formas interessantes. A igreja é um edifício do qual<br />

Cristo é o fundamento (IC o 3.11). De outro ponto de vista, ela está edificada sobre o alicerce<br />

dos apóstolos e profetas (E f 2.20). De modo mais específico, é o "santuário de Deus”<br />

(IC o 3.16; Cf. E f 2.21), termo que combina com o adjetivo “santos”, comumente aplicado<br />

M ichel B outtier diz sobre Paulo: "Aquilo que o une a C risto une-o aos coríntios, e o que o une aos filipenses<br />

une-o a C risto” (Christianity accoràing to Paul. N aperville, 1966, p. 62).<br />

9 W ay n e A . M eeks faz objeções à tradução “a igreja na casa de fulano, dizendo que i v OLKúJ era a m a­<br />

neira natural de dizer isso, enquanto a expressão é KCtT OLKOl'. Ele entende isso como “a ‘célula básica’<br />

do m ovimento cristão, tendo com o núcleo geralm ente uma fam ília.” M as “não coincidia com a família".<br />

“Em pregados” e novos convertidos eram acrescentados ( T hefirst urban Cbristians. N ew H aven e London,<br />

1983, p. 7 5-76).


aos salvos (observe que esse atributo está sempre na forma plural; Paulo não fala nenhuma<br />

vez de um crente santo; ele considera santo o grupo). A igreja é uma família (E f 2.19; G1<br />

6.10; lT m 3.15). Ela é a noiva de Cristo (2Co 11.2; cf. E f5.25-32). Ela é seu corpo (Cl 1.18,<br />

24; cf. Rm 12.4-5). Ela é o “Israel de Deus” (G16.16; cf. sua relação com Abraão, Rm 4.16;<br />

G1 3.29).10 É uma comunidade constituída de concidadãos (E f 2.19; Fp 3.20), o povo de<br />

Deus (Rm 9.25-26), a nova raça humana (Cl 3.10-11). Há outras maneiras de visualizar a<br />

igreja, mas essas são suficientes para vermos que, para Paulo, a igreja tem um esplendor<br />

multifacetado.<br />

Os sacramentos<br />

Paulo não se refere com freqüência às duas disposições sacramentais que tanto significaram<br />

para a igreja no transcurso dos séculos, mas o que ele diz é importante. Por<br />

exemplo, ele nos informa que, “em um Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo”<br />

(lC o 12.13), mostrando a importância do que o Espírito faz. Na verdade, isso é tão determinante<br />

que há expositores que afirmam que Paulo não está se referindo nem sequer ao<br />

batismo com água — está usando o termo “batizados” em sentido metafórico (cf, Mt<br />

3.11).11 Eles muitas vezes estabelecem um contraste entre o “batismo do Espírito” e o<br />

“batismo com água”, sem prestar atenção ao fato de que o Novo Testamento nunca faz tal<br />

distinção. Parece mais provável que ele tinha o batismo com água em mente, e que está<br />

dizendo que é o Espírito Santo quem torna o crente membro da igreja, não a água.12 E o<br />

Espírito quem nos torna todos um, e Paulo continua mostrando a abrangência dessa unidade;<br />

“Quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres"; é o mesmo Espírito de quem<br />

todos “bebemos”.<br />

10 C f. Paul S, M inear: “Paulo náo recaiu sobre o conceito de dois povos de Israel, um antigo e outro<br />

novo, ou um falso e outro verdadeiro. Ele definiu o Israel de D eus com o um só povo, medido em term os<br />

qualitativos pela m isericórdia de D eus na cruz de C risto” (Images o f the church in the N ew Testament. Philadelphia,<br />

1960, p. 72).<br />

UCf. A lan R edpath: "Se fom os salvos pela graça de Deus, lavados no sangue de C risto, nesse m om ento<br />

fomos batizados pelo Espírito San to no corpo do Senh or Jesu s” ( T he royal route to heaven. W estw ood,<br />

1960, p. 149).<br />

'’ M ichael G reen lem bra que seis das sete referências ao batism o no Espírito no N ovo T estam ento faie<br />

m contraste e n trejo ã o Batista ejesu s. Essa é a única referência a esse batism o sem tal contraste, e aqui<br />

*fica m uito claro que não só quem falava em línguas, não só os que faziam milagres, mas todos os cristãos<br />

de C orinto tinham sido batizados no Espírito San to e tinham bebido das suas águas. A ssim com o não<br />

devemos separar o batism o da justificação, tam bém náo devemos separá-lo do dom do Espírito San to ”<br />

T o Corinth with love. London, 1982, p. 36).


O tom da unidade surge novamente quando Paulo diz: “Todos quantos fostes batizados<br />

em Cristo de Cristo vos revestistes, Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem<br />

liberto nem escravo; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”<br />

(G1 3.27-28). Desta vez não há menção do Espírito, mas a ligação com Cristo significa a<br />

ligação uns com os outros. E é a unidade com Cristo que se destaca quando o apóstolo diz:<br />

“Todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados em sua morte” (Rm<br />

6.3). Os cristãos morreram para o estilo de vida antigo. Fomos sepultados; a vida de antes<br />

acabou para sempre. Agora “andamos em novidade de vida” com Cristo (Rm 6.4; cf. Cl<br />

2.12 sobre a mesma idéia de ser sepultado e ressuscitar para uma nova vida). Somos um<br />

com Cristo.<br />

A ceia não recebe muito destaque nos escritos de Paulo. Mas ele pergunta aos coríntios:<br />

“O cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão<br />

que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?” (IC o 10.16). E continua falando da<br />

unidade dos crentes: “Nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque<br />

todos participamos do único pão” (v. 17). A passagem tem suas dificuldades, mas Paulo<br />

parece estar dizendo que os fiéis recebem Cristo (seu corpo e seu sangue) quando<br />

participam da ceia, e a unidade dos cristãos é reforçada por essa participação.<br />

Isso torna a ceia um ato muito solene e importante, e por isso Paulo repreende com<br />

termos muito fortes os que tomam “a sua própria ceia” antes dos outros, de modo que<br />

alguns ficam com fome e outros, bêbados (IC o 11.21); essa não é a “ceia do Senhor” (v. 20),<br />

mas uma representação grotesca. Ele continua falando da instituição da ceia realizada por<br />

Cristo (v. 23-26) e mostra seu significado: 1) referindo-se à nova aliança que Cristo fez, 2)<br />

afirmando que participamos dela em memória de Cristo, e 3) dizendo que, no sacramento,<br />

"anunciamos a morte do Senhor, até que ele venha”. Profanar esse rito sagrado significa<br />

tornar-se “réu do corpo e do sangue do Senhor” (v, 27); quem faz isso “não discerne o corpo"<br />

(v. 29). Isso parece significar que o ofensor não entendeu o sentido com que o corpo de<br />

Cristo foi entregue, apesar de alguns verem aqui uma referência à igreja como o corpo de<br />

Cristo,13Talvez eu deva acrescentar neste ponto que não há uma boa razão para aceitar a<br />

idéia que alguns têm proposto — de que a perspectiva que Paulo tem dos sacramentos<br />

recebeu muita influência ou talvez até derive das religiões de mistério helenistas. As diferenças<br />

são muitas, e as semelhanças, superficiais demais para que essa posição seja de alguma<br />

forma plausível.14<br />

C f. Bouttier: “C om isso m ostram que ainda não aprenderam a discernir o corpo do Senhor, isto é, a<br />

reconhecê-lo uns nos outros” (Christianity according to Paul, p. 69).<br />

“A s diferenças entre o sacramentalism o de Paulo e o helenista são essenciais e não superficiais" (A.<br />

D . N ock, St. Paul. N ew York, 1963, p. 77). Sobre IC o rin tio s 8.4-9, T . R . Glover diz: “Essa foi uma nega-


0 caminho da fé<br />

Paulo fez da "fé” uma das palavras cristãs mais importantes. Ele a usa constantemente<br />

(142 vezes; ele também emprega o verbo “crer” 54 vezes e o adjetivo “fiel” 22 vezes).<br />

Ele usa essas palavras de tal maneira que não resta nenhuma dúvida aos seus leitores de que<br />

a fé é fundamental para o cristão. A fé tem um componente intelectual ("cremos que,..”, p.<br />

ex. Rm 6.8; 10.9), mas não devemos achar que ele é preponderante. Para Paulo, fé significa<br />

confiança, de todo o coração, em Cristo como aquele que morreu para nos trazer<br />

salvação.'" E significa compromisso, entrega de toda a vida ao Salvador.<br />

E pela fé que tomamos posse do dom da salvação. Recebemos a “justiça de Deus”<br />

pela fé (Rm 3.22; Fp 3.9). Somos justificados pela fé (Rm 3.28, 30; 5.1; G1 3.24) e, é claro,<br />

há um importante texto de Habacuque que Paulo cita duas vezes e que provavelmente<br />

deve ser entendido desta maneira; “Aquele que é justo, pela fé viverá” (Rm 1.17; G1 3.11;<br />

veja Hc 2.4). De modo semelhante, a propiciação é "pela fé” (Rm 3.25), assim como a adoção<br />

(G1 3.26).<br />

Paulo dedica um capítulo inteiro a Abraão, o grande exemplo de fé: “Abraão creu<br />

em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça” (Rm 4.3, 22-23; G1 3.6; veja Gn 15.6). Esse é<br />

um sinal da originalidade de Paulo, pois os judeus costumavam ver Abraão como alguém<br />

que guardou a lei de modo exemplar (apesar de, na época, ela ainda não ter sido dada):<br />

“Abraão, nosso pai, cumpriu toda a lei antes de ela ser dada” (Mishná, Kidd. 4.14).16 Para<br />

Paulo, no entanto, a fé que Abraão teve é que foi importante. A primeira ação independente<br />

do grande patriarca foi seu admirável ato de obediência ao chamado de Deus. Ele tinha<br />

75 anos de idade na época; portanto não se tratou de um impulso da juventude. Ele tomou<br />

sua esposa, seus empregados e os bens de todos e deixou seu país, seu povo e a casa de seu<br />

pai (Gn 12.1-4), Por quê? Somente porque Deus o chamara. Ele creu em Deus e, por isso,<br />

ção direta, que dificilmente poderia ter sido mais abrupta, da idéia central das religiões sacramentais” (Paul o f<br />

Tarsus. London, 1925, p. 136). M artin Hengel se refere à idéia de que Paulo dependeu das religiões de<br />

mistério no tocante a “essa teoria notável” (Betwecn Jesus and Paul. Philadelphia, 1983, p. 160 n. 26).<br />

'’ W ern er G eorgK ü m m el define fé assim: “Isto é o que significa crer: deixar de olhar para si, desconsiderar<br />

tanto as fraquezas quanto os m éritos próprios, e confiar que Deus resolveu a questão por meio de<br />

Jesus C risto" (M artin Dibelius, Paul, W ern er G eorgK ü m m el, ed. e comp., Philadelphia, 1966, p, 117).<br />

16O s rabinos entendiam que Gênesis 15.6 destacava o m érito de A braão e não sua confiança, C , E. B.<br />

Cranfield cita duas passagens im portantes da M ekhilta (com entário judaico sobre Éxodo) acerca de<br />

Exodo 14,15, 31: “A fé com que seu pai A braão creu em m im m erece que eu abra o mar. [...] N osso pai<br />

Abraão se tornou herdeiro deste mundo e do próxim o sim plesm ente pelo m érito da fé com que creu no<br />

Senhor" (A criticai and exegetical commentary on the epistle to the Romans. Edinburgh, 1975, 1:229; os dois<br />

textos passam a citar G n 15,6).


saiu sem a mínima idéia do seu destino, um exemplo impressionante de entrega de todo o<br />

coração. Abraão sabia apenas que Deus o chamara, Mas isso era o suficiente.<br />

Paulo acrescenta uma referência a Davi para mostrar que ele também contribui com<br />

provas de que a salvação vem da justiça que Deus confere (Rm 4,6-8), não da obediência à<br />

lei. Depois ele retorna para Abraão, para a informação importante de que sua fé lhe foi creditada<br />

como justiça muito antes de ele ser circuncidado.17 A circuncisão era um sinal da<br />

aliança (Gn 17.9-14); o judeu a considerava uma prova de que fazia parte da comunidade<br />

da aliança, e “todo israelita tem parte no mundo futuro” (Mishná, Sanh. 10.1). Para Paulo,<br />

no entanto, a seqüência é decisiva. Abraão foi aceito por Deus muito antes de ser circuncidado.<br />

A circuncisão era o selo da justiça pela fé que Abraão teve quando ainda não era circuncidado<br />

(Rm 4.11) e não, como pensavam os judeus, da impossibilidade de qualquer um<br />

da raça deles sofrer rejeição definitiva por Deus. Os judeus gostavam de chamar Abraão de<br />

pai, mas Paulo vê o patriarca como pai dos fiéis, quer circuncidados, quer não (Rm<br />

4.11-12). O apóstolo liga a promessa feita a Abraão à “justiça da fé” (Rm 4.13). E a graça<br />

que é importante, não a lei, e isso significa fé (Rm 4.14-16), pela qual nos apropriamos da<br />

graça. O argumento é uma esplêndida demonstração da verdade de que o caminho de Deus<br />

é e sempre foi a graça, e que, além disso, recebe-se a dádiva da graça pela fé, E o mais<br />

impressionante é que ele se concentra em Abraão, o principal exemplo para os judeus de<br />

alguém que cumpriu a lei. Para Paulo, todavia, está claro que aqueles que são caracterizados<br />

pela fé é que são “filhos de Abraão” e “abençoados com o crente Abraão” (G1 3.7, 9).<br />

A fé é característica dos cristãos. Estamos “firmes na fé” (IC o 16,13), “permanecemos<br />

na fé” (Cl 1.23), “andamos por fé” (2Co 5.7). E “pela fé” que temos acesso a Deus (Rm<br />

5.2; “mediante a fé”, E f 3.12), e é “pela fé” que Cristo habita em nosso coração (E f 3.17). A<br />

fé não é estática, e Paulo espera que ela cresça (2Co 10.15; 2Ts 1.3; cf. lT s 3.10). Muitas<br />

vezes ele liga a fé ao amor e faz uma descrição magnífica da vida cristã com “a fé que atua<br />

pelo amor” (G1 5.6). Ele também fala da “operosidade da fé” dos tessalonicenses (lT s 1.3).<br />

Diante de tudo isso seria um erro pensar na fé como produto humano, contrapondo-se ao<br />

ato divino da nossa salvação. A própria fé vem de Deus, pois a cada crente Deus concedeu<br />

uma “medida de fé" (Rm 12.3).<br />

Às vezes, o apóstolo fala "da fé" (p, ex. 2Co 13.5; G 11.23; 6.10; lT m 4.1, 6). Usado<br />

assim, o termo representa todo o sistema de ensino cristão, e alguns vêem nele uma perda<br />

da espontaneidade inicial dos cristãos, um endurecimento rumo à ortodoxia, Mas com­<br />

A fé c o m base na qual ele foi aceito diante de D eu s foi exercida por A braão m uito antes do nascim<br />

ento de Israel, e quando este nasceu A braão tin h a 86 anos de idade (G n 1 6 ,1 6 ). E le foi circu ncid a­<br />

do só aos 99 (G n 1 7 .2 4 ); p o rtan to, após um intervalo de m ais de 13 anos. D e acordo com a<br />

cronologia ju d aica o intervalo foi ainda m aior, pois os ju d eu s afirm am que A braão tin h a 70 anos<br />

quando dividiu o sacrifício (G n 1 5.10; Sed er O lam R , 1, citado em S B K 3 :2 0 3 ). Isso im p licaria um<br />

intervalo de 29 anos.


preender que o cristianismo tem ensinos em que é preciso crer não significa necessariamente<br />

a perda do entusiasmo inicial da fé.18 E é importante o fato de que o nome dado ao<br />

cristianismo não é “a lei" ou “o ensino", mas “a fé”. Fé é algo especial. Paulo pode chamar os<br />

cristãos de "crentes” (Rm 3.22; lT s 1.7); é sempre a fé o que importa.<br />

O cãtninho do amor<br />

Paulo continua insistindo que a vida cristã é uma vida de amor. Ela começa com amor,<br />

pois é o amor que vemos no Calvário que nos torna cristãos. E quando somos cristãos, somos<br />

também membros da igreja, a comunidade amada. Como membros dessa comunidade<br />

somos chamados a viver em amor; amor por Deus, amor uns pelos outros, amor por todos.<br />

Enquanto para os judeus a lei era o instrumento divinamente concedido que moldava o servo<br />

de Deus, para Paulo “quem ama o próximo tem cumprido a lei” (Rm 13.8-10; G15.14; lT m<br />

1.5). O amor é central, pois amor é o que Deus é.<br />

Deus não só tem amor por nós; ele também produz amor em nós. O crente não gera<br />

amor com seus próprios recursos. Foi C. F, D. Moule quem disse: “Agape não é uma virtude<br />

entre outras, mas um impulso totalmente novo, implantado por Deus; é o amor de<br />

Deus por nós em Cristo, que refletimos e ao qual respondemos”.'9 O amor vem quando<br />

aceitamos o caminho de Deus. Não é que algumas pessoas se tornem bastante boas ao<br />

amar; o amor de Deus é que é “derramado em nosso coração pelo Espírito Santo" (Rm 5.5;<br />

Moffatt traduz a idéia de abundância com “inunda nosso coração”). Deus nos dá um “espírito<br />

de amor” (2Tm 1.7). Quando Paulo delineia o “fruto do Espírito", o amor está no topo<br />

da lista (G1 5.22).<br />

De outro ângulo, somos ensinados por Deus a amar uns aos outros (lT s 4.9). E o<br />

Senhor quem faz os crentes crescerem e transbordarem de amor uns pelos outros (lT s<br />

3.12; cf. 2Ts 1.3). O amor é “em Cristo Jesus” (lT m 1.14) e “no Espírito" (Cl 1.8); na verdade,<br />

é o “amor do Espírito” (Rm 15.30), uma expressão que parece significar “o amor produzido<br />

pelo Espírito”."0 Paulo não tem dúvidas de que o amor não é um feito humano, mas<br />

resultado da atuação de Deus no cristão.<br />

Os crentes “andam” em amor (E f 5.2; merecemos severas críticas quando não o fazemos,<br />

Rm 14.15). O amor, por natureza, é algo habitual; praticamos “todos os atos” com<br />

18“C rer que” está lá desde o com eço ( l T s 4.14; cf, R m 6.8; 10,9). O verbo TTLUTevüJ aceita várias construções,<br />

com o uso das preposições èlTL (R m 9,33; l T m 1.16), e í ç (R m 10.14; G 12.16) e 8 í á (IC o 3.5);<br />

o dativo (R m 10.16; 2 T s 2.12); ele tam bém é usado em term os absolutos (R m 13.11; IC o 1.21).<br />

19 The birth o f the N ew Testament. London, 1962, p. 140.<br />

20 Segundo Cranfield, Romans, 2:776.


amor (IC o 16.14). Em sua insuperável descrição do amor (IC o 13), Paulo mostra que não<br />

há excelência em eloqüência, percepção espiritual, fé, obras de caridade ou devoção que<br />

compense a falta de amor (IC o 13.1-3). Quem ama é perseverante e gentil, e não orgulhoso<br />

(v. 4). Quem ama não é egoísta, não é irascível e também não guarda rancor (v. 5). Fica feliz<br />

quando a verdade prevalece, não quando a maldade se fortalece (v, 6). O amor dura para<br />

sempre (v. 7, 13).“'<br />

O amor é uma qualidade que o cristão deve “perseguir” com avidez (ICo 14.1; 2Tm<br />

2.22); não devemos achar que ele aparecerá por si. O amor é o alicerce da vida cristã (E f 3.17);<br />

é algo maravilhoso "poder compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento,<br />

e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento”<br />

(E f 3.18-19). Esse fio que percorre todas as cartas de Paulo deixa claro que ele<br />

considerava o amor o grande sinal que distingue os cristãos. Em um mundo de pessoas motivadas<br />

por ambições, ganância, partidarismo, egoísmo e coisas do gênero, Paulo esperava que<br />

os cristãos se destacassem por seu amor, como indivíduos e como comunidade. Eles são "vinculados<br />

juntamente em amor” (Cl 2.2), que é o "vínculo da perfeição” (Cl 3.14). O corpo é<br />

edificado "em amor” (E f 4.16) e pelo amor (ICo 8.1). Paulo muitas vezes escreve com carinho<br />

do amor que vê nas igrejas (Ef 1.15; Cl 1.8; lT s 3.6; Fm 4). Ele espera que as pessoas o<br />

demonstrem (2Co 2,8; 8.8; G1 5.13) e ora para que ele seja abundante (Fp 1.9).2~<br />

Em vista do lugar que ele atribui à fé e ao amor, podemos entender seu resumo<br />

magistral: em Cristo, questões rituais como a circuncisão, ou a ausência dela, não importam<br />

em nada, apenas "a fé que atua pelo amor" (G1 5.6).<br />

A ênfase de Paulo no amor acima de tudo transparece no modo como ele usa algumas<br />

outras palavras. Por exemplo, ele costuma se dirigir aos outros crentes com o termo<br />

afetivo “irmãos” (ele emprega adelphos 133 vezes). A simpatia do amor caracteriza seu relacionamento<br />

com os membros das igrejas. Talvez devamos mencionar aqui sua ênfase nas<br />

V eja um estudo mais amplo em meu livro Testaments o f love: a study o f love in the Bible. G rand Rapids,<br />

1981, p. 239-259.<br />

22Jo h n K nox observa que Paulo pôs isso em prática e que era amado: "M uitos estudiosos de hoje não<br />

gostam de Paulo a tal ponto que não vêem que m uitos da sua época o amavam"; ele diz que "está surpreso<br />

com o núm ero e a extensão das passagens dedicadas totalm ente a expressar os sentim entos de Paulo em<br />

relação às suas igrejas — de terna preocupação quando estavam sendo atribuladas, de tristeza com seus<br />

fracassos ou sofrim entos, ou de alegria com seus triunfos” (Chapters in a life o f Paul. London, 1954, p. 95).<br />

Ele continua dizendo que ninguém poderia ter escrito IC o rín tios 13 sem ter “andado por esse ‘caminho<br />

sobrem odo excelente”’. C f. tam bém W ilfred K nox: "Ele era um hom em de afeição intensa. O am or por<br />

seus convertidos sempre triunfa sobre a ira diante das deserções fáceis e do fracasso em viver à altura dos<br />

padrões que ele espera deles” (St. Paul. N ew York, 1932, p. 43).


palavras ligadas a “bondade”."3 Para Paulo, o amor não é algo sentimental. Ele tem um conteúdo<br />

ético. Paulo vê claramente que o melhor para os amados é que se firmem no caminho<br />

da bondade. Por isso reprova constantemente os maus hábitos e incentiva a conduta correta<br />

sem a qual um estilo de vida realizador é impossível.<br />

Pode ser pertinente lembrar aqui a perspectiva que Paulo tinha do sofrimento. Costumamos<br />

considerar o sofrimento um mal implacável e fazemos de tudo para evitá-lo.<br />

Temos dificuldades com a existência do sofrimento, por vermos a Deus como um Deus<br />

bom. Paulo conhecia bem o sofrimento (lembre sua lista de horrores em 2Co 11.22-29);<br />

ele não era um estrategista de gabinete, seguro em sua torre de marfim. Ele convoca seus<br />

leitores não só a aceitar o sofrimento, mas a exultar nele, exortação que o leva a uma<br />

seqüência de pensamentos que conduzem diretamente ao amor de Deus (Rm 5.3-5). Para<br />

Paulo, o sofrimento é a evidência, não de que Deus não nos ama, mas de que ele nos ama.<br />

Ele afirma que a constância dos tessalonicenses em suas perseguições e tribulações é "sinal<br />

evidente do reto juízo de Deus” (2Ts 1.4-5).~4 Há qualidades de caráter forjadas no fogo<br />

das aflições e que nunca desenvolveremos em dias de calmaria. Paulo vê como parte do<br />

amor de Deus por nós o fato de ele nos conduzir por tribulações, para fazer de nós o<br />

melhor que podemos ser.<br />

O sofrimento também é o meio de promover o propósito de Deus. Paulo alegrou-se<br />

em seus sofrimentos, pois podia dizer: "Preencho o que resta das aflições de Cristo, na<br />

minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja” (Cl 1.24). O sofrimento que lhe coubera<br />

não era sem sentido; ele fazia parte do modo de Deus executar seu propósito. Os mesmos<br />

sofrimentos de Paulo também eram prova do seu amor. Bornkamm mostra isso ao chamar<br />

a atenção para a importância das emoções de Paulo. Ele fala de “dor que o faz chorar, ira e<br />

indignação, queixas e acusações, ironia amarga, condenação total dos agitadores e rebeldes,<br />

defesas e até elogios a si mesmo que, apesar de expressos contra a sua vontade e contrários<br />

ao seu caráter, são exclamações emocionantes do seu coração, em que seu amor ferido<br />

adverte os que correm perigo e foram iludidos’’.25 Não devemos ficar tão concentrados nas<br />

polêmicas de Paulo que não vejamos o amor que ele tinha pelos seus companheiros<br />

cristãos.<br />

"’ P aulo em prega á y a O Ó Ç 4 7 vezes, ayaOiúGVVT] 4 vezes, fCãÀÓç 4 0 vezes, S lkü IO Ç 17 vezes,<br />

òlKaiOOVVT] 57 vezes, X P V (JT ^ TrlS ‘ 10 vezes (som en te P au lo o em prega no N ovo T e sta m e n to ),<br />

X p r j a r ó ç 3 vezes.<br />

"4 A o com entar a alegria nas aflições em lT essalonicenses 1.6, A . D . N o ck diz: “Essa alegria era, para<br />

Paulo, uma das principais m arcas da vida cristã; não é eudaim onia, ‘felicidade’, nem hedonê, prazer', termos<br />

ausentes do vocabulário de Paulo” (St. Paul, p, 148).<br />

G ünther Bornkam m , Paul. London, 1971, p. 167.


:|í í;:í S X r; ã Ú íí S li" D ~í ri r= S £: 3; ;s :g & ;r □ S S ir Í5 ^ & 'M bi lã Pr v; s E .« ::, “ü ^ â r; S. vi ;s « :;;; S lê<br />

O caminho da esperança<br />

Paulo está muito interessado na consumação de todas as coisas, e menciona o fim<br />

dessa era, de um modo ou outro, em cada uma das suas cartas, com exceção de Filemom. O<br />

interesse escatológico, naturalmente, não era algo incomum entre os judeus da época, mas<br />

o que é diferente em Paulo é o papel que ele via reservado para Cristo. Paulo entende que a<br />

obra de salvação de Cristo tem importância central: a “plenitude do tempo” já tinha chegado<br />

quando Deus enviou Cristo ao mundo (G1 4.4), “Os fins dos séculos chegaram” (IC o<br />

10.11). Os apocalípticos da época tinham desesperado do mundo presente e esperavam<br />

que ele acabasse e fosse substituído pela nova criação de Deus. Para Paulo, porém, a nova<br />

criação já é uma realidade presente (2Co 5.17). Num sentido muito significativo, escatolo-<br />

gia são as “primeiras coisas” do caminho cristão e não as “últimas coisas”. Em Cristo, todas<br />

as coisas foram feitas novas. Já agora.<br />

Isso não significa que as possibilidades de salvação em Cristo estão todas esgotadas<br />

aqui e agora. Paulo esperava pela execução final do plano de Deus, no retorno de Cristo a esta<br />

terra. Sete vezes ele falou daparousia de Cristo, termo que significava “presença” e passou a significar<br />

"vinda para estar presente”, “chegada”. Era o termo que traduzia a chegada de uma pessoa<br />

de posição elevada, especialmente o imperador quando visitava uma província. O relato<br />

mais explícito de Paulo sobre o sentido da parousia de Cristo nos informa que “o Senhor mesmo,<br />

dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá<br />

dos céus” (lT s 4.16). Ele acrescenta que os mortos em Cristo ressuscitarão e que “nós, os<br />

vivos, os que ficarmos” seremos arrebatados para encontrar o Senhor nos ares, e assim "estaremos<br />

para sempre com o Senhor” (v. 17), A ressurreição dos cristãos segue a do Senhor; Paulo<br />

fala de "Cristo, as primícias; depois, os que são de Cristo, na sua vinda” (ICo 15.23).<br />

O<br />

fim dos tempos é tão importante, tão aceito no ensino cristão, que Paulo se refe<br />

simplesmente ao “Dia de nosso Senhor Jesus Cristo” (IC o 1.8); ele não exige explicação.<br />

Paulo pode exultar nele. Quando Cristo vier, Paulo espera encontrar os tessalonicenses,<br />

como sua "esperança”, “gozo" e “coroa de glória”, sua "glória e alegria” (lT s 2,19-20). Existe<br />

uma grande força do mal, porém Cristo a destruirá quando vier (2Ts 2.8); de fato, em todo<br />

lugar ele presume que a vinda de Cristo significa a destruição definitiva do mal (G15.19-21;<br />

2Ts 1.7-9) e a inauguração do estado final de bênção (uma verdade que pode ser expressa<br />

em termos de julgamento, apesar de o cristão poder enfrentá-lo com confiança, Rm 8.1;<br />

ICo 3.13-15; 2Co 5.10).~6 Por isso lemos sobre a "bendita esperança" (T t 2.13), e há várias<br />

passagens que fazem referência, de uma ou outra maneira, ao esplendor e à majestade<br />

daquele dia (E f 2.7; 2Ts 1.7-10; 2.8; 2Tm 4.1, 8) e à bênção que o Senhor então concederá<br />

M uitos conservadores hoje em dia têm posições firmes em relação ao reino milenar de C risto e interpretam<br />

essas passagens de modo diferente. Paulo, porém, nenhum a vez se refere explicitam ente ao m ilênio<br />

e parece m elhor entender suas afirmações com o simples referências ao triunfo final.


aos seus servos (Cl 1.12; 2Tm 4.8). Paulo ora para que seus filhos na fé sejam "confirmados<br />

em santidade” perante Deus quando nosso Senhor Jesus vier “com todos os seus santos”<br />

(lT s 3.13; cf. 5.23). As vezes ele se refere simplesmente ao “reino de Deus" (G1 5.21).<br />

A soberania de Deus será plenamente manifesta (ICo 15,24-28); a própria morte, o<br />

“último inimigo", será destruída (ICo 15.26). O “número completo” (plêrõma) dos gentios<br />

será alcançado (Rm 11.25), e as promessas de Deus a Israel serão cumpridas (Rm 11.26-31).<br />

A criação será libertada da sua escravidão à decadência.<br />

Paulo, é claro, tem em mente a glória do porvir quando usa outros termos. Às vez&sK<br />

por exemplo, ele usa “glória” com sentido escatológico (p. ex. Rm 8.18, 21; 2Co 4.1(7)ç^e-o O<br />

mesmo pode ser dito de termos como “esperança” (Cl 1.5). Alguns estudioso/dj^ngío'-<br />

nam isso de tal maneira que acham que Paulo está preocupado com a proxtmid^dei d'o fim<br />

da era. Todo o seu ministério é considerado pouco mais que o prep é l irKa)parousia iminente.<br />

Contudo, se é verdade que muitas vezes, no passado,(^l^n^érí)to\escatológico em<br />

Paulo foi minimizado, também é verdade que é po,<br />

vimos, Paulo tem muito a dizer sobre a vida aqui e agor,<br />

movimento apocalíptico, havia uma diferença. Nas-p^l)<br />

se voltar para dentro, como as outras forrpas"4e|i(da^s:<br />

ioná-lo. Como<br />

O < istianismo como um<br />

ucien Cerfaux, "em vez de<br />

olípós a perseguição por Antíoco<br />

Epifânio, o cristianismo assumiu a tarefa<br />

nascimento de uma nova era para a<br />

humanidade mudando a mente das esse â\A podemos acrescentar, seu coração e sua<br />

vida. Para Paulo, existe um sentidi e a nova era já chegou: "Se alguém está em Cristo,<br />

é nova criação" (2Co 5.175» ^AwSp^jS&'todos concordavam que ocorreria no fim, Paulo já<br />

vê em andamento: julgam^ntoVmoÀe e ressurreição. Como realidade presente, eles dão um<br />

tom distinto à persEJ^Mira ae)Paulo sobre o fim, apesar de não negarem a realidade da consumação<br />

final,’8'<br />

Christian in the theology o f st. Paul. London, 1967, p. 133. Paulo insistiu no uso correto do tem po<br />

: ( E f 5.16; C l 4.5; cf. G1 6.9-10).<br />

SM uitos argumentam com em penho em favor da função da mentalidade apocalíptica em Paulo. P or<br />

exemplo, J . C hristian Beker afirma que “o centro do pensam ento de Paulo deve ser encontrado em seu<br />

futuro apocalíptico, determ inado em term os cristológicos”. “A firm o que o centro do evangelho de Paulo<br />

está em sua interpretação apocalíptica do evento C risto” (Paul's apocalyptic gospel. Philadelphia, 1982, p.<br />

76, 88). E . K äsem ann fala do "fato de que a consciência apostólica de Paulo pode ser com preendida apenas<br />

com base em sua apocalíptica, e o mesm o vale do m étodo e do objetivo da sua m issão” (N ew Testament<br />

questions oj today. London, 1969, p. 131). E . P . Sanders, por sua vez, não considera Paulo nem um<br />

pouco apocalíptico: "A semelhança entre a perspectiva de Paulo e a literatura apocalíptica é mais geral<br />

que em detalhes. Paulo não [...] calculou tem pos e épocas, não acom odou suas predições do fim em visões<br />

com m onstros, e não seguiu nenhum a das convenções literárias da literatura apocalíptica” (Paul and<br />

Palestinian Judaism . London, 1977, p. 543). Bornkam m defende que o pensam ento de Paulo é "totalm ente<br />

oposto ao da apocalíptica” (Paul, p, 147). C f. H an s Conzelm ann: "[Paulo] não faz uma interpretação<br />

apocalíptica da situação do mundo, nem calcula sinais e períodos apocalípticos” (An outline o f the theology


Tornou-se um dogma da ortodoxia crítica a opinião de que Paulo esperava o fim de<br />

todas as coisas durante a sua vida. Isso é tido como evidente por causa de palavras como<br />

“nós, os vivos”, em uma passagem que trata da vinda do Senhor (lT s 4.17), e por causa do<br />

tom geral das suas referências àparousia. Se ele diz “nós” ao falar dos vivos na época da volta<br />

de Cristo, certamente está incluindo a si mesmo! Via de regra não se percebe que a aplicação<br />

do mesmo método de exegese a outras passagens levaria à conclusão de que Paulo esperava<br />

estar morto. Ele diz: “Deus ressuscitou o Senhor e também nos ressuscitará” (ICo<br />

6.14) e: "Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos ressuscitará" (2Co 4.14).29<br />

Como Deus poderia ressuscitar a Paulo se ele não tinha morrido?<br />

Não há base suficiente para inferir que Paulo acha que vai estar vivo nem que vai<br />

estar morto no último grande dia. Ele tem o hábito de se colocar junto com aqueles a quem<br />

está escrevendo, sem com isso afirmar se está ou não envolvido na atividade em questão.<br />

Na verdade, muitas vezes é impossível achar que ele estava envolvido na atividade sobre a<br />

qual escreve. Por exemplo, ele escreveu: “Não pratiquemos imoralidade” (IC o 10.8) —<br />

“pratiquemos”, não “pratiquem”, Ele diz também: “Deixemos as obras das trevas” (Rm<br />

13.12), muito depois de ter abandonado o caminho mau. Mesmo maduro na vida cristã<br />

como estava (cf. ICo 13.11), ele dizia que as boas dádivas de Deus tinham sido concedidas<br />

“para que não sejamos mais como meninos” (E f 4.14). Ele podia dizer: “Se o negamos...” e:<br />

“Se somos infiéis...” (2Tm 2.12-13). Ele pergunta: "Anulamos alei?” (Rm 3.31); “Permaneceremos<br />

no pecado?” e: “Havemos de pecar?” (Rm 6.1,15). Ele fala de “nossa injustiça” (Rm<br />

3.5) e pergunta: “Provocaremos zelos no Senhor?” (IC o 10,22). Às vezes ele é ainda mais<br />

pessoal usando o singular, como quando diz: “Por causa da minha mentira” (Rm 3.7) ou<br />

quando pergunta: “Tomaria eu os membros de Cristo e os faria membros de meretriz?”<br />

ofthe N ew Testam ent. London, 1969, p, 256). E m meu livro Apocalyptic (London, 1973) m ostrei que a literatura<br />

apocalíptica não é um veículo apropriado para a transm issão do evangelho cristão (veja esp. p.<br />

96 -1 0 1 ). “N ão podem os ter as duas coisas. Se tanto a encarnação quanto o fim são im portantes, as duas<br />

coisas não podem ser o mais im portante. O s apocalípticos se concentram no futuro. O cristianism o reconhece<br />

que a encarnação, com a expiação com o ponto culm inante, é o evento mais im portante de todos<br />

os tem pos” (p. 97). Beker e outros tentam reter as duas coisas, Paulo às vezes usa term inologia em prestada<br />

da apocalíptica, mas o sentido não é o m esmo: “As especulações, visões gerais e conceitos dos apocalípticos<br />

são descartados ou até expressamente rejeitados ( l T s 5.1ss)” (Bornkam m , Paul, p. 199).<br />

Alguns afirmam que, em suas prim eiras cartas, Paulo esperava uma. parousia im inente e havia mudado<br />

de idéia quando escreveu as últimas. S ó que Paulo se converteu no com eço da década de 30. Ele escreveu<br />

1Tessalonicenses por volta de 50 e IC o rín tios por volta de 54 (C . K . Barrett fixa o começo de 54 ou o<br />

fim de 53; A commentary on thefirst epistle to tbe Corintkians. London, 1978, p. 5). N inguém parece ter explicado<br />

por que ele se apegaria a uma parousia im inente por cerca de vinte anos, para abandoná-la nos últimos<br />

três ou quatro. As cartas estão m uito próximas e não favorecem argumentos em favor de uma<br />

mudança, Beker defende que “toda a correspondência de Paulo foi escrita num período de não mais de<br />

seis anos (5 0 -5 6 d .C .)” e que “não há indícios claros de um am adurecim ento de Paulo durante o período<br />

em que escreveu as cartas” (Paul tbe apostle. Edinburgh, 1980, p. 32-33).


(iC o 6.15). Ele vê ação em: "Se a comida serve de escândalo a meu irmão” (lC o 8.13), apesar<br />

de poder ter deixado a frase bem geral: "a um irmão”.<br />

Por isso não devemos exagerar nas conclusões a partir da frase de Paulo "Nós, os<br />

vivos”. Isso não significa necessariamente mais do que "os cristãos que estiverem vivos”.<br />

Outras passagens que empregam o “nós” também devem ser examinadas com cuidado.^0<br />

Devemos ainda observar que Paulo com certeza pensa na possibilidade de morrer, pois<br />

tem “o desejo de partir e estar com Cristo” (Fp 1.23). Sua morte também está implícita em<br />

seu desejo de “alcançar a ressurreição dentre os mortos” (Fp 3.11). Ele reconhece que sua<br />

prisão pode resultar em vida ou morte (Fp 1.20), maneira de falar semelhante a "se vivemos,<br />

[...] se morremos...” (Rm 14.8) e “quer presentes, quer ausentes [no corpo]” (2Co 5.9;<br />

cf. 1.9). Há dificuldades com a primeira parte de 2Coríntios 5, mas é difícil resistir à conclusão<br />

de W . G. Kümmel: “Paulo está levando em conta a possibilidade, a qual ele não<br />

espera, de os cristãos, incluindo ele mesmo, morrerem antes daparousia”/' Sua afirmação:<br />

"Dia após dia, morro!” (IC o 15.31) significa constante perigo de morte e parece mostrar<br />

que ele levava a sério a possibilidade de morrer.<br />

Paulo pode ter esperado que não morreria antes da parousia. Não sei. O que estou<br />

dizendo é que os indícios no Novo Testamento dão mais razão para pensar que ele esperava<br />

estar morto quando seu Senhor viesse. Não há justificativa para o pressuposto comum. Seja<br />

como for, Paulo se concentrava nas tarefas do presente, como suas cartas confirmam amplamente.<br />

É bem possível “edificar para o futuro sem necessariamente saber se ele está próximo<br />

ou remoto”. ’" Para Paulo, o fato da parousia é que é importante, não sua data exata.<br />

Há muitas outras coisas em Paulo e bem mais importantes do que essas. Escrevi pouco<br />

sobre conceitos essenciais como verdade, paz, liberdade, esperança, obediência, alegria e<br />

outros. Este estudo tem o propósito de ser compacto, e não se pode incluir tudo. O que foi<br />

incluído é suficiente para dar uma idéia da profundidade e da amplitude da vida cristã.<br />

Está claro que Paulo tem uma teologia profunda e bem-ponderada. Ela não é transmitida<br />

de forma sistemática, e todos temos dificuldades ao tentar organizá-la em um sistema<br />

coerente. Mas esse problema é nosso, não de Paulo. Ele tinha certeza de que Deus havia<br />

feito algo maravilhoso em Cristo, e essa certeza permeava todo o seu pensamento. Ele<br />

tinha certeza de que Deus levaria o que fizera a um ponto culminante e magnífico no mun-<br />

’°James D . G . D u nn afirma que a expectativa de u m zparou sia im inente “era um aspecto de destaque”<br />

na correspondência aos tessalonicenses. T odavia, ele nega que essa parou sia seja esperada em lC orín tios<br />

15.51-52, Rom anos 13.1 ls ("Próxim a? Sim ; mas quanto?") e Filipetises 1.20ss. Ele não vê urgência em<br />

Colossenses (a única referência é 3.4; cf. 1.13; 2 .1 2 -3 .3 ) e não encontra referência zp arou sia em Efésios<br />

Unity and diversity in the N ew Testament. London, 1977, p. 325, 345-3 4 6 ). N ão posso me identificar com<br />

todas essas posifões, mas valorizo a cautela de D unn.<br />

The theology o f the New Testament. London, 1974, p. 240.<br />

"Lucien Cerfaux, T he Christian in the theology o f st Paul, p. 93.


do futuro, quando todo o mal será destruído e o triunfo de Deus e do bem se manifestará.<br />

Ele tinha certeza de que Deus, em seu amor, suprira todas as necessidades do seu povo nesta<br />

era, e especificamente que enviara seu Espírito Santo para guiá-lo e conduzi-lo no caminho<br />

do amor. O amor de Deus é a grande realidade dominante e desperta o amor no<br />

coração do povo de Deus. Nada é maior do que o amor (IC o 13.13).


Os evangelhos<br />

sinóticos e Atos<br />

I nfrentamos um problema quando passamos para os evangelhos, Se nos concentrarmos<br />

no que Jesus fez e disse, poderemos esquecer que cada evangelista é um<br />

teólogo. Se tentarmos destacar a contribuição de cada um, podemos dar a<br />

impressão de que Jesus não fez nem disse muitas coisas. Seja qual for o procedimento que<br />

adotamos, precisamos ter em mente as desvantagens da nossa escolha e as vantagens da<br />

outra maneira de estudar os evangelhos. Optei por analisar os evangelhos um a um. Isso<br />

nos permite ver não só o que Jesus disse e fez, mas também como cada evangelista entendeu<br />

o que ele disse e fez. Nesta divisão observaremos os três evangelhos sinóticos e incluiremos<br />

Atos, porque faz parte da obra de Lucas em dois volumes. Ao organizar o estudo dessa<br />

É possível superdimensionar as diferenças entre os evangelhos, como na classificação de W illi Marxsen:<br />

“Marcos é quem realmente escreveu um evangelho; Mateus, em seu livro, traz uma coletânea de evangelhos ligados,<br />

em sua etiologia, à vida de Jesus; Lucas escreveu uma vitajesu". “A partir deste ponto de vista temos simplesmente<br />

de constatar que não há evangelhos ‘sinóticos’” (M ark the evangelist. Nashville, 1969, p. 150 n. 106, 212;<br />

itálicos de Marxsen).


110<br />

OS EVANGELHOS SINÓTICOS E ATOS<br />

maneira, estou ciente de que sem Jesus não haveria cristianismo, não haveria evangelho —<br />

e não haveria evangelhos! Todos os escritores do Novo Testamento ensinam que Deus fez<br />

algo especial na vida, morte e ressurreição de Jesus, e esse algo especial é o que de mais<br />

importante jamais aconteceu. Não quero que percamos isso de vista.<br />

Cada evangelista tem sua própria perspectiva teológica, mas não devemos achar que a<br />

teologia de cada um seja a coisa mais importante no evangelho que leva seu nome. Nenhum<br />

deles é um gênio teológico que propõe um conjunto singular de idéias originais para edificação<br />

dos fiéis. Eles estão escrevendo sobre Jesus. É o quejesus disse e o que ele fez que é o objeto<br />

de cada um dos evangelhos, e o esforço de transmitir isso é a razão por que os evangelhos<br />

foram escritos. Quando estudamos cada evangelho, tornam-se legítimas a análise da seleção<br />

de material do autor e a indagação sobre os motivos pelos quais ele chegou a essa seleção e<br />

sobre o que ele quer dizer com o que escreveu. Mas éjesus quem importa, não o evangelista.<br />

Leonhard Goppelt mostra a importância disso em sua obra em dois volumes Theology of the<br />

New Testament. O primeiro volume tem o subtítulo “O ministério dejesus e sua importância<br />

teológica”. Esse é o nosso tema ao estudarmos os evangelhos. Veremos como esse ministério<br />

é retratado por Marcos e pelos outros, mas nosso enfoque está em Jesus.<br />

Outro pressuposto desse estudo é que os evangelhos nos trazem informações confiáveis<br />

sobre Jesus. Alguns críticos destacam tanto o papel da igreja ao manusear a tradição<br />

incorporada nos evangelhos, quejesus é reduzido à insignificância. Não há dúvida de que o<br />

papel desempenhado pela igreja foi importante. Cada evangelista era membro da igreja e<br />

escreveu com as necessidades da igreja em mente. Cada um nos transmitiu, e nem poderia<br />

ser de outra forma, apenas informações que se preservaram na igreja, Muitas coisas da vida<br />

dejesus nos são desconhecidas; claramente o que foi preservado sobreviveu porque era<br />

lembrado pela igreja como algo importante.<br />

A seletividade da igreja, no entanto, é uma coisa; criatividade é outra bem diferente.<br />

Há estudantes que enfatizam tanto o papel desempenhado pelos profetas nos primórdios<br />

da igreja, que os profetas e as pessoas ligadas a eles parecem ter produzido a tradição. Desse<br />

ponto de vista, quando um profeta transmitia o que sentia que Deus estava dizendo a ele e<br />

através dele, talvez iniciasse com uma fórmula como: "Jesus disse”. Eles dizem que para nós<br />

isso parece ser evidência da realidade de um fato, enquanto para eles era prova de inspiração.<br />

Depois, com o trabalho do profeta concluído, a comunidade repassava a tradição e, ao<br />

fazê-lo, a modificava e aumentava. Pode-se até mesmo dizer que sabemos pouco sobre<br />

como Jesus realmente era. Nós o conhecemos pelo que a igreja lembrava dele, através de<br />

um véu santo. A memória, dessa perspectiva, foi em boa parte moldada pela veneração de<br />

Cristo pela igreja, como aquele que devia ser adorado.’<br />

Cf. Rudolf Bultmann: "O Cristo que é pregado não é o Jesus histórico, mas o Cristo da fé e da adoração.<br />

[...] O kerygma de Cristo é lenda cultual, e os evangelhos são lendas cultuais ampliadas" (T he history of the synoptic tradition,<br />

Oxford, 1963, p. 370-371; itálicos de Bultmann). O emprego que esse autor faz do termo “lenda” precisa<br />

ser entendido com cuidado, mas está claro que ele não atribui aos evangelhos um elevado valor histórico.


Proponho a pressuposição de que os evangelhos nos transmitem a essência do que<br />

Jesus disse e fez.3 O papel desempenhado pelos profetas é desconhecido e eu não me entregarei<br />

a especulações. O papel desempenhado pela igreja está envolto na névoa do tempo, e<br />

não vejo como dissipá-la. E claro que estou ciente de que há muitos debates a respeito da<br />

autenticidade das afirmações e feitos atribuídos a Jesus nos quatro evangelhos, e também<br />

sei que os estudiosos desenvolveram uma série de técnicas para lidar com os problemas.<br />

Mesmo assim, eles estão longe de chegar a um entendimento. Ao buscar o objetivo de traçar<br />

uma visão geral da teologia do Novo Testamento canônico, não me proponho entrar<br />

nessas discussões. Isso alongaria o livro demais e, na verdade, produziria outro tipo de<br />

livro. Minha preocupação é com a teologia dos evangelhos conforme os temos, não com os<br />

passos hipotéticos pelos quais chegaram à sua forma presente.<br />

Que esse procedimento não é descabido talvez seja atestado pelo estudo que Morna<br />

D. Hooker fez da relação entre Jesus e Paulo.4 Ela vê uma ligação entre o ensino dejesus<br />

sobre o reino — apesar de haver incertezas: "Estamos lidando com escatologia futura,<br />

escatologia realizada ou talvez escatologia iniciada?”" — e a justificação pela fé, de Paulo<br />

^tanto presente como futura). Os dois conceitos estão ligados em sua perspectiva quanto<br />

ao relacionamento entre Deus e o ser humano, e também em seus aspectos éticos. Existem<br />

diferenças, mas também há continuidade. A Dra. Hooker não se deixa deter indevidamente<br />

por perguntas como: "Que foi exatamente que Jesus ensinou?” Talvez o mesmo valha<br />

para este estudo. Enquanto certamente há questões levantadas pela crítica dos evangelhos,<br />

algumas sem resposta até o momento, também há indicações suficientemente claras da<br />

teologia que eles nos ensinam para prosseguirmos em nossa busca.<br />

Poderíamos tratar apenas dos quatro evangelhos nesta divisão e colocar Atos em<br />

alguma outra parte do livro. Os escritos dejoão, porém, têm uma individualidade peculiar<br />

e são diferentes o suficiente dos evangelhos sinóticos para que estes fiquem juntos e deixemos<br />

o quarto evangelho, junto com os outros textos dejoão, para outra divisão. Quanto a<br />

Atos, não pode haver dúvida de que Lucas e Atos são dois volumes de uma mesma obra, e<br />

pouca coisa poderia favorecer sua separação para fins de estudo.<br />

M artin Hengel escreve: “Dada a tendência tão popular hoje na Alemanha de deixar de lado o Jesus terreno<br />

porque dizem que é impossível entendê-lo e que ele não tem importância teológica, é necessário destacar<br />

o fato óbvio de que, sem a atividade do Jesus terreno, torna-se um absurdo falar do ‘enfoque em Jesus’, e a<br />

igreja fundada pela Páscoa que, por qualquer razão, não se atreve mais a investigar o Jesus terreno, está separada<br />

do seu ponto de partida” (Between Jesus and Paul Philadelphia, 1983, p. 61).<br />

A preface to P aul New York, 1980, p, 32-35.<br />

Ibid., p, 32,


Há algumas controvérsias quanto às datas. Alguns estudiosos acham que Marcos<br />

escreveu depois de Mateus ou de Lucas ou de ambos,6 mas a maioria o considera o mais<br />

antigo dos evangelhos, razão pela qual vou analisá-lo primeiro. Não há muitas coisas que<br />

dependem da nossa escolha, já que a teologia do livro é praticamente a mesma, seja ele o<br />

primeiro, seja o último. Mesmo assim, é provável que ele tenha sido o primeiro e que a produção<br />

do gênero literário dos evangelhos tenha se iniciado com Marcos.<br />

Há algumas discussões sobre exatamente até que ponto esse gênero é novo. Geralmente<br />

os cristãos o consideram uma nova forma literária,7 mas nos últimos anos alguns<br />

estudiosos concluíram que um evangelho é um cipo de biografia.8<br />

Apesar de a defesa dessa posição ser bem feita e mesmo com alguns pontos em seu<br />

favor, as diferenças entre esses dois tipos de literatura são muitas e importantes. Por exemplo,<br />

os evangelhos não nos dizem nada acerca das influências exercidas sobre a formação de<br />

Jesus em seus anos de infância e juventude, e nada, além das narrativas do nascimento e de<br />

um incidente quando ele tinha cerca de doze anos, sobre sua vida anterior ao ministério<br />

público. E quando chegamos ao ministério público, temos apenas uma pequena proporção<br />

do ensino e da vida de Jesus9 e uma quantidade desproporcional de informações sobre sua<br />

morte e ressurreição.<br />

Este é o ponto crítico. Um livro que chega ao seu ponto culminante com uma cena<br />

de julgamento, com a morte do herói como um criminoso e depois com sua ressurreição é<br />

singular. Isso não é biografia. É “evangelho”, a boa notícia do que Deus fez para propiciar<br />

salvação. Um profundo propósito teológico dá forma à narrativa.<br />

Veja, por exemplo, W illiam R. Farmer, The Synoptic problem. Dillsboro, 1976).<br />

N orm an Perrin começa um artigo intitulado "The literary Gattung ‘gospel’ — some observations” (E xpT<br />

82 [1970-71j:4'7) com esta afirmação: “O gênero literário 'evangelho' é uma criação literária específica dos primórdios<br />

do cristianismo. Essa é uma afirmação que quero fazer com confiança por causa de tudo o que podemos<br />

ver nos textos helenistas ou judaicos, dos quais nenhum serve de modelo para o evangelho cristão".<br />

Veja, por exemplo, Clyde W eber Votaw, The Gospels and contemporary biographies in the Greco-Roman world.<br />

Philadelphia, 1970; Charles H . Talbert, W hat is a Gospel? London, 1978, Essa posição é criticada por muitos,<br />

como, por exemplo Ralph P. M artin, M ark: evangelist and theologian. Exeter, 1972, p. 19ss; D , E. Aune, "The<br />

problem o f the genre o f the Gospels”, em R. T . France e David W enham , eds., Gospel perspectives. Sheffield,<br />

1981, 2:9-10.<br />

"Calcula-se que três ou quatro semanas seriam suficientes para tudo o que foi relatado em Marcos, com<br />

exceção de 1.13” (D . E. Nineham, The Gospel o f st M ark. Harmondsworth, 1963, p. 35).


Capítulo 5<br />

O Evangelho de Marcos<br />

^<br />

arcos não perde tempo para nos dizer qual é seu propósito. Suas palavras de<br />

abertura são: “Principio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”.' Foi<br />

í f 4 assim que tudo começou, ele está dizendo, e o que começou ele define como<br />

"evangelho”. A palavra não era empregada como título de um livro (aparentemente isso<br />

não ocorre antes dejustino, em meados do segundo século). São as “boas novas”, sobre<br />

cujo começo Marcos escreve.2 Ele demonstra um interesse incomum pelo evangelho e realmente<br />

usa o termo sete vezes (oito se incluirmos 16.15). Essa freqüência é maior do que em<br />

qualquer outro escritor no Novo Testamento, com exceção de Paulo. Aqui estão as boas<br />

notícias “de Jesus Cristo”, o que pode significar “as boas notícias sobre Jesus Cristo” ou “as<br />

boas notícias que Jesus Cristo pregou". Em Marcos parece haver pouca diferença. Um<br />

pouco adiante ele diz quejesus “pregava o evangelho de Deus” (1.14), afirmação que mostra<br />

que o evangelho se originou em Deus. Marcos está escrevendo sobre algo que o próprio<br />

1 As palavras “Filho de D eus” não se encontram em alguns m anuscritos (ü* 0 2 8 c et a l), e alguns críticos<br />

as om item por essa razão. M as a comprovação é vigorosa e apoiada pelo fato de M arcos ter a expressão<br />

em pontos cruciais em todo o evangelho: o batism o (1.11), a transfiguração (9,7) e a crucificação<br />

'15.3 9 ). A m aioria dos estudiosos se convence por essas considerações e aceita o texto,<br />

C . E . B . C ranfield alista dez m aneiras possíveis de entender as palavras introdutórias (T h eg osp el<br />

according to saint M ark, Cam bridge, 1959, p, 34-35), o que m ostra que o sentido não é óbvio. M as M arcos<br />

gosta do term o “evangelho” e parece m elhor entender que ele está nos dizendo que pretende relatar com o<br />

com eçaram todas essas “boas notícias” concentradas em Jesus.


Deus fez. E é Jesus quem nos conta as boas notícias de Deus. O evangelho não é algo óbvio,<br />

de conhecimento comum das pessoas religiosas. Marcos sabe que as notícias são boas porque<br />

Jesus as trouxe de Deus.<br />

Muito bem, se Deus tem boas notícias para nós, é importante que respondamos de<br />

acordo. A proclamação inicial de Jesus é resumida nestes termos: “O tempo está cumprido,<br />

e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (1.15). O evangelho<br />

chegou na hora certa de Deus (cf. G14.4; Ef. 1.10); não devemos pensar que ele foi produzido<br />

pelas circunstâncias da Palestina do primeiro século ou por alguma ação humana. A<br />

hora é determinada apenas por Deus. As boas notícias dizem respeito ao reino de Deus. E<br />

Deus é soberano. Ele rege a vida das pessoas e declara o que exige delas, O conceito do<br />

governo de Deus é encontrado de um ou outro modo no Antigo Testamento, na literatura<br />

intertestamentária e nos escritos dos rabinos. Muitos dos que falaram sobre ele tinham<br />

uma forte tendência escatológica, com imagens fortes que descreviam o que acontecerá<br />

quando Deus intervier no fim dos tempos para destronar os sistemas terrenos e estabelecer<br />

o seu governo sobre todos. Outros, menos voltados para a escatologia, vêem Deus no<br />

comando quando pessoas religiosas assumem o jugo da lei de Deus e assim aproximam a<br />

época em que o governo de Deus será universal. Jesu.s ensinou que o reino de Deus é interior<br />

e que se tornará visível no futuro, mas não se identificou com especulações anteriores.<br />

Hugh Anderson o expressa nestes termos: “Com Jesus, tudo fica subordinado à única<br />

declaração essencial: O reino de Deus está vindo. E uma declaração direta e despojada, e Marcos<br />

captou essa simplicidade em 1.15”.4<br />

À vista do que Deus fez e fará, Jesus convoca aç pessoas a tomarem uma atitude: elas<br />

devem se arrepender e crer. Arrepender-se é encarar o fato de que fizemos o que não deveríamos<br />

ter feito e não fizemos o que deveríamos ter feito. Arrepender-se significa que<br />

admitimos que não vivemos à altura do melhor que conhecemos. Arrepender-se significa<br />

abandonar todo caminho mau e optar por viver de modo radicalmente novo. Arrependimento<br />

é transformação de todo o coração. Não é deixar de lado um ou dois pecadinhos.<br />

Jesus nos está conclamando a uma reordenação de toda a vida.3<br />

3 O J US ° re>no do céu" está ligado ao “jugo dos m andam entos” (M ishná, Ber. 2.2). V eja também<br />

SBK l:1 7 2 ss.<br />

H ugh A nderson, The gospel o f M ark. London, 1981, p. 85.<br />

Leonhard G oppelt destaca bastante o chamado de Jesus ao arrependim ento e diz, por exemplo:<br />

“Cada exigência de Jesus implicava nada menos que a transform ação da pessoa desde o âmago, isto é, arrependim<br />

ento com pleto” (Theology o f the N ew Testament. G rand Rapids, 1981, 1:118).


Isso se evidencia também na convocação para crer no evangelho.6 Quando Deus<br />

tala, aqueles que ouvem têm de aceitar a palavra divina. Isso pode ter um preço elevado.<br />

Jesus diz mais adiante que é necessário "perder" a vida por amor a ele e ao evangelho se quisermos<br />

salvá-la (8.35). Ele detalha um pouco do que isso significa quando fala em deixar<br />

“casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos” (10.29). Marcos deixará<br />

claro que a "boa notícia” é que Deus agiu de modo decisivo em favor da nossa salvação, e<br />

que é por causa da graça de Deus e não de méritos humanos que ingressamos na vida. Ele,<br />

porém, não está escrevendo sobre graça barata. O evangelho faz exigências (é interessante<br />

que Marcos registra o chamado dos primeiros discípulos imediatamente após o chamado<br />

dejesus ao arrependimento e fé, 1.14-20). Se Deus fez tanto por nós, por que não responderíamos<br />

dando tudo por ele? Não devemos considerar isso uma exigência complementar<br />

feita a líderes ou santos de destaque. Não é uma mensagem para alguns poucos escolhidos.<br />

Jesus diz que este evangelho tem de ser "pregado a todas as nações" (13.10). Ele também faz<br />

referência quase de passagem à sua pregação “em todo o mundo” (14.9). Marcos não está<br />

escrevendo um evangelho pequeno, dedicado a questões litúrgicas menores ou coisas do<br />

gênero. E um evangelho que exige a transformação de toda a vida, e isso não vale apenas<br />

para alguns santos proeminentes; o evangelho é para todo o mundo.<br />

O que Deus está fazendo por intermédio dejesus implica um conflito com o mal.<br />

Imediatamente depois do batismo dejesus, o Espírito o impeliu para o deserto, onde ele<br />

foi tentado por Satanás (1,12-13). Marcos chama a atenção para a iniciativa do Espírito. A<br />

tentação foi obra do maligno, mas Marcos vê que Deus também tem um propósito com<br />

ela. O Espírito está presente nas provações da vida. Marcos também nos diz que os anjos<br />

‘ serviam” a Jesus, e o sentido do verbo parece ser de que eles fizeram isso durante toda a<br />

tentação. Não devemos pensar que nesse momento difícil Jesus ficou sem a ajuda que seu<br />

Pai dá. Mateus e Lucas nos relatam que Jesus jejuou durante os quarenta dias, mas Marcos<br />

não menciona isso. Ele se concentra na tentação; era o conflito com o mal que importava.<br />

Ele mostra um pouco do seu horror falando do deserto, considerado um lugar de demônios<br />

e seres semelhantes (cf. Lc 8.29; 11.24; Sbk iv:515-516), e referindo-se aos animais selvagens<br />

que estavam com Jesus (cf. SI 22.12-21; Is 13.21-22; a ausência deles era sinal da<br />

bênção de Deus, Is 35.9; Ez 34.23-28).<br />

A construção é T T K J T e v e iv £ V TCú e v a y y e X ílú . V incent T aylo r lembra ser este o único lugar no<br />

N ovo Testam ento em que essa construção ocorre Qo 3.15; E f 1,13 não são paralelos genuínos); “a melhor<br />

explicação para ela é tradução para o grego”. Ele a traduz: “Creiam nas boas notícias” ( The Gospel according to<br />

M ark. London, 1959, p. 167). BA G D cita H ofm ann em favor de “com base em”, W ohlenberg em favor<br />

de “bei” e Deissm ann e M oulton para “na esfera de” (favorecido também por N igel T u rner, A gram mar o f<br />

Xew Testament Greek, ed. J, H , M oulton, iii. Edinburgh, 1963, p. 237). Bultm ann a considera uma “variante<br />

Lingüística" de e i ç (T D N T 6:211, n. 271).


Marcos não registra nenhum desfecho triunfante da tentação — para ele a oposição<br />

do mal não chegou ao fim.7 Satanás não recebe destaque neste evangelho, porém Marcos<br />

ressalta o conflito contínuo dejesus com o mal: onze vezes ele fala dos “espíritos imundos”<br />

que enfrentavam Jesus (Mateus contém o termo três vezes, e Lucas, cinco). Esses espíritos<br />

podiam reconhecer Jesus como o Santo de Deus (1.24) ou o Filho de Deus (3.11), mas eles<br />

sempre se opunham a ele, "Que tenho eu contigo”, disse um deles a Jesus, acrescentando:<br />

“Conjuro-te por Deus que não me atormentes” (5.7). Igualmente pode-se dizer que a oposição<br />

vem de “demónios” (p. ex. 1.34, 39); o mal pode assumir muitas formas. Marcos,<br />

porém, transmite sempre o pensamento de quejesus triunfa. Ele sempre expulsa os espíritos.<br />

As boas notícias incluem a derrota presente e definitiva do mal.<br />

Não devemos negligenciar o modo como Marcos retrata o ser discípulo. Os rabinos<br />

tinham discípulos, mas não os escolhiam; quem queria ser discípulo escolhia um mestre e<br />

se associava a ele. Fazia isso para aprender e, talvez, com o tempo, para até superar o mestre.<br />

Em contraste com isso, Jesus chamou seus discípulos; houve até uma ocasião em que<br />

ele mandou os que queriam ser discípulos trabalharem em outro lugar (5.18-19). Os rabinos<br />

discutiam com seus discípulos, mas isso não acontecia com Jesus e os seus. E, acima de<br />

tudo, ele era Senhor; ser discípulos de Jesus significava abandonar tudo para segui-lo<br />

(1.16-20; 2.14; 10.28-30; 13.12-13). Jesus não era apenas mais um rabino; ele era único, e<br />

ser seu discípulo tinha um sabor todo próprio.<br />

O evangelho se concentra em Jesus e, ao pintar seu Mestre, Marcos enfatiza duas<br />

coisas: Jesus era totalmente humano (demonstrou limitações humanas e foi tratado como<br />

homem) e era o poderoso Filho de Deus (operou milagres e tinha conhecimento sobrenatural).<br />

Alguns estudos do evangelho de Marcos destacam tanto um desses aspectos da pessoa<br />

dejesus que desprezam o outro. Ambos são importantes, e perdemos algo do que este<br />

evangelho está ensinando se não virmos isso. E essencial para a compreensão do que Marcos<br />

está dizendo que vejamos Jesus como um verdadeiro homem — como o poderoso<br />

Filho de Deus que se tornou homem.<br />

E rnest Best, porém, argum enta a partir de 3.27 que M arcos pretende que vejamos q u ejesu s derrotou<br />

totalm ente Satanás e a tentação; o restante não passa de um a operação de últim os retoques (The<br />

temptation and the Passion. Cam bridge, 1965, p. 15). E m contraste com isso, Jam es M , R obinson vê o conflito<br />

com o mal continuando por todo o evangelho, especialm ente nos exorcism os (T h e problem o f history<br />

in M ark. London, 1957, p. 35), Ele vê a vitória decisiva na ressurreição (p. 53), apesar de o conflito continuar<br />

na história da igreja (p. 60, 67). U lrich W , M auser é outro que vê o conflito continuando por todo o<br />

m inistério d ejesu s: “T o d o o evangelho é uma explanação de com o Jesus foi tentado” (Christ in the wilderness.<br />

London, 1963, p. 100).


^esus, o homem<br />

No segundo evangelho, não pode haver dúvidas quanto à natureza humana a que<br />

Jesus se subordinou. Vemos isso, por exemplo, no relato de sua recepção em Nazaré (6.1-6).<br />

Os moradores do lugar, perplexos com sua sabedoria e com as "maravilhas” (dynameis) que<br />

fazia, perguntaram: “Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José, Judas e<br />

Simão? E não vivem aqui entre nós suas irmãs?” (v, 3). Temos dificuldades aqui; alguns<br />

manuscritos contêm “o filho do carpinteiro", e há o problema da razão por que Jesus é chamado<br />

“filho de Maria”. No entanto, como diz Anderson, “o ponto central da questão no versículo<br />

3 é mostrar que os que perguntam não conseguem crer por causa da ligação totalmente<br />

kumana de Jesus com uma família comum”? Marcos diz que Jesus não pôde fazer nenhum milagre<br />

ali a não ser curar alguns doentes, e o relato termina com a surpresa de Jesus diante da<br />

incredulidade dos seus conterrâneos (v. 6). Este é um Jesus muito humano, que conhece a<br />

rejeição como, de alguma forma, todos os membros da raça humana também conhecem.<br />

Assim, também, devemos observar a reação de Jesus quando os fariseus lhe pediram<br />

um sinal do céu (8.11-12). Duas coisas são importantes: primeiro a recusa determinada<br />

(“A esta geração não se lhe dará sinal algum”); Jesus não queria parecer um milagreiro divino.<br />

Em segundo lugar vem o fato de que Jesus “arrancou do íntimo do seu espírito um suspiro”,<br />

uma reação muito humana. A atitude dos discípulos em relação a Jesus também não<br />

deve ser esquecida, por exemplo, quando o repreendem, aterrorizados: “Mestre, não te<br />

importa que pereçamos?” (4.38). Falar com ele nesses termos certamente é tratá-lo como<br />

um ser humano. E Marcos registra algumas emoções muito humanas de Jesus, emoções<br />

que incluem indignação (10.14), ira e tristeza (3.5). Perto do fim do seu evangelho, Marcos<br />

diz que Jesus não sabia quando ocorreria a parousia (13.32).<br />

O mais importante de tudo, porém, é a ênfase que ele dá à morte de Jesus. Por um<br />

lado temos as profecias de Jesus: ele falou da sua rejeição nas mãos dos anciãos, dos principais<br />

sacerdotes e dos escribas, e predisse a sua morte (8.31; 9.31; 10.33-34, 45). E Marcos<br />

dedica mais ou menos um quinto do seu evangelho à morte e ressurreição de Cristo. Ele<br />

registra o grito de desespero: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (15.34).<br />

Há mistérios nessa exclamação, mas ela certamente aponta para um Jesus muito humano.<br />

Talvez devamos incluir aqui também os verbos muito estranhos usados em referência a<br />

Jesus no Getsêmani (14.33), pois eles apontam para as limitações humanas.9 As palavras<br />

de Jesus mostram que sua morte e ressurreição ocupavam o centro do seu pensamento, e a<br />

A nderson, T he Gospel o jM a rk, p. 159 (itálicos de A nderson).<br />

9A exp ressão éèK 9a/l/3£lcr9aL K a i â Ô T jjJ.O P e L P ', K arl B arth entende que èK Ô aiJLfieíaO aL significa<br />

um terror que tom ou conta dele diante do acontecim ento horrível que o esperava", e a S rjllO P eiP , "um


estrutura de todo o livro revela que o mesmo aconteceu com Marcos. Náo entenderemos o<br />

que Marcos está fazendo enquanto não virmos que ele está escrevendo principalmente<br />

sobre a cruz. Em certo sentido, ele é um teólogo da cruz. O centro de gravidade da sua teologia<br />

é a cruz.<br />

A cruz também era o centro da teologia de Paulo, como vimos.10 Paulo, porém,<br />

dedica muito pouco espaço à vida terrena de Jesus (tão pouco que alguns críticos pensam<br />

que ele tinha apenas informações bem escassas sobre ela).'' Em contraste com esse quadro,<br />

Marcos fundamenta a cruz na história.'- Ele diz bastante sobre o que Jesus fez, e seu evangelho<br />

avança em passos rápidos. Sua narrativa é ágil, e os relatos tendem a ser mais completos<br />

e mais realistas do que seus equivalentes em Mateus ou Lucas, apesar de o seu<br />

evangelho ser bem mais curto que os outros.<br />

Marcos omite a maior parte do ensino de Jesus (os capítulos 4 e 13 são os únicos<br />

segmentos de ensino consideráveis em todo o evangelho). Mas ele enfatiza que Jesus era<br />

um mestre: ele usa o termo “mestre” 12 vezes (o mesmo número de Mateus, que é bem mais<br />

longo), e o verbo "ensinar”, 17 vezes (mais do que qualquer outro livro no Novo Testamento<br />

com exceção de Lucas, que também tem 17 ocorrências; Mateus usa o verbo apenas 14<br />

vezes). Ele parece não querer dar a impressão de que cristianismo é seguir uma lista de preceitos<br />

dada por um mestre com autoridade, sem questionar a autoridade do ensinamento.<br />

Na literatura rabínica, a ênfase está na importância do que é ensinado, não na importância<br />

do rabino que ensina. Para Marcos, o mestre é de suprema importância. Quem Jesus era e<br />

o que ele fez é o que realmente lhe importa.<br />

Vários estudiosos especulam, afirmando que alguns dos primeiros cristãos aceitaram<br />

o ensino de Paulo, mas, destacando que o apóstolo fala pouco da vida de Jesus, pensavam<br />

que Cristo era um ser celestial com pouco ou nenhum contato com a realidade terrena<br />

(como alguns “salvadores” nas religiões helenistas da época). Foi obra de Marcos tomar os<br />

relatos da vida e do ensino de Jesus que circulavam na igreja antiga e uni-los à narrativa da<br />

pressentimento do qual não havia como fugir, em que não teria nem ajuda nem consolo” (Churck dogmatics<br />

4:1. Edinburgh, 1956, p. 265).<br />

Ralph P. M artin expõe a ligação com Paulo: “M arcos aparece com o o teólogo paulino da cruz"<br />

(M ark: evangelíst and theologian. Exeter, 1972, p, 13).<br />

11 Paulo, na verdade, diz mais sobre a vida terrena de Jesus do que via de regra se percebe (veja p.<br />

50-51). M as é inegável que, em com paração com os evangelhos, ele não diz m uita coisa.<br />

É interessante a afirmação de E rnst Käsem ann: “A vida histórica de Jesus não é mais o centro da<br />

atenção de M arcos. Ela serve apenas de palco em que o hom em -D eus enfrenta suas batalhas contra seus<br />

inimigos. A história de Jesus foi mitificada" (Essays on N ew Testam ent tbemes. London, 1964, p. 22). Isso<br />

certam ente é deixar de enxergar uma das principais ênfases de M arcos.


paixão, para mostrar que a vida terrena de Jesus é importante em si e parte integrante do<br />

processo pelo qual Deus interveio na vida humana para trazer salvação aos pecadores.1’<br />

Não precisamos aceitar a posição extrema para compreender que estamos diante de<br />

uma verdade valiosa. Marcos destacou a importância da vida terrena de Jesus de uma forma<br />

que não transparece nos escritos de Paulo, e por isso toda a igreja lhe tem sido grata<br />

através dos séculos.<br />

I<br />

0 ilho de tyeus<br />

Marcos começa seu evangelho com uma referência a Jesus Cristo como o “Filho de<br />

Deus” (1.1), e quando chega ao ponto culminante do seu escrito, ele nos relata que o centurião<br />

ao pé da cruz disse, no momento da morte de Jesus: “Verdadeiramente, este homem<br />

era o Filho de Deus” (15.39). “O Filho de Deus” é, portanto, o primeiro e o último título<br />

aplicado a Jesus neste evangelho. Como vimos na divisão sobre Paulo, a expressão pode<br />

significar tanto muito quanto pouco. Ela pode ser relacionada aos cristãos como membros<br />

da família celestial, apesar de Marcos não empregá-la nesse sentido (mas cf. 2.5). O centuriào<br />

na cruz pode ter tido algo assim em mente, mas Philip H. Bligh levanta um argumento<br />

forte de que ele tinha em mente que "este homem, e não César, é o Filho de Deus”.'4<br />

Marcos com certeza registrou as palavras porque viu o sentido mais amplo, O termo<br />

pode apontar para alguém que tem um relacionamento ímpar com Deus. Quando<br />

Marcos emprega a expressão para referir-se a Jesus, restam poucas dúvidas de que lhe atribui<br />

todo o sentido que ela possa ter.L<br />

W illi M arxsen ressalta esse ponto. "O evangelho de M arcos é a confluência de duas correntes que<br />

perpassavam a pregação cristã em seus prim órdios, U m a é conceitual-teológica, representada, por exem ­<br />

plo, por Paulo. A outra é querigmática-visual, usando o chamado m aterial da tradição sinótica. M arcos<br />

une as duas correntes. Essa fusão é obra de M arcos, e nunca é demais valorizá-la” (M ark the evangdist.<br />

Xashville, 1969, p. 1 47-148). Essa colocação certam ente é válida. E ntretanto, não posso aceitar outros<br />

aspectos da posição de M arxsen — por exemplo, sua idéia de que, neste evangelho, “a im portância da<br />

G aliléia não é, em prim eiro lugar, histórica, rrías teológica, com o o local d a parousia im inente” (p, 92).<br />

14E x p T 80 [1968-69] :53. A B J traduz: "Este hom em era filho de Deus", mas outras versões contêm "o<br />

Filho...”, Se valer aqui a regra de Colwell, de que substantivos definidos que precedem verbos norm almente<br />

vêm sem o artigo (JB L 52 [1 9 5 3 j:1 2 -2 1 ), a tradução correta é "o Filho”, não “um Filho”. N igel<br />

T u rn er classifica essa passagem entre aquelas em que o predicado é definido (A gram m ar ofN etv Testa-<br />

"■-íiit Greek, p, 183). Podem os entender que o grego está dizendo "o Filho de D eu s”.<br />

C f. W illiam L. Lane: "[M arcos] claram ente pretendia que seus leitores reconhecessem na exclam a­<br />

ção uma genuína confissão cristã, na consciência de que essas palavras são verdadeiras num sentido mais<br />

elevado do que o percebido pelo centurião” ( T he Gospel accorâing to M ark, G rand Rapids, 1974, p, 576).


Apenas duas vezes ele registra uma voz divina, e em ambas Deus chama a Jesus de<br />

“Filho”. Marcos está dizendo que Deus nos mostra como devemos ver a Jesus. Em seu<br />

batismo, a “voz dos céus” (obviamente a voz de Deus) diz: “T u és o meu Filho amado, em ti<br />

me comprazo” (1.11). Não se deve entender isso como uma manifestação honrosa prestada<br />

a alguém que nada mais é do que um bom homem; o “Filho amado” de Deus é alguém<br />

especial. Vemos isso de novo no monte da Transfiguração, quando, da nuvem, a voz afirma:<br />

“Este é o meu Filho amado; a ele ouvi” (9.7). Por um momento, três discípulos escolhidos<br />

— Pedro, Tiago e João — tiveram um vislumbre da glória do Filho de Deus, uma<br />

glória não manifesta em sua vida terrena, mas mesmo assim real. Marcos não nos deixa<br />

dúvidas quanto a isso.<br />

Marcos registra essa verdade de outro ângulo, quando diz a seus leitores que os espíritos<br />

maus reconheceram Jesus. Quando o viam, eles “prostravam-se diante dele e exclamavam:<br />

T u és o Filho de Deus!" (3.11; o tempo dos verbos indicam ação contínua). Um caso<br />

especial é o do endemoninhado geraseno, que se dirigiu ao Senhor como “Jesus, Filho do<br />

Deus Altíssimo” (5.7). Ele reconheceu o poder dejesus, pois rejeitou qualquer ligação com<br />

Jesus e sabia que Jesus podia tratá-lo com severidade. Jesus tinha o poder para fazê-lo.<br />

Os discípulos não usam esse título em Marcos (nem em Lucas; em Mateus,<br />

eventualmente). Jesus também não o usa, apesar de uma vez dizer que é “o Filho”, dizendo<br />

que ninguém sabe a época da parousia, "nem o Filho, senão o Pai...” (13.32). O artigo “o”<br />

coloca-o num relacionamento especial com o Pai. Também quando o sumo sacerdote<br />

interrogou a Jesus e perguntou: “És tu o Cristo, o Filho do Deus bendito?”, ele respondeu:<br />

"Eu sou...” (14.61-62).16 Claramente ele se via num relacionamento com o Pai que ninguém<br />

mais tinha. Essa é uma posição característica dos cristãos; as fontes judaicas não usam<br />

"Filho de Deus” quando falam do Messias.17<br />

16E m vez de ê y ú J e lf J .1, alguns m anuscritos contêm O V e i n a ç OTL e y c ó e l j l L ( 0 £13 565 700 O r).<br />

T ay lo r aceita esse texto com base em seu testem unho, porque tam bém explicaria o texto de M ateus e<br />

Lucas e porque ilustra o tom de reserva quanto à identidade do M essias, tão freqüente em M arcos ( The<br />

Gospel according to st. M ark, p. 568). O testem unho de e y ú ) £ 1 / 1 1 , porém , é mais forte, e o outro texto pode<br />

ter surgido em conform idade com o texto de M ateus. Lane aceita a versão mais curta e com enta: "O S i­<br />

nédrio entenderia as palavras d ejesu s com o uma reivindicação não idônea de dignidade messiânica. A<br />

profecia e a clara resposta ‘E u sou’ apóiam -se m utuam ente” ( T he Gospel according to M ark, p. 537).<br />

V e ja J. D . Kingsbury, The christology o f M a rk’s gospel. Philadelphia, 1983, p. 36-37; ele observa uma<br />

possível exceção em alguns textos de Q um ran. D . E . N ineham com enta sobre esse evangelho: “Qualquer<br />

um que leia o evangelho de ponta a ponta reconhece que é com o Filho de Deus e não com o m estre ou<br />

profeta que M arcos apresenta nosso Senhor" (T h e gospel o f st. M ark. H arm ondsw orth, 1963, p. 48).


• f " «; . - •; V. ... 7 .<br />

0 cFilho do ^omem<br />

Nos quatro evangelhos, Jesus sempre se refere a si mesmo como o “Filho do<br />

Homem”. A expressão ocorre mais de 80 vezes e, com apenas duas exceções, é usada<br />

somente pelo próprio Jesus, A única exceção nos evangelhos está em João 12.34; a multidão,<br />

depois que Jesus usou a expressão, repetiu a frase quando perguntou: “Quem é este<br />

Filho do Homem?” A única passagem em que outra pessoa a usa é Atos 7.56, onde Estê-<br />

vão, antes de morrer, viu o céu aberto e o Filho do Homem em pé à direita de Deus. A<br />

expressão é encontrada nos quatro evangelhos e em todas as fontes que os críticos discer-<br />

nem. Não parece haver dúvidas de que Jesus a usou, e com grande freqüência.<br />

O que ela significa não é fácil de determinar. Não é uma expressão natural em grego,<br />

mas uma tradução literal do aramaico bar-nasha, que normalmente seria entendido como<br />

“homem”. Há algumas passagens em que esse sentido é possível, mas não muitas. Jesus está<br />

claramente se referindo a si mesmo quando usa o termo. Muitos livros já foram escritos<br />

sobre o assunto, e não se pode dizer que haja algum significado que se aproxime do consen-<br />

so.18 Muitos acham que ele se originou da cena descrita em Daniel 7, em que “um como o<br />

Filho do Homem” veio nas nuvens, “dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até<br />

ele”. A essa personagem importante “foi dado domínio, e glória, e o reino, para que os<br />

povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno,<br />

que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (Dn 7.13-14). O Filho do Homem<br />

aqui tem um relacionamento estreito com Deus, e sua soberania sobre a raça humana é<br />

nítida. Não há muitas indicações que levem a ver essa personagem como o Messias, e as que<br />

existem são duvidosas.19<br />

18 E m um estudo com o este não é possível alistar toda a literatura. M as talvez devamos fazer m enção da<br />

avaliação que M atthew Black faz das opiniões de Barnabas Lindars (que nega que "Filho do H om em "<br />

seja um título e reconhece apenas nove ocorrências autênticas do term o nas declarações de Jesus) em<br />

E x p T 95 (1 9 8 3 -8 4 ):2 0 0 -2 0 6 . Em relação a M arcos há o estudo im portante de M orna D . H ooker, T he son<br />

o) man in M ark. London, 1967.<br />

19 A expressão é usada nos “Sím iles de Enoque” (cap. 37-71 de lE n o q u e), mas a data e a im portância<br />

disso são discutíveis. C . H . D odd não tem certeza do sentido exato das três expressões etíopes traduzidas<br />

por "Filho do H om em ", nem se elas se referem ao “Eleito" ou aos “eleitos” em geral, nem se os símiles<br />

são anteriores ou posteriores a C risto, Ele conclui: “O s símiles são, em todo caso, uma autoridade isolada<br />

e provavelmente excêntrica para a associação do título ‘Filho do H om em ’ com um 'M essias apocalíptico’,<br />

e não podem ser usados com confiança para elucidar o N ovo T estam ento” (According to the Scriptures.<br />

London, 1957, p. 116-1 1 7 ), E . Isaac registra o consenso dos “m em bros da C onferência SN TS de Pseudepígrafes”,<br />

de que “os símiles eram judaicos e datados do prim eiro século d.C." (Jam es H . Charlesw orth,<br />

ed., T he Old Testam ent pseudepigrapha. N ew Y ork, 1983, 1:7). E ntretanto, Isaac considera lE n o q u e “in-


Parece que Jesus usou a expressão para destacar certos aspectos da obra que veio<br />

realizar. Estudei o termo em outro livro, e talvez seja suficiente repetir minha conclusãof0<br />

“Por que, então, Jesus adotou esse termo? Podemos responder, em primeiro lugar, porque<br />

era um termo raro e sem associações nacionalistas, Não levaria a complicações políticas. ‘O<br />

público [...] veria no termo tanto quanto já via em Jesus, e não mais que isso’.*1Em segundo<br />

lugar, porque dava um tom de divindade. J. P. Hickinbotham chega ao ponto de dizer: 'O<br />

Filho do Homem é um título de divindade e não de humanidade’." Em terceiro lugar, por<br />

causa das suas implicações sociais. O Filho do Homem implica o povo redimido de Deus.<br />

Em quarto lugar, porque tinha um tom de humanidade. Ele tomou sobre si a nossa<br />

fraqueza”.<br />

Do modo como Marcos usa o termo, podemos discernir três grupos de declarações.<br />

O primeiro fala da autoridade dejesus, como o Filho do Homem, em seu ministério público.<br />

Nessas declarações, Jesus falou com autoridade em áreas em que seus ouvintes não<br />

esperavam que ele dissesse o que disse. Por exemplo, ele disse ao paralítico que do teto descera<br />

e se colocara diante dele: “Teus pecados estão perdoados”. Quando os presentes disseram<br />

que isso era blasfêmia, Jesus respondeu: “O Filho do Homem tem sobre a terra<br />

autoridade para perdoar pecados”, e depois operou o milagre para provar isso (Mc 2.5,<br />

10-12). O Filho do Homem estava exercendo uma função que todos reconheciam como<br />

divina, e esse era, é claro, o motivo da objeção. Em outra ocasião, Jesus declarou que “O<br />

Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,28). O sábado foi instituído por<br />

Deus (Gn 2.3; Êx 20.8); reivindicar autoridade sobre uma instituição divina era realmente<br />

uma reivindicação de enorme peso.<br />

O segundo grupo de passagens olha para o fim desta era e vê o Filho do Homem<br />

como uma personagem com autoridade nessa ocasião. Sobre aquele que se envergonha de<br />

Cristo e das suas palavras nesta geração, Jesus disse: "O Filho do Homem se envergonhará<br />

dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos" (8.38). Jesus também diz que o<br />

Filho do Homem “virá nas nuvens, com grande poder e grande glória” (13.26) e, em resposta<br />

a uma pergunta do sumo sacerdote: “Vereis o Filho do Homem assentado à direita<br />

do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu” (14.62), frase que o sumo sacerdote<br />

considerou blasfêmia e que causou imediatamente a condenação dejesus pelo Sinédrio (v.<br />

63-64). Essas passagens expressam a certeza de que, no devido tempo, Jesus seria reconhecido<br />

no mundo celestial pelo que ele é, mesmo que seja rejeitado por líderes aqui na terra.<br />

fluente sobre a formação das doutrinas do Novo Testam ento a respeito da natureza do Messias, o Filho do<br />

Hom em...” (p. 10).<br />

* T he Lord from heaven, Dow ners Grove, 1974, p. 28.<br />

Reginald H . Fuller, T he mission and achievement o f Jesus. London, 1954, p. 106,<br />

22Chmn 58 (1 9 4 3 -4 4 ):5 4 .


Não pode haver dúvidas de que as passagens nesses dois grupos atribuem a Jesus o<br />

lugar mais elevado possível. Mas há um terceiro grupo, e o fascinante na forma como Marcos<br />

registra o uso do título é que nesse grupo, que é o maior (com 9 das 14 ocorrências em<br />

Marcos), ele se refere a inferioridade e sofrimento. Por exemplo, logo depois de Pedro ter<br />

feito a declaração memorável: “Tu és o Cristo”, Jesus começou a ensinar aos discípulos que<br />

“era necessário que o Filho do Homem sofresse muitas coisas..." (8,29-31). Aqui se chega a<br />

um momento decisivo.-3 Até aqui Marcos teve muito a dizer sobre os milagres dejesus. Há<br />

relatos de pelo menos quinze deles e, além disso, há passagens que dizem em termos gerais<br />

que ele curava pessoas. Desse ponto em diante, porém, há poucos registros (o jovem possesso,<br />

9.14-27; o cego Bartimeu, 10.46-52; a figueira, 11.13-14, 20-21). Até aqui, Marcos<br />

usa o título “o Filho do Homem” duas vezes; desse ponto em diante, porém, ele o emprega<br />

12 vezes. De grande importância é o fato de que aqui tem início uma ênfase cada vez maior<br />

na instrução dos discípulos, especificamente no ensino a respeito da morte dejesus.<br />

Pouco depois da transfiguração encontramos Jesus ensinando os discípulos: “O<br />

Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e o matarão” (9.31). Ele “será entregue<br />

aos principais sacerdotes e aos escribas; condená-lo-ão à morte” (10.33). Em seguida,<br />

esta declaração maravilhosa: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir<br />

e dar a sua vida em resgate por muitos” (10.45). A morte do Filho do Homem não é<br />

uma tragédia, mas um exemplo de serviço em que ele liberta seu povo da escravidão em que<br />

o pecado o encerrara. O resgate é o preço pago para libertar da escravidão ou da sentença<br />

de morte; essa frase nos emudece diante do pensamento do preço que Cristo pagou e da<br />

liberdade para a qual ele nos comprou.<br />

Tudo isso está em plena harmonia com a vontade de Deus, pois, nos aposentos da<br />

última ceia, Jesus garantiu aos discípulos que “o Filho do Homem vai, como está escrito a<br />

seu respeito”. A profecia mostrava que esse era o plano de Deus. Isso não quer dizer que<br />

Judas, o traidor, não tinha culpa, pois Jesus continua: “Mas ai daquele por intermédio de<br />

quem o Filho do Homem está sendo traído!” (14.21). Depois, no jardim do Getsêmani,<br />

quando Jesus encontra os discípulos dormindo pela terceira vez, ele diz: “Chegou a hora; o<br />

Filho do Homem está sendo entregue nas mãos dos pecadores” (14.41).<br />

’ O scar Cullm ann fala do “significado único” da confissão de Pedro, em que “aqui, pela.prim eira vez, os<br />

discípulos falam com Jesus a respeito do que ele é aos olhos deles. A qui vemos que a distribuição do material,<br />

que, claro, é obra do evangelista, pode se tornar im portante para dar significado à narrativa individual.<br />

E, por assim dizer, um com entário por parte do evangelista” (Peter: disciple, apostle, martyr. London,<br />

1962, p. 180). Alguns estudiosos argumentam que Cesaréia de Filipe na verdade não m arca um ponto<br />

crítico no m inistério d e je su s. M as não pode haver dúvidas de que M arcos escreve com o se ela tivesse<br />

grande im portância. Para ele esse foi um ponto alto.


Tudo isso deixa claro que o uso que Marcos faz da expressão revela duas coisas: a<br />

majestade de Jesus e sua posição inferior.24 A genialidade deste evangelho está em unir e frisar<br />

essas duas coisas. Jesus é supremo acima de todos, e as declarações acerca do Filho do<br />

Homem deixam isso nítido. Mas sua grandeza não consiste em poder, majestade e coisas<br />

assim; ela é vista em sua morte para salvar pecadores. Essa é a grande verdade que está no<br />

centro deste evangelho e no coração do evangelho em si.<br />

0 Cristo<br />

Conforme vimos quando estudamos Paulo, “Cristo” significa “ungido”, e o termo<br />

era relacionado com aquele que Deus enviaria no tempo devido, para ser um libertador<br />

num sentido muito especial. O termo se tornou parte do vocabulário cristão (junto com<br />

seu equivalente hebraico, “Messias”) de tal forma que poderíamos esperar que ele fosse usado<br />

com freqüência para Jesus durante a sua vida.<br />

Isso, porém, não foi o que aconteceu. Marcos registra o termo apenas sete vezes em<br />

todo o seu evangelho, Podemos imaginar que Jesus não incentivou o emprego do termo<br />

durante a sua vida por causa do modo como ele era usado na Palestina do seu tempo. Ele não<br />

era o Messias no sentido geralmente compreendido pelo povo, e usar o termo iria, obviamente,<br />

causar mal-entendidos,25 Só que ele era o Cristo, o Messias, e isso fica claro nas primeiras<br />

palavras do evangelho de Marcos: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo” (1.1). Todo o<br />

livro trata das boas notícias de Jesus, e ele é verdadeiramente o Messias de Deus.<br />

Logo no começo, Marcos relata que Jesus expulsou demônios de pessoas que<br />

sofriam e acrescenta a informação interessante de que “não lhes permitiu que falassem,<br />

porque sabiam quem ele era” (1.34). Alguns manuscritos acrescentam: “que ele era o Cristo”;<br />

se esse acréscimo é autêntico, temos uma oitava ocorrência do termo. Quer a aceitemos,<br />

quer não, o sentido é esse. Havia algo em Jesus conhecido pelos seres do mundo<br />

espiritual, apesar de maus, uma realidade não visível aos moradores da Galiléia. Se tives­<br />

4M orna D . H o ok er destaca a im portância da autoridade no uso que M arcos faz do term o: “T odas são<br />

expressões dessa autoridade, seja ela exercida agora, o que é negado e assim leva ao sofrim ento, seja ela reconhecida<br />

e comprovada no futuro” ( T he son o f man in M ark. London, 1967, p. 180), E la vê no uso q u ejesus<br />

faz do term o sua certeza da confirm ação futura, enquanto para a igreja antiga a comprovação já<br />

ocorrera na ressurreição e exaltação. P or isso, o term o é com um nos discursos de Jesus e quase totalm<br />

ente ausente fora dos evangelhos (p. 1 90-191),<br />

25 O scar Cullm ann pensa que, “de acordo com a tradição do evangelho, Jesus via Satanás em ação no<br />

conceito de M essias da sua época” ( T he christology o f the N ew Testament, London, 1959, p. 124). Ele vê<br />

nisso uma provável explicação para o “segredo m essiânico” de W red e (veja abaixo), e afirma que Jesus<br />

“dem onstrou reservas extremas quanto ao título M essias” (p. 126),


sem ouvido os demônios declararem quem ele realmente era, haveria uma interpretação<br />

errada. Era melhor que não o soubessem.<br />

Wilhelm Wrede destacou esse “segredo messiânico”, e desde então o tema tem sido<br />

debatido.26 Os endemoninhados reconheciam Jesus, mas receberam a ordem de manter<br />

silêncio (1.25, 34; 3.12; cf. 5.6-7). Ele muitas vezes não incentivou que as pessoas relatassem<br />

as grandes coisas que havia feito por elas (p. ex. 1.44; 5.43; 7.36), e há ocasiões em que<br />

se retirou da presença do público, talvez para se esconder (1.35-38; 7.24; 9.30). Jesus concedeu<br />

aos discípulos instrução especial, em particular (4.10-13; 7.17-23; 9.28-29; 10.32-34;<br />

13.3ss). Wrede entendeu o “segredo" como um padrão imposto ao material por Marcos.<br />

Ele afirmou que Jesus nunca alegou ser o Messias, que a igreja posterior à Páscoa cria que<br />

ele o era, e que Marcos justificou a igreja dizendo que Jesus realmente afirmou ser o Messias,<br />

mas manteve isso em segredo.<br />

Bem poucos aceitam a posição de Wrede hoje em dia, mas a maioria a considera o<br />

ponto de partida para os debates em torno do tema do segredo. O assunto é complicado<br />

pelo fato de que, apesar de às vezes Jesus exigir segredo, houve ocasiões em que ele preferiu<br />

o contrário. Por exemplo, ele ordenou ao endemoninhado geraseno curado: “Vai para a tua<br />

casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez" (5.19). Também a cura de um<br />

paralítico foi feita publicamente, pois Jesus começou o milagre com as palavras: “Para que<br />

saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados..."<br />

(2.10). Não é fácil entender como milagres como a multiplicação dos pães poderiam não<br />

ser algo público. Marcos está descrevendo um ministério de Jesus em que ele "não pôde<br />

ocultar-se” (7.24). H . Rãisãnen fala da “tensão que existe no evangelho entre segredo e visibilidade”,“7<br />

e ele certamente aponta para uma realidade.<br />

Devemos também ter em mente que o tema do segredo aparece em outras ocasiões e<br />

não só em exorcismos e curas. Por exemplo, quando Pedro disse que Jesus era o Cristo,<br />

‘advertiu-o Jesus de que a ninguém dissesse tal coisa a seu respeito” (8.30). Ao passar pela<br />

Galiléia, Jesus não queria que ninguém soubesse disso (9.30), E Marcos deixa claro que<br />

mesmo os discípulos muitas vezes não entendiam o sentido do ensino de Jesus (p. ex.<br />

8.17-20, 33).<br />

Evidentemente, o uso que Marcos faz do “segredo" é complexo. A posição de<br />

Wrede tem recebido críticas de várias direções, mas talvez a mais importante seja a de<br />

Vincent Taylor: "Longe de ser um artifício editorial imposto à tradição, ele faz parte do<br />

'T s s o é ilustrado pelo fato de que C hristopher T u ck ett reuniu nove artigos recentes escritos sobre o<br />

assunto, cobrindo um amplo espectro de opiniões, e preparou uma introdução abrangente, em que esboça<br />

muitas contribuições para o tem a ( The messianic secret. London e Philadelphia, 1983),<br />

" T u ck ett, T he messianic secret, p. 138.


próprio material".“8 Ele vê "a solução para o ‘segredo messiânico’” na “percepção que o próprio<br />

Jesus tinha da sua tarefa messiânica. Antes de seu destino se cumprir, e diante de pessoas<br />

sem discernimento, ele não podia nem negar nem admitir que era o Messias”.29 J. D. G.<br />

Dunn chega a dizer: “Estamos agora em condições de contestar o raciocínio de Wrede,<br />

pois nossa conclusão até aqui é de que certos elementos desse tema são claramente históricos;<br />

ou seja, o caráter messiânico da tradição não é resultado da redação de Marcos, mas da<br />

teologia cristã anterior a Marcos e posterior à ressurreição — ele faz parte dos fatos em<br />

si”.30 Alguns estudiosos continuam a afirmar que Jesus não se via como o Messias, mas as<br />

evidências favorecem a idéia de que ele afirmava sê-lo, porém não como os judeus do seu<br />

tempo entendiam o termo. Reivindicar o título abertamente provocaria mal-entendidos, já<br />

que as pessoas o interpretariam à sua maneira, não à dele.31<br />

Jesus não rejeitou o título “Cristo” quando Pedro o aplicou a ele (8.29). Na verdade,<br />

ele mesmo o usou, por exemplo quando falou sobre oferecer um copo de água “em meu<br />

nome, porque sois de Cristo" ( 9 .4 1 ) .Mas ele não fez isso com muita freqüência. O que<br />

Jesus fez foi discutir a interpretação que os escribas faziam do Cristo como o “Filho de<br />

Davi"; ele questionou como era possível que o Cristo fosse ao mesmo tempo Filho de Davi<br />

e seu Senhor (12.35-37; não há resposta). No discurso no monte das Oliveiras, Jesus afirmou<br />

que as pessoas diriam: “Eis aqui o Cristo” ou: “Ei-lo ali!" (13.21). Isso mostra que as<br />

especulações messiânicas continuariam, mas Jesus diz que os que as fazem estão no<br />

caminho errado.<br />

28E x p T 49 [1947-4 8 ]:1 4 9 .<br />

29Ibid„ p. 151. N u m artigo posterior, ele escreve: “Jesus é o M essias em todos os dias do seu ministério,<br />

mas ele não pode aceitar a aclamação popular porque sabe que é o M essias apenas quando sofre, morre,<br />

ressuscita e retorna ao que é seu como Senhor" (E x p T 65 [1 9 5 3 -5 4 ]:2 5 0 ).<br />

WTynBul 21 (1 9 70):110.<br />

Cf. U lrich Luz: “O tem a do segredo abarca vários conteúdos e indica duas coisas distintas, em termos<br />

teológicos: o segredo dos milagres aponta para o poder dos milagres de Jesus, que não pode perm a­<br />

necer oculto porque é o sinal da era messiânica; o segredo messiânico qualifica a natureza de Jesus como<br />

M essias, que precisa ser entendido em term os do querigma, isto é, da perspectiva da cruz e da ressurreição,<br />

se o quisermos com preender realm ente. O segredo messiânico adverte contra a possibilidade de<br />

interpretar o Jesus histórico independentem ente da cruz e da ressurreição, porque essa visão da autoridade<br />

de Jesus só pode ter o caráter de uma tentação satânica” (T u ck ett, The messianic secret, p. 87).<br />

O grego significa literalm ente “em nom e que (ou porque) vocês são de C risto”. É uma expressão incom<br />

um e tem levado a variantes textuais, com alguns estudiosos negando que M arcos tenha usado aqui o<br />

term o “C risto”. P or isso, Lane pensa que M arcos escreveu “com base em que vocês são m eus” ( T he gospel<br />

according to M ark, p. 342, n. 66). A nderson, porém , o aceita e vê “considerável pressão sobre a estranha<br />

frase grega”. Ele afirma que "M arcos possivelmente pensa que o discípulo cristão leal precisa estar totalm<br />

ente satisfeito com o serviço mais insignificante, assim com o o próprio D eus está satisfeito com os que<br />

o prestam ” (T hegospel o f M ark, p. 237).


As outras duas ocorrências de “Cristo” em Marcos saem da boca dos opositores de<br />

Jesus. O sumo sacerdote perguntou a Jesus: “Es tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?”, ao<br />

que Jesus respondeu: “Eu sou”, e passou a se referir à sua volta no fim dos tempos<br />

v14.61-62). O fato dejesus aceitar explicitamente o título não deve ser desprezado. Os que<br />

zombavam dejesus na cruz gritavam: “Desça agora da cruz o Cristo, o rei de Israel, para<br />

que vejamos e creiamos” (15.32), Marcos não registra resposta.<br />

Em tudo isso fica claro que Marcos considera Jesus realmente o Messias. Ele não<br />

ressalta esse pensamento, mas a verdade está ali. Não compreenderemos nem Marcos nem<br />

Jesus se não observarmos essa realidade.<br />

0 reino de *7)eus<br />

E nítido nos sinóticos que o tema favorito dejesus em seu ensino era o reino de<br />

Deus. Isso se destaca muito mais em Mateus e Lucas do que em Marcos,” mas a maneira<br />

de Marcos tratar o assunto não deixa de ser interessante. Logo no começo, ele nos diz que<br />

Jesus chegou pregando o evangelho de Deus e dizendo: “O tempo está cumprido, e o reino<br />

de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (1.14-15). O reino, assim, está<br />

ligado estreitamente às boas novas e à vinda dejesus; com a vinda dejesus é que o reino se<br />

aproximou. E essa vinda exige que as pessoas respondam com arrependimento e fé.<br />

O termo grego basileia (a exemplo do hebraico malkuth ou do aramaico malku) não<br />

denota tanto um território quanto um domínio; não é uma região ou grupo, antes Deus em<br />

ação. Ele aponta para um Deus ativo nas pessoas. O reino, diz Jesus, pertence às crianças e<br />

aos que são como elas (10.14-15).34 Somente quem recebe o reino como uma criança entrará<br />

nele. As qualidades das crianças que convidam a essa comparação parecem ser que elas são<br />

indefesas e insignificantes; talvez também estejam implícitas a confiança e a simplicidade.33<br />

Uma criança pequena é bastante indefesa e no mundo antigo não era considerada impori3M<br />

arcos se refere 14 vezes ao reino de D eus, M ateus fala do “reino dos céus” ou do “reino de D eus" 46<br />

vezes (mais duas vezes do reino do Filho e uma dos crentes), Lucas se refere 34 vezes ao reino de Deus, 4<br />

vezes ao de C risto e uma ao reino dado aos que o seguem.<br />

genitivo TúJU T O L O V T b W denota posse, "pertence aos que são com o elas”, e não “consiste de”. V incent<br />

T ay lo r com enta ainda: "D e grande interesse e im portância é a ocorrência da declaração de que o remo<br />

pertence às crianças, com a ordem ã ( p E T € T Ò T T a iS í a e p x ^ c y d a L TTpÓÇ f l € . Isso de modo algum<br />

deixa de im plicar que, num sentido real, o próprio Jesu s é o reino” ( T hegospd accorâing to M ark, p. 423).<br />

Sherm an E, Jo h n so n registra a opinião de que "um a criança norm al vive pela graça, não pelas obras;<br />

cia não acha que precisa m erecer o am or e o cuidado dos pais, por meio de bajulação ou de bom com porn<br />

m en to , mas os aceita com naturalidade e responde espontaneam ente com afeição”; ele acrescenta a


tante.36 E uma criança confia de todo o coração. Assim deve ser com os que se entregam ao<br />

reino de Deus. É difícil para os ricos entrar no reino (10.23-25), não tanto porque a pobreza<br />

seja uma virtude, mas porque as riquezas sempre representam a tentação do materialismo<br />

e da autoconfiança. A pessoa que confia em seu próprio braço forte jamais confiará<br />

realmente em Deus.<br />

No reino, o amor tem mais importância que qualquer outra coisa. Houve um escriba<br />

que reconheceu que os mandamentos de amar a Deus de todo o coração e o próximo<br />

como a si mesmo são mais importantes do que todos os sacrifícios de animais, e a ele Jesus<br />

disse: “Não estás longe do reino de Deus" (12.34).<br />

Há um radicalismo implícito no serviço de Cristo e no reino (os dois são praticamente<br />

a mesma coisa), como podemos ver pelo ensino de que é melhor ficar sem uma mão<br />

ou um pé, e entrar na vida, do que ir para o inferno. O mesmo foi dito em relação aos olhos:<br />

“Se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o; é melhor entrares no reino de Deus com<br />

um só dos teus olhos do que, tendo os dois, seres lançado no inferno” (9.47). Além de enfatizar<br />

a importância de um compromisso integral, esses versículos igualam “vida” e “reino de<br />

Deus” e contrapõem ambos ao tormento infindável do inferno. Jesus está falando de algo<br />

que tem importância eterna quando fala do reino.<br />

O conhecimento do reino não é algo óbvio nem à disposição de todos. Jesus explicou<br />

nestes termos a razão por que recorria a parábolas aos “que estavam junto dele com os<br />

doze”: “A vós [vós é enfático] outros vos é dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas,<br />

aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas, para que, vendo, vejam e não percebam...”<br />

(4.10-12).37 O conhecimento do reino é uma questão de revelação;38 de modo<br />

algum é óbvio que no homem de Nazaré vejamos a vinda do reino do próprio Deus. Esse<br />

possibilidade "de que Jesus está pensando na natureza descomplicada e juvenil da criança, cujo mundo é cheio<br />

de novidades e maravilhas” (A commentary on tke gospel atcording to M ark. London, 1960, p. 172),<br />

36C f. F.C raw ford Burkitt: "Fora dos evangelhos, não encontro na literatura cristã antiga nem o menor sinal<br />

de simpatia em relação aos jovens. [...] O s pequeninos fizeram bem em gritar “H osana ao Filho de<br />

Davi!” no templo, pois Jesus representa quase a única voz que durante séculos falou deles com amor e com ­<br />

preensão no âmbito da religião” (T he gospel history and its transmission. Edinburgh, 1907, p. 285-286). N ão<br />

devemos achar que a atitude de Jesus em relação às crianças tenha sido comum; ela foi revolucionária,<br />

37 Essa passagem tem sido m uito discutida. Alguns estudiosos acreditam que “por meio de parábolas”<br />

não é uma referência às parábolas que Jesus contou, mas tem mais ou menos o sentido de “por enigmas”;<br />

alguns ficam perplexos com a presença de l v a (“para que”) e propõem que a preposição seja equivalente a<br />

OTL, ou usada num sentido imperativo, ou que ela é uma tradução ruim de um term o aramaico; e há outros<br />

pontos de vista. Para nosso presente propósito não é necessário entrar nessas questões. O sentido<br />

está certam ente na linha seguida por T aylo r: “A os discípulos tinha sido dado conhecer o segredo do reino,<br />

mas, para os demais, tudo acontecia por enigmas” (T h e gospel according to st. M ark, p. 258).<br />

A palavra /IV d T ljp io v é usada nas religiões de m istério em relação ao conhecim ento à disposição<br />

apenas dos iniciados, mas no N ovo T estam ento é conhecim ento que a pessoa não obtém por si mesma,<br />

mas que D eus tem de revelar.


conhecimento é “dado”; não é acessível ao homem natural. A revelação vem aos que são<br />

como crianças e estão comprometidos. O reino não é uma questão de crescimento espetacular;<br />

Jesus em seguida conta a parábola da semente que cresce em segredo (4.26-29). A<br />

informação de que o reino também é como um “grão de mostarda” parece significar que seu<br />

começo é pequeno, mas seu crescimento, incomparavelmente grande (4.30-32). Marcos<br />

relata que José de Arimatéia estava “esperando” o reino (15.43), declaração que podemos<br />

entender como manifestação de uma atitude típica do reino. E uma confiança tranqüila em<br />

Deus, não algum feito espetacular que resulta em filiação ao reino.<br />

Marcos vê a consumação do reino como uma ocorrência futura (14.25). Em certo<br />

sentido, porém, é uma realidade presente, pois Jesus diz que alguns que estavam com ele<br />

não veriam a morte antes que “vejam ter chegado com poder o reino de Deus” (9.1), O sentido<br />

exato dessas palavras tem passado por debates acalorados,39 mas Marcos as emprega<br />

para nos conduzir ao relato da transfiguração; parece que ele quer que a vejamos como uma<br />

manifestação preliminar do que significa o reino,<br />

A consumação futura significa muito para Marcos. Ensinamentos como das parábolas<br />

da semente que cresce em segredo e do grão de mostarda (4.26-32) ressaltam o futuro<br />

glorioso. Talvez um dos objetivos das parábolas seja estabelecer um contraste entre o<br />

começo pouco expressivo em um diminuto grupo em torno de Jesus com a igreja de alcance<br />

mundial em que ele se transformaria. A mensagem central, porém, é com certeza que a<br />

consumação futura ultrapassará de longe tudo o que já se viu na terra.<br />

Essa mensagem central está especialmente clara no discurso escatológico no capítulo<br />

13, em que Jesus fala da sua vinda, no tempo devido, “nas nuvens, com grande poder e<br />

glória” (13.26). Haverá sinais que antecederão a sua vinda (13.14ss), mas apesar disso ela<br />

será inesperada (13.35-37); nem o próprio Jesus sabia quando ela acontecerá (13.32). Há<br />

um problema nesta afirmação de Jesus: “Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça”<br />

(13.30). A melhor maneira de entender essa linguagem de iminência (em Marcos e<br />

em outros autores) é resumida assim por C. E. B. Cranfield: “Em certo sentido, o intervalo<br />

entre a ascensão e aparousia pode ser longo ou curto; num sentido mais importante, porém,<br />

ele só pode ser considerado curto, pois todo esse período constitui os ‘últimos dias' — o<br />

epílogo, por assim dizer, da história — já que ele vem depois do acontecimento decisivo da<br />

vida, morte, ressurreição e ascensão de Cristo”.40<br />

39C . E . B. Cranfield considera a afirmação "uma das mais enigm áticas nos evangelhos” (Thegospcl according<br />

to saint M ark, p. 285). A lém da posição de que ela m ostra q u ejesu s esperava que a parousia ocorresse<br />

sem demora, ele relaciona sete interpretações possíveis e favorece uma referência à transfiguração.<br />

40IB 3:275. Ele apresenta o significado da vinda "nesta geração" nestes term os: “O sentido é que os sinais<br />

do fim, qu ejesu s descreveu nos v, 5-23, não se restringem a um futuro rem oto; seus ouvintes preci­


91 fé<br />

O que Jesus procura naqueles que estão prontos para segui-lo? Já vimos que sua primeira<br />

exigência foi arrependimento e fé (1.15), e isso estabelece o padrão de conduta. Jesus<br />

não exigiu conformidade convencional a códigos de conduta. Ele exigiu renovação radical,<br />

não imitação de modelos aceitos. Seus seguidores têm de se arrepender — rejeitar o passado<br />

pecaminoso; algumas alterações superficiais não serão suficientes. Ao deixar para trás o<br />

passado, precisam confiar em Cristo, precisam crer. A fé se torna a atitude habitual, e ela<br />

brilha em tudo o que Jesus está dizendo. Devemos tomar cuidado para não acharmos que<br />

isso seja algo óbvio. Pode ser algo consolidado após séculos de cristianismo, mas parece que<br />

antes de Jesus não houve religião alguma que exigisse fé na divindade.41 A exigência de fé<br />

em Jesus é algo distintivo do sistema cristão.<br />

Vemos isso em ligação com os milagres de cura. Jesus afirmava, depois de efetuar a<br />

cura: “A tua fé te salvou" (5.34; 10.52). Substantivo e verbo são importantes. Marcos podia<br />

ter usado um verbo que simplesmente significasse “curado” (de seu vocabulário fazem parte<br />

therapeuõ, p. ex. 1.34; 3.2 e iaomai, 5.29). Em vez disso, ele escolheu um verbo que pelo<br />

menos dá a entender uma salvação mais ampla. E, naturalmente, fé é a atitude cristã fundamental.<br />

Assim, lemos que Jesus curou o paralítico em resposta à fé manifestada pelos que o<br />

carregavam (2.5), e que ele encorajoujairo nestes termos: “Não temas, crê somente" (5.36).<br />

Há uma conversa digna de nota com o pai do menino possuído por um “espírito mudo”<br />

que o lançava no fogo. Jesus o encorajou, dizendo: “Tudo é possível ao que crê” (9,23),<br />

diante do que o homem exclamou: “Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé!" (v. 24). A<br />

cura mostra que Jesus aceitou essa pequena fé e deixa claro que não está à procura de gigantes<br />

espirituais, mas de pessoas humildes, pessoas que confiem nele, mesmo que a fé que elas<br />

tenham seja pequena.<br />

Fé é a atitude correta em relação ajesus, mas não devemos achar que isso significasse<br />

que ele ficava de mãos atadas quando as pessoas não criam nele. Ele não pôde operar<br />

nenhuma “maravilha” em Nazaré, onde os moradores não creram nele, mas Marcos imediatamente<br />

acrescenta que ele curou alguns doentes (6.5). A ênfase está em quejesus não<br />

era um tipo de “acrobata", que procura chamar a atenção fazendo coisas espetaculares; ele<br />

simplesmente “não pôde” realizar milagres onde essa seria a interpretação dada às suas<br />

ações. Seu poder, no entanto, não é limitado pelas pessoas, pois mesmo em Nazaré ele<br />

sam experimentá-los por si mesmos, pois são característicos de todo o período dos últimos tempos" (The<br />

gospel according to samt M ark, p. 409).<br />

41 C f. G oppelt: "N o am biente helenista de Jesus, na verdade nenhum a religião exigia fé na divindade”<br />

(Theology o f the N ew T estam ent 1 :1 4 9 ); G erh ard E beling: “N ã o conheço nada equivalente a isso no ju ­<br />

daísm o p o sterio r” (W ord and fa ith . L ond on , 1963, p. 2 3 8 ).


curou algumas. O mais comum, contudo, é que ele realizava os milagres numa atmosfera<br />

de fé, onde as pessoas respondiam a quem ele era e não viam seus milagres como uma tentativa<br />

de obter popularidade por meio de ações espetaculares.<br />

Jesus repreendeu a falta de fé dos discípulos (4.40; cf. 11.22). Ele deixa claro que a fé<br />

exercida por "um destes pequeninos crentes” é preciosa (9.42). A referência é a crianças,<br />

mas a maioria concorda que isso também inclui todas as "pessoas pequenas”, insignificantes,<br />

do mundo. Quando uma delas tem fé em Jesus, essa fé deve ser respeitada. Isso é relevante<br />

para a oração, pois nela a fé desempenha um papel de enorme importância<br />

(11.23-24).<br />

Em todo esse evangelho, porém, o que é desesperadamente mais importante na vida<br />

é a fé que confia no Jesus humilde para todas as coisas. Marcos está escrevendo sobre um<br />

Jesus que não se adaptou às especificações de um herói do primeiro século.4" Ele não chamou<br />

a atenção com feitos espetaculares. E verdade que realizou milagres, mas não para ajudar<br />

os grandes deste mundo, que teriam feito muita publicidade dele e talvez até o tivessem<br />

coberto de honrarias. Na maior parte do tempo, ele ajudou os pobres e desprezados, e<br />

geralmente pedia aos que eram curados que mantivessem silêncio sobre o que ele lhes proporcionava.<br />

Os milagres que operava não eram do tipo que despertasse maravilha e perplexidade<br />

(como os que se relatam sobre os milagreiros helenistas). Ele não freqüentou os<br />

corredores do poder. Marcos diz que seu ministério se deu na Galiléia e que ele foi para<br />

Jerusalém somente um pouco antes de ser morto. Marcos vê um Jesus que convoca a uma<br />

confiança que persiste diante da rejeição, do perigo, da humilhação e até da morte.<br />

Jesus é o poderoso Filho de Deus, é verdade, mas andou por uma trilha de humilhação.<br />

Se quisermos ser seus seguidores, temos de ver a glória em seu serviço humilde e andar<br />

pelo mesmo caminho. E preciso confiar; um "sinal” não será dado (8.12). Em Marcos, Jesus<br />

faz "maravilhas”, mas elas são manifestações do que ele é, não algo a mais, acrescentado<br />

para provar que ele é divino. Elas não levam ninguém a crer. Foi o que aconteceu em Nazaré,<br />

onde o povo reconheceu que ele realizara "maravilhas" (6.2), mas o rejeitou. As pessoas<br />

ao pé da cruz disseram que creriam sejesus descesse dali (15.32). Mas isso não é fé. Esse é o<br />

caminho dos “falsos cristos” contra os quais Jesus advertiu seus seguidores (13.21-22).<br />

Para esses falsos cristos, o espetáculo exterior barulhento e brilhante era o que importava.<br />

Estes não tinham lugar para Jesus. Ele procurava a fé que confia pelo que ele é, a despeito<br />

das dificuldades externas.<br />

42O tto B orch ert deixa isso m uito claro em seu livro T he original Jesus. London, 1933 (publicado em<br />

português pela V ida N ova sob o título O Jesus histórico).


0 sentido da cruz<br />

Vimos que, neste evangelho, a cruz ocupa o lugar central.43 Aqui, acima de tudo,<br />

vemos a verdade por trás da afirmação de Martin Káhler, citada com grande freqüência, de<br />

que os evangelhos são “narrativas da paixão com uma introdução mais longa”. Pela maneira<br />

em que estrutura seu evangelho, Marcos não deixa dúvidas de que a cruz é central. Ele lhe<br />

dedicou bastante espaço, e todo o livro chega ao seu ponto culminante com essa narrativa.<br />

Marcos considera a vontade de Deus realizada na morte de Jesus (cf. 14.36 e o uso de dei,<br />

que mostra que a morte foi “necessária”, 8.31; 14.31), Isso é fato, embora, de outro ponto<br />

de vista, essa morte tenha sido causada pela maldade das pessoas.<br />

A disposição do material por Marcos coloca o relato da unção com bálsamo no<br />

começo da paixão (14.3-9); Jesus seguiu para a morte como o Ungido. Marcos também<br />

coloca a profecia do fracasso dos discípulos (14.26-31) imediatamente antes da história do<br />

Getsêmani (14.32ss); ele estabelece um contraste entre a infidelidade das pessoas e a fidelidade<br />

de Jesus — fidelidade que lhe custou um preço terrível.<br />

Em toda a narrativa há certa ênfase no tema da realeza (15.2, 9, 12, 17-18, 26, 32).<br />

Essa é uma ênfase mais forte do que a encontrada em Mateus ou Lucas, e lembra-nos de um<br />

pensamento fundamental de João. Para Marcos, Jesus podia ter sido rejeitado e morto, mas<br />

nesses eventos ele erá rei; os leitores deviam vê-lo como tal. Depois, quando pregado na cruz,<br />

houve uma série de acontecimentos extraordinários: as trevas (15.33), os dois gritos de Jesus<br />

(15.34, 37), a cortina rasgada no templo (15.38) e o veredicto do centurião de que Jesus era realmente<br />

o Filho de Deus (15.39). Marcos deixa claro que essa morte não era normal, nem mesmo<br />

a execução. No Calvário aconteceu algo grandioso e importante. Na maior parte, Marcos se<br />

contenta simplesmente em registrar o que aconteceu; ele não tenta explicar que importância<br />

era essa. Mas há algumas afirmações de Jesus que merecem um exame mais detido.<br />

Uma é a que fala do “resgate”: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas<br />

para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (10.45). Já falei sobre essa declaração em<br />

outros lugares, e pode ser suficiente remeter a essas análises.44 Jesus está dizendo que pagará<br />

o preço para libertar as pessoas. “Resgate” era o termo relacionado com o preço pago<br />

para libertar um prisioneiro de guerra, um escravo ou alguém sentenciado à morte. Ele não<br />

“U m dos axiomas mais com um ente aceitos no estudo atual do evangelho de M arcos é que esse evangelista<br />

está interessado prim ordialm ente na paixão de Jesus, Podem os ir mais longe e afirm ar que, em<br />

vista do estudo de M arcos da perspectiva da Redaktionsgeschichte, este evangelista impôs à grande quantidade<br />

de m aterial à sua disposição uma compreensão teológica do m inistério de Jesus em term os da pregação<br />

da cruz” (M artin, M ark: evangelist and theologian, p. 117),<br />

T he apostolic preaching o f the cross, 3a ed. London, 1965, p. 29-38; T he cross in the N ew Testament. Grand<br />

Rapids, 1965, p. 52-55.


diz do que está libertando as pessoas, mas, no contexto deste evangelho, claramente se trata<br />

de liberdade do pecado e de uma vida pecaminosa. Essa liberdade não vem de modo fácil ou<br />

automático. Ela tem um preço, e Jesus pagou esse preço. O preço foi pago “por [and]” muitos,<br />

sendo que anti tem aqui força de substituição.45<br />

Depois vemos a oração em que Jesus aceita a vontade do Pai de beber o “cálice”<br />

(14.36). Ele não explica que cálice é esse, mas passagens do Antigo Testamento mostram<br />

ser ele “uma metáfora da punição retributiva, mas aqui obviamente redundando em sofrimento<br />

e morte” (Anderson).46 E o “cálice da ira de Deus” (Best).47<br />

A citação que Marcos faz de Zacarias 13.7 (14.27) é interessante, principalmente<br />

neste ponto: “Ferirei o pastor” — tornando-o um ato do próprio Deus — enquanto no<br />

Antigo Testamento o verbo está no imperativo ("Fere o pastor”). A ênfase está na dispersão<br />

dos discípulos, mas a ação divina também fala de julgamento. Provavelmente devamos<br />

enxergar outra expressão de substituição: os pecadores deveriam sofrer o julgamento, mas<br />

Deus o impõe ao Bom Pastor.<br />

Marcos relata a última refeição que Jesus teve com seus discípulos. Ele diz quejesus<br />

tomou o pão, partiu-o e o deu a eles, dizendo: "Tomai, isto é o meu corpo”. Ele deu graças<br />

sobre um cálice e o deu a eles. Eles beberam, e Jesus disse: "Isto é o meu sangue, o sangue da<br />

[nova] aliança, derramado em favor de muitos” (14.22-24). Naturalmente todos os leitores<br />

cristãos de Marcos conheciam a ceia, e ele descreve sua instituição de uma forma que mostra<br />

que ela comemorava a celebração de um pacto que cumpria a profecia de Jeremias<br />

31.31ss, Não importa muito se lemos a palavra “nova” ou não; toda a aliança feita por Jesus<br />

era necessariamente nova. Essa aliança foi feita pelo seu sangue, cujo derramamento foi o<br />

meio pelo qual as pessoas seriam colocadas num relacionamento correto com Deus, o instrumento<br />

pelo qual o novo povo de Deus viria a existir.48<br />

Aqui temos também o terrível grito de abandono: “Deus meu, Deus meu, por que<br />

me desamparaste?” (15.34). Como essa é a única palavra da cruz que Marcos registra, é<br />

óbvio que ele a considerava importante. Em nossa época essas palavras têm parecido tão<br />

chocantes que foram sendo diluídas, de um modo ou de outro. Sugere-se, por exemplo,<br />

45 BA GD apresenta com o prim eiro sentido de ávT L : "Indicar que uma pessoa ou coisa é ou será substituída<br />

por outra, em vez de, em lugar de”, B est cita e apóia Barrett, dizendo que vê aqui “uma idéia de equivalência”<br />

( The temptation and thepassion, p, 142-1 4 3 ). C f. A . E. J . Raw linson: “A frase resume o pensam ento<br />

geral de Is liii e expressa a idéia de dar a vida de modo substitutivo e voluntário” (St M ark. London, 1925,<br />

p. 147).<br />

46 The gospel o f M ark, p, 320.<br />

47 T he temptation and the passion, p. 156,<br />

48 P. S. M inear vê nisso a essência de todo o evangelho: “Ele conta a história da celebração de uma aliança<br />

eterna entre Jesus e os discípulos de cada geração. Essa história cobriu 16 capítulos, mas tam bém<br />

poderia ser condensada em poucas palavras: 'E ste é o meu sangue da aliança, derram ado em favor de m u­<br />

itos'” (Saint M ark, London, 1963, p. 35).


que Jesus estava recitando o salmo 22 (em que essas palavras aparecem no início), um salmo<br />

que termina num tom de confiança. Desse ponto de vista, ele estava simplesmente<br />

encomendando-se ao Pai.49 Outros concordam que as palavras apontam para uma separação<br />

de Deus, mas consideram isso tão impensável que emendam o texto ou o rejeitam<br />

totalmente. Se, contudo, queremos levar Marcos a sério, temos de aceitar essa frase.50<br />

Jürgen Moltmann insiste nisso. Ele afirma: “A teologia da cruz precisa incorporar essa terceira<br />

dimensão da morte de Jesus abandonado por Deus e chegar a uma conclusão”.5<br />

Não creio que um dia consigamos captar o pleno sentido dessa exclamação/2 Mas<br />

pelo menos podemos dizer que a morte de Jesus foi algo horrível — uma situação pavorosa<br />

a que chegou sua comunhão íntima com o Pai, que o havia sustentado durante sua vida terrena.<br />

Não conheço nenhuma explicação que chegue perto de fazer justiça a essas palavras,<br />

exceto a que insiste em dizer que, em sua morte, Jesus estava carregando os pecados do<br />

mundo. Ele era um com os pecadores. Levou sobre si os pecados deles. Sofreu a separação<br />

de Deus, que é conseqüência do pecado. E porque a sofreu, nós, que cremos nele, jamais<br />

seremos desamparados por Deus.53<br />

Também devemos observar a maneira como Marcos inicia a narrativa da paixão e<br />

como ele a encerra. A maioria dos estudos do capítulo 13 o toma como uma unidade mais<br />

ou menos contida em si mesma (o "pequeno apocalipse"), em que Marcos apresenta alguns<br />

ensinos escatológicos importantes. No entanto, precisamos ter em mente que ele colocou<br />

esse capítulo imediatamente antes da sua narrativa da paixão. O capítulo não é uma peça<br />

típica da mentalidade apocalíptica judaica, como muitas vezes se afirma. E verdade que sua<br />

linguagem às vezes é apocalíptica, e ela é importante. Ela deixa claro que esse Jesus cuja crucificação<br />

Marcos está para descrever é aquele que viria no tempo devido para trazer o fim<br />

de todas as coisas. Mas o capítulo contém muitas exortações, e sua mensagem principal diz<br />

49 V eja, p. ex„ N ineham , Saint M ark, p. 428.<br />

C f. V in cent T aylor: “Parece impossível fugir da inferência de que Jesus se identificou tanto com os<br />

pecadores, e experim entou o horror do pecado em tal grau, que por um m om ento a intim idade da sua com<br />

unhão com o Pai foi interrom pida” (Jesus and his sacrifice, London, 1939, p. 162), Ele crê que devemos<br />

perguntar o que está im plícito em tudo isso e continua: “A s implicações são teológicas: o abandono é um<br />

fato histórico" (p. 163).<br />

T he crucífied God. London, 1974, p. 162. Cf. G oppelt: “A m orte de Jesus foi uma expiação vicária por<br />

todos em term os da essência de sua estrutura, porque, ao m orrer de acordo com a vontade de Deus, ele<br />

tam bém tom ou sobre si a condenação que D eus decretou pela maldade de todos” ( Theology o f the N ew<br />

Testament, 1:198).<br />

Analisei o problem a em T he cross in the N ew Testament, p, 4 2-49.<br />

B est resume a perspectiva que M arcos tem da paixão nestes term os: “A cruz éjulgam ento; isso se vê<br />

no rom pim ento do véu e nas trevas que caíram sobre o mundo naquele m om ento. O julgam ento é sofrido<br />

por Jesus, ao beber o cálice da ira de D eus, ao ser ferido como o pastor, ao ser encoberto pelas águas<br />

do batism o em favor do ser hum ano. Seu sangue é derramado pelos outros ao entregar a vida por eles"<br />

(T h e temptation and thepassion, p. 191).


O Evangelho de Marcos<br />

135<br />

respeito ao ser discípulo, Cranfield disse: “Seu propósito não é transmitir informações esotéricas,<br />

mas dar sustentação à fé e à obediência”.34 Muitas coisas características da literatura<br />

apocalíptica estão ausentes desse discurso, e muitos de seus elementos não se encontram<br />

nos apocalipses típicos.55<br />

Parece que Marcos inseriu aqui esse capítulo para deixar claro que aquele cuja paixão<br />

ele está para descrever é o maior de todos, não algum joão-ninguém. R. H. Lightfoot<br />

disse: “O capítulo 13 foi sem dúvida pensado pelo evangelista como a introdução imediata<br />

à narrativa da paixão, no sentido de que, ao lermos a história da paixão neste evangelho,<br />

com todo o seu realismo e tragédia imensa, devemos lembrar sempre quem é e que função<br />

ocupa aquele sobre quem lemos. Este que agora é vilipendiado, rejeitado e condenado é<br />

ninguém menos que o sobrenatural Filho do Homem”,56 Os judeus não entenderam quem<br />

era aquele cuja morte exigiam; Marcos não permitirá que seus leitores cometam esse erro.<br />

Tem havido muita discussão sobre se este evangelho originariamente terminava em<br />

16,8. Alguns estudiosos pensam que Marcos escreveu mais, porém sua conclusão original<br />

não foi preservada.37 Apesar de o versículo 8 ser um término bastante abrupto para um<br />

evangelho, a maioria parece concordar que Marcos pretendia terminar seu livro com 16.8<br />

(ao qual escritores mais tarde acrescentaram anexos para esclarecer melhor as aparições<br />

após a ressurreição).58 William R. Farmer defendeu que os versículos 9-20 faziam parte do<br />

evangelho original, mas representam a redação que Marcos fez de material mais antigo.9<br />

Qualquer que seja a verdade sobre a questão, Marcos não deixa dúvidas aos seus leitores de<br />

que o Senhor crucificado60 ressuscitou em triunfo. Para Marcos, o fim não é uma tragédia<br />

terrível, mas um grande triunfo.<br />

’4 T he gospel according to saint M ark, p. 388.<br />

d5 Analisei esse capitulo em meu livro Apocalyptic, London, 1973, p. 87-91,<br />

56 The gospel message o f st. M ark, O xford, 1962, p. 50-51.<br />

57 W . L. K nox argum enta que 16.8 é um encerram ento impossível para um livro (“T h e ending os st,<br />

M ark’s gospel”, H T R 35 [1 9 4 2 ]:l-2 3 ).<br />

’*N ed B. Stonehouse lem bra que a introdução do evangelho é abrupta e deduz que não devemos nos<br />

surpreender com algo sem elhante na conclusão: “Se M arcos se contenta em escrever tão pouco sobre o<br />

começo da vida de Jesus, nada o obriga a se alongar na conclusão” (T h e witness o f M atthew and M ark to<br />

Christ. London, 1958, p. 117).<br />

The last twelve verses o f M ark. Cam bridge, 1974,<br />

60 Kingsbury com enta sobre o tem po perfeito: “E m term os teológicos, a verdade que M arcos frisa ao<br />

descrever o Jesus ressurreto com o aquele que foi crucificado é que a ressurreição não 'reverte a crucificação,<br />

mas, pelo contrário, confirm a que a m orte de Jesus na cruz é o acontecim ento central do seu m inistério"<br />

(T he cbristology o f M ark’s gospel, p. 134).


Capítulo 6<br />

O Svangelho de Mateus<br />

uando saímos de Marcos, talvez a primeira e mais duradoura impressão que<br />

temos do evangelho de Mateus seja o grande incremento no ensino de Jesus.<br />

Mateus incluiu quase todo o segundo evangelho num texto uma vez e meia<br />

mais longo do que Marcos, e boa parte do material acrescentado é ensino. Há longas<br />

seções: o Sermão do Monte (cap. 5-7), o envio dos Doze (cap. 10), as parábolas do reino<br />

(cap. 13), a vida na comunidade cristã (cap. 18) e aparousia (cap. 24-25).1Enquanto M arcos<br />

tem bem poucas parábolas, Mateus tem pelo menos 17,2 incluindo uma longa seção<br />

1 R , E . N ixo n observa m uito bem : “O prim eiro discurso é basicam ente ético, o segundo m issionário, o<br />

terceiro querigmático, o quarto eclesiástico e o últim o escatológico” (D on ald G u thrie e J. A . M otyer,<br />

eds., T he new Bible commentary revised, London, 1970, p. 813). N o fim de cada um destes blocos de ensino<br />

M ateus tem a fórm ula: "Q uando Jesu s acabou de proferir estas palavras...” (7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1).<br />

Isso os identifica com o divisóes im portantes do seu livro,<br />

2 M u ito depende do que classificamos com o parábola; alguns estudiosos incluem breves ditados parabólicos<br />

(por exemplo, o cego que conduz outro cego, 15.14), outros insistem em uma história. A , M .<br />

H u nter registra totais que variam entre trinta e sessenta e duas; sua própria resposta é “por volta de 60”<br />

(Interpreting the parables, London, 1960, p. 11). Alguns encontram mais de dezessete em M ateus, mas<br />

quanto a estes não pode haver dúvida.


concatenada (cap. 13). Marcos dá ênfase no que Jesus fez, porém Mateus considera muito<br />

importante também o que Jesus disse.3<br />

Há ainda uma diferença no tom. Mateus, de algum modo, é mais reverente. Por<br />

exemplo, ele omite algumas referências à ira de Jesus (Mc 3.5; 10.14) e a afirmação de que<br />

Jesus estava fora de si (Mc 3.21), Enquanto Marcos relata que Jesus respondeu à saudação<br />

“Bom Mestre” do jovem rico dizendo: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão<br />

um, que é Deus” (Mc 10.18), Mateus traz: “Por que me perguntas acerca do que é bom?<br />

Bom só existe um” (M t 19.17). Mateus também é mais gentil com os Doze. Às vezes omite<br />

referência à ignorância ou perplexidade deles (p.ex. Mc 9.6,10, 32) e fala da posição privilegiada<br />

que desfrutavam (M t 13.16-17; cf. Mc 4,13). Ele inclui fatos como os sonhos de José<br />

(1.20; 2.13, 19, 22), os magos (2.12), a esposa de Pilatos (27.19), a moeda na boca do peixe<br />

(17.27), Pilatos lavando as mãos (27.24), o terremoto, as rochas fendidas e a ressurreição<br />

dos santos falecidos, por ocasião da crucificação (27.51-53). Como relacioná-los com o que<br />

lemos nos outros evangelhos é tarefa do exegeta; aqui apenas observamos sua importância<br />

em termos do que revelam sobre o propósito teológico do evangelista. Mateus deixa claro<br />

que Jesus reservara um lugar importante aos Doze, que Deus às vezes instrui as pessoas por<br />

meio de sonhos e faz coisas neste universo físico, ao executar seu propósito.<br />

Esse evangelho tem um “sabor de judaísmo”, como vemos, por exemplo, na ênfase<br />

de Mateus no cumprimento do que está nas Escrituras. Mateus também faz referência a<br />

questões judaicas como o imposto do templo (17.24) e os filactérios (23.5); ele fala da validade<br />

da lei (5.18-19) e diz que o ensino (mas não o exemplo) dos escribas e fariseus deve ser<br />

seguido (23.2-3). Suas cinco grandes divisões de discursos convidam a comparações com<br />

os cinco livros de Moisés, apesar de termos de rejeitar a inferência que muitas vezes se faz<br />

de que Mateus está retratando Jesus como aquele que outorgou uma nova lei. Para Mateus,<br />

assim como para os outros evangelistas, o evangelho, não a lei, é o centro do sistema<br />

cristão. Mateus, porém, certamente vê a importância do ensino de Jesus: os convertidos<br />

não devem ser apenas batizados, mas também ensinados a obedecer a todos os mandamentos<br />

dejesus (28.20). A partir do que ele escreveu e da maneira como o fez, G. D. Kilpatrick<br />

conclui que Mateus era um "escriba cristão”,4 e a maioria dos estudiosos concorda com isso.<br />

O tom “judaico” de Mateus não deve ser ressaltado em detrimento de outro aspecto do seu<br />

evangelho, seu universalismo (8.11-12; 12.21; 21.43; 28.16-20).<br />

R. V . G . T ask er considera este evangelho “notável pela extensão e a m aneira em que o ensino ético de<br />

Jesus é apresentado” (IB D , 2:964).<br />

The origins o f the gospel according to St. M atthew. O xford, 1946, p. 135. K ilpatrick diz ainda que o estilo<br />

de M ateus “não tem a rispidez de M arcos ou das cartas de Paulo, nem o dom ínio magistral do grego dem<br />

onstrado na carta aos H ebreus, nem a diversidade de ilustrações dos textos de Lucas. E m comparação,<br />

ele é simples, mas agradável, claro e direto, tendo mais o caráter da utilidade do que da distinção" (p.<br />

1 36-137).


Durante toda a longa história da igreja talvez nenhum evangelho tenha sido tão<br />

influente quanto Mateus. Muitos pensaram que ele foi o primeiro a ser escrito, e o primeiro<br />

lugar na ordem em que os evangelhos foram reunidos lhe deu destaque. Foi muito usado<br />

na liturgia, e sua disposição bem elaborada, com o ensino agrupado em unidades (como o<br />

Sermão do Monte) tem sido muito adequado ao uso prático.3<br />

0 começo do evangelho<br />

A introdução de Mateus é ímpar; não há nada parecido em nenhum dos outros<br />

evangelhos. Com seu título enigmático e sua longa genealogia, ele é pouco atraente para o<br />

leitor ocidental de hoje. Mas se deixarmos esses elementos de lado, perderemos algo que,<br />

para Mateus, era de nítida importância. Ele começa com: “Livro da gênese6 dejesus Cristo,<br />

filho de Davi, filho de Abraão”. O sentido de gênese não é óbvio. A palavra pode significar<br />

“começo” ou “origem”, e em 1.18 claramente tem o sentido de “nascimento”. Mas pode ser<br />

usada mais ou menos no sentido de “história” (como em Gn 2.4 L X X ) , e iniciar uma genealogia<br />

(Gn 5.1). Por isso, podemos entendê-la aqui como título do capítulo 1 (“relato do<br />

nascimento dejesus Cristo”) ou da sua genealogia. Não há muita coisa que dependa da<br />

nossa decisão, mas, na posição em que a palavra está, ela parece ser o título do livro inteiro.<br />

Nesse cabeçalho formal devemos notar o título explícito Jesus Cristo, que aparece<br />

em todo esse evangelho apenas mais uma vez (talvez duas); Mateus usa o nome “Jesus” 150<br />

vezes e “Cristo” 17, o que deixa claro que ele prefere o nome pessoal ao título. Veremos o<br />

título “Filho de Davi” mais adiante; aqui basta dizer que ele indica o Messias davídico, o<br />

Messias como rei, enquanto a referência a Abraão volta nossos olhos para a origem da<br />

nação judaica, do povo de Deus. Mateus está fazendo alusão ao novo povo de Deus, sob a<br />

soberania do Messias, o seu rei.<br />

A genealogia que vem a seguir se divide em três partes, cada uma cobrindo 14 gerações.<br />

Isso é claramente simbólico, pois alguns nomes são omitidos para reduzir o segundo<br />

Sherm an E. Joh n so n fala de M ateus com o "o mais influente de todos os livros cristãos”. E acrescenta:<br />

"Leigos com freqüência dizem que João, ou talvez Lucas, é seu favorito, entre os quatro; mas é provável<br />

que faça mais uso prático de M ateus, ou para se defender e debater, ou para edificar sua vida m oral e espiritual"<br />

(IB 7 :2 3 1 ). K rister Stendahl diz sobre a preem inência deste evangelho por mais de dezessete séculos:<br />

"Isso pode m uito bem ter tido im portância mais profunda para a história e a teologia do cristianism o<br />

do que jam ais conseguiremos determ inar plenam ente” (M atthew Black e H . H , Rowley, eds,, P eake’s<br />

commentary on the Bible, London, 1980, p. 769).<br />

As principais versões em português preferem traduzir por "genealogia” ou “geração" (N . do E .).


grupo a 14,7 e há apenas 13 nomes no terceiro grupo (que abrange um período de mais ou<br />

menos quinhentos anos; aí também parecem faltar alguns nomes). Não está claro por que<br />

o número 14 foi escolhido. Alguns estudiosos sugerem que devemos tomar 14 (duas vezes<br />

sete) como representando duas semanas; com isso teríamos seis semanas, levando à sétima,<br />

a era perfeita, a era do Messias. Não podemos descartar totalmente essa idéia, pois esse é o<br />

tipo de coisa que alguns escritores do primeiro século faziam. Mas não parece ser esse o<br />

estilo de Mateus. Ele não apresenta nada semelhante a isso em todo o seu texto.8 Claro está<br />

que ele destaca certos pontos altos em sua genealogia, principalmente ligados a Abraão, a<br />

Davi e ao exílio. Abraão faz lembrar o propósito de Deus com os patriarcas; Davi, evoca<br />

tudo o que "Filho de Davi” significa; e o exílio é um lembrete importante do julgamento,<br />

tema ao qual Mateus dá muita atenção. Interessante no terceiro grupo é que ele consiste de<br />

pessoas em boa parte desconhecidas. Enquanto Mateus não minimiza a importância da<br />

condição de Jesus como rei, ele lembra que Jesus é “manso e humilde de coração" (11.29) e<br />

que chamou muitas pessoas comuns para serem seus discípulos. Interessante é que os<br />

“pequeninos" surgem revestidos de grandiosidade nessa genealogia.<br />

O fato de Mateus incluir quatro mulheres surpreende, porque normalmente não se<br />

incluíam mulheres nas genealogias. O fato de serem quatro provavelmente pode ser explicado<br />

pelo costume, nos escritos judaicos, de citar quatro mulheres de destaque: Sara,<br />

Rebeca, Raquel e Lia. No entanto, não é esse quarteto que Mateus menciona. Ele também<br />

não traz nomes reais ou fictícios de esposas de outros membros da genealogia. Devemos<br />

entender, portanto, que essas quatro pessoas são importantes. Três têm fama duvidosa:<br />

Tamar (v. 3) teve um filho com seu sogro, Raabe (v. 5) era uma prostituta, e a esposa de<br />

Urias (v. 6) era adúltera. Vivemos em um mundo pecaminoso, e Mateus está escrevendo<br />

sobre pecado, salvação e graça. Ele enfrenta o fato de que entre os ancestrais do Salvador<br />

encontravam-se pecadores conhecidos.<br />

Devemos observar ainda que as quatro mulheres eram gentias, e isso numa genealogia<br />

judaica! Via de regra se diz que Mateus escreveu um evangelho mais judaico, mas ele<br />

estava bem ciente de que o evangelho da salvação é para todo mundo. A genealogia revela<br />

isso aos seus leitores, desde que tenham olhos para ver.<br />

7 T rê s reis consecutivos estáo faltando: Joás, Amasias e Azarias (veja lC r 3.11-12), bem com o Jeoaquim<br />

( lC r 3.15).<br />

8 Joach im Jerem ias considera isso “m uito possível”, mas pergunta por que, se a intenção era essa, M a ­<br />

teus não deixou essa alusão m ais clara, E le prefere ver o sentido sim bólico do núm ero no fato de que, em<br />

hebraico, as letras do nom e de Davi têm valor num érico 14 (4 + 6 + 4 ). “Em Jesus, o núm ero de Davi é<br />

com pletado pela terceira e últim a vez” (Jerusalém in the time o f Jesus. London, 1969, p. 292, n. 75).


oào cBatbta<br />

Mateus nos diz que João Batista veio antes de Jesus e preparou-lhe o caminho. João<br />

era um asceta rigoroso (3.4; 11.18) e, nessa mesma linha de conduta, seus discípulos costumavam<br />

jejuar (9.14). Ele era um profeta (11.9: 21.26), que convocava as pessoas a se arrepender<br />

(3.2). Parajoão, arrependimento não era apenas lamentar os pecados, mas também<br />

produzir o que ele chamava “frutos dignos de arrependimento” (3.8); aqueles que respondiam<br />

com fé ao seu ensino deviam levar uma vida que se harmonizasse com o arrependimento.9<br />

Há um forte elemento ético no ensino de João Batista.<br />

O principal conteúdo da sua pregação, no entanto, era que outro viria. As primeiras<br />

palavras que Mateus registra desse austero homem do deserto são: “Arrependei-vos, porque<br />

está próximo o reino dos céus” (3.2). João tinha certeza de que depois de si viria outro,<br />

maior do que ele, “cujas sandálias”, ele disse, “não sou digno de levar. Ele vos batizará com o<br />

Espírito Santo e com fogo” (3.11). Ele fala de preparar o caminho do Senhor, citando uma<br />

profecia que, no Antigo Testamento, se referia a Deus, e que agora ele aplica ajesus (3.3; cf.<br />

11.10), cuja vinda era o acontecimento decisivo. A mesma verdade é expressa no ensino de<br />

Jesus de que João era o Elias prometido (11.14; 17.10-13; veja Ml 4.5).<br />

A função de João era importante; mais tarde, Jesus se refere a ele, afirmando que<br />

nunca houve alguém maior “entre os nascidos de mulher” (11.11). A vinda dejesus marca o<br />

momento crítico. Toda a grandeza de João importava pouco, quando comparada com o<br />

fazer parte do reino. Jesus afirmou a mesma coisa quando disse que “os Profetas e a Lei<br />

profetizaram até João” (11.13). Jesus não está diminuindo a magnificência nem a profundidade<br />

da religião do Antigo Testamento. Mas essa religião é simplesmente preliminar a<br />

algo maior, Agora o reino dos céus substitui o esplendor da revelação anterior. Essa é uma<br />

afirmação desconcertante.<br />

A profecia de João Batista está impregnada do tema do julgamento. Ele falou da “ira<br />

vindoura” (3.7) e expressou sua iminência com a alusão ao machado posto na raiz da árvore,<br />

indicando que logo seria utilizado (3.10). João afirma que aquele que viria tinha em<br />

mãos uma pá (para lançar o trigo ao ar e separá-lo da palha), o que precedia a armazenagem<br />

do trigo no depósito, sendo que a palha seria queimada com “fogo inextinguível” (3.12).<br />

Julgamento é um elemento importante desse evangelho, e é bom que se toque nesse<br />

ponto logo no começo. O pecado é um mal terrível, e a vinda do reino significa a criação de<br />

George E. Ladd constata uma idéia derivada do A ntigo T estam ento. D iz ele: “‘Conversão’ expressa a<br />

idéia m elhor do que arrependim ento. ‘A rrependim ento’ indica principalm ente tristeza com o pecado;<br />

m etanoia indica uma m udança de atitude; a idéia hebraica implica voltar-se por inteiro para D eus”<br />

(Theology o f the N ew Testam ent. G ran d Rapids, 1975, p. 3 8 -3 9 [publicado no Brasil pela H agnos sob o<br />

título Teologia do N ovo T estam ento]).


um meio de salvação do pecado, por intermédio do que Jesus iria fazer, mas também a<br />

punição dos pecadores que não se arrependem.<br />

0 ensino sobre eus<br />

Mateus revela um Deus poderoso, sempre ativo na implementação de sua vontade<br />

soberana — o Deus vivo (16.16; 26.63; cf. 22.32). Mais de 60 vezes o evangelista apela ao<br />

cumprimento das Escrituras/0 e cada cumprimento, naturalmente, significa que Deus planejou<br />

algo, falou sobre isso por meio dos seus servos, os profetas, e agora o executou. E<br />

motivo suficiente para condenar os saduceus o fato de que eles não conheciam nem “as<br />

Escrituras nem o poder de Deus” (22.29).<br />

Logo no começo do evangelho vemos um pouco como Deus atua, Primeiro, temos<br />

o envio de Cristo, com mais detalhes sobre o nascimento virginal. Deus agiu de modo especial<br />

com um propósito igualmente especial, Quando José hesitou em casar-se com Maria,<br />

Deus lhe falou em sonho (1.20), Mateus chama a atenção para o fato de que esse nascimento<br />

sagrado era cumprimento de uma profecia (1.22; veja Is 7.14) e termina mostrando que<br />

tudo isso significa “Deus conosco” (1.23). A visita dos magos é um testemunho de que o<br />

plano é divino e também da prontidão de Deus para revelar seu propósito aos gentios.<br />

Então, quando Herodes planejou matar o menino Jesus, Deus interveio, conduzindo os<br />

magos de volta para casa sem voltarem a avistar o monarca (2.12) e enviando José e Maria<br />

com o bebê para o Egito, ao sul (2.13-15). No tempo devido, foi Deus quem os trouxe devolta<br />

para Israel (2.19-21). E assim como Mateus inicia seu evangelho com a atuação de Deus,<br />

ele o encerra de igual forma. Deus envia seu anjo para remover a pedra de diante do túmulo<br />

de Jesus (28.2). E os discípulos devem ser batizados em nome do Pai, bem como do Filho e<br />

do Espírito (28,19).<br />

Esse Deus soberano faz exigências a seus adoradores. As pessoas são avisadas de<br />

que não podem servir ao mesmo tempo a Deus e às riquezas (6.24). A unidade e indissolubilidade<br />

do casamento derivam do fato e da ordem da criação realizada por Deus (19.4-6).<br />

Há deveres que as pessoas têm em relação a César (governo), e há deveres em relação a<br />

Deus; não se devem confundir os dois (22.21). Todos devem fazer a vontade de Deus<br />

(7.21), abandonar o caminho largo que leva à perdição e entrar pela porta estreita (7.13).<br />

Não devem invalidar a palavra de Deus (15.6).<br />

F. C . G ran t tem análises breves de 61 citações do A ntigo T estam ento em M ateus, "sem contar inumeráveis<br />

ecos de palavras e expressões isoladas que dáo ao estilo de M ateus sua coloração nitidam ente<br />

'bíblica' — isto é, veterotestam entária’’ (ID E, 3 :3 07-310),


Há passagens que indicam que o julgamento é inevitável.” O julgamento aguarda o<br />

assassino (5.21), mas também aquele que está irado contra seu irmão sem um bom motivo<br />

(5.22). Julgar os outros significa atrair juízo sobre si mesmo (7.1-2). Haverá uma punição<br />

para todos os que não perdoam (18.35). Seremos convocados para prestar contas de toda<br />

"palavra frívola” (12.36). Mesmo numa passagem que trata basicamente de consolo, a idéia<br />

do juízo pode surgir, pois o Servo, além de não esmagar o galho que já está quebrado nem<br />

apagar a luz que já está fraca, “anunciará juízo aos gentios” (12.18).12 O julgamento será<br />

imparcial: cada um será recompensado de acordo com o que fez (16.27).<br />

Mateus sempre olha para o juízo final. Nele todos serão classificados de acordo com<br />

seus atos (25.31-46). O "joio” serájuntado para destruição (13.40). Várias vezes Mateus se<br />

refere às trevas externas e ao choro e ranger de dentes, dando a entender que as trevas não<br />

são agradáveis (8.12; 13.42, 50; 22.13; 24.51; 25.30). Nesse espírito, os escribas e fariseus<br />

são denunciados como “raça de víboras” e avisados de que não escaparão à “condenação do<br />

inferno” (23.33); todo esse capítulo vocifera o julgamento inevitável que espera os que são<br />

religiosos apenas por fora, que usam a religião para encobrir o egoísmo e a maldade inata.<br />

As cidades que não reagiram favoravelmente às atuações poderosas de Deus se darão mal<br />

no dia do julgamento (11.20-24), assim como a cidade que não recebe os mensageiros de<br />

Deus (10.15). Nessas passagens, a condenação de cidades como Sodoma, Tiro e Sidom é<br />

considerada fato consumado. Ela não precisa ser provada por argumentos. E é pressuposta<br />

também quando lemos que os "ninivitas” e a "rainha do Sul” se levantarão no julgamento<br />

para condenar a geração presente (12.41-42). O juízo final é imprescindível.<br />

Mateus pinta com esplendor o quadro do dia do juízo, em que o "Filho do Homem”<br />

surge como figura central (25.31-46). Todavia, não devemos pensar que isso ocorre independentemente<br />

do Pai. O Filho do Homem virá "na glória de seu Pai” (16.27). Harmoni­<br />

11 Sherm an Johnson observa: “A primeira impressão causada por M ateus é que o julgam ento é o tema<br />

predominante” (T he theology o f the gospels. London, 1966, p. 50; ele acrescenta imediatamente: “U m estudo<br />

mais atento, porém, mostrará que ele é quase completamente compensado por graça e misericórdia”). Mateus<br />

usa o verbo K piP O J seis vezes, e os substantivos K pL [ia e K p i t J l ç uma e doze vezes respectivamente, num<br />

rotal de 19 ocorrências das palavras que se traduzem por julgam ento. O total em M arcos é uma e em Lucas<br />

treze. M ateus tam bém tem a idéia de julgam ento sem a palavra específica, como em sua grandiosa cena de<br />

julgamento em 25.31-46. G . Barth aponta tam bém para o uso que ele faz de expressões com o /1L ( j d o ç (dez<br />

vezes, contra uma em M arcos e três em Lucas), “fora, nas trevas” (som ente em M ateus), “choro e ranger de<br />

dentes" (quase só restrito a M ateus). Ele diz também: “N os evangelhos, apenas M ateus tem uma descrição<br />

detalhada do julgam ento final” (G . Bornkam m , G . Barth e H . J. H eld, Tradition and interpretation in<br />

Matthew. Philadelphia, 1963, p. 58-59). E apenas M ateus, em todo o N ovo Testam ento, “visualiza a obra<br />

de Cristo” como “o estabelecimento do julgam ento de D eus” (p. 149).<br />

12 V árias versões trazem a idéia de "justiça” (NVI; BJ “D ireito”) em vez de julgam ento, mas devemos ter<br />

em m ente o com entário de A . H , M cN eile: “K p iO lÇ em M ateus não tem o sentido abrangente de<br />

SSiró , quase ‘religião’; para ele, trata-se do julgam ento que se aproxima rapidam ente” ( T he gospel<br />

according to st. M atthew. London, 1915, p. 172).


za-se com isso o fato de apenas o Pai saber quando todas essas coisas acontecerão (24.36).<br />

Assim também, os salvos naquele dia são abençoados pelo Pai (25.34).<br />

O ensino central do evangelista acerca de Deus, entretanto, é que ele é cheio de graça<br />

e amor. Mateus refere-se várias vezes a Deus como “Pai”; são 44 ocorrências, mais do que<br />

qualquer outro caso no Novo Testamento com exceção de João (122 vezes; Marcos usa a<br />

palavra 5 vezes, Lucas, 17, e Paulo, 42). Isso traz um novo elemento para a religião. Não<br />

que o título nunca tivesse sido atribuído a Deus. Mas sempre houve uma distância maior<br />

do que a mantida pelo uso que Jesus faz dessa forma de tratamento. Sempre havia algum<br />

acréscimo, como na frase "Pai nosso, que estás nos céus”. Imaginava-se Deus como um<br />

grande Pai sobre todo o povo, mas havia uma distância respeitosa entre seus adoradores e<br />

esse grandioso ser. Jesus, porém, falava de Deus com intimidade; costumava referir-se ao<br />

“meu Pai” (7.21; 10.32, 33; 11.27; 12.50; 16.17; 18.10,14,19, 35; 20.23; 25.34; 26.29, 39,42,<br />

53). É óbvio que ele, mais do que ninguém, gozava de grande intimidade com Deus.13<br />

O mandamento de amar até os inimigos tem este propósito: que sejamos filhos do<br />

Pai celestial, “porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos"<br />

(5.43-45).14 Jesus em seguida afirma que, se amamos aqueles que nos amam, não estamos<br />

fazendo mais do que as pessoas comuns, e isso não basta para os servos de um Deus<br />

amoroso: devemos ser perfeitos como o Pai é perfeito (v. 48). É nesse contexto que Mateus<br />

registra o resumo que Jesus faz da lei em dois mandamentos, de amar a Deus de todo o nosso<br />

coração e nosso próximo como a nós mesmos (22.34-40). Os pacificadores serão chamados<br />

“filhos de Deus” (5.9).<br />

O cuidado de Deus se estende a toda a criação, pois ele alimenta os pássaros e veste as<br />

plantas (6.26-30; cf. 15.13); nem um pardal morre sem que seja essa a vontade do Pai<br />

(10.29).15O Pai dá coisas boas aos que lhe pedem (7.11; cf. 6.1-4, 6, 18). Quando estão em<br />

13 “U m estudo das implicações dos pronunciam entos d ejesu s, especialm ente daqueles em que ele fala<br />

de seu Pai, causa no leitor do N ovo T estam ento exatam ente a m esm a impressão causada nos opositores<br />

d ejesu s; é difícil fugir da conclusão de qu ejesu s queria m ostrar o relacionam ento especial que tinha com<br />

Deus, que tam bém indicava divindade” (A lbright e M ann, M atthew, clviii). G ustav D alm an diz sobre o<br />

uso do term o “P a i” por Jesu s: “O uso da vida fam iliar é transferido para D eu s; é a m aneira de falar da<br />

criança com seu pai” ( T he words ojJesus. Edinburgh, 1902, p. 192).<br />

Ladd nega que isso significa que D eus é “Pai” de todos, e não só dos discípulos d ejesu s. Se virmos<br />

aqui uma paternidade universal, pensa ele, pela mesma exegese tem os de ver D eus com o Pai dos pássaros<br />

(6.26). “N ão é como Pai que D eus cuida dos pássaros, e não é com o Pai que D eus dá bênçãos da natureza<br />

àqueles que não são seus filhos" (A theology ojtbe N ew T estam ent, p. 86 [publicado no Brasil pela H agnos<br />

com o Teologia do N ovo Testamento]).<br />

5O grego diz: ã l / € V TOV T T a rp Ò Ç V flW P, "sem vosso pai”. B A G D cita a expressão equivalente “sem os<br />

deuses”, ou seja, “sem a vontade dos deuses”. David H ill registra a idéia de q u ejesu s quer dizer que "a<br />

m orte de um pardal e a m orte de um apóstolo não acontecem sem a presença de Deus, apesar de ele talvez<br />

não ter desejado o fim deles". Ele rejeita isso em favor de “sem a vontade de vosso Pai” (ARC; T he gospel o j<br />

M atthew. London, 1972, p. 193). Esta parece ser a m elhor interpretação.


dificuldades, ele lhes diz o que devem falar; na verdade, seu Espírito fala por meio deles<br />

.10.19-20).<br />

Deus se preocupa principalmente com as pessoas consideradas inferiores neste mundo.<br />

Ele fez sua revelação não aos grandes e sábios deste mundo, mas aos “pequeninos”<br />

v11.25). As pessoas precisam tomar cuidado para não desprezar um desses pequeninos, porque<br />

“os seus anjos nos céus vêem incessantemente a face [do] Pai celeste" (18.10). Há mistérios<br />

nessa afirmação, mas nenhuma dúvida de que os pequeninos são muito importantes aos<br />

olhos de Deus, tanto que não é da vontade divina que algum deles pereça (18.14).<br />

Mateus vê o interesse de Deus pela oração. Quando as pessoas concordam em oração,<br />

podem esperar com confiança a resposta de Deus (18.19). E, é claro, Jesus ensina a<br />

oração que viemos a conhecer como o “Pai nosso” (6.9-13).<br />

•s x ■ ■ ..... ... .......<br />

$7pessoa de $ esus<br />

Este evangelho está dominado pelo ensino de Jesus e pelo ensino sobre Jesus. Mateus<br />

até menciona outras coisas e outras pessoas, mas está escrevendo sobre Jesus, como o título<br />

do evangelho deixa entrever. Ele se concentra totalmente na grandeza do seu Senhor. W .<br />

D. Davies afirma: “E o destaque a Jesus como o Senhor do seu povo que Mateus tem em<br />

mente, na relação desse povo com a lei, sendo Jesus o novo Moisés do novo Sinai, e na relação<br />

de Jesus com o mundo, sendo a missão dele, dali em diante, para os gentios”.16 A introdução<br />

do evangelho destaca o nascimento incomum dejesus, a quem Mateus enfoca desde esse<br />

ponto até a ressurreição, com a qual ele encerra o livro. Vemos isso na maneira como ele usa<br />

expressões como “o Filho de Deus”, “o Filho do Homem” e “o Cristo". Sem falar dos detalhes,<br />

isso transparece em todo o quadro que ele pinta dejesus.17<br />

Várias vezes, Mateus registra o cumprimento de profecias na vida dejesus.18 Isso<br />

aparece logo no início (1.22-23) e às vezes assume formas inesperadas, como na expressão<br />

16Jam es H astings, ed., Dictionary o j the Bible, ed. rev., ed. F. C , G rant e H . H . Rowley, Edinburgh, 1963,<br />

p. 632.<br />

17 C f. G eorg Strecker: “O evangelho precisa ser explicado principalm ente em term os de cristologia,<br />

não de eclesiologia" (G raham Stan to n, éd., T he interprétation ofM atthew . Philadelphia e London, 1983, p.<br />

77). Stan to n observa que W . T rillin g e E. Schw eizer acham que a ênfase é eclesiológica, e com enta:<br />

“C ertam ente esse debate é desnecessário; os dois tem as são im portantes para o evangelista" (p. 8). Isso é<br />

verdade, mas para M ateus nada é tão im portante quanto a cristologia.<br />

18 H á uma série de “passagens de cum prim ento" em M ateus, que inicia pelo m enos dez (e possivelm<br />

ente até catorze) citações usando o verbo TTÁrjpObJ, e em que o texto difere do da LX X , que M ateus usa<br />

em outros lugares (p. ex., 1,22-23; 2.15). O s estudiosos têm debatido m uito essas passagens, sem chegar<br />

a um consenso. Para nosso propósito, é suficiente observar que elas representam um a m aneira característica<br />

de M ateus de enfatizar a im portância do cum prim ento das profecias.


"Ele será chamado Nazareno” (2.23),19 e continua por todo o evangelho; até na narrativa da<br />

paixão Mateus ainda dá destaque às profecias que se cumprem (27.46). E provável que ele<br />

queira que tenhamos a mesma perspectiva básica em passagens que não a apresentam<br />

explicitamente. Robert Banks, por exemplo, estudou a passagem em que Jesus diz que não<br />

veio revogar a Lei ou os Profetas, mas cumpri-los (5.17-20), e conclui “que ele não está tanto<br />

interessado em retratar a posição de Jesus em relação à Lei, mas que posição a Lei tem<br />

em relação a Jesus, como aquele que a cumpre e em quem toda a atenção deve se concentrar<br />

de agora em diante. Para Mateus, portanto, não é a questão da relação de Jesus com a Lei<br />

que está em dúvida, mas a relação desta para com ele!”20 Jesus não é alguém sujeito à Lei,<br />

mas aquele para quem as Escrituras como um todo apontam.<br />

Mateus vê a Jesus como aquele que fez “maravilhas”. Ele registra por volta de 20<br />

milagres, dos quais três quartos são curas (além desses, várias vezes ele relata que Jesus<br />

curou muitos; 4.23-25; 8.16; 14.36; 15.30-31; 19.2). Quase sempre seus relatos são mais<br />

curtos que as narrativas correspondentes em Marcos; ele omite detalhes pitorescos e se<br />

concentra apenas nos fatos. Parece que está mais interessado em seu sentido teológico do<br />

que em suas propriedades para cativar a atenção.21 Seus milagres cumpriam profecias<br />

(8.17; 12.15-21), e isso quer dizer que eles eram mais do que feitos espetaculares. Faziam<br />

parte do plano de Deus e mostravam que havia chegado aquele que Deus queria que chegasse<br />

no tempo certo. Aqui estava alguém maior que o profetajonas, maior que o magnífico<br />

rei Salomão, maior que qualquer profeta, rei ou sacerdote. Os que testemunhavam os<br />

milagres deviam perceber neles a mão de Deus.<br />

Isso está implícito na resposta de Jesus a João Batista. Da prisão, João enviou mensageiros<br />

que perguntaram a Jesus: “Es tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar<br />

outro?” Jesus apontou para as coisas que estava fazendo (11.2-6); elas mostravam quem ele<br />

era. Isso também está implícito na repreensão dejesus contra as cidades em que ele realizara<br />

tantas maravilhas e que não haviam reagido da maneira certa (11.20-24). Isso não quer<br />

dizer que Mateus retrate a Jesus simplesmente como um milagreiro. Pessoas assim não<br />

Isso é um m istério, pois as palavras não ocorrem no A ntigo T estam ento. Alguns estudiosos vêem<br />

uma ligação entre a palavra hebraica que significa “ram o”, "broto”, e a palavra “N azaré”; vêem uma referência<br />

a passagens com o Isaías 11.1. M ateus tem o plural, “os profetas”, o que pode indicar que ele tem<br />

em m ente a mensagem geral do ensino profético, e não uma passagem específica. R. V . G , T ask er vê uma<br />

alusão ao “desprezo por Jesus dem onstrado pelas autoridades religiosas de Israel por causa da sua ligação<br />

co m o que consideravam um cantão interiorano” (T h e gospel accordingto st. M atthew. London, 1961, p. 45V<br />

JB L 93 (1 9 7 4 ):2 4 2 . Banks acrescenta: “C om o este estudo tentou m ostrar, porém, essa m aneira de colocar<br />

a questão brota das palavras autênticas d ejesu s que o relato de M ateus abriga".<br />

C f. Sherm an Joh nso n: “M ateus, ao contrário de M arcos, não se detém nos detalhes dos milagres, Ele<br />

os usa por seu propósito teológico e os resum e ao essencial” (T h e theology o f thegospels, p. 60 n. 1).


eram raras na antigüidade, pelo menos em épocas posteriores a Jesus,22 e é possível que<br />

algumas o tenham antecedido. Esses milagreiros procuravam surpreender as pessoas (e,<br />

muitas vezes, obter vantagens pessoais a partir disso). Os milagres de Jesus, no entanto,<br />

nâo obrigavam a pessoa a crer. Sempre era possível que os expectadores náo reconhecessem<br />

a mão de Deus no que ele estava fazendo, e isso aconteceu, por exemplo, no caso dos<br />

moradores de Nazaré. Estes reconheceram que Jesus fez “maravilhas”, mas, em vez de crer<br />

nele, se escandalizaram (13.54-58), Herodes, o tetrarca, também não tinha dúvidas sobre a<br />

veracidade dos milagres de Jesus. Mas ele também não respondeu com fé. Descartou os<br />

milagres com a curiosa explicação de que Jesus erajoão Batista ressurreto (14.1-2).<br />

No entanto, era possível outra atitude. Quando Jesus andou sobre as águas e chamou<br />

Pedro para vir até ele, o episódio atinge seu auge no momento em que os discípulos,<br />

adorando ajesus, declaram: “Verdadeiramente és Filho de Deus!” (14.33). Devemos constatar<br />

ainda que Jesus permitiu que Pedro participasse do seu poder: ele também andou<br />

sobre as águas. Em outra ocasião, Jesus curou muitas pessoas, e a multidão reagiu glorificando<br />

o Deus de Israel (15,31). Quem tinha percepção espiritual observava que, nos milagres<br />

de Jesus, Deus estava atuando de maneira especial.23<br />

Isso também fica nítido no relacionamento de Jesus com Deus em todo este evangelho.<br />

Como já vimos, é digno de nota que ele se refere constantemente a Deus como seu Pai,<br />

trazendo assim um novo elemento para a religião. Ele viveu em grande intimidade com Deus.<br />

De outro ângulo, a grandeza de Jesus é vista em sua afirmação de que virá em glória no<br />

fim dos tempos. Veremos ser este um dos aspectos importantes do uso que Jesus faz do termo<br />

“o Filho do Homem". O Filho do Homem haveria de sofrer, mas também, no devido<br />

tempo, viria com seus anjos para colocar fim a este mundo. As vezes notamos esse pensamento<br />

mesmo sem a presença do título “o Filho do Homem”, a exemplo de quando os discípulos<br />

perguntaram ajesus: “Que sinal haverá da tua vinda e da consumação do século?” (24.3),<br />

Vemos isso também nas funções pertinentes a Deus exercidas por Jesus. Por exemplo,<br />

ele declarou que tinha poder sobre a terra para perdoar pecados e valeu-se de um milagre<br />

para provar isso (9.2-8). O mesmo ocorre com o julgamento (12.18; 25.31-46). Julgar é<br />

uma função divina. Os judeus não esperavam que o Messias a exercesse. Strack-Billerbeck<br />

~2 W illiam F. A lbright e C . S. M ann m ostra que “os milagreiros helenistas em questão são, até onde sabemos,<br />

de data posterior a C risto” (T h e Anchor Bible: M atthew. N ew York, 1971, cxxv). Parece que alguns<br />

escritores estão errados ao apelar a esses m ilagreiros com o se fossem um fenôm eno bem conhecido na<br />

época de Jesus, constrangendo a igreja antiga a enquadrar Jesus no m esm o padrão. A té onde sabemos,<br />

não havia um padrão desses naquela época.<br />

"3 Raym ond E, Brow n cham a a atenção para o fato de que Jesus “sem pre se recusou a fazer um milagre<br />

sim plesm ente a título de prova. [...] O milagre não era prim ordialm ente uma garantia externa da vinda<br />

do reino; era um dos meios pelos quais o reino viera” (N ew Testam ent essays. M ilw aukee, 1965, p. 171).<br />

C om o eu já disse há alguns anos, “os milagres não são algo a mais, algo acrescentado à revelação para lhe<br />

dar crédito. Eles fazem parte da revelação" (T h e Lord from heaven. London, 1958, p. 20).


afirma: “Do ponto de vista dos rabinos, é exclusivamente Deus quem julgará o mundo. [...]<br />

N a literatura rabínica, não há nenhuma passagem que inequivocamente coloque o julgamento<br />

do mundo nas mãos do Messias”.24<br />

Poderíamos fazer outras citações. Mas a ênfase do evangelista deve ser entendida<br />

não tanto por passagens específicas e sim pela mensagem geral. Para ele, não pode haver<br />

dúvidas de que só em Jesus Cristo vemos Deus efetuando nossa salvação.<br />

0


Jesus certa vez afirmou ter intimidade especial com o Pai ao empregar esse título.<br />

Ele agradeceu ao Pai o fato de este ocultar certas verdades dos sábios deste mundo e reve-<br />

Li-las aos pequeninos. E acrescentou: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém<br />

conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o<br />

Filho o quiser revelar” (11.27). Jesus continua dizendo que traria alívio aos que estão cansa-<br />

dos de trabalhar e de carregar fardos; se tomarem sobre si o “jugo” dele, encontrarão “descanso<br />

para a [...] alma” (11.28-29). Essa é uma afirmação de relacionamento muito especial<br />

com o Pai. Jesus está dizendo que tem o mesmo conhecimento íntimo do Pai que o Pai tem<br />

dele. Trata-se de um relacionamento que nenhuma outra pessoa tem, acompanhado das<br />

mais importantes conseqüências para os que vão a Jesus.<br />

Devemos tirar a mesma conclusão das narrativas da infância em Mateus. Ele faz o<br />

relato do “nascimento virginal” (apesar de “concepção virginal” ser uma descrição mais exata<br />

do fato) e da vinda dos magos para adorar o menino Jesus. Qualquer que seja a terminologia,<br />

esses relatos transmitem a verdade de que Mateus estava escrevendo sobre aquele<br />

cujo relacionamento com Deus é único.<br />

0 *7ilho do fornem<br />

• ■ ............ ■■ ■ ■<br />

Mateus contém os equivalentes de quase todas as passagens em que Marcos usa essa<br />

expressão e preserva os três grupos de Marcos: palavras sobre o ministério terreno de Jesus,<br />

as que expressam sofrimento e as que se referem à sua vinda em glória. Ele também, a<br />

exemplo de Marcos, concentra esse título no último período do ministério. Narra doze<br />

milagres de cura antes da confissão de Pedro em Cesaréia de Filipe (além de relatos gerais<br />

de várias curas, p. ex., 4.23-25; 8.16) e dois depois; antes da confissão de Pedro, ele relata<br />

quatro “milagres na natureza” e um depois. Uma vez, porém, que Pedro passa a compreender<br />

a pessoa de Cristo, o Senhor começa a ensinar que era necessário que ele sofresse e<br />

morresse. Há 9 ocorrências de “o Filho do Homem” antes desse ponto e 20 depois dele. A<br />

expressão está ligada à visão que Jesus tem da sua missão, que englobava não só sofrer pelos<br />

pecadores, mas também, no fim, ser exaltado.<br />

Mais numerosas do que em Marcos, Mateus tem o que podemos chamar de referências<br />

gerais de Jesus à sua missão. Ele diz, por exemplo, que o Filho do Homem não tem<br />

onde repousar a cabeça (8.20) e que come e bebe (11.19). Às vezes essas expressões apontam<br />

para um ser de grande dignidade, como nas declarações de que o Filho do Homem tem<br />

‘ Filho de D eu s” dizendo: “C oncluím os que Jesu s se considerava Filho de D eus de m odo especial” (A<br />

:heology o f the N ew Testament, p. 168).


autoridade sobre a terra para perdoar pecados (9.6) e que ele é senhor do sábado (12,8).<br />

Neste mundo ele se dedica a plantar a “boa semente” (13.37).<br />

Em Cesaréia de Filipe, Jesus perguntou: “Quem diz o povo ser o Filho do Homem?”<br />

(16.13). Essa pergunta, subitamente, mostra que o título não era de uso comum como título<br />

messiânico; se fosse, Jesus teria dado a resposta do modo como fez a pergunta. Desse<br />

ponto em diante, todas as referências ao “Filho do Homem” tratam ou da sua rejeição e<br />

sofrimento (8 vezes) ou da sua exaltação em glória (12). Logo depois da confissão de<br />

Pedro, “começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para<br />

Jerusalém e sofrer muitas coisas...” (16.21; em Marcos essa é uma das frases com “Filho do<br />

Homem”). A predição se repete: “O Filho do Homem há de padecer”; “O Filho do<br />

Homem está para ser entregue nas mãos dos homens; e estes o matarão” (17.12, 22-23); “O<br />

Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas” (20.18); “O Filho<br />

do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”<br />

(20.28); “O Filho do Homem será entregue para ser crucificado” (26.2); “O Filho do<br />

Homem vai, como está escrito a seu respeito” (26.24); “Ai daquele por intermédio de quem<br />

o Filho do Homem está sendo traído!” (26.24); “O Filho do Homem está sendo entregue<br />

nas mãos de pecadores” (26.45). Há uma grande ênfase no sofrimento como objetivo da<br />

vinda do Filho do Homem,<br />

Todavia, não devemos deixar de ver o outro lado da ênfase de Mateus. Não muito<br />

depois da predição em Cesaréia de Filipe de quejesus iria sofrer, temos a profecia de que “o<br />

Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos” (16.27). Há uma referência<br />

à ressurreição (17.9) e outra à ocasião em que irá “o Filho do Homem se assentar no<br />

trono da sua glória” (19.28). A vinda do Filho do Homem será como um relâmpago<br />

(24.27): esse "sinal” será visto no céu, e “todos os povos da terra se lamentarão e verão o<br />

Filho do H om em vindo sobre as nuvens do céu, com poder e muita glória” (24.30). Sua<br />

vinda será como nos dias de Noé (24.37, 39): inesperada (24.44). Será em glória (25.31);<br />

Jesus garante ao sumo sacerdote: “Vereis o Filho do Homem assentado à direita do<br />

Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (26,64).<br />

Essa é uma série impressionante de passagens. Mateus não deixa dúvidas de que a crucificação<br />

é o centro da missão de Jesus. Foi para isso que ele veio. Mas ele também não nos deixa<br />

dúvidas de que esse não é o fim da história. Haverá a vinda do Filho do Homem. A hora ninguém<br />

conhece, nem o próprio Filho (24.36). O que Mateus ressalta é a certeza, não a hora.<br />

O Cristo<br />

Mateus repete quase todas as referências de Marcos ao Cristo. Falta aquela que se<br />

refere ao ato de dar um copo de água fria a quem pertence a Cristo (Mc 9.41; Mateus terr.


“porque é meu discípulo"); também falta o desafio para que “o Cristo, o rei de Israel”, desça<br />

da cruz (Mc 15.32; Mateus tem o “rei”, mas não o “Cristo”). Entretanto, Mateus tem referências<br />

próprias. Ele faz uso do título cinco vezes na introdução do evangelho — primeiro<br />

no título, “Livro da genealogia de Jesus Cristo”; depois em uma referência a “Maria, da qual<br />

nasceu Jesus, que se chama o Cristo” (1.16); depois numa alusão ao tempo decorrido do<br />

exílio babilónico até Cristo (1.17); no anúncio da narrativa do nascimento de Jesus Cristo<br />

(1.18); e na indagação de Herodes sobre onde o Cristo nasceria (2.4). Desde o começo fica<br />

claro que Mateus está escrevendo sobre o Cristo, o Messias. Mais tarde ele nos diz que, na<br />

prisão, João Batista ouviu falar das "obras de Cristo” (11.2).<br />

Depois disso chegamos à grande confissão de Pedro em Cesaréia de Filipe, que<br />

Mateus descreve com um pouco mais de detalhes do que Marcos. Onde Marcos relata que<br />

Pedro declarou simplesmente "Tu és o Cristo”, Mateus tem a declaração mais completa:<br />

“T u és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (16.16), Jesus lhe disse que isso lhe fora “revelado”<br />

— não por um ser humano, mas pelo Pai celeste (16.17). E acrescentou que edificaria sua<br />

igreja sobre essa rocha (16.18), que as portas do Hades não prevaleceriam contra ela, e que<br />

daria a Pedro as “chaves do reino dos céus”. O episódio termina com a instrução de Jesus<br />

aos discípulos para que não contassem a ninguém que ele era o Cristo (16.20). Essa passagem<br />

levanta dificuldades enormes, algumas das quais estudaremos mais à frente. Aqui basta<br />

observar que a passagem reserva para Pedro um lugar de liderança, com base em sua<br />

confissão. E ela nos mostra que, como o Cristo, Jesus antevia um futuro importante para<br />

seus seguidores.<br />

Mateus registra a pergunta de Jesus aos fariseus: "Que pensais vós do Cristo? De<br />

quem é filho?” (22.42) — perguntas que levaram a uma discussão sobre o Filho de Davi.<br />

Pode-se dizer que o Cristo, apesar de Filho de Davi (e, com isso, aos olhos das pessoas<br />

daquela época, subordinado a Davi), é, na verdade, Senhor de Davi. Mais tarde lemos que<br />

os discípulos têm só um Mestre, o Cristo (23.10). Outras afirmações evidenciam o fato de<br />

que, numa época futura, surgiriam pessoas alegando ser o Cristo (24.5, 23).<br />

No julgamento de Jesus, o sumo sacerdote lhe disse: "Eu te conjuro pelo Deus vivo<br />

que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus” (26.63), ao que Jesus respondeu: "Tu o disseste”.<br />

E acrescentou que viria sobre as nuvens do céu (26.64). Ê evidente que o sumo sacerdote<br />

não levou a sério a possibilidade de Jesus ser o Cristo. Ele fez a pergunta não para obter a<br />

informação, mas porque a alegação de Jesus de ser o Cristo poderia ser interpretada como<br />

rebelião incipiente contra os romanos. A resposta de Jesus não inclui o termo. A maneira<br />

como ele responde implica que as palavras são do sumo sacerdote, não dele; pelo modo como<br />

o sumo sacerdote entendia o termo, ele não era o Cristo. Mas se não podia afirmá-lo, também<br />

não podia negá-lo, pois no sentido em que ele usava o termo, ele era mesmo o Cristo.<br />

Devemos ter em mente que a alegação de ser o Messias não era considerada blasfêmia<br />

em si. O sumo sacerdote não estava tentando levar Jesus a fazer uma declaração blasfe-


ma, mas levá-lo a dizer algo que pudesse ser transformado em acusação diante de Pilatos.<br />

Um “messias", podia ser argumentado, é um personagem político, líder de uma rebelião e,<br />

por isso, um perigo em potencial para Roma, A resposta de Jesus deve ter sido surpreendente,<br />

pois esquivou-se da arena política, mas reivindicou um lugar muito mais importante.<br />

Naturalmente o sumo sacerdote e seus aliados fizeram uso do termo, pois vemos os<br />

zombadores batendo em Jesus e ordenando: “Profetiza-nos, ó Cristo, quem é que te<br />

bateu!" (26.68). E duas vezes Pilatos falou de Jesus, “chamado Cristo” (27.17, 22).<br />

Neste evangelho, portanto, "Cristo” é claramente um título, com a possível exceção<br />

da frase introdutória, onde pode ser nome próprio. Em outros lugares falta-lhe o artigo<br />

apenas quando os zombadores se dirigem a Jesus como "Cristo”. Para Mateus, a palavra<br />

significa “o Ungido”, “o Messias". E Jesus desempenhou essa função.<br />

0 libo de *2)aví<br />

Davi foi o grande rei de Israel, o homem segundo o coração de Deus. Entre todos os<br />

reis de Israel e Judá não houve nenhum que se equiparasse a ele, e é claro que “Filho de<br />

Davi" se tornou, com isso, um título de elevada honra,26 bem como uma indicação de que a<br />

pessoa que o recebia podia afirmar ser descendente do maior de todos os reis. Ele era usado<br />

como título messiânico e, como tal, expressava o anseio por um Messias que restaurasse o<br />

reino de Davi e, em termos gerais, fosse para o povo aquilo que Davi fora no seu tempo para<br />

os seus. No primeiro século, essa expectativa pode ter contido um elemento militar (Davi<br />

não fora um guerreiro valoroso?). Para uma nação conquistada, isso era uma manifestação<br />

de esperança, esperança de liberdade sob seu próprio líder, e não debaixo do conquistador<br />

odiado. Essa talvez tenha sido a razão por que o título não recebe nos evangelhos o mesmo<br />

destaque que outros títulos messiânicos. Marcos e Lucas o empregam apenas três vezes<br />

cada um, e nos demais livros do Novo Testamento ele também não aparece muito. Isso é<br />

fácil de entender, pois, fora da Palestina, quem conhecia ou se interessava por Davi? Todavia,<br />

não devemos dar a isso muita ênfase, pois se trata de referências ocasionais à descendência<br />

davídica de Jesus (cf. At 13.34; Rm 1.3; 2Tm 2.8). Mas está claro que Davi não<br />

predominava na descrição que a igreja antiga fazia de Jesus.<br />

Mateus, no entanto, utiliza a expressão “Filho de Davi” nove vezes (incluindo uma<br />

referência ajosé, 1.20). Ele começa seu evangelho com uma referência ajesus Cristo como<br />

“Filho de Davi” (ao que ele acrescenta “filho de Abraão”). Logo no começo ele deixa claro<br />

que o relacionamento de Jesus com Davi é importante. Ele realmente será tudo o que está<br />

Gustav D alm an estudou a descendência davídica de Jesus (T h e words o f Jesus, p. 3 1 9 -3 2 4 ), Ele acha<br />

que, quando o povo cham ou Jesu s de “filho de Davi”, “praticam ente estavam se dirigindo a ele como<br />

'M essias'” (p. 319).


implícito na figura de um rei da linhagem do grande líder de Israel. Depois disso, porém,<br />

Mateus (a exemplo dos outros sinóticos) sempre apresenta a expressão na boca de terceiros,<br />

na maioria das vezes num pedido de ajuda a Jesus. Assim, dois homens cegos gritaram<br />

parajesus: “Tem compaixão de nós, Filho de Davi!” (9.27). E interessante que uma mulher<br />

cananéia se dirigiu a ele usando esse título, ao pedir ajuda para sua filha: "Senhor, Filho de<br />

Davi, tem compaixão de mim...” (15.22). Talvez ela pensasse que seria uma boa política<br />

apelar ao sentimento nacionalista judaico. Qualquer que tenha sido o motivo, ela empregou<br />

o título. Observe ainda que ela o ligou a “Senhor”, e esse também foi o caso no insistente<br />

pedido de dois cegos: "Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós!” (20.30-31). Em<br />

outra ocasião, Jesus curou um endemoninhado cego e mudo, fazendo os expectadores se<br />

perguntarem se aquele seria o “Filho de Davi” (12.23).<br />

Mateus relata que, quando da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, entre outras<br />

coisas a multidão exclamava: “Hosana ao Filho de Davi” (21.9), exclamação que as crianças<br />

retomaram mais tarde e repetiram nos recintos do templo (21.15); observe também a presença<br />

de cegos e paralíticos (21.14); será que Mateus quer que vejamos a Jesus como rei sobre as<br />

pessoas consideradas inferiores, os "pequeninos”? O sentido exato de "hosana” é incerto, mas<br />

obviamente é uma aclamação de honra à pessoa saudada. E é interessante que, em sua entrada<br />

triunfal em Jerusalém, foi como “Filho de Davi” que a multidão aclamou Jesus.<br />

No fim de um episódio em que os inimigos de Jesus lhe fizeram uma série de perguncas<br />

ardilosas e ficaram desconcertados com suas respostas, ele os convidou a pensar com ele.<br />

Perguntou de quem o Cristo seria filho e recebeu a resposta "de Davi”. Então ele citou o salmo<br />

110, que chama o Messias de "Senhor", e continuou a perguntar: “Se Davi, pois, lhe chama<br />

Senhor, como é ele seu filho?" (22.41-45). Naquela época, o povo em geral pensava ter<br />

existido uma era de ouro no passado e deduzia que os antigos tinham sido maiores e mais<br />

sábios que a geração presente. Por isso se esperava que Davi fosse maior que seus descendentes.<br />

Mas o Messias não seria realmente grandioso? E o salmo não o chama Senhor? Como<br />

podia o Messias (que viria mais tarde) ser maior que Davi (que havia sido tão importante)?<br />

Os fariseus não souberam responder. Para Mateus, porém, Jesus como Messias é maior do<br />

que Davi, e essa realidade não foi questionada nem por um momento. O fato de ele ser “Filho<br />

de Davi” lembrava alguns aspectos importantes de sua pessoa e obra; apontava para sua grandeza.<br />

Mas não subentendia que ele era de alguma maneira inferior a Davi.<br />

O reino<br />

A exemplo de Marcos e Lucas, Mateus tem muito a dizer acerca do quejesus ensina<br />

sobre o reino. Enquanto eles, porém, tendem a se concentrar no “reino de Deus”, Mateus<br />

usa a expressão apenas cinco vezes. Ele prefere “reino dos céus", expressão que emprega 32


vezes e que, na opiniào da maioria dos estudiosos, significa a mesma coisa, sendo não mais<br />

do que uma maneira tipicamente judaica de evitar o uso do nome de Deus, Além disso, ele<br />

traz expressões como "o reino” (seis vezes, p, ex,, 4.23), “teu reino” (uma vez, em oração,<br />

6.10). Ele diz que o reino é do Filho do Homem (três vezes: 13.41; 16,28; 20.21). Ele menciona<br />

o “reino de seu Pai” (uma vez, 13.43); também o “reino de meu Pai" (uma vez, 26.29).<br />

Somando todas, Mateus usa expressões como essas quase 50 vezes. Ele também faz alusão<br />

ao "trono de Deus” (23.22), o que, é claro, indica soberania.<br />

Mateus inclui quase todo o ensino de Marcos sobre o reino (omite só a pequena<br />

parábola da semente que cresce em segredo, e a referência ao escriba que não estava longe<br />

do reino), mas lhe acrescenta material importante. Como Marcos, ele nos diz que Jesus<br />

ensinou que o reino havia chegado (4.17), mas também diz que João Batista havia apontado<br />

para a mesma realidade (3.2) e que os discípulos foram instruídos a transmitir a mesma<br />

mensagem (10.7). Mateus não nos deixa esquecer de que o reino chegou na vinda dejesus.<br />

Isso, porém, não significa que Jesus lideraria um exército rebelde contra os romanos. Em<br />

todo o evangelho, Jesus é uma pessoa gentil e simples, e diz que os que tiverem as mesmas<br />

qualidades é que entrarão no reino: os “pobres de espírito” (5.3), os perseguidos (5,10), os<br />

que são como as crianças (18.1-4). Mais desconcertante foi sua advertência aos religiosos<br />

do seu tempo de que os cobradores de impostos e as prostitutas os precederiam no reino de<br />

Deus (21.31). Considerando a opinião geral de que a riqueza era sinal da bênção de Deus,<br />

devemos ligar isso ao ensino dejesus de que é difícil para um rico entrar no reino — tão<br />

difícil, de fato, que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha (19.23-24).<br />

Nenhuma dessas coisas significa quejesus não dava importância às implicações éticas<br />

do fato de ser membro do reino. Ele disse aos seus ouvintes que, se a justiça deles não<br />

excedesse em muito a dos escribas e fariseus, certamente não entrariam no reino (5.20).<br />

Não basta chamá-lo "Senhor, Senhor”; é preciso fazer a vontade de Deus (7.21). Ele fala<br />

sobre seriedade no comportamento ético, como aqueles que se fazem eunucos "por causa<br />

do reino dos céus" (19.12). Há várias parábolas que enfocam o valor inestimável do reino,<br />

como a do comerciante que, procurando pérolas preciosas, vendeu tudo o que tinha e comprou<br />

uma especial, e a do homem que vendeu tudo o que tinha para conseguir um tesouro<br />

escondido num campo (13.44-45). Essas passagens, evidentemente, não implicam que as<br />

pessoas conquistam seu lugar no reino pelos méritos próprios, mas simplesmente enfatizam<br />

que temos de ser resolutos em relação ao reino.<br />

Pela parábola dos trabalhadores na vinha se mostra que o caminho para entrar no<br />

reino é a graça (20.1-16). Não parece justo que aqueles que trabalharam arduamente no<br />

calor do dia e fizeram a maior parte do trabalho não recebem mais do que aqueles que trabalharam<br />

só uma hora, no frescor da tarde. Jesus, porém, está demonstrando de modo brilhante<br />

a grande verdade de que não merecemos nossa salvação por causa de nosso trabalho<br />

árduo. Deus nos salva porque nos ama, não porque somos bons. T . W . Manson nos lem­


a de que havia uma pequena moeda chamada ponàion, que valia a duodécima parte de um<br />

denário, equivalente ao salário de um dia. O contratante poderia ter pago a cada trabalhador<br />

exatamente o número de horas trabalhadas. Mas “não existe algo como a duodécima<br />

parte do amor de Deus”.2, O amor de Deus em toda a sua plenitude é derramado sobre o<br />

mais humilde dos seus filhos. No entanto, se o reino não pode ser obtido por nossas próprias<br />

obras, ele é uma dádiva à qual devemos dar o maior valor. João Batista era um grande<br />

homem, disse Jesus, tão grande que não existira outro maior entre os nascidos de mulher,<br />

mas o menor no reino é maior do que João (11.11). E essa grande dádiva não é só para<br />

alguns escolhidos. No fim, muitos virão do Oriente e do Ocidente (do mundo inteiro)<br />

para estar com Abraão, Isaque e Jacó no reino (8.11). A expressão “o reino de Deus" (ou<br />

“dos céus”) não ocorre antes do Novo Testamento, mas certamente os judeus conheciam<br />

um pouco da idéia. Os profetas do Antigo Testamento esperavam a vinda do "Dia do<br />

Senhor” há muito tempo (cf. Am 5.18) e continuou circulando a idéia de que, no devido<br />

tempo, Deus interviria no mundo. Ele destruiria todo mal e estabeleceria uma nova ordem<br />

que se harmonizasse com sua vontade. No período intertestamentário, a idéia floresceu, e a<br />

literatura apocalíptica expôs em linguagem ilustrativa a profunda convicção dos escritores<br />

de que Deus com certeza derrotaria o mal, e isso se daria logo. Por isso o que Jesus dizia<br />

sobre o reino despertava uma reação em muitos corações fiéis e patriotas.<br />

O ensino de Jesus, porém, não se enquadrava em nenhum modelo conhecido pelo<br />

povo. Em especial sua mistura de presente28 e futuro era surpreendente. E até hoje é. Há<br />

estudiosos que põem toda a ênfase no reino como realidade presente (“escatologia realizada”)<br />

e há outros que pensam que Jesus o entendia como totalmente futuro, algo ainda por<br />

vir. Contudo, em vez de tentar encaixar todo o seu ensino em um molde feito por nós, é<br />

melhor reconhecer que às vezes Jesus falava do reino como algo presente e outras vezes<br />

como algo futuro. Num sentido muito importante, o reino chegou juntamente com Jesus.<br />

Deus estava presente em Jesus, fazendo maravilhas, ensinando realidades espirituais,<br />

reconciliando o mundo consigo mesmo. Essa vinda transformou tudo. Mas em outro sentido<br />

igualmente importante, o reino ainda é futuro. Ele virá quando Jesus voltar. Numa<br />

acepção de grande relevância, o reino chegou por causa da vinda de Jesus, Mas noutra acepção<br />

de igual relevância, o reino virá quando Jesus vier de novo. Ele é presente. E é futuro.<br />

Por isso, Jesus afirma que o Filho do Homem virá em sua glória com todos os seus<br />

anjos e se assentará em seu trono glorioso (25.31), claramente um acontecimento do futuro.<br />

Então dirá a certas pessoas: “Vinde! [...] Entrai na posse do reino que vos está preparado”<br />

(25.34). Essa consumação futura certamente está em vista quando Jesus diz que não<br />

T he sayings o f Jesus. London, 1949, p. 220.<br />

■*C. H . D odd entende que o que Jesus disse sobre o reino de Deus é característico da realidade presente:<br />

“N ão há paralelo no ensino ou nas orações dos judeus da época” (T h e parables o f the kingdom. L ondon,<br />

1938, p. 49).


eberá do fruto da videira antes de bebê-lo no reino do seu Pai (26.29). Assim também a<br />

oração "venha o teu reino” tem um sentido ao mesmo tempo presente e futuro (6.10).<br />

Existe a idéia de que neste evangelho (e, de certa forma, em todo o Novo Testamento),<br />

a consumação de todas as coisas é considerada iminente. As declarações de que o reino<br />

dos céus está próximo (3.2; 4.17; 10.7) são entendidas em termos de seu imediatismo, em<br />

toda a sua plenitude. Se isso pudesse ser provado por outras considerações, a linguagem de<br />

Mateus se harmonizaria, mas ela não define isso sozinha. O que a linguagem de Mateus<br />

parece dar a entender é que o ministério dejesus, que estava para começar, em certo sentido<br />

significava a chegada do reino.<br />

João Batista usou a linguagem da iminência (3.7, 10, 12), mas isso também parece<br />

apontar para o ministério dejesus. A missão dada aos Doze inclui uma advertência sobre o<br />

dia do juízo, mas não indica quando ele se dará (10.15). Um pouco adiante, Jesus garante<br />

aos seus apóstolos: “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel, até que venha o Filho<br />

do Homem” (10.23). Isso sem dúvida parece ser uma afirmação de que aparousia está às<br />

portas, mas a frase é muito enigmática. Não está muito claro o que significa "acabar” as<br />

cidades ("de percorrer” é uma inferência dos tradutores), nem em que sentido a vinda do<br />

Filho do Homem deve ser entendida. Certamente os apóstolos terminaram aquela viagem<br />

missionária e retornaram ajesus antes do fim dos tempos,29 e Mateus sabia muito bem disso<br />

quando registrou essas palavras. Ele deve ter entendido a frase em algum outro sentido.<br />

Albright e Mann dizem: “A segunda parte do v. 23 simplesmente atesta uma verdade: a vinda<br />

do Homem acontecerá antes que a missão a Israel esteja concluída”.30<br />

Há referências à “colheita" e à “consumação do século” (13.30, 39), à divisão entre<br />

“peixes” bons e maus (13.47-50), à vinda do Filho do Homem na glória do Pai para dar a<br />

cada um a recompensa pelo que fez (16 27) e afirmações semelhantes. Estas certamente<br />

evidenciam o interesse de Mateus no que acontecerá no fim dos tempos, mas não dão<br />

nenhuma pista de quanto falta para que isso ocorra. Os discípulos perguntaram: “Que<br />

sinal haverá da tua vinda e da consumação do século?" (24.3), mas a resposta é dada em termos<br />

gerais e não há nenhum indício de que o fim seja iminente. O evangelho será pregado<br />

em todo o mundo antes que venha o fim (24.14). Ninguém, a não ser o Pai, sabe quando<br />

será o fim (24.36; cf. 25.13). Por isso, os seguidores dejesus devem vigiar (24.42); eles não<br />

sabem quando isso acontecerá e, portanto, precisam estar sempre atentos. A implicação é<br />

que tudo acontecerá num momento inesperado. Esse também é o ensino da parábola das<br />

29Ladd entende que a opinião de que o reino escatológico viria antes do fim da missão dos apóstolos<br />

está equivocada. “Essa interpretação não conta com o caráter com posto do capítulo. A perícope em<br />

questão claram ente olha além da missão imediata dos doze, para sua futura missão no m undo. N osso<br />

versículo diz apenas que a missão dos discípulos a Israel durará até a vinda do Filho do H om em . Ele indica<br />

que, a despeito da cegueira deles, D eus não desistiu de Israel. O novo povo de D eus deve se preocupar<br />

com Israel até que o fim venha” (A theology ojth e N ew Testament, p. 200).<br />

30 M attbew, p. 125.


dez virgens (25.1-3). Cinco virgens esperavam qne o noivo voltasse logo e por isso levaram<br />

pouco óleo de reserva. Estas, que estavam convictas de que o retorno seria iminente,<br />

riram-se excluídas da festa, Certa demora certamente está implícita logo no fim deste evangelho,<br />

quando Jesus manda fazer discípulos e batizá-los, e diz que estará com os seus “até à<br />

consumação do século” (28.20).<br />

Tudo isso certamente significa que a parousia de Jesus é de importância máxima. Mas<br />

isso não quer dizer quejesus ou seus seguidores esperavam a consumação de todas as coisas no<br />

futuro imediato. Haveria um intervalo, e em nenhum lugar há insinuações de sua duração.<br />

Çís parábolas do reino<br />

Um dos aspectos característicos dos evangelhos sinóticos é o uso quejesus faz de<br />

parábolas como meio de instrução (muitos estudiosos também vêem algo parecido em<br />

João). A. M. Hunter calcula que as parábolas perfazem mais de um terço dos registros do<br />

ensino de Jesus;31o conjunto do ensino de Jesus por meio de parábolas realmente é impressionante.<br />

Nesse estudo, observa-se em Mateus um grupo de especial importância de parábolas<br />

chamadas “parábolas do reino”.32 Onze vezes Mateus registra esta fórmula: “O reino<br />

dos céus é semelhante a...’”3(Marcos e Lucas registram-na duas vezes cada).<br />

Essas parábolas têm sido objeto de muitos estudos. C. H . Dodd afirmava que elas<br />

devem ser entendidas no contexto da conjuntura crítica provocada pela vinda de Jesus e<br />

que não é correto entendê-las como instrução geral sobre a vida cristã.34 Ele diz que devemos<br />

“descartar toda interpretação das parábolas que lhes dê uma aplicação geral e insistir<br />

em sua forte particularidade como comentários de uma situação histórica”. As parábolas<br />

“usam todos os recursos da ilustração dramática para ajudar as pessoas a ver que Deus as<br />

está confrontando com seu reino, poder e glória. Isso fica patente no que acontecia diante<br />

dos olhos delas, ou seja, nos milagres de Jesus, em seu apelo às pessoas e em suas conâeqüências;<br />

a bênção que recebem os que o seguem e o endurecimento daqueles que o rejei­<br />

31 Interpreting the parables, p. 7.<br />

32 L. M ow ry compara as parábolas de Jesus com as dos rabinos e conclui que estas, usadas “prim ordialmente<br />

para esclarecer ou provar um ponto da lei mosaica”, eram, “via de regra, caracterizadas por pedantismo<br />

escolástico, e não por força e originalidade. As parábolas de Jesus, por sua vez, confirmam a<br />

afirmação dos evangelistas de que ele ensinou e pregou com força de autoridade e novidade criativa” (IDB<br />

3:652).<br />

33J . Jerem ias faz objeção a essa tradução tradicional; ele entende que há um ! aram aico subjacente na<br />

frase e prefere: “O reino é assim :...” (T h e parables o f Jesus, London, 1954, p. 7 8 -7 9 ). I. H ow ard M arshall<br />

aceita isso (Eschatology and the parables. London, 1963, p. 2 7 -2 8 ),<br />

" C . H . Peisker, no entanto, diz: “A mensagem das parábolas não pode ser reduzida a um único tema;<br />

cada uma deve ser analisada individualmente” (D IT N T 2:1573),


tam, no conflito trágico da cruz e na tribulação dos discípulos, na escolha inexorável diante<br />

do povo judeu e nos desastres que o ameaça. Este mundo se tornou o palco de uma peça<br />

divina em que se expõem as questões eternas. É hora de tomar uma decisão. É escatologia<br />

realizada".35 Apesar de não defender a escatologia realizada, Colin Brown também insiste<br />

na necessidade de tomar uma decisão: “A verdade sobre Deus e o ser humano não pode ser<br />

aprendida diretamente como se fosse uma série de simples fatos que não envolvem um<br />

compromisso pessoal. As parábolas são episódios de linguagem que exigem uma resposta<br />

pessoal”.36<br />

Joachim Jeremias, em seu excelente estudo das parábolas (As parábolas de Jesus) se<br />

fundamenta na obra de Dodd. Em termos específicos, ele via nas parábolas que temos hoje<br />

indícios de que se efetuaram mudanças durante a transmissão. As parábolas originariamente<br />

dirigidas à multidão ou aos opositores dejesus são adaptadas para serem instruções<br />

aos discípulos, e relatos que tinham o propósito primordial de apresentar ensino escatológico,<br />

ou ensino sobre o momento crítico a que se chega com a vinda dejesus, agora são veículos<br />

de ensino exortativo.<br />

I. Howard Marshall, no entanto, em sua importante monografia Eschatology and the<br />

parables, parece ter conseguido provar que “a interpretação das parábolas em termos de<br />

escatologia realizada provoca explicações forçadas de muitas delas, e por outro lado a interpretação<br />

do ensino dejesus em termos de uma vinda iminente do reino não consegue fazer<br />

justiça às parábolas e leva a uma postura desnecessariamente cética em relação à sua autenticidade”.37<br />

Isso quer dizer que devemos entender que parábolas como a da semente que<br />

cresce em segredo e do grão de mostarda indicam a certeza de crescimento enquanto Deus<br />

executa seu propósito, e as da rede e do joio apontam para a resposta que Jesus espera das<br />

pessoas e para o juízo final. Outras parábolas ensinam que há um momento crítico que<br />

aguarda os ouvintes dejesus (as crianças que brincam, a figueira estéril), e ainda outras<br />

esperam que aparousia ocorra após um intervalo (as dez virgens, o ladrão que chega de noite,<br />

o servo bom e o mau).<br />

Estudar as parábolas é interessante, fascinante, e desvenda aspectos importantes do<br />

reino. Especificamente, elas ensinam que a vinda do reino traz consigo um momento crítico:<br />

ela obriga as pessoas a se decidir. Também dá início a um processo de grande crescimento<br />

(o grão de mostarda e o fermento, 13.31-33).38 O reino pode ter parecido<br />

insignificante na época dejesus, mas a história não acaba aí. Ele tem poder vital, e vai cres­<br />

35 T he parables o j the kingdom, p. 195, 197-198.<br />

“ d i t n t 2:1577.<br />

37Eschatology and the parables, p. 48.<br />

38 D odd acha que as parábolas do crescim ento são "suscetíveis a um a interpretação natural que as<br />

transform a num com entário da situação durante o m inistério d ejesu s”; ele exclui "um processo longo de


cer sem parar. As parábolas também ensinam que a consumação de tudo o que o reino significa<br />

espera pela parousia de Jesus, numa data futura desconhecida.<br />

S? paixão<br />

Mateus dedica cerca de quinze por cento do seu evangelho ao relato da crucificação<br />

e da ressurreição. Como ocorre também com os outros evangelistas, está claro que essa é a<br />

parte mais importante. Parece que o interesse de Mateus pelo tema começa cedo, pois ele<br />

registra as palavras de Jesus a João Batista quando esse pregador dajustiça hesitou em batizar<br />

aquele a quem disse: “Eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?”; ao que<br />

Jesus respondeu: "Deixa por enquanto, porque, assim, nos convém cumprir toda a justiça”<br />

^3.14-15). O sentido dessa resposta não é óbvio, mas parecem estar certos os intérpretes<br />

que vêem uma ligação com Isaías 53, em que se diz que o Servo “justo” “justificará” a muitos<br />

(Is 53.11); ele se identifica com eles e morre por eles. Por isso, C. E. B. Cranfield afirma: “A<br />

justiça que Jesus estava decidido a cumprir até o fim era o papel do Servo Sofredor do<br />

Senhor",39 Jesus “entra no rol dos pecadores. Desse modo, ele cumpre toda a justiça’”.40<br />

Não há uma referência explícita à paixão na narrativa da tentação, mas Mateus pelo<br />

menos deixa claro que, no limiar do seu ministério público, Jesus esteve diante de duas possibilidades:<br />

de ser um milagreiro e de estabelecer um imenso império com soberania sobre<br />

todo o mundo, mas rejeitou as duas coisas como tentações do Diabo. Não era dessa maneira<br />

que o Cristo cumpriria a vontade divina. Talvez vejamos um pouco disso outra vez,<br />

quando chegamos ao relato da transfiguração. Geralmente nós a tomamos como uma<br />

manifestação de esplendor, o que realmente não deixa de ser. Mas pode ser importante o<br />

fato de que os dois que conversaram com Jesus foram Moisés, que concedeu a Lei, e Elias, o<br />

profeta, os dois que haviam se afligido com os pecados do povo com o qual se identificavam.<br />

Quando desceram do monte, Jesus e seus amigos estavam falando da sua morte e ressurreição<br />

e do papel de João Batista nesses acontecimentos.<br />

desenvolvimento” (T h e parables o f the kingdom, p. 193). M as isso com certeza não faz ju stiça ao q u ejesu s<br />

realm ente disse.<br />

j9SJT 8 (1 9 5 5 ):5 4 . D e m odo sem elhante, G . W . H . Lam pe pensa que “pode não ser exagero dizer que<br />

essa citação m ostra que M ateus entende qu ejesu s estava interpretando sua condição de Filho e sua unção<br />

com o M essias para se identificar com o rem anescente ju sto de Israel e, com o seu representante, para<br />

se unir àqueles que se deixavam batizar por Jo ão Batista, a fim de que constituíssem uma nova com unidade<br />

dos ‘santos’. Talvez possam os ir até mais longe e ver um sentido mais profundo nas palavras de J e ­<br />

sus: o Servo que irá sofrer de modo vicário e levar sobre si as iniqüidades de m uitos’ garantirá uma<br />

justificação geral, ou declaração de justiça, do seu povo" (T h e seal o f the Spirit, London, 1951, p. 37-38),<br />

^ B arth , Tradition and interpretation in M atthew, p. 138.


Quer estejamos corretos, quer não, em ver uma referência ao sofrimento de Jesus<br />

em tudo isso, não pode haver dúvida de que Mateus várias vezes registra predições que<br />

Jesus fez da sua paixão. Joachim Jeremias entende a menção que Jesus fez dos dias em que<br />

“lhes será tirado o noivo’ ’ (9.15) como uma profecia direta da paixão messiânica.41 Jesus disse<br />

que “o Filho do Homem" estaria “três dias e três noites no coração da terra” (12.40). A<br />

exemplo de Marcos, Mateus relata que, imediatamente após a grande confissão de Pedro<br />

em Cesaréia de Filipe, "começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário<br />

seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e<br />

dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia” (16.21). O fato de os discípulos o<br />

reconhecerem como o Messias lhe serviu de sinal para que passasse a instruí-los quanto ao<br />

significado do Messias. Para Jesus, ser o Messias não devia ser entendido em termos de<br />

armas e batalhas vitoriosas, de esplendor e riqueza, mas de solidão, rejeição e pobreza. Significava,<br />

no fim, morrer por pecadores.<br />

A transfiguração é seguida de um milagre de cura e este, por sua vez, de outra predição<br />

da traição, da morte e da ressurreição (17.22-23). Depois, quando Jesus estava indo<br />

para Jerusalém, fez uma predição semelhante, dessa vez acrescentando que seria entregue<br />

aos gentios, que zombariam dele e o crucificariam depois de açoitá-lo. Mais uma vez,<br />

temos a garantia da ressurreição no terceiro dia (20.17-19).<br />

Ao contrário dos outros evangelhos, Mateus inicia sua narrativa da paixão com mais<br />

uma predição. Jesus disse: “Sabeis que, daqui a dois dias, celebrar-se-á a Páscoa; e o Filho do<br />

Homem será entregue para ser crucificado” (26.2). Mateus passa a enfatizar o cumprimento<br />

das Escrituras em tudo o que estava acontecendo na época (26.54, 56), especificamente em<br />

vários detalhes ligados à morte de Jesus. Assim, numa nítida alusão a Zacarias 11.12, ele faz<br />

referência ao pagamento recebido por Judas, pois menciona explicitamente as trinta moedas<br />

de prata, o que Marcos e Lucas não fazem (26.15). Do mesmo profeta ele cita palavras sobre<br />

o assassinato do pastor e sobre a dispersão das ovelhas (26.31; veja Z c 13.7). Sua afirmação<br />

de que está muito triste (26.38) é expressa com palavras que lembram os salmos (SI 42.6, 11;<br />

43.5), enquanto as palavras de Jesus ao sumo sacerdote, de que o Filho do Homem estará<br />

sentado à direita de Deus, lugar de quem exerce o poder, e virá com as nuvens do céu (26.64),<br />

também são do Antigo Testamento (SI 110.1; Dn 7.13). Mateus aponta para um cumprimento<br />

de profecia na compra do campo do oleiro com a quantia paga ajudas (27.9; vejajr<br />

32.6-9; Z c 11.12-13).<br />

Quando Jesus estava na cruz, foi-lhe oferecido vinho misturado com fel (27.34; veja<br />

SI 69.21), e as sortes lançadas sobre a roupa de Jesus constituem outra passagem em linguagem<br />

veterotestamentária (27.35; veja SI 22.18). Percebe-se isso também na zombaria<br />

dos que passavam e meneavam a cabeça (27.39; veja SI 22.7; 109.25). A insinuação de que a<br />

TDNT 4:1103; ele diz que m uitos acham que esse é um dito da comunidade.


confiança em Deus é inútil (27,43) é outro tema do Antigo Testamento (SI 22.8; a idéia se<br />

encontra em outros lugares, mas não é expressa em palavras tão parecidas com as de Mateus).<br />

Por último, há o grito de desespero que Mateus registra em comum com Marcos: "Deus<br />

meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (27.46; veja SI 22.1). Isso destaca o preço terrível<br />

que Jesus pagou ao morrer pelos pecadores. Mas porque ele sofreu esse abandono, os<br />

pecadores nunca precisarão experimentá-lo. E evidente que isso é importante para Mateus,<br />

pois essa é a única exclamação de Jesus na cruz que ele registra (veja ainda a análise em<br />

Marcos).<br />

Os três sinóticos registram a oração dejesus no Getsêmani, mas o relato de Mateus<br />

é o mais completo. Somente ele, por exemplo, nos relata que Jesus se dirigiu a Deus como<br />

‘meu Pai” (Marcos e Lucas registram apenas "Pai”). E apenas Mateus escreve que Jesus<br />

orou uma segunda vez e repetiu a mesma oração pela terceira vez. Para Mateus, o que ocorreu<br />

no jardim era de suma importância. Isso se vê ainda mais diante da certeza de que Deus<br />

poderia ter impedido que homens maus prendessem seu Filho. Mateus nos fala da confiança<br />

dejesus de que seu Pai poderia enviar “mais de doze legiões de anjos” (26.53). Sua<br />

morte não aconteceu por causa dos esquemas de Caifás e do poder militar de Pilatos, mas<br />

por causa da vontade de Deus. Isso também se vê na citação exata das palavras do Pai Nosso<br />

na oração dejesus no Getsêmani: "Faça-se a tua vontade” (26.42). Antes Jesus dissera:<br />

‘O meu tempo [kairos] está próximo” (26.18; cf, 26.45); aqui seu kairos certamente é o<br />

momento determinado por Deus para a consumação da sua obra de salvação. De grande<br />

importância para este evangelista é o fato de que a morte dejesus foi um ato de obediência<br />

ao Pai. Mateus pode ainda estar apontando para um quê de voluntariedade na morte de<br />

Jesus, com sua maneira incomum de descrevê-la: “Entregou o espírito” (27.50).<br />

Mateus enfatiza o papel dos anciãos na decisão da morte dejesus (26,3,47,57; 27,1, 3,<br />

12, 20, 41; 28.12), enquanto Marcos os menciona apenas três vezes nesse contexto, e Lucas,<br />

uma. Ele também faz referência freqüente ao sumo sacerdote ou aos principais sacerdotes<br />

(como Marcos), mas o fato de incluir os anciãos parece mostrar que não foram apenas os<br />

líderes religiosos que rejeitaram Jesus. Os líderes da nação em geral também estavam envolvidos.<br />

Mateus vê má intenção no conselho; ele era "contra Jesus, para o matar” (27.1); seus<br />

membros agiram para libertar Barrabás e destruir Jesus (27.20). E Mateus registra o clamor<br />

assustador da multidão: “Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!” (27.25).<br />

E a Mateus que devemos nossa informação sobre a inquietação dos romanos com o<br />

í]K€V TÒ nveOfia-, M arcos e Lucas dizem èÇÉTTPevcrei', e jo ã o tem TTapéSlúKev TÒ TTvev/ia.<br />

N enhum a dessas expressões costum a ser usada para a m orte. O verbo de M ateus às vezes é usado com<br />

~T}l’ (JjVXrjV (G n 35.18; Josefo, Ant, 1.218 et a l), mas isso tam bém não é comum.


que Pilatos lavou as mãos diante do povo, dizendo estar inocente do sangue de Jesus<br />

(27.24). Isso fez o povo assumir voluntariamente a responsabilidade pela morte de Jesus<br />

(27.25). Esse é o centro de todo o episódio com Barrabás (27.15-26). Mateus deixa claro<br />

que os romanos consideraram Jesus inocente e não quiseram executá-lo. Foram os judeus<br />

que exigiram Barrabás e insistiram em que Jesus fosse morto.<br />

Ele nos diz ainda que, quando Jesus morreu, coisas estranhas aconteceram. Além de<br />

mencionar que a cortina do templo se rasgou (registrado também em Marcos e Lucas), ele fala<br />

de um terremoto, de rochas que se partem, túmulos que se abrem e santos que ressuscitam,<br />

acrescentando que, após a ressurreição de Jesus, esses santos entraram na cidade santa e apareceram<br />

a muitos (27.51-53). Evidentemente Mateus quer que seus leitores percebam que a morte<br />

de Jesus foi um evento cataclísmico. Ele não está escrevendo sobre um acontecimento de<br />

pequena monta, mas sobre algo que trouxe abaixo aquilo que ocultava a presença de Deus no<br />

templo, que sacudiu os alicerces da terra e teve efeitos profundos no mundo dos mortos.<br />

Mateus registra uma declaração importante que mostra a importância da morte de<br />

Jesus. Ele explica o sentido do cálice na última ceia: “Isto é o meu sangue, o sangue da<br />

[nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados" (26.28). Não se<br />

sabe com certeza se devemos incluir a palavra “nova” (ausente de alguns dos manuscritos<br />

mais importantes, pode ter sido inserida no texto a partir da narrativa de Lucas). Contudo,<br />

mesmo se não a incluirmos, ela está implícita; qualquer “aliança" que Jesus fizesse naquele<br />

momento teria de ser nova. Jesus está se referindo claramente à grande profecia de Jeremias<br />

31.31ss. O povo tinha violado tantas vezes a aliança que Deus fizera com a nação, que ele<br />

falou por meio do seu profeta sobre uma nova aliança que faria, aliança esta que não dependeria<br />

da capacidade do povo para cumpri-la, mas de duas coisas: interioridade e perdão.<br />

Deus escreveria sua lei no coração deles, o que significa que eles seriam tão transformados<br />

que seriam pessoas justas (cf, 18.3), não pessoas que se esforçam desesperadamente por se<br />

enquadrar em um padrão exterior que nada tinha de correspondência no ser interior. E<br />

haveria perdão, que Mateus via proceder da morte que Jesus estava para sofrer, não dos<br />

sacrifícios oferecidos sobre altares judeus (ou gentios). A morte de Jesus lidaria com os<br />

pecados e de fato os removeria para sempre. Diante de fatos como a identificação de Jesus<br />

com pecadores (3.15) e sua entrega de si mesmo em resgate por muitos (20.28), isso significa<br />

certamente que ele salvou pecadores assumindo o lugar deles.44<br />

G . B arth afirma que M ateus "adotou a interpretação da m orte de Jesus com o sacrifício expiatóric<br />

pelos pecados da tradição”: isso quer dizer que se trata de uma posição m uito antiga e difundida. Ele dir<br />

ainda: "M ateus não só adota o pensam ento do sacrifício expiatório, mas, ao mesm o tem po, o interpreta<br />

e na verdade no sentido de que o perdão dos pecados pelo sacrifício substituto de Jesus não invalida i<br />

vontade de Deus na lei, mas exatam ente a confirm a” ( Tradition and interpretation in M attbew, p. 147),


Antes de deixamos a narrativa da paixão, talvez devamos observar que Mateus tem<br />

um interesse especial em Judas. E ele quem registra que Judas perguntou aos principais<br />

sacerdotes: "Que me quereis dar?”, como prelúdio da traição, e que eles lhe ofereceram trinta<br />

moedas de prata (26.15). Quando Jesus predisse que seria traído por um dos Doze e os<br />

apóstolos começaram a perguntar quem o faria, é este evangelho que nos diz que Judas perguntou:<br />

"Acaso sou eu?” (26.25). E é apenas Mateus quem nos relata que, quando o traidor<br />

saudou Jesus no Getsêmani, o Mestre o chamou de "amigo”. Mateus também tem algumas<br />

palavras que podem ter o sentido de "Faça o que vieste fazer” ou “Por que vieste?” (26.50;<br />

Marcos as omite e Lucas registra "Com um beijo trais o Filho do Homem?”). E este é o único<br />

evangelho que relata o remorso de Judas, sua tentativa de devolver o dinheiro jogando-o<br />

no santuário e seu suicídio (27.3-10). Pelo relato de Mateus fica claro que alguém que parece<br />

estar bem perto de Jesus pode ser um traidor, e ele escreve sua narrativa da paixão de<br />

uma forma que deixa isso nítido ao leitor.<br />

Jesus convocou alguns dos seus discípulos logo no começo do seu ministério<br />

(4.18-22), e algum tempo depois chamou Mateus (9.9-13). A cada vez o chamado é para<br />

segui-lo de todo o coração, e isso fica patente no fato de que os que foram chamados deixaram<br />

a vida que levavam para estar com Jesus. A ligação pessoal com Jesus e a lealdade a ele e<br />

a tudo o que ele representava formam a essência do tipo de discípulo que ele convocava as<br />

pessoas a ser.45 Isso contrasta com o conceito de discípulo nas escolas rabínicas. Ali o discípulo<br />

era um aprendiz, sempre debatendo com seu líder. O discípulo tinha como alvo<br />

aprender tudo sobre a tradição e, no fim, também ser um mestre. Os discípulos de Jesus,<br />

porém, eram "testemunhas de uma pessoa, não guardiãs de uma tradição”.46<br />

Jesus deixava claro aos candidatos a discípulo que segui-lo lhes custaria algo<br />

(8.19-22), e naturalmente eles achavam o preço alto demais, pois não há sinal de que se tornaram<br />

discípulos. Ele estipulou o preço quando disse que quem quisesse segui-lo haveria<br />

de tomar a cruz, metáfora muito clara da morte para o egocentrismo. Quem quiser salvar a<br />

vida irá perdê-la, disse Jesus, e o modo de salvar a vida é perdê-la por amor a Cristo<br />

45Bornkam m estudo o uso de KÚpLOÇ pelos discípulos. Ele m ostra que, neste evangelho, os discípulos<br />

não cham am Jesus de “M estre" ou “R abi”, a não ser Judas Iscariotes (26.25, 49; contraste com os outros<br />

discípulos, v. 22), mas de “Senh or”. A palavra KVfiLOÇ pode ser usada sim plesm ente como um term o de<br />

respeito, mas B ornkam m acha que não é com esse sentido que os discípulos a usam. A ntes, “o títu lo e<br />

saudação de Jesus com o KVpLOÇ em M ateus têm sempre o caráter de um nom e de majestade divina”<br />

( Tradition and interpretation in M atthew. Philadelphia, 1963, p. 4 2 -4 3 ).<br />

46 A lbright e M ann, M atthew, cliv.


(16.24-25). A mesma verdade é expressa no episódio em que os dois filhos de Zebedeu e<br />

sua mãe pediram a Jesus os lugares principais em seu reino. Ele respondeu: "Não sabeis o<br />

que pedis”, e perguntou: "Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber?” (20.20-22;<br />

quanto ao cálice de Jesus veja 26.39). Também aqui o caminho do discípulo é de sacrifício<br />

pessoal, não de realização pessoal. Foi isso que afastou o jovem rico (19.16-22). Ele claramente<br />

alimentava a idéia de se tornar seguidor de Jesus. Mas não queria fazê-lo à custa da<br />

sua riqueza. Jesus exigia um vínculo pessoal que superava posses e até laços familiares<br />

(12.48-50). Não é de admirar que, apesar da grande extensão do campo a ser semeado, os<br />

trabalhadores sejam poucos (9.37).<br />

Mateus tem palavras de consolo para os perseguidos, que, surpreendentemente, são<br />

"bem-aventurados”: o reino é deles (5.9). A perseguição do povo de Deus não é um fenômeno<br />

novo, pois os profetas já a experimentavam (5.12). Os discípulos devem orar por<br />

seus perseguidores (5.44), pois é importante que tenham uma disposição de espírito adequada<br />

se quiserem ser “filhos” do reino (5.45). Quando forem perseguidos numa cidade,<br />

devem fugir para outra (10.33); não devem deixar que a perseguição os desvie da tarefa.47<br />

Vemos que se deve seguir Jesus de modo radical no episódio em que os discípulos de<br />

João Batista disseram que eles e os fariseus jejuavam, mas os seguidores dejesus não. Jesus,<br />

porém, não estava simplesmente exigindo o cumprimento de práticas religiosas convencionais<br />

e a conformidade a padrões religiosos de rotina. Quando ele perguntou: “Podem, acaso,<br />

estar tristes os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles?”, e<br />

acrescentou: “Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo, e nesses dias hão de<br />

jejuar", e ainda: "Ninguém põe remendo de pano novo em veste velha, [...] nem se põe<br />

vinho novo em odres velhos” (9.14-17), ele não estava convidando as pessoas para um judaísmo<br />

remendado, um sistema velho com algumas inovações. Ele estava convidando para<br />

uma vida radicalmente nova. Ela não podia estar contida no judaísmo. Como remendo<br />

novo numa roupa velha, acabaria se soltando. Como vinho novo em odres velhos, acabaria<br />

rompendo o recipiente. Quem segue a Jesus precisa aceitar isso.48<br />

Um exemplo da nova perspectiva é a atitude dejesus em relação a alimentos puros e<br />

impuros, tema este que é o ponto culminante de uma discussão iniciada por uma queixa<br />

por parte dos fariseus e escribas de Jerusalém em torno do fato de que os discípulos dejesus<br />

N o fundo, M ateus escreve seu evangelho para evitar que a perseguição faça a igreja parar de evangelizar”<br />

(R o b ert H , Gundry, M atthew. G rand Rapids, 1982, p. 9).<br />

Alguns estudiosos en fa tiz a m o parentesco d e M ateus com o judaísm o; cf. Bornlcamm: “M ateus entende<br />

a lei de uma maneira que, em princípio, não difere do judaísm o — ou, m elhor — que, em p rincípio,<br />

não é diferente” (Tradition and interprétation in M atthew, p. 31). É verdade que M ateus tem certa<br />

similaridade com a perspectiva dos escribas, mas não devemos esquecer que, com toda a sua ênfase na lei<br />

e exigência de justiça, ele não está dizendo a mesma coisa que os escribas. Ele está à procura de algo radi'<br />

calm ente novo.


desrespeitavam a tradição dos antigos ao não efetuar a lavagem cerimonial das mãos antes<br />

de comer (15.1-20). Jesus disse algumas coisas em resposta e terminou mostrando que não<br />

é o que entra pela boca que torna alguém impuro, mas o que vem de dentro — os pensamentos<br />

maus que levam a ações más. Isso era algo radicalmente novo, pois praticamente<br />

toda religião tinha (e ainda tem) algum tipo de regra alimentar. Jesus, porém, está interessado<br />

em coisas muito mais importantes do que essas tão triviais. Há uma forte ênfase neste<br />

evangelho na insignificância do que é apenas exterior e na importância do que é interior<br />

(p. ex„ 6.1-6, 16-18; 7.15-20; 12.33-37).<br />

Mateus destaca muito o papel dejesus como mestre, como se vê na grande proporção<br />

de ensino em seu evangelho. Ser discípulo significa aprender, e Mateus deixa claro que<br />

os discípulos aprenderam muitas coisas importantes dejesus. Por exemplo, quando Jesus<br />

os advertiu contra o fermento dos fariseus e dos saduceus, e os discípulos não compreenderam<br />

nada (pensaram que tinha algo a ver com o fato de que eles estavam sem pão), Jesus<br />

explicou a comparação para que eles a entendessem (16.11-12; cf, 13.51; 17.13).49 Mateus<br />

muitas vezes omite as referências de Marcos à falta de entendimento, e isso com freqüência<br />

é interpretado como acobertamento das falhas dos discípulos, mas talvez deva ser visto<br />

como um aspecto da concentração de Mateus na eficiência dejesus como mestre. Mateus<br />

não mostra os discípulos receptivos por natureza, mas iluminados pelo quejesus lhes ensinou.<br />

Ele não adotou uma postura defensiva em relação aos discípulos, e isso pode ser visto<br />

em seu registro fiel da falta de fé que eles manifestavam (6.30; 8.26; 14,31; 16.8; 17.20;<br />

28.17). O evangelho de Mateus tem o relato mais completo do episódio em quejesus predisse<br />

sua morte, Pedro rejeitou a previsão e Jesus repreendeu a Pedro (16.22-23). E só<br />

Mateus relata que esse discípulo “o negou diante de todos” (26.70), apelando a um juramento<br />

na segunda negação (26.72). Mateus não está tanto preocupado em ocultar as falhas<br />

dos discípulos quanto em mostrar a grandeza do mestre deles.<br />

Outro aspecto importante do ser discípulo dejesus aparece na discussão causada<br />

pela acusação dos fariseus de quejesus expulsava os demônios com a ajuda de Belzebu, o<br />

chefe dos demônios (12.24). Jesus demonstrou que isso significaria que o reino do Maligno<br />

estava dividido e que assim não poderia subsistir, e continuou dizendo que os filhos dos<br />

fariseus também expulsavam demônios. Será que os fariseus diriam deles o mesmo que<br />

estavam dizendo sobre Jesus? E chegou ao ponto crítico: “Se, porém, eu expulso demônios<br />

49 C f. U lrich Luz: “Jesus é o professor que faz seus discípulos entender. [...] O s discípulos têm uma fé<br />

pequena, mas eles com preendem ” (Stanton , T he interpretation o f M atthew, p. 103). V ários estudiosos consideram<br />

o ensino dos discípulos em M ateus “transparente": dirigido aos prim eiros seguidores d ejesu s,<br />

mas de uma m aneira tal que o leitor consegue ver im ediatam ente o q u ejesu s espera de todos os seus seguidores.<br />

Pedro, com freqüência, é visto com o discípulos ideal, nesse aspecto, Isso pode ser enfatizado<br />

demais, pois M ateus está ocupado com o q u ejesu s ensinou. C ertam ente, porém , ele não está realizando<br />

uma obra acadêmica. Ele espera que seus leitores levem o ensino dos discípulos por Jesus a sério e o apliquem<br />

em sua vida.


pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós” (12.28). A presença<br />

do reino é vista no poder que derrota os demônios. Somente depois de amarrado o<br />

homem forte sua casa pode ser saqueada, e isso leva à afirmação direta: "Quem não é por<br />

mim é contra mim” (12.30). Não há neutralidade na guerra que Jesus está travando. Ele<br />

está chamando pessoas para uma vida em que o poder do Maligno foi quebrado. Ele está<br />

lhes oferecendo um poder novo, um poder que não lhes pertence, de modo que Satanás<br />

não pode exercer influência na vida deles. Nessa situação, ou optamos por ficar com Jesus<br />

ou por ficar sem ele. Não há um caminho intermediário. Os que vêm a Jesus têm de estar<br />

cientes de quem ele é e do novo poder que traz à vida deles.<br />

Nas bem-aventuranças vemos essa posição absoluta de Jesus e a reversão de valores<br />

que ela implica (5.1-12). Realmente bem-aventurados por Deus não são os que a hierarquia<br />

oficial do judaísmo considerava assim, mas aqueles que são pobres de espírito, os que<br />

choram, os humildes, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de<br />

coração, os pacificadores, os perseguidos. A religiosidade da época teria concordado com<br />

alguns desses elementos, mas certamente não com a lista inteira. Jesus estava longe de aceitar<br />

os valores religiosos convencionais do seu tempo.<br />

Vemos isso também no modo como ele tratou da violação dos mandamentos. O<br />

judaísmo da época levava a sério o dever de obedecer à lei de Deus e se dedicava muito à<br />

definição exata do que era e do que não era transgressão, A letra da lei era mais importante.<br />

Exatamente o que Deus prescrevera devia ser feito, nem um centímetro a menos. Se a letra<br />

não fora transgredida, o adorador achava-se em estado de pureza. Jesus, porém, tomou<br />

mandamento após mandamento e mostrou que é possível seguir a letra da lei e violar seu<br />

espírito. Não basta obedecer ao mandamento de não matar. Sentir raiva do irmão sem<br />

motivo equivale a dar guarida ao tipo de sentimento que leva ao homicídio. E isso já é transgressão<br />

do mandamento. O mesmo vale para palavras de ira e insulto (5.21-22). Assim<br />

também é com o olhar lascivo, com a expressão da verdade apenas sob juramento e assim<br />

por diante. O ensino de Jesus não se resume a um judaísmo modificado. E algo radicalmente<br />

novo, e com certeza requer poder interior. Jesus ensinou que, apesar de os frutos revelarem<br />

o tipo de árvore, o que importa é que a árvore seja boa. Se a árvore for boa, os frutos<br />

também serão (7.15-20; 12.33), Usando uma metáfora diferente, ele aconselhou que se<br />

edifique sobre um bom alicerce (7.24-27). Se o fundamento é correto, a casa está segura; se<br />

o fundamento é falho, a casa desmoronará.<br />

A principal exigência de Jesus é que as pessoas convivam em amor. Já vimos que é assim<br />

que ele entende que nos revelamos filhos de Deus (5.43-48) e que toda a lei pode ser resumida<br />

nos mandamentos de amar a Deus e aos outros (22.36-40; cf. também 19.19). O mandamento<br />

do amor mostra como a lei deve ser interpretada. Também devemos observar a regra áurea<br />

(7.12) e o fato de que o amor se esfria, representando isso uma tragédia (24.12). Amar os que<br />

são atraentes e nos amam é algo típico do mundo. Uma característica dos que seguem Jesus é<br />

amar porque foram amados por Deus. Na vida do cristão, o amor de Deus vem primeiro, e


nosso amor é sempre uma resposta ao dele. Por essa razão, os cristãos não podem restringir seu<br />

amor aos que lhes são naturalmente simpáticos, aos que os amam ou que lhes podem proporcionar<br />

algum benefício. Eles amam porque foram amados pelo Deus da graça.<br />

O amor é prático, Ele leva à preocupação com os outros, principalmente com os<br />

pobres, que levavam uma vida terrivelmente difícil na Palestina do primeiro século. Os<br />

seguidores de Jesus deviam ajudá-los financeiramente, mas sem chamar a atenção, sem<br />

tocar trombeta, a exemplo da maneira ostensiva de alguns que desejavam ter reputação de<br />

piedosos (6.2-4).<br />

Jesus não aceitava as proibições rituais da sua época. Mateus registra a controvérsia<br />

a respeito de como o sábado devia ser guardado (12.1-14). O judeu religioso típico levava<br />

muito a sério as regras de observância do dia. O sábado devia ser diferenciado de todos os<br />

outros dias, como dia sagrado de Deus. Uma das maneiras de manter o dia sagrado era abster-se<br />

de efetuar curas nesse dia. Jesus, porém, insistiu que não é prova de santidade recusar-se<br />

a atender necessidades genuínas, seja fome (12.1), seja doença (12.10). Com toda<br />

liberdade, ele atendeu às duas.<br />

Jesus sublinhou a importância das crianças.30 É preciso “dar meia volta” e se tornar<br />

como uma criança para entrar no reino (18.3). A rigor, significa ser humilde (18.4). Esse<br />

ensino, no entanto, vai além do fato de que os adultos são aconselhados a se tornar como<br />

crianças em qualidades importantes como humildade e confiança: fica claro que as crianças<br />

têm valor em si. Um destino terrível aguarda quem causa problemas ao menor dos pequeninos<br />

que crêem em Cristo (18.6). Os “pequeninos” aqui incluem discípulos que não chamam<br />

a atenção,51 mas não devemos deixar de ver a importância das crianças aos olhos de<br />

Jesus. Quando os discípulos tentaram impedir as mães de trazerem seus filhos ajesus, ele<br />

os repreendeu. Recebeu as crianças e lhes impôs as mãos para abençoá-las (19.13-15). Os<br />

suínos sacerdotes e os escribas não tinham simpatia pelas crianças; exigiram que Jesus<br />

mandasse ficarem quietos os pequenos que exclamavam “Hosana ao Filho de Davi”. Mas<br />

Jesus lhes recordou um texto bíblico: “Da boca de pequeninos e crianças de peito tiraste<br />

perfeito louvor” (21.15-16; a citação é de SI 8.2). Ele gostava de crianças.<br />

Jesus queria que as pessoas confiassem em Deus. Disse-lhes que não se preocupassem<br />

com as necessidades da vida, como comida e roupa. Os pássaros não se preocupam, e<br />

Deus lhes provê alimento. As plantas não se preocupam, e Deus lhes dá uma roupa mais<br />

M ateus tem TTCllSlÓv 18 vezes, enquanto M arcos tem a palavra 12 vezes e Lucas 13 vezes; nenhum<br />

outro escritor a tem m ais de três vezes. M ateu s tam bém tem TeK V O V 14 vezes (igual ao núm ero<br />

mais elevado em qualquer outro livro), O u y d r r jp 8 vezes (som ente Lucas, com 9, tem a palavra mais<br />

vezes) e VLOÇ 89 vezes (mais que qualquer outro livro). M ateus se interessa pelas crianças.<br />

Alguns chegam a afirm ar que o term o significa sim plesm ente "discípulos”. Cf. E . Schw eizer: "O<br />

term o mais característico para a comunidade de M ateus é ‘os pequeninos’, num a descrição dos discípulos”<br />

(Stanton , T he interpretation o f M atthew, p. 138).


onita que a do rei Salomão. Portanto, não há motivos de preocupação, e Jesus espera que<br />

confiemos (6.25-34).<br />

A pessoa que confia também ora. Não há ostentação na oração genuína, diferente<br />

das “orações” dos que oravam para ser vistos pelos outros (a fama de espiritualidade ajuda<br />

muito!). A oração deve acontecer em segredo; é algo entre o discípulo e Deus e não diz respeito<br />

a mais ninguém (6.5-6). A oração deve ser simples, sem as repetições vazias que<br />

alguns usavam. E Jesus apresentou o modelo que tem ajudado tantos cristãos através dos<br />

séculos — o Pai Nosso (6.7-13).<br />

Não devemos encerrar essa divisão sobre o discípulo sem destacar que Mateus dá<br />

uma ênfase impressionante às qualidades éticas. É interessante o fato de que ele se vale da<br />

palavra agathos (“bom”) 18 vezes (Romanos, que totaliza 21, é o único livro do Novo Testamento<br />

que usa a palavra mais vezes) e de kálos, que também significa “bom”, 21 vezes<br />

(mais do que qualquer o,utro livro; lTim óteo vem a seguir com 16). Ele também emprega<br />

dikaios (“justo”) mais que qualquer outro livro (17; o mais próximo é Lucas, com 11); ele<br />

registra dikaiosynê, “justiça", sete vezes, o maior número fora dos escritos de Paulo (Marcos<br />

não usa a palavra, e Lucas, apenas uma vez). No outro lado da balança, apesar de não preponderar<br />

nenhum termo equivalente a “pecado”, ele usa ponêros (“mal”) 26 vezes, exatamente<br />

o dobro de Lucas, que está em segundo lugar nas estatísticas, e hypokritês<br />

(“hipócrita”) em 13 das 17 ocorrências em todo o Novo Testamento. A contagem de palavras<br />

não é critério decisivo, mas pelo menos essas mostram que Mateus está interessado em<br />

pessoas que manifestam (ou não) essas qualidades.<br />

$7 missão dos ^Z)oze<br />

Certa ocasião Jesus enviou os Doze em uma viagem de pregação. O itinerário restringiu-se<br />

a Israel. Jesus disse claramente aos seus discípulos que não pregassem aos gentios<br />

nem mesmo aos samaritanos (10.5); essa viagem devia concentrar-se nas “ovelhas<br />

perdidas da casa de Israel” (v. 6). Alguns detalhes dessa tarefa parecem se aplicar apenas a<br />

essa missão, enquanto outros têm aplicação mais ampla. Seja como for, nessa ocasião Jesus<br />

deu aos discípulos autoridade sobre demônios e doenças (10.1, 8). Ele os enviou sem recursos<br />

materiais; Deus cuidaria deles. O centro da sua mensagem era: “Está próximo o reino<br />

dos céus” (10.7). Portanto, eles foram com uma mensagem de paz, e Jesus lhes deu instruções<br />

sobre como deveriam reagir quando fossem recebidos em paz e quando não<br />

(10.11-15).<br />

No entanto, eles não deviam ter a expectativa de ser bem recebidos; iriam como ovelhas<br />

para o meio de lobos (10.16). Essa afirmação conduz a uma mensagem sobre perseguição,<br />

um trecho que não trata apenas da comissão dos Doze, mas também dos fatos que<br />

sobreviriam aos seguidores de Jesus em épocas posteriores. Os que o seguem devem depen­


der de Deus quando enfrentarem tribunais hostis; nessas circunstâncias, o Espírito do Pai<br />

estará falando neles (10.20). Nâo devem ter medo (10.26); estão sob os cuidados de Deus<br />

(10.30-31). Certamente serão tentados a evitar essa tarefa difícil, mas são advertidos de que<br />

assuntos eternos dependem da sua reação. Caso se envergonhem de Cristo diante das pessoas,<br />

ele terá vergonha deles diante do seu Pai celestial; negá-lo diante das pessoas é pedir<br />

que ele os negue diante do Pai (10.32-33). Eles não devem deixar nenhuma inclinação<br />

humana concorrer com o amor que têm por ele. Precisam tomar a cruz ao segui-lo e perder<br />

a vida por ele a fim de achá-la (10.37-39).<br />

Isso leva à afirmação de que quem recebe a Cristo recebe o Pai que o enviou (10.40).<br />

Essa é uma verdade profunda e importante, e conduz à dignidade correspondente que se<br />

concede aos seguidores de Cristo. Mesmo o menor serviço que algum deles faça em nome<br />

de Cristo não ficará sem recompensa.<br />

S? igreja<br />

Geralmente se pensa que Mateus está mais interessado na igreja do que os outros<br />

evangelistas.52 Ele parece pressupor uma comunidade de seguidores de Jesus em todo o seu<br />

evangelho. Ele é o único dos quatro evangelistas que usa a palavra “igreja” (ekklêsia), e isso<br />

em duas passagens importantes (16.16-19; 18.15-18).<br />

A primeira surge da ocasião em<br />

Cesaréia de Filipe em que Pedro confessou sua fé em Jesus como “o Cristo, o Filho do Deus<br />

vivo”. A isso Jesus respondeu: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e<br />

sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus. Também eu te digo que tu és<br />

Pedro [petros], e sobre esta pedra [petra] edificarei a minha igreja, e as portas do inferno<br />

[Hades] não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na<br />

terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus”<br />

(16.16-19).<br />

Constatamos primeiro que não se tratou de uma descoberta humana. Ela veio por<br />

revelação. Isso não significa necessariamente que houve uma luz muito forte; o processo<br />

pode ter levado tempo, enquanto Pedro observava seu mestre — um processo durante o<br />

52 Cf. F, C , G rant: "M ateus às vezes é chamado de evangelho 'eclesiástico', e com razão, porque seu interesse<br />

está m uito mais voltado para a igreja do que o de qualquer outro evangelho — ou outro texto do<br />

N ovo T estam ento” (iDB 3:311).<br />

53M u itos não as consideram autênticas, p. ex., Eduard Schw eizer em relação à prim eira (T h eg ood news<br />

according to M atthew. London, 1976, p. 336ss), e R u d o lf Bultm ann em relação a ambas: "Esses parágrafos<br />

foram criados independentem ente pela igreja" ( T he history o f the Synoptic tradition. O xford, 1963, p. 146;<br />

cf. tam bém p. 138-1 4 1 ), São aceitas com o genuinas por K . L. Schm idt, TDNT 3:518-526; O scar Cullmann,<br />

Peter: disciple, apostle, martyr, London, 1962, p. 164ss.


qual Deus o conduziu à compreensão correta de quem éjesus. O que importa é a revelação,<br />

não como ela foi feita.<br />

A igreja será edificada sobre a rocha. O jogo de palavras, e o fato de serem dirigidas a<br />

Pedro, mostram que ao apóstolo é atribuído um lugar especial. Os católicos romanos tradicionalmente<br />

pensam que aqui Jesus nomeou Pedro chefe da igreja, que Pedro se tornou<br />

bispo de Roma, que transferiu seu cargo aos seus sucessores em Roma54 e que todos os que<br />

estão fora da comunidade formada nessas condições não podem afirmar com certeza ser<br />

membros da igreja verdadeira. Mas isso significa ir muito longe e rápido demais, Jesus não<br />

disse que edificaria sobre Pedro (petros), mas sobre a pedra (petra), e a pequena diferença<br />

entre as palavras é importante.55 Pode-se entender o grego com o sentido de que a pedra é a<br />

confissão em si e não o homem que acabou de fazê-la. É sobre a base da confissão de Jesus<br />

como o Cristo, o Filho de Deus, que a igreja será edificada. Muitos pensam que faremos<br />

mais justiça à frase se juntarmos as duas idéias e virmos a pedra como Pedro no ato de confessar<br />

sua fé em Jesus.56<br />

As chaves do reino podem simbolizar a função de ensino. Em 23.13 lemos que os<br />

escribas e fariseus fecham o reino dos céus às pessoas, impedindo-as de entrar; seu ensino<br />

as conservava do lado de fora. Se foi isso que Jesus quis dizer, a autoridade de ensinar é<br />

acompanhada do poder de ligar e desligar, isto é, de declarar proibido ou permitido; essa é<br />

54 Essa posição foi reafirmada pelo V aticano II. O concílio proclam ou que "o papel que o Senh or deu<br />

individualmente a Pedro, de prim eiro entre os apóstolos, é perm anente e deve ser transm itido aos seus<br />

sucessores” ( T he âocuments o f Vatican II, ed. W a lte r M , A bbott. London, 1966, p. 40 ); “D epois que Pedro<br />

fez sua confissão de fé, [Jesus] decretou que sobre ele edificaria sua igreja; a Pedro prom eteu as chaves do<br />

reino dos céus” (p. 344).<br />

55 N o aramaico não há essa diferença, mas estamos lidando com um texto grego, e o suposto original<br />

aramaico foi traduzido para o grego com duas palavras diferentes,<br />

56 O tem a foi, naturalm ente, m uito debatido no concilio V aticano de 1870. W . H . G riffith T hom as<br />

- nos faz um resumo interessante de um discurso preparado pelo arcebispo K enrick para ser feito no concílio;<br />

ele acabou não sendo apresentado, mas foi publicado mais tarde. K enrick relacionou cinco interpretações<br />

da passagem que circulavam na Antigüidade: "1) A prim eira dizia que a igreja estava edificada<br />

sobre Pedro, e era endossada por dezessete pais da igreja. 2) A segunda entendia as palavras com o uma<br />

referência a todos os apóstolos, entre os quais Pedro era apenas o prim eiro. Essa foi a opinião de oito<br />

pais. 3) A terceira interpretação afirmava que as palavras se aplicavam à fé que Pedro professou, posição<br />

m antida por nada m enos que quarenta e quatro pais, incluindo alguns dos mais im portantes e representativos.<br />

4) A quarta interpretação declarava que as palavras deviam ser entendidas com o referência a J e ­<br />

sus C risto, sobre o qual a igreja é edificada. Essa foi a posição de dezesseis escritores. 5) A quinta<br />

interpretação entendia que o term o 'ro ch á se aplicava aos próprios fiéis, que, ao crer em C risto, foram<br />

tornados pedras vivas no tem plo do seu corpo. M u ito poucos, porém , adotavam essa posição” (T he principies<br />

o f theology. London, 1930, p. 4 7 0 -4 7 1 ). A interpretação que se tornou norm ativa na igreja de R om a<br />

está longe de ser segura, e está longe de ser predom inante na igreja antiga.


uma extensão da função de ensino dos líderes da igreja de Jesus Cristo,5


mais que os outros, é produto de um grupo de pessoas e destina-se a um grupo de<br />

pessoas".00 Harmoniza-se com isso o fato de que ele está interessado nos irmãos mais do<br />

que é comum; ele usa a palavra “irmão” 39 vezes (o mesmo número de Paulo em<br />

ICoríntios), mais do que qualquer outro livro com exceção de Atos, que a registra 57<br />

vezes.<br />

60 K rister Stendahl, em Peake's commentary on the Bible, p. 769.


Capítulo 7<br />

O Evangelho de<br />

jCueas e Atos<br />

A doutrina de Deus<br />

oje há praticamente unanimidade quando se afirma que o mesmo autor escreveu<br />

o evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos. Isso faz dele um personagem<br />

muito importante em qualquer estudo do Novo Testamento, pois os dois<br />

escritos somados perfazem mais de um quarto do total. É um autor cuja contribuição é a<br />

maior de todas, e mesmo sem considerar a inspiração divina, o próprio volume da sua obra<br />

torna necessário que prestemos muita atenção ao que ele escreveu.<br />

Em toda a história da igreja geralmente se acreditou que o autor dessas duas obras<br />

foi Lucas, e não há razões sérias para duvidar disso. Iremos pressupor que Lucas escreveu<br />

os dois livros, apesar de não haver muitas coisas que dependam da identidade exata do<br />

escritor. Lucas tem sido considerado um historiador, e boa parte do estudo da sua pessoa já<br />

esteve concentrada na sua capacidade como historiador.


Nos últimos tempos tem-se percebido com mais clareza que, quaisquer que sejam<br />

os méritos que ele tenha como historiador, ele precisa ser levado em conta como um teólogo<br />

importante. Nem todos os estudiosos pensam assim, e Vincent Taylor, por exemplo,<br />

diz que Lucas “não é primordialmente um teólogo”.1Em oposição a isso poderíamos apresentar<br />

o veredicto de J. Christiaan Beker de que Lucas é "um teólogo magistral”2 e o de J. D.<br />

G. Dunn de que ele é um “dos três mais importantes teólogos do Novo Testamento”.3A<br />

grande quantidade de livros escritos sobre Lucas-Atos nos últimos anos torna muito difícil<br />

deixar de ver a ênfase teológica muito palpável nessa parte do Novo Testamento. É verdade<br />

que Lucas é importante como historiador, mas também é verdade que tudo que ele<br />

escreveu tem por trás um sério propósito teológico. Ele não escreveu uma história dejesus<br />

de Nazaré, acrescentando-lhe um esboço da história da igreja antiga; escreveu a respeito do<br />

que Deus fez em Jesus e do que realizou nos primórdios da igreja. Sua preocupação básica é<br />

teologia e não história, não importa o quanto lhe sejamos devedores pelas informações históricas<br />

que nos transmitiu.<br />

Eduard Schweizer talvez possa nos ajudar a contemplar melhor o cenário. Ao estudar<br />

Lucas, vindo a escrever um comentário sobre esse evangelho, ele se viu "constantemente<br />

atribulado pelos problemas de cristologia e soteriologia para os quais Lucas não parece<br />

ter uma resposta clara”. Por outro lado, porém, diz ele, "percebia cada vez mais, para minha<br />

surpresa, o quanto sua exposição me levava a uma nova compreensão teológica do significado<br />

do evento chamado Cristo". Ele encontrou em Lucas "uma reserva cheia de histórias<br />

sobre Jesus, de parábolas, muitas das quais não se encontram nos outros evangelistas, e de<br />

descrições de diversas situações da vida, como a da viagem dejesus para Jerusalém, que fornece<br />

todo um conjunto novo de episódios ou declarações com importância teológica’’.4<br />

Lucas não se demora em longas digressões obviamente teológicas, mas escreve sobre os<br />

fatos que escolheu da vida de Cristo e do que aconteceu nos primórdios da igreja de uma<br />

maneira que nos ajuda muito em nossa pesquisa teológica. Ele não afirma escrever uma<br />

obra de teologia, mas o que ele escreve se baseia em teologia e contribui em muito com nossa<br />

compreensão da teologia do Novo Testamento.<br />

1 ID B 3:181.<br />

Paul the apostle. Edinburgh, 1980, p. 162.<br />

I T 84 (1 9 7 2 -7 3 ):7 . Ele considera Paulo e Joáo os outros dois.<br />

4 Luke: a challenge to present theology. A tlanta, 1982, p. 1,


0 ‘Deus poderoso<br />

Há muitos pontos de partida possíveis, pois a teologia de Lucas tem muitas facetas.<br />

Comecemos com seu pensamento de que Deus é poderoso, um Deus que pode executar seu<br />

propósito e o faz. Logo no começo lemos sobre “o poder do Altíssimo” que sobreviria a<br />

Maria, em virtude do qual o ente santo que haveria de nascer seria “chamado Filho de Deus”<br />

(1.35).5Não devemos imaginar Jesus como um homem bom que, por causa de sua grande<br />

bondade, recebeu favores especiais de Deus, nem, como afirmavam os adocionistas, alguém<br />

adotado por Deus na Divindade. Ele nasceu pela intermediação especial do poder de Deus.<br />

Maria cantou referindo-se ao “Poderoso” que fizera “grandes coisas” por ela (1.49).<br />

O ministério terreno de Jesus foi desempenhado no mesmo poder. Deus o "ungiu<br />

com poder” (At 10.38), e foi nesse poder que exerceu seu ministério público; foi quando o<br />

“poder do Senhor” estava presente que Jesus operou suas curas (5.17). E se olharmos diretamente<br />

para os últimos relatos, Lucas vê o Filho do Homem “sentado à direita”, não simplesmente<br />

de Deus, mas “do poder de Deus” (22.69, B j) . Mateus e Marcos registram a<br />

afirmação numa forma mais curta:"... sentado à direita do Poder” (M t 26.64 B J; M c 14.62).<br />

Mas pela maneira como Lucas formula a frase está claro que o poder é o poder “de Deus”. E<br />

é no mesmo poder que ele está pensando quando diz que o Filho do Homem virá numa<br />

nuvem, “com poder e grande glória” (21.27).<br />

A posição geral é que “os impossíveis dos homens são possíveis para Deus” (18.27).<br />

Lucas não vê limites para o poder de Deus, e se alegra porque esse poder foi manifestado na<br />

obra de salvação em Cristo. Por isso ele diz que encomenda algumas pessoas “ao Senhor e à<br />

palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são<br />

santificados” (At 20.32). O poder de Deus é potente para trazer salvação. E ele o faz onde<br />

quiser. Diante da boa dádiva de Deus concedida aos gentios, Pedro pôde defender sua pregação<br />

para eles com a pergunta: “Quem era eu para que pudesse resistir a Deus?” (At<br />

11.17).<br />

T odavia, não podemos mostrar o poder de Deus simplesmente citando alguns textos.<br />

Como as passagens que citei mostram, esses textos existem. Mas se trata de mais do<br />

que isso. Todo o espírito no qual Lucas escreve deixa claro que, para ele, Deus é o Ser<br />

supremo, aquele que faz tudo o que quer, e a quem ninguém pode impedir.6<br />

N os caps. 7-1 1 as referências do evangelho de Lucas serão feitas sim plesm ente com capitulo e versículo.<br />

As referências de A tos serão precedidas de A t.<br />

O interesse de Lucas no poder é ilustrado pelo fato de ele usar o substantivo S w a ilL Ç 15 vezes no<br />

evangelho e dez em A tos (entre os outros textos, IC o rín tio s ê o que tem mais ocorrências, com 15); o


0 reino de ^eus<br />

Como vimos, o reino de Deus é um conceito importante tanto em Mateus quanto<br />

em Marcos. Ele também é muito importante em Lucas (que registra a expressão 32 vezes, e<br />

mais seis em Atos). Ele se coaduna bem com sua ênfase no poder, pois significa a vontade<br />

soberana de Deus em ação. Se Deus é rei, sua vontade é feita. Muito do que Lucas diz sobre<br />

o tema do reino apresenta afinidades com Mateus ou Marcos ou com ambos, mas ele também<br />

tem um número considerável de declarações sobre o reino peculiares aos seus escritos.<br />

Como exemplo de como ele vê o reino, observe a seguinte afirmação de Jesus: “E<br />

necessário que eu anuncie o evangelho do reino de Deus também às outras cidades, pois<br />

para isso é que fui enviado” (4.43). Marcos diz a frase assim: “Vamos a outros lugares, às<br />

povoações vizinhas, a fim de que eu pregue também ali” (Mc 1.38). O conteúdo dos dois<br />

textos é o mesmo, mas a maneira de Lucas expressá-lo mostra a obrigação (“é necessário")<br />

que surge da soberania de Deus, pois ele fala do reino (Marcos não) e da missão divina (“fui<br />

enviado”). Lucas deixa claro que o reino era tema constante na pregação de Jesus, pois, indo<br />

“de cidade em cidade e de aldeia em aldeia", ele estava “anunciando o evangelho do reino de<br />

Deus” (8.1).7<br />

Vemos o interesse de Lucas no reino novamente no modo como o relato da multiplicação<br />

dos pães se inicia. Mateus fala da compaixão de Jesus e de como ele curou as pessoas<br />

(M t 14.13-14). Marcos também nos fala da compaixão de Jesus por um povo que era<br />

“corno ovelhas que não têm pastor”, e diz que ele “passou a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc<br />

6.34). Lucas relata que Jesus recebeu as pessoas. Ele menciona as curas, mas antes nos diz<br />

quejesus lhes falava “a respeito do reino de Deus” (9.11). Para Lucas, trata-se de um conceito<br />

importante; ele o inclui mesmo quando os outros evangelistas não o consideram<br />

necessário.<br />

Ele também transmite a urgência do reino, como no trecho em quejesus disse ao<br />

candidato a discípulo que queria primeiro sepultar seu pai: “Deixa aos mortos o sepultar os<br />

seus próprios mortos. Tu, porém, vai e prega o reino de Deus” (9.60). A outro, que queria<br />

primeiro despedir-se da sua família, Jesus disse: “Ninguém que, tendo posto a mão no araverbo<br />

S v v a jia L 26 vezes no evangelho e 21 em A tos (João o tem 36 vezes); e o adjetivo S v v a r ó ç quatro<br />

vezes no evangelho e seis em A tos (M arcos e Rom anos o têm cada um cinco vezes). Lucas se preocupa<br />

em deixar claro o que as pessoas podem ou não podem fazer, e do com eço ao fim presum e que D eus está<br />

acima de todos e ninguém pode resistir à sua vontade.<br />

I. H ow ard M arshall diz que Schurm ann “encontra aqui um padrão de trabalho m issionário que L u­<br />

cas queria ver seguido pela igreja", e com para 13.22 com A tos 16.4 (T h e gospel o fL u k e. G rand Rapids,<br />

1978, p. 316). A ceitem os isso ou não, Lucas obviamente quer que vejamos que esse era o padrão do ministério<br />

de pregação de Jesus.


do, olha para trás é apto para o reino de Deus” (9.61-62). Mateus registra as palavras de<br />

Jesus sobre os mortos enterrarem seus mortos (M t 8.22), mas não tem a referência ao reino<br />

nem a passagem seguinte sobre a mão no arado. Não devemos deixar de ver o interesse de<br />

Lucas pelo reino e sua constatação das exigências que se fazem aos que o recebem. E nesse<br />

sentido que devemos entender a referência ao reino na missão que deu aos setenta antes de<br />

enviá-los. Entre outras coisas, eles deviam anunciar a proximidade do reino (10.9; cf. M t<br />

10.7). Se alguma cidade não os recebesse quando entregassem essa mensagem, deveriam<br />

sair por suas ruas e dizer: “Até o pó da vossa cidade, que se nos pegou aos pés, sacudimos<br />

contra vós outros, Não obstante, sabei que está próximo o reino de Deus” (10.11; Mateus<br />

registra as palavras anteriores sobre o reino, mas não essas). A aproximação do reino é algo<br />

muito sério. Rejeitá-lo é uma calamidade. E isso que Jesus quer dizer em sua advertência<br />

aos complacentes de que haveria choro e ranger de dentes quando vissem os grandes<br />

patriarcas e profetas no reino, enquanto eles seriam lançados fora. Isso não significa que<br />

haverá apenas uma minoria exclusiva no reino; virão pessoas do Oriente e do Ocidente<br />

tomar lugar à mesa no reino. Mas, apesar de haver muitos lá, não se deve contar com um<br />

lugar garantido (13,28-30).<br />

Vê-se um pouco disso até quando Jesus fala das bênçãos que serão dadas aos que<br />

estão no reino. Pedro uma vez chamou a atenção para o fato de que ele e os outros que<br />

viviam junto a Jesus tinham deixado seus bens para segui-lo. A pergunta implícita é mais<br />

ou menos esta: “Isso nos garante a entrada no reino?". A resposta de Jesus fala das muitas<br />

bênçãos que eles receberiam, mas ele começa com uma promessa: "Ninguém há que tenha<br />

deixado casa, ou mulher, ou irmão, ou pais, ou filhos, por causa do reino de Deus, que não<br />

receba, no presente, muitas vezes mais...” (18.28-30). Entrar no reino custa caro. Mas vale<br />

muitíssimo a pena: haverá bênçãos multiformes aqui e agora, e vida eterna depois. E foi o<br />

reconhecimento das bênçãos no reino por parte de um conviva que levou Jesus a contar a<br />

parábola da grande ceia (14.15).<br />

Tem havido muitas discussões sobre a passagem em que alguns fariseus perguntaram<br />

a Jesus quando o reino viria. Eles podem ter sido sinceros, ou simplesmente tentavam<br />

descobrir a opinião dejesus com o propósito de usá-la contra ele quando fosse apropriado.<br />

Seja como for, Jesus respondeu: "Não vem o reino com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo<br />

aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós” (17.20-21).<br />

Isso com certeza revela que os fariseus tinham uma idéia errada de como era o reino.<br />

Eles estavam esperando um reino muito diferente daquele que Jesus ensinava. Ele não viria<br />

“com visível aparência”, isto é, “de uma maneira que seu surgimento pode ser observado”<br />

(BA G D ). Ele não apareceria depois que vissem esse ou aquele sinal que estavam esperando.<br />

O sentido de “dentro de vós” (entos hymõn) é debatido. Alguns propõem que Jesus<br />

está dizendo que o reino é algo interior, espiritual; ele acontece no coração dos crentes e<br />

não pode ser observado. E claro que isso é verdade (cf. Rm 14.17), mas não foi isso que


Jesus estava dizendo. Há muitas declarações sobre o reino no Novo Testamento, e nenhuma<br />

além dessa permite uma perspectiva essencialmente interior. Outros propõem que as<br />

palavras apontam para um surgimento repentino. O reino virá tão rápido que o observador<br />

não terá tempo para ver sinais que permitam predizer sua chegada, Se o sentido é esse,<br />

porém, as palavras são usadas de modo muito incomum. Outra sugestão é que o sentido é<br />

“ao nosso alcance”: para ter o reino, é só estender as mãos e alcançá-lo, A objeção a isso é<br />

que o reino normalmente é visto como dádiva de Deus e não resultado do esforço humano.<br />

No fim das contas, parece que devemos aceitar a quarta proposta, de que o sentido é “entre<br />

vocês”. Na pessoa de Jesus, o reino veio para o meio deles, E ele quem traz o reino.<br />

Lucas também nos faz ver que há um importante aspecto futuro no reino. Este<br />

dependerá do retorno de Jesus, Nesse sentido, haverá sinais que permitirão a quem estiver<br />

atento saber que o reino está próximo (21.31; Mateus e Marcos registram “está próximo”;<br />

novamente vê-se a tendência de Lucas de deixar claro que é o reino que está em vista). Contudo,<br />

não se deve exagerar a proximidade do reino. A parábola das minas é aplicada a uma<br />

situação em que algumas pessoas pensavam que o reino viria “imediatamente” (19.11).<br />

Jesus deixou claro que não se tratava disso.<br />

Há também duas referências ao reino de Deus no que Jesus disse no lugar da última<br />

ceia. Ao falar da Páscoa que desejava comer com os discípulos, Jesus afirmou: "Nunca mais a<br />

comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus” (22.16).8A Páscoa era uma celebração da<br />

libertação; ela relembrava a grande ação de Deus de libertar seu povo da escravidão no Egito.<br />

Jesus estava dizendo que isso tem importância tipológica; a poderosa libertação daquele tempo<br />

apontava para a libertação maior que ocorreria por ocasião da consumação de todas as coisas, a<br />

vinda do reino. Essa expectativa ansiosa da libertação final pode ser vista de novo quando Jesus<br />

disse que não beberia do fruto da videira “até que venha o reino de Deus” (22.18).<br />

E digno de nota que Lucas continua a se referir ao “reino de Deus” quando escreve<br />

Atos. Ele relata que, durante os quarenta dias entre a ressurreição e a ascensão, Jesus falava<br />

“das coisas concernentes ao reino de Deus" (At 1.3). Depois desse ponto, vemos os pregadores<br />

cristãos trabalhando muito. Em Samaria, Filipe “evangelizava a respeito do reino de<br />

Deus e do nome de Jesus Cristo” (At 8.12), e em Efeso o reino foi o tema da pregação de<br />

Paulo durante três meses (At 19.8). Até o fim essa foi a sua mensagem, pois testemunhou<br />

do reino de Deus quando os judeus vieram à sua residência em Roma (At 28.23). A última<br />

frase de Atos nos diz que Paulo, em Roma, pregava o reino de Deus e ensinava sobre o<br />

Senhor Jesus Cristo, com ousadia e sem impedimento (At 28.31). Paulo não fez do reino<br />

um evangelho fácil, pois ensinou aos crentes em Listra, Icônio e Antioquia da Pisídia que<br />

"através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus” (At 14.22).<br />

“A referência ao cum prim ento no reino de Deus indica que a Páscoa tinha um sentido tipológico. Ela<br />

certam ente comem orava uma libertação, mas apontava para uma libertação futura ainda maior, que seria<br />

vista n o reino de D eus" (L e o n M orris, T he gospel according to st. Luke. London, 1974, p. 305),


Em tudo isso vemos que Lucas levava a soberania de Deus muito a sério. É evidente<br />

que ele prezava muito o que Jesus dissera sobre o reino, e ele deixa claro que Jesus ensinava<br />

sobre isso com freqüência e destaque, havendo essa pregação continuado na igreja. Deus<br />

está no comando e na plenitude do tempo trará seu reino no sentido mais pleno; isso é parte<br />

importante do pensamento dos cristãos.<br />

» •. r;. ;:í ;í;<br />

*7)eus agiu em Cristo<br />

Evidentemente está no centro do pensamento cristão que na vida, morte, ressurreição<br />

e ascensão de Jesus vemos nada menos que a ação de Deus. Não devemos pensar que<br />

Jesus não passou de um grande homem. Deus estava agindo em Jesus de um modo muito<br />

especial. Já observamos que Lucas deixa claro que o nascimento de Jesus ocorreu por uma<br />

intervenção divina. Deus está atuante em todo o ministério de Jesus. Lucas nos diz, por<br />

exemplo, que Jesus mandou o ex-endemoninhado geraseno ir para casa e contar a todo<br />

mundo o que Deus fizera por ele (8.39), não o que ele havia feito. Era Deus quem estava<br />

agindo em Jesus. Em seu registro da ordem dada ao homem de contar aos outros o que<br />

Deus fizera e referindo-se em seguida ao que Jesus fizera, Lucas encontra uma forma de<br />

destacar a divindade de Cristo. Não devemos deixar de ver, no entanto, de que Deus estava<br />

atuando nas curas efetuadas por Jesus. Jesus fez boas obras e curou os oprimidos pelo<br />

Diabo “porque Deus estava com ele” (At 10.38).<br />

A exemplo dos outros evangelistas, Lucas fala dejesus como “o Filho de Deus"<br />

(p. ex., 1.35; 4.3, 9, 41; 8.28; At 9.20). Ele também era o Cristo “de Deus" (9.20; 23.35).<br />

Lucas nos diz que “a graça de Deus” estava sobre o menino Jesus (2.40; cf. 2.52), indicando<br />

que, desde a tenra infância dejesus, Deus estava agindo nele e com ele. Logo no começo do<br />

ministério dejesus, um homem possesso por demônios o reconheceu como "o Santo de<br />

Deus” (4.34), mostrando sua ligação íntima com o Pai. E Jesus deu provas de que reconhecia<br />

sua dependência de Deus quando passou uma noite inteira em oração antes de escolher<br />

os Doze (6.12). Era importante que esse grupo de companheiros íntimos fosse composto<br />

das pessoas certas. Jesus buscou a orientação de Deus antes de fazer sua escolha.<br />

Os dois na estrada de Damasco reconheceram que Jesus era “poderoso em obras e<br />

palavras, diante de Deus e de todo o povo" (24.19). Mesmo pensando que Jesus havia sido<br />

derrotado e morto por seus inimigos, eles reconheceram que suas palavras e obras tinham<br />

obtido a aprovação de Deus.9 Pedro, porém, foi mais claro ainda quando, no dia de Pentecostes,<br />

explicou à multidão: “Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós<br />

com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele<br />

“Essa expressão transm ite a idéia de que o próprio D eus aprovou esse poderoso profeta” (R . C . H ,<br />

Lenski, The interpretation o f st. L u ke’s gospel. M inneapolis, 1946, p. 1184).


entre vós, como vós mesmos sabeis...” (At 2,22). Procura-se frisar aqui que a própria multidão<br />

sabia o que Jesus tinha feito. Tudo acontecera “entre eles”; “eles mesmos” sabiam o que<br />

acontecera. Eles, porém, não conseguiram ver outras coisas além dos milagres; não entenderam<br />

o que realmente havia acontecido. Então Pedro lhes diz que aqueles acontecimentos<br />

milagrosos eram Deus conferindo sua autenticação de Jesus. Mais que isso, ninguém<br />

menos que o próprio Deus é quem realizara as obras de poder.<br />

O relato que Lucas faz dos primeiros dias da igreja evidencia que o que dominava a<br />

mente daqueles primeiros crentes era o fato e a maravilha da ressurreição. Quando Jesus<br />

morreu, faltou-lhes o chão debaixo dos pés. Quando descobriram que ele havia ressuscitado,<br />

que derrotara a morte, toda a perspectiva deles foi revolucionada. A empolgação com a<br />

ressurreição está presente em tudo o que Lucas registra do que se disse e fez naqueles dias<br />

de grande ânimo. E constantemente ele expressa a verdade de que foi Deus quem efetuou a<br />

ressurreição. Pedro falou simplesmente dejesus, “ao qual Deus ressuscitou” (At 2.24), e no<br />

mesmo sermão ele voltou a essa idéia, dizendo: "A este Jesus Deus ressuscitou, do que<br />

todos nós somos testemunhas” (At 2,32). No sermão seguinte ele se queixou de que seus<br />

ouvintes haviam matado o “Príncipe da vida” ( B j) , mas acrescentou: “A quem Deus ressuscitou",<br />

lembrando mais uma vez que ele e seus companheiros eram testemunhas do que<br />

Deus havia feito (At 3.15). Ele disse que Deus “ressuscitou a seu Filho” (At 3.26, A R C ) —<br />

pensamento que continua sendo expresso (At 4.10; 5.30; 10.40). Quando Paulo entrou em<br />

cena, Lucas relata que, no sermão de Paulo na sinagoga em Antioquia da Pisídia, ele falou<br />

da ressurreição como obra de Deus, e faz isso várias vezes (At 13.30, 33, 37). Claramente<br />

esse era um tema dominante na pregação dos primeiros cristãos. Deus agiu em Cristo, e foi<br />

Deus quem venceu a morte, ressuscitando Jesus.<br />

Os primeiros pregadores enfatizaram a maneira como Deus revestira a Jesus de<br />

honra e dignidade. Jesus foi “exaltado à destra de Deus" (At 2.33). Deus o fez “Senhor e<br />

Cristo" (At 2.36; Pedro continua e mostra o enorme crime cometido por seus ouvintes,<br />

acrescentando: “Este Jesus, que vós crucificastes...”). Em concordância com uma profecia<br />

de Moisés, Deus ressuscitou ajesus como profeta (At 3.22; 7.37). Ele o exaltou à sua direita<br />

como “Príncipe e Salvador” (At 5.31) e o nomeou “Juiz de vivos e de mortos” (At 10.42).<br />

Deus o “ungiu com o Espírito Santo” (At 10.38). Provavelmente devamos incluir aqui<br />

também o fato de que foi em Jesus que Deus cumpriu seujuramento a Davi de que levantaria<br />

um dos seus descendentes para sentar-se em seu trono (At 2.30) e que da descendência<br />

desse rei ele deu a Israel “o Salvador, que é Jesus” (At 13.23).<br />

Em tudo isso vemos uma das principais ênfases de Lucas, Quando ele escreveu,<br />

todos sabiam com clareza que o movimento cristão era uma realidade. Não se podia negar<br />

que havia pessoas que deviam sua inspiração ajesus e que afirmavam que ele era aquele que<br />

trouxera salvação universal. Uma das coisas que Lucas está deixando muito claro é que<br />

aquilo não devia ser considerado apenas mais um movimento humano. Não devemos


achar que alguns galileus tagarelas conseguiram convencer pessoas a arriscar a sorte com<br />

eles. Antes, estavam diante de um ato divino grandioso: Deus enviara Jesus para ser o Salvador.<br />

Não entenderemos esse movimento enquanto não virmos que Deus está nele. Tudo o<br />

que Jesus fez, ele o fez porque Deus estava agindo nele e por meio dele.<br />

^eus age nos crentes<br />

Deus não agiu só em Jesus, mas também continua a agir nos seus seguidores.<br />

Nenhum escritor do Novo Testamento tem tanta certeza quanto Lucas de que Deus age<br />

agora, como confirmam os milagres que ele relata em Atos. Ele relaciona vários, como a<br />

cura do paralítico no capítulo 3, e também faz constatações como: "Deus, pelas mãos de<br />

Paulo, fazia [epoiei, ação contínua] milagres extraordinários” (At 19.11). O Deus sobre o<br />

qual Lucas escreve não é uma abstração sem poder, mas um Deus poderoso, interessado<br />

em seu povo e disposto a agir no meio dele para cumprir seus propósitos.<br />

Lucas tem certeza de que Deus fala às pessoas. Por exemplo, o Espírito falou com<br />

Pedro (At 10.19; 11.12), e Paulo e Barnabé partiram em sua viagem missionária porque<br />

o Espírito orientara certos líderes em Antioquia a separá-los para o trabalho para o qual<br />

os chamara (At 13.2). Deus não se permitiu ficar sem testemunho, e isso pode ser visto<br />

com clareza nas coisas boas que ele faz por seu povo, como enviar chuva e estações frutíferas<br />

(At 14.17).<br />

Quando Paulo e Barnabé retornaram a Antioquia e prestaram relatório da sua primeira<br />

viagem missionária à igreja que os enviara, disseram aos seus ouvintes "quantas coisas<br />

fizera Deus com eles e como abrira aos gentios a porta da fé” (At 14.27). Não foram os<br />

apóstolos que fizeram o trabalho, mas Deus. Eles repetiram isso no Concílio de Jerusalém<br />

(15.4), e Pedro disse em termos semelhantes que Deus determinara que os gentios deviam<br />

ouvir o evangelho por meio dele (At 15.7). Mais tarde, Paulo relatou novamente à igreja<br />

emjerusalém o que Deus fizera entre os gentios por seu ministério (At 21.19). Assim também<br />

lemos que Deus “deu testemunho” por meio dos pregadores (At 15.8) e que "fez sinais<br />

e prodígios entre os gentios” por meio deles (At 15.12). Também foi ele quem chamou os<br />

pregadores para o trabalho de evangelização na Macedônia (At 16.10). Paulo fazia seus<br />

planos, mas tratava de incluir a ressalva “se Deus quiser” (At 18.21); era Deus, e não o apóstolo,<br />

quem determinava onde ele devia trabalhar. Quando ele recorda os detalhes da sua<br />

conversão, diz aos seus ouvintes que Ananias lhe dissera: “O Deus de nossos pais, de antemão,<br />

te escolheu” (At 22.14). Em ocasião semelhante ele mostrou que a promessa de Deus<br />

é muito importante: ele estava sendo julgado por se ater firmemente à fé no cumprimento<br />

da promessa (At 26.6).


Paulo via Deus em ação nas atividades cotidianas da sua missão. Deus lhe falou em<br />

Corinto e deu-lhe ânimo para seu trabalho ali (At 18.9-10). Deus falou com ele de novo na<br />

prisão em Jerusalém e garantiu-lhe que daria testemunho do evangelho em Roma (At<br />

23.11). Na terrível tempestade durante a viagem de barco, o anjo de Deus esteve com Paulo<br />

e deu-lhe a certeza de que estaria realmente perante César, e ainda que Deus lhe "dera”<br />

todos os que estavam a bordo (At 27.23-24). Paulo estava sempre consciente do poder de<br />

Deus que “ressuscita os mortos” (At 26.8). Mas ele não limitou a atividade de Deus a coisas<br />

grandiosas no fim dos tempos. Ele via Deus atuando agora, nos assuntos da vida diária,<br />

agindo em favor de seus servos hoje.<br />

Isso, é claro, não era novidade. Deus falara pelos profetas (At 2.17; 3.21; 7.6). Ele<br />

julgara uma nação (At 7.7). Quando o povo lhe deu as costas e passou a adorar ídolos, de<br />

alguma forma a mão de Deus estava nisso também, pois ele “os entregou” à sua forma desvirtuada<br />

de culto: sua punição incluiu a própria idolatria, visto que podiam ter levado uma<br />

vida mais satisfatória (At 7.42; cf. 3.19). Na vida política da nação, Deus concedeu Saul ao<br />

povo como o primeiro rei (At 13.21). E, é claro, no princípio Deus fez o mundo (At 17.24),<br />

e o ser humano é conhecido como “geração de Deus" (At 17.29).<br />

tyeus, meu ôalvãdor<br />

A semelhança dos outros autores dos evangelhos, Lucas dedica bastante espaço à<br />

narrativa da paixão. Ela é seu ponto culminante, e ele a narra com cuidado. Um aspecto dos<br />

seus escritos é que ele deixa claro que Deus estava em ação na obra de salvação realizada na<br />

cruz. Foi "pelo determinado desígnio e presciência de Deus" que Jesus foi crucificado (At<br />

2.23). Não é o caso de que Deus simplesmente sabia o que iria acontecer; ele planejou tudo<br />

aquilo, A morte de Jesus foi sua maneira de outorgar salvação.<br />

Isso se manifesta nas referências às predições da paixão, tanto pelos profetas quanto<br />

pelo próprio Jesus. Veja, por exemplo, a profecia de Jesus quando ele e seus discípulos iam<br />

para Jerusalém: “Vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas,<br />

no tocante ao Filho do Homem" (18.31). Em seguida menciona que Jesus seria entregue<br />

aos gentios, que zombariam dele, o insultariam, cuspiriam nele e o açoitariam, referindo-se<br />

também à morte e ressurreição. Até nos menores detalhes Deus tinha planejado o que<br />

aconteceria a seu Filho.<br />

Essa profecia de Jesus costuma ser chamada sua terceira predição da paixão.10 Isso é<br />

muito interessante, pois na verdade essa é a sétima predição nesse evangelho (veja 5.35;<br />

9.22, 43-45; 12.50; 13.32-33; 17,25). À primeira faltam detalhes e ela registra simplesmen­<br />

P o r exemplo, W ilfrie d J. H arrington usa o título “T erceira predição da paixão" (T hegospel according<br />

to st Luke. London, 1968, p. 218).


te: “Dias virão em que lhes será tirado o noivo..." Mas dificilmente pode haver dúvidas de<br />

que Jesus está se referindo à sua morte violenta.11<br />

Ele falou da necessidade da sua morte: “Ê necessário que o Filho do Homem sofra<br />

muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas; seja<br />

morto e, no terceiro dia, ressuscite” (9.22). A palavra “é necessário” (dei) indica uma necessidade<br />

divina obrigatória. Não se afirma que era assim que as coisas acabariam acontecendo.<br />

Tratava-se do plano de Deus, e ele tinha de se cumprir.<br />

A terceira predição foi feita quando as pessoas se maravilhavam com os milagres<br />

que Jesus estava fazendo. É evidente que elas estavam pensando que tudo isso tinha de<br />

levar a algo maravilhoso, pois Jesus começou com uma afirmação solene: "Quanto a vós [o<br />

pronome é enfático: vós que estais tão impressionados com esses milagres], abri bem os<br />

ouvidos às seguintes palavras" (B J), Eles não deviam esperar nenhum resultado glorioso,<br />

pois Deus planejara algo bem diferente. A predição é bastante geral: “O Filho do Homem<br />

está para ser entregue nas mãos dos homens”. Mas as palavras certamente apontam para a<br />

traição que levou à crucificação. Lucas conclui esse trecho dizendo que os ouvintes não<br />

entenderam nada e que tinham medo de perguntar (9.43-45).u<br />

A declaração de Jesus: "Eu vim para lançar fogo sobre a terra” parece ser uma referência<br />

à condenação que sua vinda significou para todas as formas de incredulidade. Ele<br />

continuou dizendo: "Tenho um batismo com o qual hei de ser batizado; e quanto me<br />

angustio até que o mesmo se realize!" (12.49-50; N E B traduz as últimas palavras assim: “E<br />

como estou angustiado para que essa confusão acabe logo!”). A figura é incomum, mas<br />

batismo aqui aponta claramente para a morte. Geralmente entendemos que o batismo<br />

simboliza purificação, e às vezes ele pode ter esse sentido. Mas o significado mais básico é<br />

morte, como J. Ysebaert mostrou.13 A idéia da condenação do pecado leva à idéia da morte<br />

de Cristo pelo pecado. A passagem nos dá um vislumbre do que custou a Jesus ver que a<br />

cruz era inevitável e caminhar resoluto em direção a ela.<br />

Certa vez alguns fariseus advertiram Jesus de que Herodes tentava matá-lo. (Os<br />

fariseus via de regra eram opositores de Jesus; por isso é estranho vê-los tentando ajudá-lo.)<br />

Sua resposta foi: “Ide dizer a essa raposa que, hoje e amanhã, expulso demônios e curo<br />

enfermos e, no terceiro dia, terminarei [ARC: sou consumado]” (13.32). Apesar de não ser<br />

essa uma forma comum de afirmá-la, não há dúvida de que Jesus estava se referindo à sua<br />

morte, dizendo que ela ocorreria da maneira e no momento escolhido por Deus, não por<br />

U M arshall com enta: “A referência é claram ente à m aneira em q u ejesu s foi tirado dos discípulos pela<br />

m orte” (T h e gospel o f Luke, p. 226). H arrington tam bém vê aqui uma referência à m orte de Jesus (T h e gospel<br />

according to st Luke. London, p. 96).<br />

"O medo dos discípulos indica que as predições da paixão podem ter sido pronunciam entos dram á­<br />

ticos q u ejesu s não explanou” (E . Earle Ellis, T he gospel o f Luke. London, 1966, p. 144).<br />

13 Greek baptismal terminology. N ijm egen, 1962, cap. 3.


Herodes. Ele continuou: “Importa [dei] caminhar hoje, amanhã e depois, porque não se<br />

espera que um profeta morra fora de Jerusalém” (v. 33). É claro que ele tinha sua morte em<br />

mente e que estava dizendo que ela ocorreria de acordo com a vontade de Deus, não de<br />

Herodes.<br />

A centralidade da sua morte transparece em outra passagem com “importa”. Jesus<br />

estava falando com os fariseus sobre a vinda do reino de Deus, e disse que ela seria como o<br />

relâmpago, numa clara referência ao brilho e à natureza inesperada da sua vinda.14 Poderíamos<br />

esperar que ele passasse a falar da sua majestade, do julgamento que fará das pessoas ou<br />

coisas assim, mas em vez disso lemos: “Mas importa [dei] que primeiro ele padeça muitas coisas<br />

e seja rejeitado por esta geração" (17.25). Não há detalhes, mas é claro que de novo ele está<br />

pensando em sua morte. Isso foi determinado por Deus, e ocorrerá inevitavelmente.<br />

Predições de Jesus como essas concordam com o que os profetas tinham dito antes.<br />

Lucas nos conta que Jesus se referiu ao cumprimento de “tudo quanto está escrito por<br />

intermédio dos profetas” e novamente de "tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés,<br />

nos Profetas e nos Salmos” (18.31; 24.44). A conversa na estrada para Emaús foi motivada<br />

pela incompreensão da morte de Jesus pelos discípulos e pela pergunta do Senhor: "Não<br />

convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória?” (24.26). Em seguida, "começando<br />

por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava<br />

em todas as Escrituras” (v. 27). Essas coisas com certeza incluíam o fato de que ele<br />

tinha de sofrer e ressuscitar (24.46). Às vezes há referências a profecias específicas, como a<br />

da pedra que os construtores rejeitaram (20.17) e as palavras de Isaías de que ele seria<br />

contado com os transgressores (22.37).<br />

E evidente, portanto, que Lucas via o que acontecera a Jesus como a atuação de<br />

Deus, muito antes prevista e reconhecida por Jesus em todo o seu ministério. As vezes<br />

Lucas simplesmente diz que Deus estava agindo, um aspecto dos cânticos dos primeiros<br />

capítulos. Por exemplo, no Magnificai, Maria refere-se a “Deus, meu Salvador” (1.47) e passa<br />

a falar de que ele dispersou os arrogantes, destituiu potentados e elevou os humildes, e<br />

coisas do gênero. O cântico de Zacarias também está repleto dos grandes feitos do Senhor,<br />

que “redimiu o seu povo” (1.68). Poderíamos esperar que o idoso sacerdote se concentrasse<br />

no papel do seu filho recém-nascido, mas, apesar de não esquecer da grandeza do pequeno<br />

João (1.76ss), ele primeiro se concentrou na grande obra de redenção que Deus estava para<br />

realizar. João Batista também citou uma profecia quando disse que "toda carne verá a<br />

salvação de Deus” (3.6).<br />

“O reino e o Filho do H o m em virão com a onipresença imprevisível de um relâmpago, desafiando todas<br />

as previsões, tanto que não se podem colocar sentinelas para avisar da sua chegada” (G . B. Caird, The<br />

gospel o f stL u ke. H arm ondsw orth, 1963, p. 197).


Nos primeiros tempos da história da igreja há uma forte ênfase na maneira como<br />

Deus salva. Diariamente o Senhor acrescentava à igreja os que iam sendo salvos (At 2.47).<br />

Não eram eles que se salvavam, nem eram os pregadores que faziam o trabalho essencial.<br />

Salvação era obra de Deus. Quem queria ser salvo podia “invocar o nome do Senhor” (At<br />

2.21), mas nada se podia fazer além disso. A salvação que se recebia era dádiva de Deus.<br />

Paulo encomendou as pessoas “ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para edificar<br />

e dar herança...” (At 20.32); ele também se refere ao evangelho como “o evangelho da<br />

graça de Deus" (At 20.24). Foi Deus quem “trouxe a Israel o Salvador, que é Jesus” (At<br />

13.23). Foi Deus quem "ressuscitou o seu Servo e o enviou para abençoar” seu povo (At<br />

3.26). Uma parte interessante do ensino de Atos é que o arrependimento, que geralmente<br />

consideramos iniciativa nossa, é visto como uma dádiva de Deus (5.31; 11.18).<br />

Devemos observar as referências de Lucas aos sacramentos. Ele relata a instituição<br />

da ceia por Cristo (22.17-20) e que a igreja desde o começo “partia o pão” (At 2.42). Ele<br />

conta que, depois do seu primeiro sermão, Pedro convocou o povo para se deixar batizar, e<br />

que muitos o fizeram (At 2.38, 41). Há muitas referências a batismos (p. ex., 8.12, 38;<br />

10.48; 16.15, 33; 18.8). Houve e ainda há fortes desentendimentos entre os cristãos quanto<br />

ao significado exato dessas prescrições. Mas não há dúvida de que, se somos salvos por<br />

méritos próprios, elas não fazem sentido. Os dois ritos apontam para uma obra de salvação<br />

que Deus já efetuou.15<br />

Poderíamos acrescentar mais coisas de Atos. A traição dejudas, que levou à crucificação,<br />

tinha sido profetizada muito antes (At 1.16). Pessoas más levaramjesus à cruz, mas<br />

fizeram apenas o que Deus havia determinado que se fizesse (At 4.27-28). Cristo iria<br />

sofrer, e isso era tema de profecia (At 3.18; 26.22-23; 28.23).<br />

Um exemplo interessante de como isso foi aceito na igreja antiga vem da história do<br />

encontro de Filipe com o etíope. Filipe viu esse homem sentado em sua carruagem, tentando<br />

entender o significado de Isaías 53. Não há nenhum indício de que Filipe recebera<br />

algum sinal de que essa passagem estava em vista, mas, “começando por esta passagem da<br />

Escritura, anunciou-lhe a Jesus” (At 8.35). Paulo recebeu outra declaração importante<br />

numa visão em Corinto. Deus lhe disse: "Tenho muito povo nesta cidade” (At 18.10). Eles<br />

ainda não tinham feito nada em relação à salvação; muitos ainda nem tinham ouvido o<br />

evangelho. Mas já eram de Deus. Claramente é ele quem os conduz à salvação, no tempo<br />

devido.<br />

15 C f. Jam es D enney: “N áo há nada mais antigo no cristianism o do que os sacram entos, e eles, onde<br />

quer que existam, testem unham a relação entre a m orte de C risto e o perdão de pecados, [...] Isso não se<br />

deve a alguma tendência sacram ental de Lucas, apenas m ostra o lugar que a m orte de C risto tinha com o<br />

base da religião cristã com o condição para o perdão dos pecados, quando ele dá ao lado sacram ental do<br />

cristianism o a preem inência recebida nos prim eiros capítulos de A tos" (T h e death o f Cbrist, London,<br />

1905, p. 8 4 -8 5 ).


Assim, de várias maneiras, Lucas expressa a verdade de que é Deus quem traz salvação.<br />

Para ele, isso estava predestinado desde a eternidade e predito pelos profetas. Depois<br />

se realizou nos sofrimentos, na morte e ressurreição de Jesus, sendo pregado por muitas<br />

pessoas nos primórdios da igreja. Deus é todo-poderoso, e tinha efetuado grande salvação.<br />

0 grande amor de ^eus<br />

A referência de Lucas à "entranhável misericórdia” (1.78) de Deus é incomum. A<br />

N V I traduz a expressão por "ternas misericórdias”, Nos textos gregos, "entranhas” geralmente<br />

não se refere apenas aos órgãos internos do corpo humano, mas também, muitas<br />

vezes, a emoções muito intensas. Interessante é que, quando os gregos usavam o termo,<br />

pensavam em algo como ira, Para eles, quando alguém estava muito comovido, estava com<br />

raiva. Para os cristãos, no entanto, estar profundamente comovido significa estar cheio de<br />

compaixão. É surpreendente a aplicação do termo a Deus; isso expressa com força a verdade<br />

de que Deus age por compaixão.16<br />

A compaixão de Deus pode ser vista na atitude que ele tem em relação a toda a sua<br />

criação. Nem um pardal é esquecido por ele (12.6). Deus sustenta os corvos (12.24) e veste<br />

as plantas (12.27-28). Com isso se ensina uma lição aos seguidores de Jesus: o Deus que<br />

cuida de tudo que criou, certamente cuidará deles.<br />

Deus perdoa. Os escribas e fariseus pensavam que Deus é o único que pode perdoar<br />

(5,21). Lucas não discorda da essência da convicção deles; o erro deles é que não vêem que<br />

Jesus compartilha a natureza da divindade ao afirmar seu direito de perdoar realizando<br />

milagres. A prontidão de Deus para perdoar transparece na parábola do fariseu e do publicano,<br />

quando este orou: "Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (18,13).''' O homem era<br />

pecador e não podia justificar-se de nenhuma maneira. Mas podia apelar a Deus por misericórdia<br />

e encontrá-la.18<br />

16 V eja o estudo em N igel T u rn er, Christian words. Edinburgh, 1980, p. 78-80. O sentido dado pelos<br />

cristãos não é totalm ente novo, pois pode ser encontrado na LXX e nos Testamentos dos doze patriarcas.<br />

M esm o assim, é digno de nota.<br />

17 A palavra grega IXátJÔTJTL norm alm ente é traduzida por “tem m isericórdia" ou algo parecido, e não<br />

há por que fazer objeção a isso. C ontudo, devemos ter em m ente que a idéia dessa palavra é aplacar a ira.<br />

“A o pedir perdão, ele sabe o que m erece" (M orris, Thegospel according to st. Luke, p, 265); essa noção é "a<br />

súplica a D eus por m isericórdia” (Büchsel, TDNT 3:315).<br />

18C f. T . W . M anson: “Esse cobrador de im postos era um canalha, e sabia disso. Pediu m isericórdia de<br />

Deus porque era a única coisa que se atrevia a pedir” ( The sayings o f Jesus. London, 1949, p. 312).


A pecadora que chorou sobre os pés de Jesus e derramou óleo precioso sobre eles<br />

também encontrou misericórdia. Jesus disse: “Perdoados lhe são os seus muitos pecados”, e<br />

depois citou seu amor como prova de que tinha sido perdoada (7.47).19<br />

Lucas deixa claro que o perdão deve ser proclamado. Ele começa cedo, pois relata o<br />

que Zacarias disse sobre seu filho recém-nascido: “Precederás o Senhor, preparando-lhe<br />

os caminhos, para dar ao seu povo conhecimento da salvação, no redimi-lo dos seus pecados”<br />

(1.76-77), Foi o que ele fez no devido tempo, pois pregou um batismo de arrependimento<br />

para perdão dos pecados (3.3). Lucas nos relata que o Senhor ressurreto mandou<br />

seus seguidores pregar perdão (24.47), e logo encontramos Pedro fazendo exatamente isso<br />

(At 2.38) e explicando ao Sinédrio que Deus agira em Cristo "a fim de conceder a Israel o<br />

arrependimento e a remissão de pecados" (At 5.31). Pedro proclamou perdão novamente a<br />

Cornélio e seus amigos (At 10.43), e Paulo fez o mesmo na sinagoga de Antioquia da Pisídia<br />

(At 13.38) e perante o rei Agripa (At 26.18). Perdão é um aspecto importante da<br />

manifestação da compaixão divina.<br />

Às vezes Lucas nos diz que Deus “visita” o seu povo. Bem, uma visita de Deus pode<br />

ser muito incômoda para pecadores, e há ocasiões em que o verbo “visitar" é usado para<br />

ensinar que Deus com certeza irá punir os que fazem o mal (p. ex„ Êx 32.34; Jr 14.10; NVI<br />

traduz a palavra por “punir” e “castigar”). Quando Lucas, no entanto, emprega esse verbo,<br />

ele o faz sempre com a idéia de que Deus visita com o propósito de abençoar. Ele liga “visita”<br />

com redenção (1.68), e nos diz que pessoas que presenciaram um milagre de Jesus reconheceram<br />

que Deus "visitou o seu povo" (7.16). Mais tarde, quando Deus incluiu os<br />

gentios na esfera de alcance da salvação, Tiago descreveu isso em termos de visita (At<br />

15.14), Para Deus, visitar significa mostrar compaixão,<br />

Lucas também escreveu que há "alegria no céu” para cada pecador que se arrepende<br />

(15.7, 10). Alegria já fora prometida por ocasião do nascimento de João Batista. Já que a<br />

maioria das pessoas se lembra desse homem como um personagem sério e até repugnante,<br />

ébom destacar essa informação de Lucas (1,14). E quando o anjo do Senhor foi até os pastores,<br />

chegou com a "boa-nova de grande alegria" de que o Salvador tinha nascido (2.10).<br />

Há alegria para alguns que receberam a palavra como semente lançada em lugar rochoso<br />

(8.13), mas esta é uma emoção superficial e não pode ser comparada à alegria dos que pregaram<br />

com toda fidelidade e perceberam que até os demônios se lhes sujeitavam (10.17). E<br />

Lucas nos diz que os discípulos retornaram a Jerusalém "com grande alegria” depois que<br />

Jesus subiu ao céu (24.52). Mais tarde, quando o evangelho era pregado e outros eram<br />

ganhos para Cristo, havia mais ocasiões para alegria (At 8.8; 13.52; 15.3).<br />

C , F. D . M oule dá o sentido com o: “Posso dizer com confiança que seus pecados estão perdoados,<br />

porque seu am or o prova", A idéia de que o am or dela é "a razão do seu perdão, não a.garantia de que ela foi<br />

perdoada", diz ele, é “uma conclusão não cristã que transform a a frase exatam ente no contrário da parábola<br />

que a precedeu e tam bém da segunda parte do próprio versículo” (íB N T G , p. 147).


Devemos também ter em mente que Lucas gosta de fazer referência à "palavra de<br />

Deus” (p, ex., 5.1; 8.11, 21; 11.28; At 4.29, 31; 6.2, 7; 8.14; 11.1; 12.24). Cada ocasião em<br />

que essa expressão é usada serve de sinal de que Deus está para fazer uma revelação. Lucas<br />

não vê um Deus distante ou oculto, que não quer atender as necessidades do seu povo. Ele é<br />

compassivo e revela aos pecadores o que precisam saber para receber salvação.<br />

Graça é, obviamente, uma das mais eminentes palavras cristãs, característica de<br />

Paulo (ele a usa em 100 das 155 ocorrências no Novo Testamento). Quase não percebemos<br />

que Lucas é o segundo escritor que mais a emprega (8 vezes no evangelho e 17 em<br />

Atos). Às vezes ele a usa com o sentido de “recompensa”: “Qual é a vossa recompensa?”<br />

(6.32-34); outras vezes, da mesma maneira de Paulo (p. ex., At 15.11). Lucas, no entanto,<br />

não repete simplesmente Paulo. Ele é o único no Novo Testamento que registra a expressão<br />

“a palavra da sua graça” (At 14.3; 20.32), e James Moffatt vê nisso e no “evangelho da<br />

graça de Deus” (At 20.24) provas da originalidade de Lucas ao valer-se do conceito da graça.20<br />

Apesar de ser verdade que devemos procurar em Paulo o conceito caracteristicamente<br />

cristão de graça, também é verdade que Lucas tem importância própria para nossa<br />

compreensão desse conceito.<br />

Grace in the N ew Testament. London, 1931, p. 362-363.


Capítulo ô<br />

O Smngelho de<br />

Cucas e Atos<br />

A doutrina de Cristo<br />

evangelho de Lucas já foi chamado “o mais belo livro dentre todos os que existem”. Con-<br />

( cordemos ou não com isso, não podemos duvidar de que Lucas nos apresenta<br />

em seu evangelho um relato encantador do ministério de Jesus e, quando passamos<br />

para Atos, da vida da igreja nos seus primórdios. Neste evangelho vemos Jesus como<br />

uma pessoa carinhosa e cativante, e não nos surpreende que ele fosse "amigo de publicanos<br />

e pecadores” (7.34). Jesus muitas vezes chamou outros de "amigo” (a palavra [philos] ocorre<br />

15 vezes em Lucas e 3 em Atos — num total de 29 no Novo Testamento). O Jesus do ter-<br />

P o r E. Renan, Les évangiles. Paris, 1877, p. 283. F. C . G ran t considera Lucas “o mais valioso dos quatro”,<br />

e Lucas-A tos “o escrito mais valioso no N ovo T estam ento” (T h e Gospels. London, 1957, p. 133).


ceiro evangelho certamente é semelhante a nós, alguém muito humano (só que sem<br />

pecado).<br />

Lucas nos diz que Pedro descreveu Jesus corno “varão aprovado por Deus [...] com<br />

milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele” (At<br />

2.22). Não há dúvidas quanto às coisas grandiosas que Deus fez por meio de Jesus. Mas<br />

também não há dúvidas de que Jesus era um “homem”. Lucas, conforme sabemos, conta<br />

alguns episódios da infância de Jesus e registra o fato de que “crescia o menino e se fortalecia,<br />

enchendo-se de sabedoria; e a graça [ou o favor] de Deus estava sobre ele” (2.40). Ele<br />

conclui seu relato da visita a Jerusalém e da aventura do menino no templo mencionando o<br />

retorno a Nazaré e a informação de que “crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante<br />

de Deus e dos homens" (2.52). Essas passagens apontam para o processo humano normal<br />

de crescimento e desenvolvimento.<br />

Jesus tinha as necessidades físicas normais; por exemplo» sentia fome (4.2). Ele<br />

tinha emoções humanas: ficou surpreso com a fé do centurião (7.9). Chorou sobre a cidade<br />

de Jerusalém (19.41), e percebe-se uma emoção humana comovente em seu lamento: "Jerusalém,<br />

Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas<br />

vezes quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das<br />

asas, e vós não quisestes!” (13.34). Lucas deixa claro que Jesus era religioso,2 e dele vem a<br />

informação de que Jesus tinha o hábito de adorar na sinagoga no sábado (4.16). Lucas também<br />

nos diz diversas vezes que Jesus orou (p. ex,, 3-21; 5.16; 6.12; 9.18, 28-29); em certa<br />

ocasião, ele orou a noite inteira (6.12). Ele passou pela experiência humana da tentação<br />

(4.1-13), e Lucas encerra esse relato dizendo que o Diabo deixou Jesus por algum tempo;<br />

em outras palavras, Jesus passou por tentações durante toda a vida, à semelhança do<br />

restante da humanidade.<br />

As pessoas com certeza trataram Jesus como um homem. Riram dele quando se<br />

recusou a concordar que a filha de Jairo estava morta (8.53), e a crítica de alguns de que ele<br />

era um “glutão e bebedor de vinho” (7.34) mostra que seus opositores não tinham dúvida<br />

do seu parentesco com outros seres humanos. O mesmo incidente mostra que Jesus não<br />

era um asceta; ele certamente desfrutava a vida. Isso não quer dizer que acedia a todos os<br />

seus desejos. Certa vez ele disse: “No meio de vós, eu sou como quem serve" (22.27); essa é<br />

mais uma afirmação que aponta para uma natureza humana genuína. Depois de ser preso,<br />

“Jesus foi a pessoa mais religiosa que jam ais viveu; ele não fazia nada, não dizia nada e não pensava em<br />

nada sem pensar em D eus. S e seu exemplo significa alguma coisa para nós, é que a vida hum ana sem a<br />

presença consciente de D eus — mesm o que seja uma vida de serviço hum anitário por fora com o o ministério<br />

de Jesus — é uma perversão m onstruosa. S e quisermos mesm o seguir as pegadas de Jesus, temos<br />

de obedecer ao prim eiro m andamento, assim com o ao segundo, que lhe é sem elhante: tem os de amar o<br />

Senh or nosso D eus de todo o nosso coração, nossa alma, nosso entendim ento e nossa força" (J. Gresham<br />

M achen, Christianity and liberalism. N ew York, 1934, p. 94).


zombaram dele e o agrediram pessoas que, ao que parece, não achavam que iam sofrer alguma<br />

conseqüência por seu ultraje; o objeto de todo esse escárnio era um homem real, mas<br />

apenas um homem (22.63). E no fim de tudo Jesus morreu com esta oração nos lábios:<br />

“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (23,46), uma oração que, nas palavras de<br />

Joseph A. Fitzmyer, "é prova de uma suprema entrega humana”.’<br />

E verdade que Lucas não destaca os aspectos humanos de Jesus tanto quanto Marcos,<br />

mas também é verdade que ele não tem dúvidas quanto à autêntica natureza humana<br />

do seu Senhor. Isso transparece não tanto em passagens isoladas que podem ser citadas<br />

(apesar de eu ter anotado algumas) quanto no estilo de vida geral de Jesus. Ele obedeceu, e<br />

deu ordens que podem ser obedecidas ou desobedecidas. Fez perguntas e procurou<br />

informações. Sofreu uma morte humana.<br />

Talvez devamos observar alguns pontos em relação à morte de Jesus. Lemos que, ao<br />

enfrentar a morte, Jesus orou intensamente no jardim do Getsêmani, até aceitar a vontade<br />

de Deus (22,42). A maioria dos manuscritos acrescenta as palavras sobre o anjo que o fortaleceu<br />

e sobre sua agonia e seu suor que era como gotas de sangue caindo no chão<br />

(22.43-44). Parece provável que devamos aceitar essas palavras, apesar da hesitação de<br />

alguns em fazê-lo.4 Elas revelam um pouco o horror que a morte representava para ele,<br />

morte pela qual se tornou um com os pecadores e que sofreu em lugar deles.<br />

A natureza humana de Jesus, porém, não é tudo. De modo tão claro como Mateus e<br />

Marcos, Lucas vê em Jesus mais do que apenas um galileu, Jesus ensinou com uma autoridade<br />

que os evangelistas não viam em outros mestres e viveu uma vida que era a revelação<br />

do próprio Deus. Passemos à maneira como Lucas expôs esse outro aspecto de Jesus.<br />


mo”. Ele acrescenta algumas informações sobre sua grandeza real, o que levou Maria a perguntar:<br />

“Como será isto, pois não tenho relação com homem algum?” Gabriel respondeu:<br />

"Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra;<br />

por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus” (1.30-35).<br />

Tem havido muitos debates em torno da concepção virginal — doutrina rejeitada por<br />

muitos estudiosos de hoje.5Lucas, todavia, claramente a aceitou, e era importante para ele.<br />

Ela ditou seu conceito do termo “o Filho de Deus” e deixa claro que ele não lhe dava pouca<br />

importância. Para Lucas, "o Filho de Deus” significava que a relação de Jesus com o Pai é<br />

especial. Ele às vezes referia-se aos discípulos como “filhos do Altíssimo” (6.35), mas para<br />

ele Jesus não era apenas mais um entre os discípulos. As palavras de Gabriel deixaram<br />

nítido que Jesus era Filho de Deus de uma maneira que ninguém mais era nem jamais seria.<br />

Lucas registra esse título na narrativa da tentação do mesmo modo que Mateus<br />

(4.3, 9; cf. M t 4.3, 6), e o mesmo pode ser dito de várias outras passagens. Mas talvez também<br />

devamos observar que na transfiguração a voz do céu declara: "Este é o meu Filho, o<br />

meu eleito” (9.35; Mateus e Marcos têm “meu filho amado”). E há duas passagens em que<br />

apenas Lucas registra a expressão. Uma dessas é a ocasião em que os demônios saíram de<br />

muita gente, exclamando, ao fazê-lo: "Tu és o Filho de Deus!” (4.41). Lucas percebe que os<br />

demônios estão bem cientes disso muito antes de os próprios discípulos entenderem quem<br />

erajesus. A outra ocasião é na cena do julgamento, onde o evangelista diz que os membros<br />

do Sinédrio perguntaram ajesus: "Tu és o Filho de Deus?" (22,70).<br />

Lucas também relata algumas ocasiões em que Paulo usou a expressão. Logo depois<br />

de Ananias ter vindo para impor-lhe as mãos e batizá-lo, Paulo começou a agir. “Pregava,<br />

nas sinagogas, ajesus, afirmando que este é o Filho de Deus” (At 9.20). Num sermão posterior,<br />

o apóstolo citou Salmos 2.7 e aplicou ajesus as palavras: “T u és meu Filho” (At<br />

13.33). E evidente, contudo, que esse títuio não tinha papel de destaque na pregação da<br />

igreja antiga.<br />

O mesmo ocorre com “o Filho do Homem”. Lucas inclui várias passagens em que,<br />

ao lado de Mateus, de Marcos ou de ambos, registra episódios em que Jesus aplica essa<br />

expressão a si mesmo. Neste evangelho vemos o mesmo uso do termo em três circunstâncias.<br />

Ele se refere ajesus: 1) no exercício do seu ministério público, 2) no seu sofrimento e<br />

3) na sua segunda vinda em glória. Mas também devemos observar que Lucas às vezes usa a<br />

expressão em passagens em que õs outros evangelistas não a usam, e há alguns casos em que<br />

o emprego do termo é inédito.<br />

H á um a literatura imensa sobre o nascim ento virginal. Q uero m encionar apenas alguns livros: J.<br />

G resham M achen, T he virgin birth o f Christ. London, 1958; T h o m as Boslooper, T he virgin birth. London,<br />

1962; H ans von Cam penhausen, T he virgin birth in the theology o f the ancient church. London, 1964; R aym<br />

ond E. Brow n, T he virginal conception and bodily ressurection o f Jesus. London, 1973.


Um exemplo do primeiro tipo é a afirmação em que Jesus menciona vários problemas<br />

que as pessoas causarão aos seus seguidores "por causa do Filho do Homem” (6.22).<br />

Mateus tem uma frase parecida, mas ela termina com “por minha causa” (M t 5.11). Podemos<br />

ver algo semelhante em 12.8 (M t 10.32). Igualmente na narrativa da prisão, Jesus perguntou<br />

ao traidor: "Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?” (22.48; cf. M t 26.49;<br />

Mc 14.45).<br />

Por outro lado, há algumas afirmações com "Filho do Homem” que aparecem<br />

somente em Lucas. Uma dessas é que todos desejarão ver "um dos dias do Filho do<br />

Homem” (17.22). Há problemas na interpretação dessa frase. Ela pode se referir aos tempos<br />

do Messias, apesar de não ser uma maneira comum de falar disso. Alguns estudiosos<br />

pensam que "um dos dias” significa “o primeiro dos dias” e, assim, o início do reino messiânico.<br />

Outra opinião é que os discípulos desejariam, em época indeterminada, voltar aos<br />

dias em quejesus estava com eles; ainda outra opinião é que eles desejarão estar com ele no<br />

céu. Não podemos ter certeza, mas parece que a primeira explicação é a melhor. As pessoas<br />

desejarão ver o Messias, mas sua vinda não pode ser precipitada.<br />

Jesus perguntou: “Quando vier o Filho do Homem, achará, porventura, fé [ou a fé]<br />

na terra?” (18.8). Isso aponta para uma ampla apostasia antes da volta do Senhor, e essa<br />

apostasia é confirmada em outros lugares. Outra exortação diz aos ouvintes que estejam<br />

atentos para poder “estar em pé na presença do Filho do Homem” (21.36), com o sentido<br />

de receber salvação plena. Uma terceira foi dita no fim da história de Zaqueu: “O Filho do<br />

Homem veio buscar e salvar o perdido” (19.10; alguns manuscritos contêm palavras semelhantes<br />

em Mateus 18.11, mas geralmente elas não são consideradas autênticas). A última<br />

passagem é aquela em que o anjo no túmulo lembrou às mulheres o quejesus dissera:<br />

“Importa que o Filho do Homem seja entregue nas mãos de pecadores, e seja crucificado, e<br />

ressuscite no terceiro dia” (24.7). Até o fim se vê a idéia de que o Filho do Homem precisa<br />

completar sua missão, e essa missão significa sofrer pelos outros.<br />

Lucas registra a única ocasião em que "o Filho do Homem” aparece nos lábios de<br />

alguém outro quejesus. Ele nos conta que, no fim do seu discurso ao Sinédrio, Estêvão disse:<br />

“Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus” (At 7.56).<br />

Isso garante aos leitores de Lucas que o Filho do Homem agora ocupa um lugar de glória<br />

permanente. Sua vocação na terra envolveu sofrimento, mas seu lugar no céu é supremo.<br />

Não há dúvidas quanto ao seu esplendor.<br />

o<br />

i a s r . • .S: ri i:<br />

de Qaoi<br />

Vimos que o título “Filho de Davi” é importante para Mateus, mas não podemos<br />

dizer que seja uma expressão importante para Lucas, pois ele a emprega apenas três vezes:


duas quando o cego Bartimeu clamou a Jesus, pedindo que lhe restaurasse a vista<br />

(18,38-39), e outra quando Jesus perguntou: "Como podem dizer que o Cristo é filho de<br />

Davi?" (20.41).<br />

O mesmo não ocorre com o nome Davi (Lucas o registra 13 vezes em seu evangelho<br />

e 11 em Atos), Ele nos relata que, antes dejesus nascer, Maria estava "desposada com certo<br />

homem da casa de Davi, cujo nome erajosé” (1.27). Discute-se se ele está dizendo que José<br />

era da casa de Davi, ou Maria.6 Não há muito que dependa da nossa decisão, pois Lucas<br />

parece mostrar que tanto Maria (1.32, 69) quanto José (2.4) eram descendentes de Davi.<br />

Aqui ele pode estar se referindo ou à descendência legal dejesus ou à sua descendência de<br />

fato, e está afirmando que ele era de linhagem real. O versículo 32 acrescenta que ele tem<br />

um destino glorioso: ninguém menos que Deus lhe dará o trono real.<br />

O cântico de Zacarias anuncia: “[Deus] nos suscitou plena e poderosa salvação na<br />

casa de Davi, seu servo” (1,69). "Plena e poderosa” traduz a palavra "chifre” no grego, um<br />

símbolo de força (cf. SI 18.2), e a mesma palavra aparece na profecia de que Deus faria<br />

"brotar a força de Davi" (SI 132.17). O sentido, portanto, é que Deus efetuará uma salvação<br />

poderosa por intermédio de um descendente de Davi (ou, talvez, salvação por intermédio<br />

de um descendente poderoso de Davi). Há outra ligação com Davi na referência à "cidade<br />

de Davi” em que Jesus nasceu (2.4,11) e na observação de quejosé era da "casa e família de<br />

Davi” (2,4). Não se devem tirar grandes conclusões da menção de Davi na genealogia<br />

(3.31), apesar de devermos observar que ela é mais uma prova de que Lucas via a Jesus<br />

como descendente de Davi. Há uma referência a um episódio na vida de Davi — quando<br />

ele "comeu os pães da proposição” (6.4). Jesus viu nisso um precedente do ato dos<br />

discípulos de colher e comer grãos de trigo no sábado.<br />

Lucas cita as Escrituras várias vezes, valendo-se de frases como “O Espírito Santo<br />

proferiu anteriormente por boca de Davi” (At 1.16), “Diz Davi” (At 2.25) e outras semelhantes<br />

(At 2.31, 34; 4.25). Ele as considera palavras de Deus, como mostra a referência ao<br />

Espírito Santo, mas também palavras de um homem, razão pela qual menciona Davi.<br />

Evidentemente ele considera importante a profecia de Davi sobre a ressurreição.<br />

Ele nos diz que, em seu sermão no dia de Pentecostes, Pedro citou Salmos 16,8-11, com<br />

sua promessa de que Deus não entregaria o seu “Santo" à corrupção (N V I, decomposição).<br />

Isso não poderia ser aplicado ao próprio Davi, pois ele morreu e foi sepultado, e seu túmulo<br />

M arshall opta pela referência a Jo sé: “S e a intenção fosse dizer que M aria era da casa de Davi, a frase<br />

teria sido construída de modo diferente" (T he Gospel o f Luke, p. 64). R . C . H . Lenski pensa diferente: “E<br />

bastante superficial pensar que a principal pessoa apresentada é Jo sé e que tem os de saber que ele era descendente<br />

de Davi, O personagem principal é essa moça, e Jo sé é apresentado apenas com o o hom em com<br />

quem ela está desposada, e é sobre sua ascendência que temos de saber. [.,.] C onstruím os: ‘U m a virgem<br />

da casa de Davi, desposada,..'” (T h e interpretation o f st, Luke's Gospel. M inneapolis, 1961, p. 61). Alfred<br />

Plum m er considera "desnecessário, e na verdade impossível, tom ar uma decisão” (A criticai and exegetica.<br />

commentary on the Gospel according to s. Luke, Edinburgh, 1928, p. 21),


estava entre eles. Portanto, Davi disse essas palavras pensando no Messias. Sendo profeta,<br />

previu que o Messias ressuscitaria (At 2.29-32). Pedro faz um raciocínio semelhante quando<br />

passa a argumentar que em Salmos 110.1 não se está dizendo que Davi subiu ao céu,<br />

mas sim Jesus (At 2.34-36). Ainda outro salmo é citado para mostrar que a ira e conluio<br />

dos povos profetizam os atos de Herodes e Pôncio Pilatos junto com os gentios e os israelitas,<br />

ao agir contra Jesus mas conseguir fazer somente o que Deus tinha preordenado (At<br />

4.25-28, citando SI 2.1-2).<br />

Há uma breve menção de Davi no discurso de Estêvão. Ele informou a seus acusadores<br />

que Davi “achou graça” diante de Deus e que queria construir um templo (At<br />

7.45-46; a palavra é skênõma, que significa tenda, tabernáculo; a intenção pode ter sido evocar<br />

a lembrança da tenda do encontro, no deserto). Ele não chegou a construí-lo, mas suas<br />

intenções eram boas.<br />

Há outras referências a Davi no primeiro sermão de Paulo. Ele viu que Deus havia<br />

escolhido Davi para ser rei — “homem segundo o meu coração, que fará toda a minha vontade”.<br />

E dos descendentes desse homem que Deus agora levantou Jesus como Salvador,<br />

segundo sua promessa (At 13.22-33). Paulo vê a ressurreição como o cumprimento de<br />

profecias (At 13.33; veja SI 2.7). Depois cita palavras de Isaías: “Cumprirei a vosso favor as<br />

santas e fiéis promessas feitas a Davi" (At 13.34; Is 55.3) e um salmo que Pedro já usara<br />

antes: “Não permitirás que o teu Santo veja corrupção” (At 13.35; SI 16.10). Há dificuldades<br />

com o sentido exato dessa passagem, mas fica claro que Paulo encontra motivos nas<br />

Escrituras, especificamente em passagens que remontam a Davi, para ver a ressurreição de<br />

Jesus como objeto de profecia. Davi serviu sua geração de acordo com a vontade de Deus.<br />

Mas isso não o livrou da morte nem da decomposição. Foi Jesus, a quem Deus ressuscitou,<br />

que não experimentou a decomposição.<br />

No Concílio dejerusalém, Tiago citou Amós: "Voltarei a reedificar o tabernáculo<br />

caído de Davi" (At 15.16; veja Am 9.11). Há problemas com partes dessa citação (ela parece<br />

se apoiar na L X X e não no texto hebraico). Mas as palavras sobre Davi parecem estar<br />

bem claras: o sentido é que Deus levantou a igreja como lugar onde o culto deve ser levado<br />

adiante.7<br />

Diante de tudo isso parece que podemos concluir que Lucas confere certa importância<br />

à relação entre Jesus e Davi. Ele não usa a expressão “Filho de Davi” com freqüência,<br />

7 “Provavelm ente a reconstrução do tabernáculo deve ser entendida com o uma referência ao estabelecim<br />

ento da igreja com o o novo lugar do culto a Deus, substituindo o tem plo, [...] A igreja, portanto, é o<br />

meio pelo qual os gentios podem vir a conhecer o Senhor” (I. H ow ard M arshall, T he Acts o f the Apostles,<br />

Leicester, 1980, p. 2 5 2 [publicado no Brasil por Edições V id a N ova com o Atos, introdução e comentário]).<br />

F. F. Bruce, porém , prefere ver uma referência ã “ressurreição e exaltação de Cristo, o Filho de Davi, e a<br />

reconstituição dos seus discípulos como o novo Israel” (Commentary on the book o f the Acts. London, 1954,<br />

p. 310).


mas o suficiente para mostrar que estava ciente da sua importância para o Messias.8 Deus<br />

sempre planejou fazer coisas grandiosas por meio de um descendente do eminente rei, e<br />

essas coisas ele fez em Jesus.<br />

E interessante encontrar uma ênfase na ressurreição em palavras que Lucas deriva<br />

de Davi. Especialmente os primeiros capítulos de Atos mostram que a ressurreição cativara<br />

os primeiros pregadores cristãos. E eles viram parte da sua importância no fato de haver<br />

sido prevista no que Davi escreveu, ou seja, que ela era o cumprimento de um plano definido,<br />

não uma solução imediata improvisada quando Jesus caiu nas mãos das autoridades<br />

judaicas. Lucas vê o plano de Deus claramente projetado nas palavras de Davi.<br />

0 Cristo<br />

Lucas entende que o título "Cristo” é importante para a compreensão do que Deus fez<br />

em Jesus. Não ê o título que ele usa com mais freqüência, mas alguns estudiosos acham que é<br />

o mais pleno de significado. E Lucas é o único que nos diz que foi a partir desse título que os<br />

seguidores de Jesus receberam o epíteto de “cristãos” (At 11.26; cf. 26.28). Ele usa o termo 12<br />

vezes em seu evangelho e 25 em Atos. Quase sem exceção, o artigo está presente: ele se refere<br />

a "o Cristo” — ou seja, "o Messias” — e não usa “Cristo” como nome próprio, como faz<br />

Paulo. Às vezes ele o liga a "Jesus” (“Jesus Cristo” ou "Cristo Jesus”), ou a “Senhor”.<br />

Lucas emprega o título logo no início de seu relato, dizendo a seus leitores que o<br />

anjo informou aos pastores o nascimento de um “Salvador, que é Cristo, o Senhor” (2.11).<br />

A expressão não tem artigo (literalmente é "Cristo Senhor”), o que tem levado a várias<br />

interpretações. Alguns a entendem como “um Senhor ungido”; outros seguem alguns poucos<br />

manuscritos que contêm “o Cristo do Senhor” (tomando “Senhor” como referência a<br />

Deus Pai). Mas é melhor entender que as duas categorias, “Cristo” e “Senhor”, se aplicam<br />

T ^<br />

ao menino Jesus,<br />

Há uma expressão levemente diferente quando Lucas nos fala de Simeão, que tinha<br />

recebido de Deus a certeza de que não morreria antes de ver “o Cristo do Senhor" (2.26), o<br />

Messias que Deus prometera séculos atrás, aquele que os fiéis em Israel esperavam há tanto<br />

tempo. Alguns talvez pensassem que João Batista fosse o Messias, mas Lucas deixa claro<br />

"Lucas entende plenam ente o sentido judaico do M essias com o filho de Davi. É evidente que ele defende<br />

que é adequado aplicar a Jesus esse conceito em todas as suas acepções” (Sh erm an Joh nson, The<br />

theology o f the Gospels. London, 1966, p. 42).<br />

W . G rundm ann m ostra que essa frase “une a confissão dos cristãos de origem judaica, de que Jesus é<br />

o M essias, com a dos de origem gentia, de que Jesus é o Senhor, Essa é uma declaração ecum ênica importante,<br />

tanto em Lucas com o em A tos” (T D N T 9:533).


não ser esse o caso (3.15-17). Provavelmente Lucas quer que entendamos um pouco o que<br />

isso significa a partir do sermão de Jesus na sinagoga em Nazaré, que só ele registra. Ele nos<br />

diz que Jesus começou lendo algumas palavras do profeta Isaías: "O Espírito do Senhor<br />

está sobre mim, pelo que me ungiu...” (4.18; a citação é de Isaías 61.1). “Cristo” significa<br />

“ungido", e por isso a passagem apresenta a unção nos termos da concessão do Espírito<br />

Santo. Ser “Cristo" significa ter uma relação especial com o Pai (“o Cristo do Senhor”) e<br />

também com o Espírito (como vimos com a concepção virginal e com a vinda do Espírito<br />

quando do batismo de Jesus, 3.21-22).<br />

Em nosso estudo de Marcos vimos que os demônios sabiam quem Jesus era, muito<br />

antes de isso ser conhecido pelos outros. Lucas também tem esse registro, mas ele o expressa<br />

em termos de “Cristo”, o que Marcos não faz. Marcos nos informa que Jesus não deixou<br />

os demônios falarem "porque sabiam quem ele era” (Mc 1.34; em outra ocasião eles o chamaram<br />

“o Filho de Deus”, 3.11), ao passo que Lucas traz esta redação: “De muitos saíam<br />

demônios, gritando e dizendo: T u és o Filho de Deus! Ele, porém, os repreendia para que<br />

não falassem, pois sabiam ser ele o Cristo” (4.41). Talvez o uso da expressão “Filho de<br />

Deus” pelos demônios nos indique a narrativa da tentação, quando Satanás dissera: “Se és<br />

o Filho de Deus...” (4.3, 9). Os demônios sabiam muito bem que ele realmente era o Filho<br />

de Deus, e quando ele os expulsou, agiu como devia agir o Filho de Deus. Mas Lucas avança<br />

para a idéia de que ele era o Cristo. Isso mostra que ele não era apenas o poderoso Filho<br />

de Deus, mas também o Ungido, aquele que tinha o próprio Espírito de Deus.10<br />

O fato de Jesus silenciar os demônios não deve ser entendido em termos de um "segredo<br />

messiânico”. Do modo como o ministério de Jesus era exercido, era impossível manter sua<br />

condição de Messias em segredo. Antes, ele não queria que os demônios falassem sobre isso.<br />

Era melhor que as pessoas viessem a entender por si mesmas que quem fazia o que ele fazia,<br />

ensinava o que ele ensinava e vivia como ele vivia era realmente o Cristo de Deus.<br />

E interessante que os sinóticos contêm três versões diferentes da grande confissão<br />

de Pedro em Cesaréia de Filipe. Mateus registra: “T u és o Cristo, o Filho do Deus vivo”<br />

(M t 16.16), e o evangelho de Marcos declara simplesmente: “T u és o Cristo" (Mc 8.29).<br />

Lucas traz “o Cristo de Deus” (9.20). Uma das características de Lucas é que ele pensa em<br />

Jesus como o Cristo de Deus (cf. 2.26). E o fato de Deus tê-lo ungido e enviado que é<br />

importante. Essa maneira de descrever a pessoa e a obra de Cristo é exclusividade de Lucas<br />

e indica sua firme convicção de que o Messias é aquele que foi chamado, equipado e enviado<br />

por Deus. Ele não é um personagem independente, mas pertence a Deus.<br />

10 C f. M arshall: “O term o 'M essias' é considerado aplicável a um personagem mais do que terreno, capaz<br />

de exorcizar dem ônios, e num nível diferente de salvadores políticos. A o m esm o tempo, o propósito<br />

de Lucas pode ser indicar que ‘Filho de D eus’ não deve ser entendido em categorias puram ente helenistas,<br />

com o referência a um personagem carism ático, semidivino, mas à luz da expectativa messiânica ju d a­<br />

ica” (T h e Gospel o f Luke, p. 197).


Os evangelhos sinóticos incluem a discussão sobre o Cristo como filho de Davi<br />

(20.41), e não há necessidade de repetir o que já dissemos. Mas somente Lucas nos diz que,<br />

quando Jesus foi colocado diante de Pilatos, seus inimigos o acusaram de perverter a nação,<br />

proibindo-a de pagar tributo a César, e dizendo "ser ele o Cristo, o Rei” (23.2). Não se<br />

esperava que Pilatos entendesse tudo o que estava envolvido no título Cristo; por isso, eles<br />

lhe explicaram a idéia em termos que lhe fossem compreensíveis. Talvez também fosse essa<br />

a maneira como eles o entendiam, mas havia um propósito em dizê-lo dessa maneira.<br />

Quando eles interrogaram Jesus, tentando claramente levá-lo a dizer algo assim, ele se<br />

recusara a fazê-lo (22.67-71). Há uma verdade no que ele disse, mas não no sentido em que<br />

eles o entendiam. Lucas quer que vejamos que havia realeza em Jesus, apesar de ele nunca<br />

ter feito a alegação política que seus inimigos disseram estar implícita no título Cristo.<br />

Os zombadores na crucificação disseram: “A si mesmo se salve, se é, de fato, o Cristo<br />

de Deus, o escolhido” (23.35), e uma idéia semelhante fica subentendida nas palavras do<br />

ladrão impenitente: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também” (23.39). Eles<br />

viam Cristo em termos de esplendor e grande poder; era totalmente impensável que ele morresse<br />

na cruz, amaldiçoado por Deus. Sofrer e ser o Messias eram elementos que se excluíam<br />

mutuamente. Lucas, porém, deixa claro que isso é um mal-entendido. O Senhor ressurreto<br />

perguntou aos dois discípulos na estrada para Emaús: “Não convinha que o Cristo padecesse<br />

e entrasse na sua glória?” (24.26). O “convinha" é significativo aqui: não há espaço para outra<br />

possibilidade. Tanto sofrimento quanto ressurreição são prometidos ao Messias pelos profetas<br />

(24.46), e por isso é impensável que ele tivesse alguma outra sorte.<br />

A mesma linha de pensamento continua em Atos. O Cristo haveria de sofrer, e isso<br />

foi previsto não por algum vidente obscuro e insignificante, mas por “todos os profetas"<br />

(At 3.18). “Tempos de refrigério” dependem do arrependimento e do cancelamento dos<br />

pecados, e isso leva ao pensamento de que Deus enviaria o Cristo (At 3.19-20), uma nítida<br />

referência àparousia. Lucas nos conta que, quando Paulo pregou na sinagoga em Tessalônica,<br />

disse aos seus ouvintes “ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre<br />

os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio" (At 17.3). Não devemos<br />

colocar essas duas coisas muito juntas. Primeiro ele diz inesperadamente que o Cristo<br />

haveria de sofrer e ressuscitar, o que foi previsto nas Escrituras. Depois ele faz uma segunda<br />

afirmação, de que o Cristo que as Escrituras descrevem assim é Jesus.11O Cristo sofredor<br />

é apresentado por palavra de Paulo perante Agripa (At 26.23), desta vez com a<br />

G rundm ann escreve: "Essa declaração m ostra que Paulo apresentou uma nova doutrina do M essias<br />

na sinagoga, e que a fundam entou nas Escrituras. N o fim da sua palestra, que estava baseada nos fatos<br />

sobre Jesus, ele disse que esse M essias que as Escrituras esperam é Jesus, que ele proclamava. Cum pre-se<br />

o testem unho das Escrituras. Aqui A tos preserva um elemento m etodológico essencial no testem unho<br />

m issionário de Paulo, que deixa claro, com o Lucas nunca se cansa de m ostrar, que a realidade de Jesus


informação de que ele foi o primeiro a ressuscitar, e que proclamaria “luz” a judeus e gentios.<br />

Que Jesus é o Cristo é a mensagem de Paulo também em outras ocasiões (At 18.5, 28),<br />

como foi em sua primeira pregação após a conversão (At 9.22).<br />

A mensagem de que o Cristo teria de sofrer é peculiar de Lucas. Como vimos, a partir<br />

do momento que Pedro compreendeu que Jesus era o Cristo, Jesus passou a ensinar aos<br />

seus discípulos que seu sofrimento era necessário. Entretanto, ele expressou esse ensino em<br />

termos do “Filho do Homem”, não do Messias. Para Lucas, porém, o sofrimento faz parte<br />

de ser Cristo, e ele conta com as Escrituras como base desse pensamento. Isso não significa<br />

que Lucas parta das Escrituras e descubra que elas profetizam que o Cristo sofrerá. Ele<br />

começa com Jesus e seus sofrimentos pelos outros e depois descobre que as Escrituras prevêem<br />

tudo isso. Jesus é o padrão, não Lucas e seu estudo da Bíblia.<br />

O fato de Cristo ter de sofrer para propiciar salvação requer uma resposta, e Lucas<br />

nos fala de várias ocasiões em que os que pregam conclamam à fé em Cristo, Paulo recorda<br />

aos líderes da igreja de Efeso que esse tipo de pregação é o que ele realizou entre os efésios<br />

(At 20.21). Ele também falara ao governador Félix sobre a necessidade dessa fé (At 24.24).<br />

Antes, Pedro disse que Deus dera a Cornélio e aos da sua casa o mesmo dom que concedera<br />

aos primeiros cristãos “que creram no Senhor Jesus” (At 11.17), Está muito claro que a<br />

fé era considerada a maneira de receber as bênçãos que Cristo disponibilizara por meio de<br />

seu sofrimento e sua ressurreição. Não há distinção entre os primeiros cristãos e os que se<br />

converteram mais tarde, ou entre judeus e gentios. Para todos, a confiança em Cristo é o<br />

que importa.<br />

A centralidade da confiança em Cristo é crucial porque nele vemos nada menos que<br />

Deus em ação. Em seu primeiro sermão, Pedro disse: “Esteja absolutamente certa toda a<br />

casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (At<br />

2.36). Essa afirmação às vezes foi entendida como expressão da cristologia adocionista, a<br />

idéia de quejesus era apenas um homem, mas que, após a crucificação, Deus o ressuscitara<br />

e lhe dera uma nova posição, a de Senhor e Cristo. Bem, pode ser que alguns dos primeiros<br />

cristãos tenham abraçado essa idéia, pois estamos falando dos primórdios, quando ainda<br />

não havia sido possível refletir no que significavam a vida, a morte, a ressurreição e a ascensão<br />

de Jesus de Nazaré, Mas não foi isso que Lucas disse. Para ele, Jesus era Salvador, Cristo<br />

e Senhor já quando nasceu (2,11).12 É por causa do que Deus está fazendo em Cristo que<br />

sua salvação é tão importante e tão garantida.<br />

Lucas dá muito destaque ao “nome” de Cristo. Na Antigüidade, o nome significava<br />

muito mais do que acontece entre nós. Em certo sentido, ele resumia tudo o que a pessoa<br />

gerou uma nova com preensão do que é o M essias e, conseqüentem ente, do que as Escrituras dizem sobre<br />

ele" (T D N T 9:536).<br />

G rundm ann raciocina que, já que Lucas fala de Jesus com o Senh or e C risto desde o com eço, “não se<br />

pode tom ar a afirmação com o indicação de cristologia adocionista”, apesar de ele observar que “Lucas


era, e isso dá ao “nome de Cristo” um significado de longo alcance. Quando as pessoas eram<br />

batizadas nesse nome (At 2.38; 10.48; 19.5), isso significava no mínimo que o batizado<br />

estava firmemente comprometido com tudo o que Cristo era. Era uma expressão de fé e<br />

lealdade. Quando se mandava alguém levantar em nome de Cristo e andar, isso queria<br />

dizer que Cristo estava sendo invocado em toda a plenitude do seu ser para dar cura a essa<br />

pessoa (At 3.6-8). Ao contar o que acontecera, Pedro disse: "Em nome de Jesus Cristo, o<br />

Nazareno, a quem vós crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, em<br />

seu nome é que está curado perante vós” (At 4.10). Aqui vemos que “o nome” inclui a noção<br />

da morte e ressurreição de Cristo e também o poder que pode curar o paralítico. Por isso<br />

não é de admirar que Paulo tenha mandado que o espírito imundo saísse de uma moça em<br />

nome dejesus Cristo e que o espírito tenha obedecido (At 16.18). Esse nome é poderoso.<br />

Os primeiros pregadores pregavam em nome de Cristo (At 5.40; 8.12), o que não é<br />

muito diferente de pregar Cristo (At 8.5). Isso às vezes os colocava em perigo, como mostra<br />

a carta enviada pelo Concílio de Jerusalém à igreja de Antioquia; ela reconhece que Barnabé<br />

e Paulo eram "homens que têm exposto a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus<br />

Cristo” (15.26).<br />

Há uma passagem impressionante no relato da pregação de Pedro na casa de Cornélio.<br />

Entre outras coisas, Pedro fez referência à palavra que Deus enviara aos filhos de<br />

Israel, "anunciando-lhes o evangelho da paz, por meio dejesus Cristo. Este é o Senhor de<br />

todos” (At 10.36). Essa paz é, naturalmente, a paz entre Deus e o homem, mas no contexto<br />

de uma mensagem proclamada na casa de um gentio devoto a quem Deus concedera uma<br />

visão, pode haver poucas dúvidas de que também há a idéia de paz entre povos tão divididos<br />

como judeus e gentios. A paz é abrangente. E ela é propiciada por Jesus Cristo, que no<br />

contexto é chamado “Senhor de todos”.<br />

De tudo isso fica claro que Lucas considera “Cristo”, o título do Messias judaico,<br />

muito importante. Normal é esperar que o título seja usado num contexto judaico, mas<br />

este evangelista continua a empregá-lo em ambientes gentios. Era um título tão importante<br />

que não podia ser desprezado quando a igreja ultrapassou os limites de Israel, fazendo-se<br />

presente entre povos não acostumados a pensar em termos judaicos. Para todos nós, Jesus<br />

é o Cristo de Deus, assim como também o Senhor,<br />

podia estar usando uma fórm ula derivada da cristologia adocionista e relacionada com a ressurreição e<br />

exaltação d ejesu s. M as ele a reconstrói com o uma declaração sobre toda a obra de D eus em relação a Je ­<br />

sus C risto” (TDNT 9:535 e n. 285).


0 ôenbor<br />

O título que Lucas atribui com mais freqüência a Jesus é “o Senhor” (103 ocorrências<br />

em seu evangelho e 107 em Atos). O título é, obviamente, bastante geral e foi usado<br />

com sentidos muito variados. Era usado em referência ao dono de alguma coisa, como um<br />

jumento (19.33) ou uma vinha (20.13). Era usado como tratamento cortês por um escravo<br />

que se dirigia a seu dono (13.8; 14.22). Esses usos podiam facilmente fazer com que o título<br />

se tornasse uma maneira normal de se dirigir ou falar com um superior, e assim o termo<br />

veio a ser usado no tratamento de pessoas de posição elevada. E não apenas os de posição<br />

elevada eram “senhores”, mas o termo também era aplicado aos deuses. Isso não quer dizer<br />

que ele deixou de ser aplicado aos seres humanos. Era usado para ambos, mas isso não<br />

constitui um problema, a não ser o da interpretação exata de textos específicos. Distinguir<br />

entre um “senhor” humano e outro divino nunca foi uma dificuldade insuperável.<br />

A palavra foi usada na Septuaginta, tradução do Antigo Testamento do hebraico<br />

para o grego, como circunlóquio do nome divino Javé.B Lucas mantém esse uso; nós o<br />

encontramos 25 vezes nos primeiros dois capítulos do seu evangelho; ele fala dos “preceitos<br />

e mandamentos do Senhor” (1.6), do “santuário do Senhor” (1.9), e assim por diante. Ele<br />

usa a palavra também em Atos, especialmente com referência ao “anjo do Senhor” (p. ex.,<br />

At 5.19; 8.26; 10.3). Chamar Jesus de "Senhor”, portanto, significa atribuir-lhe um título<br />

muito importante. Fitzmyer escreve: “Ao usar kyrios tanto para traduzir Javé quanto para<br />

referir-se ajesus em seus escritos, Lucas mantém o sentido do título já em uso na comunidade<br />

cristã desde o começo, que, de certa forma, colocava Jesus no mesmo nível dejavé”.14<br />

Um sinal do sentido elevado do termo “o Senhor”, como os primeiros cristãos o usavam,<br />

é o fato de que nem sempre é fácil constatar se estavam falando de Jesus ou do Pai.<br />

Pedro, por exemplo, exortou Simão, o mago, a se arrepender e “rogar ao Senhor” (At 8.22;<br />

cf. a referência ao “Senhor Jesus” no v. 16). E não está claro se a “palavra do Senhor" é a de<br />

Cristo ou do Pai (p. ex., At 8.25; 19.10). E evidente que a perplexidade é antiga, pois em<br />

13 H á alguns m anuscritos antigos que náo traduzem o nom e divino, mas o transcrevem em letras hebraicas,<br />

evidentemente por reverência ao nom e de D eus. Alguns estudiosos afirmam que essa era a prática<br />

pré-cristã e que “o Senhor” nunca foi usado em relação a D eus, R . Bultm ann, por exemplo, diz: “A<br />

expressão não m odificada o Senhor’ é impensável no uso ju d aico” ( Theology o f the N ew Testament, London,<br />

1952, 1:51), A partir disso se desenvolveu o argumento de que “Senhor" nunca foi aplicado aje su s<br />

em solo palestino; o título se desenvolveu no mundo helenista. Fitzm yer, no entanto, argumenta de<br />

modo convincente que o uso é palestino (T h e Gospel according to Luke, I-X I, p. 2 0 1 -2 0 2 ), Ele define a im ­<br />

portância do uso nestes term os: “O uso de kyrios em relação aje su s significaria colocá-lo no m esm o nível<br />

d ejav é, sem, porém , identificá-lo com ele” (p. 202). V eja tam bém nota 7, acima,<br />

14T he Gospel according to Luke, I-X I, p. 203. Ele acrescenta: “Isso ainda não deve ser considerado um a expressão<br />

de divindade, mas pelo menos fala de ele ser outro, de seu caráter transcendente”.


vários casos os manuscritos se dividem, e alguns lêem “a palavra de Deus”, e outros “a palavra<br />

do Senhor”. Há perplexidade semelhante com a afirmação: “Faça-se a vontade do<br />

Senhor” (At 21.14). Em cada um desses casos a passagem faz sentido, quer a entendamos<br />

como referência ao Pai, quer ao Filho.<br />

Em Lucas, o termo é muitas vezes usado como forma de tratamento de Jesus. Assim,<br />

um dos discípulos disse: “Senhor, ensina-nos a orar” (11.1; cf. 12.41 et al). Isso pode muito<br />

bem não passar de uma forma de tratamento cortês. Será que o mesmo se aplica aos pedidos<br />

de cura (como em 18.41)? Ou o uso do termo em pedidos como esse é reconhecimento da<br />

posição superior de Cristo? Tendo em vista o uso de "Senhor” no tratamento de pessoas, não<br />

devemos tirar muitas conclusões a partir do título. Mas há algumas passagens em que o sentido<br />

mais pleno é pelo menos possível. Por exemplo, quando Pedro se reconheceu como pecador<br />

por ocasião da pesca maravilhosa, ele exclamou: “Senhor, retira-te de mim, porque sou<br />

pecador" (5.8). Também um discípulo em potencial diz: "Seguir-te-ei, Senhor” (9.61), Esse<br />

uso se aproxima daquele em que a oração é dirigida a Jesus (At 7.59-60).<br />

Um aspecto digno de nota do uso que Lucas faz do termo na narrativa acha-se em<br />

afirmações como esta: “O Senhor se compadeceu dela” (7.13). Isso é raro nos outros evangelhos<br />

(em Marcos, por exemplo, ocorre apenas uma vez, em 11.3). Lucas, porém, o usa<br />

com freqüência, tanto no evangelho quanto em Atos. Obviamente se trata de um título<br />

conhecido na época em que Lucas escreveu, e ele não hesita em usá-lo. O título é empregado<br />

com naturalidade, mas não devemos concluir que esse modo de falar fosse comum antes<br />

da ressurreição. Durante a vida terrena de Jesus, outros títulos foram usados.<br />

Depois da ressurreição, as mulheres puderam entrar no túmulo porque a pedra<br />

tinha sido afastada, “mas, ao entrarem, não acharam o corpo do Senhor Jesus” (24.3). Mais<br />

tarde naquele dia os discípulos em Jerusalém disseram aos dois que tinham voltado de<br />

Emaús: “O Senhor ressuscitou!” (24.34). E esse era o ponto central da pregação dos primeiros<br />

cristãos: "Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do<br />

Senhor Jesus" (At 4.33). Muito além da citação de passagens isoladas, porém, fica claro a<br />

partir de tudo o que Lucas escreve sobre os primórdios da igreja que a ressurreição era de<br />

importância crucial. Como disse W . Foerster: "A ressurreição de Jesus é determinante.<br />

Sem ela os discípulos teriam sempre definido sua relação com Jesus em termos retrospectivos,<br />

dizendo que ele fora o Senhor deles. No entanto, a mensagem que se proclama é que<br />

ele continua sendo o Senhor".1’ Continuar a ver como Senhor o Jesus que morreu muda<br />

todas as coisas, incluindo o que os discípulos pensavam de Jesus. Uma vez convencidos de<br />

sua ressurreição, eles o viam de uma nova perspectiva que os levava a falar naturalmente<br />

dele como Senhor". Será que poderiam atribuir menos do que o mais pleno sentido ao<br />

título Senhor em suas referências àquele que ressuscitara?<br />

15TDNT 3:1094.


Pelo fato de ser ele o Senhor, o Senhor que morreu e ressuscitou, a ênfase da pregação<br />

dos apóstolos era que os pecadores devem pôr sua confiança nele. Desse modo, "crescia<br />

mais e mais a multidão de crentes, tanto homens como mulheres, agre gados ao Senhor”<br />

(At 5.14). As pessoas “se converteram ao Senhor” (At 9.35; 11.21). Mais uma vez, “muitos<br />

creram no Senhor” (At 9.42; cf. 11.17, 21; 14.23; 16.31 et al). Paulo resumiu sua mensagem<br />

como sendo de “arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus" (At 20.21).<br />

Claramente, o Senhor ressurreto era o centro do movimento, verdade que se<br />

expressa de várias maneiras. Seus seguidores eram "discípulos do Senhor” (At 9.1); eles<br />

eram batizados “em o nome do Senhor Jesus” (At 8.16); falavam em seu nome (At 9.28). A<br />

última coisa que Lucas relata sobre Paulo é que, em Roma, ele “ensinava as coisas referentes<br />

ao Senhor Jesus Cristo” (At 28.31). Uma maneira interessante de se referir ã pregação<br />

deles era dizer que eles anunciavam o evangelho do Senhor Jesus ou simplesmente anunciayam<br />

Jesus (p, ex,r Ar 8.35; 11,20). Revela-se assim que as boas noticias que eles tinham da<br />

parte de Deus são boas notícias sobre Jesus Cristo, o Senhor.<br />

Os que respondiam com fé eram chamados a uma vida de serviço de todo o coração.<br />

Eles não eram complacentes, pois a igreja andava "no temor do Senhor” (At 9.31). Paulo<br />

disse que estava pronto para morrer “pelo nome do Senhor Jesus” (At 21.13), Não devemos<br />

pensar que ser discípulo no primeiro século era algo seguro ou fácil. Não era nem uma<br />

coisa nem outra. Assim como o Senhor havia morrido pelos que criam, eles eram chamados<br />

a um pleno compromisso, em que se dispunham a fazer um sacrifício bem real.<br />

Devemos prestar atenção a uma passagem bem difícil em que Lucas diz que Paulo<br />

falou da “igreja de Deus [ou do Senhor], a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At<br />

20,28). A maioria dos estudiosos aceita "Deus” como o texto correto, em boa parte porque<br />

é mais difícil e, por isso, mais sujeito à alteração pelos escribas (B J e N V I fazem constar a<br />

variante em nota de rodapé).'6 O sangue mencionado deve ser o de Cristo. Se entendermos<br />

o final do versículo como "pelo sangue do seu próprio” (Filho, B j) ,1? o sentido será que Deus<br />

comprou a igreja com o sangue de Cristo, o que é normalmente aceito. Mas é possível<br />

entender o texto como faz a A R A : "A igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio<br />

sangue”, sendo que, nesse caso, trata-se de uma referência a Cristo como Deus. Não pode-<br />

16V eja o excelente estudo em Bruce M . M etzger, A textual commentary on the Greek N ew Testament. L ondon,<br />

1971, p. 4 8 0 -4 8 1 . Ele diz que sua comissão considerou o texto com “D eus” mais provável do que<br />

“Senh or”.<br />

17 V ários estudiosos seguem J . H . M oulton, que diz sobre tSlO Ç : "N os papiros encontram os o singular,<br />

usado, assim, com o term o de afeto por parentes próximos;” e que aprova a tradução: “o sangue de alguém<br />

que era seu” (A gram m ar o f N ew Testam ent Greek, i, Prolegomena. Edinburgh, 1906, p. 90). Entendida<br />

dessa forma, a passagem está dizendo que D eus com prou a igreja com o sangue daquele que lhe era extrem<br />

amente caro.


mos d iz e r que isso pode ser provado, mas devemos observar que Lucas está disposto a usar<br />

uma linguagem que pelo menos chega perto de dizer que Cristo é Deus.18<br />

Outros títulos<br />

Lucas emprega outros títulos. Por exemplo, ele com freqüência chama Jesus de<br />

“Mestre” (p. ex., 9.38; 10.25). No entanto, essa é uma maneira tão comum de se referir a<br />

alguém que ensina tanto quanto Jesus, que praticamente dispensa comentários. Um termo<br />

aparentemente correlato e que só Lucas usa no Novo Testamento é epistatês, também traduzido<br />

por "Mestre” em nossas versões (5.5; 8.24, 45; 9.33, 49; 17.13). A. Oepke lembra<br />

que, no grego secular, esse termo serve como referência a várias situações (alguém que cuida<br />

de rebanhos, que conduz um elefante, que inspeciona obras públicas, etc.). Ele, porém,<br />

crê que em Lucas se trata de uma tradução de “Rabi” e, por isso, é praticamente sinônimo<br />

de “mestre". Neste evangelho a palavra é uma forma de tratamento e, com uma exceção, é<br />

usada somente pelos discípulos.19<br />

Três vezes Lucas chamajesus de “Salvador” (2,11; At 5.31; 13,23, além de uma vez<br />

que ele registra “Deus, meu Salvador", 1,47). A palavra era amplamente usada no mundo<br />

antigo e podia ser uma referência à ajuda prestada por deuses, médicos, filósofos, políticos<br />

e outros. Era usada em referência a governantes e ao imperador (que podia ser chamado<br />

“salvador do mundo”).20 Quando se refere a Jesus, a palavra não quer dizer que ele trazia<br />

um tipo temporal de salvação, como se entendia amplamente no mundo antigo, mas salvação<br />

do pecado e das suas conseqüências. Ele foi chamado “Salvador” quando do seu<br />

nascimento (2.11), e sua exaltação à destra de Deus tem a ver com a concessão de arrepen­<br />

Fitzm yer vê esta com o um a das três passagens em que Lucas pode estar cham ando Jesus de D eu s (as<br />

outras duas são Lc 8.39; 9.43). Parece que ele não acha que alguma delas esteja fazendo isso de modo determ<br />

inante, mas diz: “O que se deve observar aqui [...] é que, quando Lucas escreveu seu evangelho e<br />

A tos, não seria impossível para um autor cristão referir-se a Jesus com o D eu s” (T h e Gospel according to<br />

Luke, IT X , p. 2 1 8 -2 1 9 ). R . B, R ackham estuda o problem a a fundo e, apesar de não concluir que temos<br />

aqui uma referência evidente a C risto com o Deus, acha que Paulo mudou m uito rapidam ente do Pai<br />

para o Filho, e diz: “D e modo inconfundível, ele dá a entender sua igualdade e unidade nas prerrogativas<br />

divinas com o PA I" (T h e Acts o f the Apostles, London, 1909, p. 393).<br />

19<br />

T D N T 2:622-23.<br />

V eja TDNT 7:1003-1 0 2 1 , Foerster aponta para o uso lim itado de UúJTrjp no N ovo T estam ento (exceto<br />

nas cartas pastorais e em 2P edro), o que está em contraste com o uso m uito mais freqüente de


dimento e perdão dos pecados (At 5.31). O Salvador veio em cumprimento da promessa<br />

de Deus (At 13.23).<br />

Pedro e os outros apóstolos ligam "Salvador” com archêgos (“Príncipe”, At 5.31),<br />

palavra de difícil tradução. A idéia é de estar em primeiro lugar e por isso pode referir-se a<br />

um príncipe, um governante. Mas também é possível entender a palavra como referência a<br />

alguém que começa algo ("como o primeiro de uma série, que assim dá ímpeto aos demais”,<br />

B A G D ). Moffatt a entende assim ao traduzi-la como "pioneiro”.21 Ela também pode significar<br />

"aquele que dá origem, fundador". Em termos gerais, parece provável que devamos<br />

entendê-la aqui com o sentido de “líder” ou “príncipe”. Isso também faz sentido quando<br />

Pedro diz: “Matastes o archêgos da vida” (At 3.15). Mas também é possível ver aqui o terceiro<br />

sentido da palavra, como faz Bruce em seu comentário: "Matastes o Autor da vida —<br />

que paradoxo incrível!”22 Quer Pedro pense em “príncipe”, quer em "autor”, ele está dizendo<br />

que Jesus tem uma relação com a vida que ninguém mais tem.<br />

Às vezes Lucas destaca que Jesus é “rei”. Ele usa esse título no relato da aclamação<br />

por ocasião da entrada triunfal: “Bendito é o Rei que vem em nome do Senhor” (19.38; os<br />

outros sinóticos não contêm “rei" nessa passagem). Ele também emprega o título na pergunta<br />

de Pilatos: "És tu o rei dos judeus?" (23.3; essa pergunta, de forma idêntica, é encontrada<br />

nos quatro evangelhos), na acusação dos judeus (23.2; cf. At 17.7), nas palavras dos<br />

zombadores (23.37) e na inscrição sobre a cruz (23.38). Esse reconhecimento de quejesus<br />

era rei também é visto na oração do ladrão penitente: “Jesus, lembra-te de mim quando<br />

vieres no teu reino" (23.42).<br />

Além disso, Lucas vê a Jesus como o “servo” de Deus (At 3.13, 26) e como o “servo<br />

santo” (At 4.27, 30; a mesma palavra é usada em 2.43, mas ali o sentido é “filho”). O que se<br />

afirma sobre o servo em Isaías encontra seu cumprimento em jesus.j. Jeremias indica que<br />

essa maneira de se referir a Jesus é muito antiga e nunca se tornou “um termo amplamente<br />

atribuído ao Messias" entre os cristãos gentios.23 Nós o encontramos aqui bem no começo<br />

da igreja judaica, e nenhuma outra vez no Novo Testamento.<br />

Vimos quejesus é o "servo santo", e às vezes ele é simplesmente "o Santo" (At 3.14;<br />

cf. 1.35). De modo semelhante, Paulo aplica a Jesus um salmo que usa a expressão "o teu<br />

Santo" (At 13,35, citando SI 16.10), como Pedro fizera antes (At 2.27). Empregam-se<br />

duas palavras diferentes traduzidas por "santo”, mas todas essas passagens apontam para a<br />

21 W illiam N eil concorda: a palavra é "usada aqui com o em H b 2.10; 12.2 (‘pioneiro’)’’ ( T he Acts o f the<br />

Apostles. London, 1973, p. 98).<br />

12 Commentary on the book o f Acts, p. 89.<br />

23TDNT 5:703. Ele acrescenta: “À igreja gentia isso era ofensivo desde o com eço, porque não parecia expressar<br />

toda a im portância da majestade do Senh or glorificado”.


consagração a Deus que é tão característica de Jesus. Ele está ligado a Deus de modo<br />

especial.<br />

Com isso devemos observar o termo similar "o Justo” (At 3.14; 7.52; 22.14; cf. o<br />

veredicto do centurião na cruz, 23.47). A palavra é usada em geral para referir-se a pessoas<br />

justas (cf. Zacarias e Isabel, 1.6) e pode descrever a Deus, que é totalmente justo (cf. 2Tm<br />

4.8). Quando usada para qualificar Jesus, ela o coloca como "o ideal de justiça” (B A G D ).<br />

Pedro o vê como nomeado por Deus para ser “Juiz de vivos e de mortos” (At 10.42),<br />

e a isso devemos acrescentar a declaração de Paulo de que Deus marcou um dia em que julgará<br />

o mundo por meio dele (At 17.31). O juízo final é uma realidade importante, e em<br />

todo o Novo Testamento é digno de nota o fato de que o juiz naquele dia será ninguém<br />

menos que nosso Salvador.<br />

A exemplo de diversos outros escritores do Novo Testamento, Lucas inclui em seu<br />

relato o tema da “pedra rejeitada”. Ele registra a afirmação de Pedro de que Jesus é a “pedra<br />

rejeitada [pelos] construtores", mas que se tornou “pedra angular” (At 4.11). Há um forte<br />

contraste entre a insensatez do Israel que rejeita a Jesus e sua confirmação da parte de Deus.<br />

Um título que claramente significava muito para Lucas é “profeta”. O povo de<br />

Naim disse em referência a Jesus: “Grande profeta se levantou entre nós" (7.16), apesar de<br />

um fariseu com quemjesus jantou ter sérias dúvidas quanto a isso (7.39). O povo especulava<br />

sobre a identidade do profeta que ele era, talvez Elias (9.8, 19). Só Lucas registra as<br />

seguintes palavras de Jesus a respeito da sua morte: “Não se espera que um profeta morra<br />

fora de Jerusalém" (13.33), unindo as idéias de que ele era realmente um profeta e que sua<br />

rejeição e morte eram certas. Os dois discípulos na estrada para Emaús disseram ao “estranho"<br />

que Jesus fora “profeta, poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o<br />

povo” (24.19). Um detalhe interessante das primeiras pregações é quejesus foi identificado<br />

como o “profeta como Moisés” (D t 18.15-20; veja At 3.22-23; 7.37), enquanto entre os<br />

judeus esse profeta era diferenciado do Messias (cf.Jo 1.20-21). Para os cristãos, Jesus era<br />

ambos. No sentido mais pleno possível, ele era um profeta. Era o profeta. A essência da<br />

função profética era que o profeta falava diretamente da parte de Deus; ele podia dizer:<br />

“Assim diz o Senhor...” Jesus era a própria boca de Deus. Ele falava a verdade de Deus com<br />

a mais plena autoridade.


O êvangelho de<br />

e Atos<br />

j C u m s<br />

Deus e a nossa salvação<br />

semelhança dos outros evangelistas e, na verdade, de todos os escritores do<br />

Novo Testamento, Lucas se concentra na manifestação da grande verdade de<br />

que Deus trouxe salvação para pessoas que não a merecem. Contudo, Lucas<br />

tem sua própria maneira de dizer isso. Ele é o único que escreveu um evangelho e também<br />

Atos, e devemos prestar atenção em ambos.<br />

O evangelho nos relata o que Jesus fez e ensinou. T ambém informa como foi traído<br />

e entregue aos romanos pelos líderes da sua própria nação, como foi crucificado e sepultado,<br />

como ressuscitou e deu instruções aos seus seguidores. Mateus, Marcos e João parecem<br />

se dar por satisfeitos encerrando o relato nesse ponto. Lucas, não. Ele continua relatando<br />

fatos posteriores à ascensão — a vinda do Espírito Santo, a pregação entusiasmada da primeira<br />

igreja e a expansão do evangelho, até chegar a Paulo, um dos seus heróis, pregando<br />

em Roma com ousadia e sem impedimento. E um panorama magnífico, e não pára por aí.


Nos seus dois volumes ele registra referências a profecias cumpridas, o que o faz olhar para<br />

o plano de Deus desde o princípio. E em ambos ele inclui referências à consumação final,<br />

quando Cristo retornará e dará início a tudo o que está previsto para o mundo futuro.<br />

É claro, naturalmente, que os outros autores dos evangelhos também declaram que<br />

Deus planejou a história da igreja desde a eternidade passada e que no devido tempo trará<br />

seu reino perfeito, quando da volta de Cristo. Esse é o ensino-padrão do Novo Testamento.<br />

Lucas, porém, tem uma maneira singular de apresentar tudo isso, e sua obra em dois<br />

volumes proporciona-lhe o escopo de onde tirar algumas conclusões próprias. Ele faz uma<br />

narrativa maravilhosa, e isso à sua própria maneira. Vejamos o que ele tem a dizer sobre<br />

salvação.<br />

O plano de *7)eus<br />

Lucas relata que, no Getsêmani, Jesus orou: "Não se faça a minha vontade, e sim a<br />

tua” (22.42; também M t 26.42). A cruz não representou a derrota de Deus mas a execução<br />

do seu plano. Lucas já havia se referido a pessoas que resistiram ao propósito de Deus<br />

(7.30) e volta à idéia desse propósito quando relata a menção que Pedro faz do "determinado<br />

desígnio e presciência de Deus” (At 2.23), manifesto quando os judeus entregaram<br />

Jesus para ser crucificado. O que Herodes e Pôncio Pilatos, junto com gentios e israelitas,<br />

fizeram ao crucificar Jesus foi o que "a mão e o propósito” de Deus "predeterminaram” (At<br />

4.28). A cooperação inconsciente de todos esses atores sublinha a mensagem de Lucas de<br />

que nada do reino humano, qualquer que seja o seu poder, pode interferir no plano de<br />

Deus. Gamaliel reconhece isso: um plano de homens pode ser derrotado, mas não o de<br />

Deus (At 5.38-39), O propósito de Deus atingiu seu ponto culminante na morte de Jesus<br />

para a salvação dos pecadores, mas ele não começou apenas com a vinda de Jesus. Ele já<br />

estava na vida de Davi (At 13.22). Estava atuante desde tempos imemoriais, mesmo<br />

atingindo seu clímax somente com a vinda de Jesus.<br />

Paulo disse à multidão em Jerusalém que, na sua conversão, Ananias lhe dissera: "O<br />

Deus de nossos pais, de antemão, te escolheu para conheceres a sua vontade..." (At 22.14).<br />

Desde o começo da sua experiência cristã ele reconheceu que Deus estava implementando<br />

seu plano no mundo, algo que não era parecido com nada que ele tivesse imaginado nos seus<br />

tempos de incredulidade. Não é de surpreender que isso se tornou o tema da pregação de<br />

Paulo, e ele lembrou aos anciãos de Efeso que não hesitara em lhes declarar “todo o desígnio<br />

de Deus” (At 20.27). Numa tela menor, Lucas conta de uma ocasião em que amigos tentaram<br />

desviar Paulo de uma rota que consideravam perigosa, mas depararam com a recusa do<br />

apóstolo obstinado a prosseguir. No fim, eles desistiram, dizendo: "Faça-se a vontade do<br />

Senhor!" (At 21.14). O Deus que estava executando um grande propósito ao enviar seu


Filho para morrer por nós também tinha um plano para Paulo, cuja viagem para Jerusalém<br />

se tornou o meio de alcançar Roma com a mensagem do evangelho. Náo devemos deixar<br />

de perceber a colocação de Lucas de que um pequeno grupo de cristãos não identificados<br />

reconhecia que Deus estava cumprindo seu propósito nas ações do seu servo Paulo.<br />

Ao usar o verbo que traduzimos por "importa”(ou “e necessário”, dei), Lucas transmite<br />

a ideia de oue Deus está fazendo sua vontade no mundn F.l e usa esse verbo 18 ve^es em seu<br />

evangelho e 22 em Atos. Podemos ver um pouco da força disso comparando-o com o i<br />

número de ocorrências em outro livro do Novo Testamento, que é 10 (em João). Luca<br />

dei de uma maneira que expressa a idéia de uma necessidade premente imposi jjqtv<br />

Não é simplesmente que, considerando todas as circunstâncias, isso ou aquilo sef^Sftí<br />

desejável. Esse verbo significa que a ação é plenamente necessária. Não deverepçH:erjMvidas<br />

de que a necessidade surge, não das circunstâncias, mas da vontade<br />

J<br />

Lucas usa o verbo em associação com diversas facetaQio Mn^sfôrio de Jesus. Ele<br />

aparece em relação ao Jesus adolescente, que achava rf^s^iV bstajáía/casa de seu Pai<br />

(2.49). Também transparece em relação com sua pregaSaoreSa^he necessário ir adiante a<br />

outras cidades (4.43). Temos um exemplo intepessaWe..de-^alores diferentes quando o<br />

líder de uma sinagoga diz: "Seis dias há [^J^ara4^r3^sjcurados”, e Jesus pergunta: “Não se<br />

devia livrar deste cativeiro, em dia de sárado, 4§tà ía de Abraão, a quem Satanás trazia<br />

presa há dezoito anos?” (13.14, 16). Ambos<br />

gente da sinagoga estava ocupadcjí ^of^pPectos<br />

sua missão divina e era se^wsUiS<br />

liu a ir à casa de Zaqt ,<br />

entanto, levou-o aí<br />

uma necessidade, mas enquanto o diriegais,<br />

Jesus estava ocupado em cumprir<br />

ciyações das pessoas. Necessidade semelhante o impeàvia<br />

outras casas em Jericó. Sua missão de salvação, no<br />

O que Maik àe^as&èicia a essa necessidade imposta pelo plano de Deus é que Jesus<br />

precisava^dírar (wlíf2! 17.25; 24.7, 26, 44; At 17,3). Isso pode ser visto em face da profecia<br />

de í kel( ■ -Q Ò , Dntado com os transgressores (22.37). As Escrituras precisavam se cum-<br />

Jesus diz que “importa” que ele esteja a caminho “hoje, amanhã e depois”,<br />

. profeta não pode perecer fora de Jerusalém (13.33). E, apesar de a linguagem ser<br />

rente, devemos reconhecer a mesma idéia nas palavras imediatamente anteriores, que<br />

falam de ele terminar seu trabalho de cura hoje e amanhã , pois no terceiro dia ele<br />

W alter Grundmann mostra que, entre os gregos em geral, “por trás do verbo está a idéia de uma divindade<br />

neutra”, algo como um destino impessoal. Eíe acredita que Lucas estava familiarizado com o verbo por causa<br />

de sua formação helenista, mas o usa de modo diferente. Em Lucas, "Jesus entende toda a sua vida, sua atividade<br />

e sua paixão sob a vontade de Deus abrangida por ôeL. [...] Isso tem seu fundamento na vontade de Deus<br />

em relação a ele exposta nas Escrituras, que ele segue incondicionalmente” (T D N T 2 :2 2 ).


alcançaria seu objetivo (13.32).2 Esse é um dos principais pensamentos de Lucas, e não<br />

devemos deixar de atentar para o modo como ele o frisa. A morte de Jesus estava bem no<br />

centro do plano de salvação de Deus.<br />

Vemos essa necessidade também no fato de que importa “que o céu receba [Jesus]<br />

até aos tempos da restauração de todas as coisas” (At 3.21; trata-se de algo previsto pelos<br />

profetas), O intervalo entre a ascensão e aparousia faz parte do plano de Deus. E vemos a<br />

mesma necessidade na salvação proporcionada às pessoas durante esse intervalo: “Não há<br />

salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado<br />

entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos" (4.12). O plano de Deus é claro. O<br />

caminho da salvação foi oferecido em Jesus, e é tolice achar que exista outro. Vemos isso<br />

também nas palavras de Paulo ao carcereiro de Filipos, que perguntara a Paulo e Silas:<br />

“Senhores, que devo fazer para que seja salvo?” e recebeu a resposta: "Crê no Senhor Jesus e<br />

serás salvo” (At 16.30-31). O propósito de Deus na salvação é suficientemente claro, e<br />

Lucas registra as palavras que mostram isso.<br />

Ás vezes Lucas apresenta a idéia de que há uma necessidade imposta por Deus no<br />

serviço que os cristãos comuns devem prestar. Assim, eles devem orar sempre e não desanimar<br />

(18.1). Num nível um pouco diferente coloca-se a informação confortante, para aqueles<br />

que enfrentarem tribunais hostis, de que, nessas ocasiões, o Espírito Santo lhes ensinará<br />

o que "devem” dizer (12,12). Em nosso alívio com a ajuda, não devemos nos esquecer da<br />

obrigação. Nessas circunstâncias há certas coisas que têm de ser ditas. Deus planeja as coisas<br />

assim. Pedro expressa isso com franqueza em suas palavras ao sumo sacerdote: "Antes,<br />

importa obedecer a Deus do que aos homens" (At 5.29). Para Lucas é importante que o<br />

cristão mais humilde veja que, na sua vida diária, há algumas necessidades impostas a cada<br />

um de nós. O serviço cristão não é opcional.<br />

Lucas considera Paulo um exemplo especial da maneira como Deus executa seu plano<br />

por meio de agentes humanos. Ele usa a palavra "importa” várias vezes em associação<br />

com as atividades do apóstolo. A voz na estrada de Damasco disse-lhe que entrasse na<br />

cidade, onde lhe seria dito o que lhe “convém” fazer (At 9.6). O serviço ao qual fora chamado<br />

era algo que ele tinha de fazer. Isso nem sempre seria algo agradável, o que pode ser visto<br />

nas palavras do Senhor a Ananias: “Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu<br />

nome” (At 9.16). Paulo com certeza aprendeu isso muito bem, e nós o encontramos dizendo<br />

aos seus convertidos: "Através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de<br />

Deus” (At 14.22). Ele lembrou aos líderes da igreja de Efeso que lhes mostrara com seu trabalho<br />

árduo ser "mister socorrer os necessitados” (At 20.35). Vemos um pouco do propósito<br />

divino também no uso de "importa” em relação à ida de Paulo a Roma (At 19.21;<br />

O s verbos são C(TTOTeÀ£OJ e TeÁeLOOJ, e ambos apontam para a consecução de um fim ou para um alvo<br />

atingido (rtA o s-).


23.11) e ao seu julgamento perante César (At 25.10; 27.24). O propósito não cessa com a<br />

ascensão de Cristo, mas avança diretamente para dentro da vida da igreja.<br />

Às vezes Lucas faz uso do verbo horizõ (“demarcar, delimitar, determinar"), como<br />

quando registra estas palavras de Jesus: “O Filho do Homem, na verdade, vai segundo o<br />

que está determinado” (22.22). O mesmo verbo é usado na expressão “desígnio determinado”,<br />

ligado à presciência de Deus como razão fundamental para a entrega de Jesus à morte<br />

(At 2.23). Olhando mais à frente, vemos que Jesus foi “constituído por Deus Juiz de vivos e<br />

de mortos” (At 10.42; também 17.31). O mesmo verbo é usado em relação a Deus, que fixa<br />

os tempos e os limites da sua habitação no homem (At 17.26). Deus se preocupa com<br />

todas as nações e com a vida que elas levam, não só com a grande obra de redenção. E um<br />

verbo diferente é usado quando se diz que Cristo foi “designado” (At 3,20), e Paulo,<br />

nomeado (At 22.14; 26.16). Com outro verbo Lucas fala de testemunhas da ressurreição<br />

indicadas por Deus (At 10.41).<br />

Junto com outros escritores do Novo Testamento, Lucas chama a atenção para o<br />

cumprimento das Escrituras na vida e na morte dejesus (p. ex., 4.21; cf. 1.70; 18.31; 21.22;<br />

At 3.18; 26.22-23). Lucas não vê apenas o amplo espectro da morte expiatória de Cristo<br />

anteriormente previsto, mas também alguns detalhes, como o fato de que ele foi “contado<br />

com os malfeitores” (22.37), ou as palavras com as quais se entregou ao Pai, no momento<br />

da morte (23.46).3<br />

Lucas, contudo, não aponta somente para o cumprimento de passagens específicas<br />

das Escrituras. E importante observar que ele inicia seu evangelho fazendo referência aos<br />

“fatos que se cumpriram entre nós” (1.1, Bj); todo o panorama que se desenrola é cumprimento<br />

do que Deus pôs em movimento.4 Lucas faz muitas referências ao que se cumpriu<br />

(p. ex., 1.20; 9.31; 21.24; 22.16; 24.44; At 3.18; 12.25; 13.27). Muitas vezes há um sentido<br />

de propósito no verbo teleõ, que Lucas aplica de modo significativo ao batismo pelo qual<br />

Jesus tinha de passar (12.50) e ao cumprimento das Escrituras (18.31; 22.37).<br />

Vemos um pouco do profundo interesse de Lucas pelo caminho divino da salvação<br />

em alguns detalhes da sua narrativa da transfiguração. O texto diz que Jesus apareceu em<br />

glória, mas Lucas consegue ligá-lo com a paixão. Imediatamente antes dessa narrativa ele<br />

registrou algumas declarações dejesus, incluindo uma previsão da paixão (9.22-27), e ini­<br />

3 Cf. W . Barclay: "Era para a cruz que todas as profecias apontavam. A cruz não foi imposta a Deus; ela não<br />

foi uma medida de emergência, depois que tudo o mais havia falhado e o rumo planejado havia se perdido. Ela<br />

fazia parte do plano de Deus, pois a cruz é o único lugar da terra em que, num momento do tempo, vemos o<br />

amor eterno de Deus" (The Gospel ofLuke. Edinburgh, 1967, p. 312).<br />

N . Geldenhuys comenta: “O particípio perfeito passivo é usado aqui para indicar o estado permanente depois<br />

de completada a ação. A expressão também indica o fato de que em Jesus as promessas divinas da dispensação<br />

antiga foram cumpridas e que uma nova era foi iniciada, A plenitude do propósito salvador de Deus foi<br />

revelada, e as boas notícias precisam ser proclamadas” (Commentary on the Gospel of Luke. London, 1952, p. 56).


cia a história da transfiguração com a observação de que ela ocorreu “cerca de oito dias<br />

depois de proferidas estas palavras” (9.28). Depois, quando o Jesus transfigurado estava<br />

conversando com os visitantes celestiais, sua morte iminente é que foi o tema da conversa<br />

(9.31).5 Lucas deixa claro que Jesus apareceu em glória, mas esses detalhes (que não se<br />

encontram nos outros evangelhos) mostram como a cruz domina seu pensamento, tanto<br />

que aparece em lugares inesperados.<br />

■ri<br />

S? história da salvação<br />

Os estudiosos que escrevem sobre Lucas muitas vezes usam o termo alemão Heilsgeschicbte<br />

em referência ao tema deste evangelho. O termo não é fácil de traduzir,6 mas pelo<br />

menos dirige a atenção para a preocupação de Lucas com a história e sua convicção de que<br />

aquilo que Deus fez em Jesus ocorreu dentro de um amplo contexto histórico. Nisso ele<br />

difere dos outros evangelistas. Eles nos relatam algo do que Jesus disse e fez, mas fazem<br />

referência à história secular apenas nos casos em que ela influi diretamente no relato do<br />

evangelho, como quando Jesus foi levado perante Pilatos. Lucas começa se referindo a<br />

muitos que escreveram uma “narração”,7 e ao usar esse termo caracteriza seu livro como<br />

obra preocupada com a história.<br />

Lucas fala de um decreto de César Augusto que ordenava um recenseamento (2.1).<br />

Isso não é mencionado nos outros evangelhos e nos apresenta um problema histórico, pois<br />

esse decreto até hoje não foi encontrado. Entretanto, independentemente do problema<br />

que isso venha a representar, não há dúvida de que tal questão era importante para Lucas|<br />

Ele enxerga o propósito de Deus não só no que aconteceu na Judéia e na Galiléia, mas tam-l<br />

bém no que fez o imperador, na distante Roma. Esse imperador podia não conhecer o<br />

Deus de Israel, mas o que ele fez serviu aos propósitos de Deus. Lucas em seguida nos apresenta<br />

outro problema ao mencionar Quirino, governador da Síria. Não importa como o<br />

A palavra usada é ètjoSoç, que pode significar nada mais além de "partida”, mas aqui com certeza tem o<br />

sentido de “partida dessa vida”. Cf. Conzelmann: “O propósito por trás da manifestação celestial é o anúncio<br />

da paixão, e por esse meio se dá prova de que a paixão foi decretada por Deus” (The tbeology ofst Luke. London,<br />

1961, p. 57).<br />

C. K. Barrett faz objeção a algumas traduções comuns: ‘“História da redenção’ sugere que a história redime,<br />

e 'história da salvação’ sugere que a salvação é uma instituição” (Fromjirst Adam do last. London, 1962, p. 4n.).<br />

A palavra é ÔLT]yrj(7LÇ, em relação à qual Fitzmyer observa que Lucas “adota para a sua obra um termo<br />

corrente entre literatos e historiadores helenistas. A freqüência com que a palavra ocorre nos escritores gregos<br />

clássicos e também nos helenistas, especialmente nos que afirmam escrever história ou sobre história e sobre<br />

como ela deve ser escrita, torna impossível não ver a intenção com que Lucas oferece seu relato sobre o evento<br />

chamado Cristo” (The Gospeí according to Luke, ITX , p. 173).


esolvamos, essa menção de um mandatário secular localiza esses fatos no firme contexto<br />

de acontecimentos históricos.<br />

O processo se repete na data complicada em 3.1-2. Também aí se interpõem problemas<br />

para o historiador moderno, mas novamente Lucas está evidenciando seu propósito<br />

teológico. T oda a história tem seu lugar dentro do plano de Deus, e não importa quão<br />

eminente seja uma pessoa como o imperador, sua verdadeira importância tem a ver com<br />

sua parte no grandioso plano que Deus está implementando. Não devemos ser indiferentes<br />

ao processo histórico, pois nele Deus está fazendo coisas importantes.<br />

Observe que o que Lucas está descrevendo tem relação com a história de Roma e da<br />

Palestina. Ele faz referência não apenas aos imperadores Augusto e Tibério, mas também<br />

a [Herodes (1.5), Herodes Antipas, Filipe e Lisânias (3.1), Anás e Caifás (3.2). Faz menção<br />

de uma fome nos dias de Cláudio (At 11.28) e de um decreto desse monarca, que trouxe<br />

'Aqüila e Priscila para Corinto (At 18.2). Ele nos fala do procônsul Gálio (At 18.12) e dos<br />

procuradores romanos Félix e Festo (At 23.24; 24.27). Ele chega a registrar o nome de dois<br />

oficiais romanos, o comandante Cláudio Lísias e Júlio, centurião da Coorte Imperial (At<br />

23.26; 27.1). E apesar de todos os evangelistas dizerem que Jesus foi levado a Pôncio Pilatos,<br />

apenas Lucas registra o papel que Herodes teve na história (23.6-12).<br />

E na história da época, portanto, que Lucas fundamenta o que Deus fez em Cristo.<br />

A salvação não tem nada a ver com uma religião mística e mítica, sem relação com a realidade.<br />

Ela é algo que Deus efetuou — nesta vida, com pessoas reais. Devemos notar também<br />

que Lucas não interrompe seu relato quando a história terrena dejesus de Nazaré chega ao<br />

fim. Ele continua narrando os primeiros dias da igreja até o momento em que Paulo, o<br />

notável pregador, chega a Roma. Lucas termina com o relato de Paulo pregando abertamente<br />

na capital do mundo. A salvação continua na igreja, salvação não no sentido de que<br />

outras coisas são feitas para remoção de pecados, porque para Lucas o que Jesus fez foi<br />

definitivo, mas no sentido de que aquilo que Jesus fez ao morrer torna-se realidade na vida<br />

de quem responde à pregação. A história é o palco em que Deus executa seu plano, e para<br />

Lucas Jesus está bem no centro desse palco.<br />

H. Conzelmann intitulou seu importante livro sobre a teologia de Lucas Die Mitt<br />

der Zeit, “O meio do tempo", apontando com esse título para uma verdade importante para<br />

o evangelista. Muitas coisas aconteceram antes que Jesus viesse, mas elas eram de natureza<br />

preliminar. Muitas coisas aconteceram após a sua ascensão, mas era tudo conseqüência do<br />

que ele fizera em sua morte expiatória. Apesar de manterem relação com a história anterior<br />

ou posterior da vida dejesus na terra, sua vida, morte, ressurreição e ascensão são para<br />

Lucas o próprio centro da história — não no sentido de que há a mesma quantidade de<br />

fatos antes e depois, mas de que esse é o eixo central em torno do qual todas as outras coisas<br />

giram. Não entenderemos Lucas enquanto não virmos a importância central dejesus.<br />

A história do início da igreja também é importante para ele, mesmo não tendo a<br />

importância central dejesus. E a época em que o evangelho foi oferecido aos judeus, e a


“esperança de Israel” é o tema de Lucas até o fim (At 28.20). Mas quando os judeus como<br />

um todo não o aceitaram, isso não significou que o plano de Deus havia sido frustrado. Sig-<br />

nificou que a extensão desse plano aos gentios ficou evidente. Lucas expressa esse pensamento<br />

no relato do discurso de Paulo na sinagoga em Antioquia da Pisídia (o primeiro<br />

sermão de Paulo que ele registra). Paulo diz que “cumpria" que os pregadores falassem a<br />

“palavra de Deus” primeiro aos judeus. Mas quando estes a rejeitaram, os pregadores se<br />

voltaram para os gentios (At 13.46-47).<br />

O que importa é que a vinda de Jesus significa a chegada de uma nova época. Ele não<br />

veio para consertar um judaísmo desgastado aplicando-lhe um remendo novo.8 Seu vinho<br />

novo não podia ser contido pelos odres velhos do judaísmo convencional (5.36-37). Ele<br />

estava ensinando algo radicalmente novo, e não entenderemos Jesus (ou Lucas) enquanto<br />

não virmos isso. Ele reconhece que nem todos ficarão felizes com o que se está fazendo.<br />

Sempre haverá aqueles que dirão: “O velho é excelente” (5.39) e se recusarão até a experi-<br />

9<br />

mentar o novo.<br />

Lucas dá muito destaque à importância de uma mudança radical em todo o modo<br />

de viver. Logo no começo do seu evangelho ele relata que um anjo anunciou que a obra de<br />

João Batista seria “converter o coração dos pais aos filhos” (1.17). Os pais podem ser os<br />

grandes patriarcas de antigamente, e o anjo pode estar dizendo que a conduta dos contemporâneos<br />

de Zacarias desagrada aos patriarcas. João Batista os conclama a viver de modo<br />

diferente, para que se tornem aceitáveis aos patriarcas. Desse modo, ele converteria o coração<br />

desses eminentes personagens, para que então aceitassem seus descendentes. Ou ele<br />

pode estar pensando nas famílias da sua época, divididas pelo mal que fazem. Quando<br />

forem convencidas a fazer o que é correto, haverá harmonia entre pais e filhos. IndepetV-<br />

dentemente de como interpretemos essa passagem, há uma convocação para uma mudança<br />

total de conduta, refletida nas palavras: “habilitar para o Senhor um povo preparado”<br />

(1.17). Assim como estava, o povo não estava preparado para o Senhor. Habilitá-lo exigia<br />

uma mudança muito grande.<br />

Mateus e Marcos têm essa frase desta forma: “Ninguém põe remendo de pano novo em veste velha",<br />

sendo que a ênfase está na resistência maior do remendo; ele se rasga do pano velho, deixando um buraco maior.<br />

Lucas está dizendo: “Remendar uma roupa velha com um pedaço rasgado de uma roupa nova equivale a<br />

estragar ambas, a nova porque é rasgada e a velha porque receb e um remendo inadequado” (Leon Morris, Ths<br />

Gospel accoràmg to st. Luke. London, 1974, p. 121). E evidente que a idéia do remendo foi usada mais de urru<br />

vez, com força diferente em cada ocasião. Certamente há força no modo como Jesus o coloca, em Mateus e<br />

Marcos. Em Lucas, porém, a idéia é que ele não combina com o velho.<br />

Alguns manuscritos têm: “O velho é melhor", mas o texto correto é: “O velho é bom". Jesus não está tilando<br />

de pessoas que comparam os dois caminhos e se decidem pelo velho, mas daquelas apegadas a seus hábitos<br />

antigos e que nem mesmo levam em consideração o novo. Elas não saem do lugar.


O Magnificai expressa com eloqüência a inversão dos importantes valores aceitos,<br />

pois fala da exaltação dos humildes e do rebaixamento dos poderosos (1.51-55).10 Isso<br />

combina com o sermão na planície — com suas bênçãos para os pobres, os famintos, os<br />

que choram e os que são odiados, acompanhadas das maldições correspondentes para os<br />

ricos, os satisfeitos, os que agora riem e são louvados (6.20-26). Essas palavras são muitas<br />

vezes transformadas em plataforma de mudanças sociais e, certamente, elas nos chocam e<br />

nos impelem para fora da nossa aceitação complacente dos valores convencionais. Mas elas<br />

são mais que isso. Todo este evangelho deixa claro que Jesus foi muito mais do que um<br />

reformador social. Ele estava interessado no reino de Deus — com tudo o que isso significa.<br />

Suas palavras expressam o repúdio completo dos padrões e valores aceitos. O evangelho<br />

de Lucas mostra de muitas maneiras que “aquilo que é elevado entre os homens é abominação<br />

diante de Deus” (16.15). As pessoas estão na direção errada e abraçam valores errados.<br />

Elas têm muito pouco em termos de realizações, pois quando chegam ao fim, o veredicto é<br />

que são "servos inúteis” (17.10). Não é natural às pessoas se verem sob essa perspectiva,<br />

mas mesmo assim vemos como este evangelho conclama a uma completa inversão dos<br />

valores humanos, uma revolução radical em todo o modo de viver.<br />

Para Lucas, todas as pessoas devem prestar contas a Deus e jamais conseguem ser o<br />

que deviam. Ele não faz nenhuma afirmação sobre a universalidade do pecado, mas expressa<br />

a idéia à sua maneira. Assim, ele relata uma ocasião em que Jesus usou acontecimentos<br />

da época para ensinar a lição. Havia alguns galileus que Pilatos assassinara, ao que parece<br />

enquanto estavam adorando, pois se misturou o sangue deles com o dos sacrifícios. E uma<br />

torre ruiu em Siloé, causando a morte de 18 pessoas. Será que essas pessoas foram mortas<br />

porque eram mais pecadoras do que outras? Jesus repudia com vigor essa idéia e transmite<br />

a lição que seus ouvintes deviam estar aprendendo: “Se não vos arrependerdes, todos igualmente<br />

perecereis” (13.1-5). A implicação clara é que eles eram pecadores, cada um deles<br />

(cf. “Ninguém é bom, senão um, que é Deus”, 18.19), e por serem pecadores, estavam<br />

sujeitos ao julgamento de Deus.<br />

Ensina-se mais ou menos a mesma coisa pela parábola da figueira estéril (13.6-9). O<br />

encarregado do pomar pediu um adiamento da execução da árvore por três anos, para que<br />

pudesse cavar ao seu redor e adubá-la. Mas tanto ele quanto o dono estavam de acordo que,<br />

se ela até então não desse fruto, seria cortada. Pecadores, considerem-se avisados!<br />

Cf. W illiam Barclay: "H á grande beleza no Magnificat, mas nessa beleza há dinamite. O cristianismo efetua<br />

uma revolução em cada pessoa, eum a revolução no mundo” (The Gospel o f Luke, Edinburgh, 1961, p. 10).


A mesma lição continua nas parábolas. A história do rico e de Lázaro não é em primeiro<br />

lugar sobre pecado e julgamento, mas ela não faz sentido enquanto não virmos essas<br />

realidades pelo que são (16.19-31). A parábola do rico tolo (12.16-21), com seu clímax:<br />

"Louco, esta noite te pedirão a tua alma”, destaca a responsabilidade. O mesmo faz a parábola<br />

das minas (19.12-27), em que cada servo é convocado para prestar contas de si, e em<br />

que o malfeitor enfrenta o castigo. A parábola dos agricultores maus (20.9-18) é uma<br />

expressão evidente da verdade de que as pessoas más inevitavelmente serão punidas.<br />

Podem escapar por algum tempo, mas são responsáveis por seus atos, e um dia receberão a<br />

recompensa devida.<br />

Lucas expressa a mesma verdade de outras maneiras. Por exemplo, ele registra o<br />

ensino enfático sobre quem deve merecer nosso temor: “Eu vos mostrarei a quem deveis<br />

temer: temei aquele que, depois de matar, tem poder para lançar no inferno. Sim, digo-vos,<br />

a esse deveis temer” (12.5). Não é a morte que importa, e Deus não deve ser temido porque<br />

pode pôr fim a essa vida terrena. Ele deve ser temido por causa do que pode fazer depois.<br />

Claramente Jesus está se referindo à punição do pecado, e mais uma vez vemos a nota de<br />

responsabilidade levada ainda mais a sério por causa do modo como todos pecamos. Por<br />

isso, Jesus diz que Cafarnaum “ao inferno será abatida” (10.15, ARC). Certos pecadores<br />

serão “negados diante dos anjos de Deus” (12.9). A blasfêmia contra o Espírito Santo<br />

jamais será perdoada (12.10). Os que “devoram as casas das viúvas” receberão, no devido<br />

tempo, severa condenação (20.47).<br />

Um aspecto que chama a atenção nas primeiras pregações em Atos é como os pregadores<br />

insistem na terrível responsabilidade dos seus ouvintes pela morte de Jesus. Essa<br />

morte cumpriu o plano de Deus, porém mesmo assim Pedro diz ao povo de Jerusalém:<br />

"Vós o matastes, crucificando-o" (At 2.23). Mais adiante ele acrescenta: “A este Jesus que<br />

vós crucificastes...” (At 2.36; o pronome é enfático). Em seu segundo sermão Pedro fala de<br />

Jesus como aquele a quem os judeus "traíram e negaram perante Pilatos, quando este havia<br />

decidido soltá-lo” (At 3.13), E continua: "Vós, porém, negastes o Santo e o Justo e pedistes<br />

que vos concedessem um homicida. Dessarte, matastes o Autor da vida...” (At 3.14-15).<br />

Essas palavras são dirigidas ao povo comum em Jerusalém, mas Pedro disse a mesma coisa<br />

diante das mais altas autoridades dos judeus: "...Jesus Cristo, o Nazareno, a quem vós crucificastes”<br />

(At 4.10; veja nos v. 5-6 a quem era dirigida a mensagem). Pedro repete a acusação<br />

vez após vez (At 5.28-30; 10.39), assim como Estêvão (At 7.52) e Paulo (At 13.27-28'..<br />

Fica muito claro que os primeiros pregadores enfatizaram a responsabilidade das pessoas<br />

diante de Deus.<br />

Não devemos encerrar o estudo desse aspecto do nosso tema sem tomar conhecimento<br />

de que nós também somos responsáveis. E fácil dizer que Caifás, Pilatos e seus companheiros<br />

foram responsáveis pela crucificação de Jesus. Mas se levamos a sério o que 05<br />

escritores do Novo T estamento estão dizendo, que Jesus morreu pelos pecados do mundo-


então temos parte nessa culpa. Não estamos fazendo um estudo acadêmico que nos deixa<br />

ilesos.1<br />

Com a culpa vem a idéia de julgamento. Neste evangelho, como vimos, Lucas registra<br />

palavras sobre o inferno e sobre a rejeição perante os anjos de Deus. Responsabilidade<br />

quer dizer julgamento — julgamento pelos padrões mais elevados e perante os mais altos<br />

tribunais. Em Atos vemos que Jesus será o juiz no último grande dia (At 10.42; 17.31). De<br />

um ponto de visto isso é confortador, porque não podemos imaginar ninguém que vá ser<br />

mais ponderado ao nos julgar do que aquele que nos amou tanto a ponto de morrer por<br />

nós. Mas de outro ponto de vista, o fato de ele ser o juiz torna o julgamento sério. Se ele<br />

veio à terra, viveu e morreu para tirar os pecados e abrir o caminho de salvação, não podemos<br />

esperar que ele livre das conseqüências as ações daqueles que continuam a pecar.<br />

Todos os escritores do Novo Testamento, de um modo ou de outro, conclamam os<br />

pecadores a abandonarem o pecado. Cada um, porém, tem suas peculiaridades, e devemos<br />

observar que Lucas destaca mais que os outros a necessidade de arrependimento.12 Como<br />

Mateus e Marcos, ele diz aos seus leitores que João Batista convocou as pessoas para um<br />

“batismo de arrependimento” (3.3; At 13.24; 19.4) e as convidou a produzir “frutos dignos<br />

de arrependimento” (3.8). Como elas não o fazem, ele passa para a parte em que João completa<br />

sua mensagem explicando o que isso significa: quem tem muito deve repartir com<br />

quem tem pouco, os cobradores de impostos não devem cobrar mais do que está estipulado<br />

e os soldados devem se contentar com seu salário e não partir para violência e extorsão<br />

(3.10-14).<br />

Os sinóticos têm esta declaração de Jesus: “Não vim chamar justos, e sim pecadores”;<br />

apenas Lucas acrescenta: “ao arrependimento” (5,32). Pode ser argumentado que isso<br />

está implícito em Mateus e Marcos, mas o fato é que em Lucas está explícito. Ele não quer<br />

D , R . Davies esclarece que atos perversos como a crucificação déjesus sempre precisam da açáo de pessoas<br />

“boas”, pois os maus, entregues a si mesmos, não podem fazer coisas assim (T he art ojâoâging repentance. London,<br />

1952, p. 34-35). Ele aplica isso ao nosso tempo. Fala da “geração do nosso mundo ensopado de sangue,<br />

tomado de crueldade” e acrescenta: “Entre todos os que viveram e morreram desde o Calvário, nós, cidadãos<br />

de hoje, somos os que menos podemos fingir ter uma virtude superior, uma moralidade mais profunda, sensível<br />

e responsável. O clamor dos milhões que foram mortos e dos milhões que foram condenados a uma morte<br />

viva em lugares remotos negam qualquer pretensão nesse sentido. N enhum outro século crucificou novamente<br />

a Cristo de modo mais claro do que o século vinte” (p. 41).<br />

Lucas tem j i e r á v o i a 5 vezes em seu evangelho e 6 vezes em Atos (com isso ele tem 11 das 22 ocorrências<br />

da palavra no Novo Testam ento). Ele tem o verbo llCTdPOEíü 9 vezes no evangelho e 5 em Atos (ele ocorre 34<br />

vezes no Novo Testam ento, das quais 12 em Apocalipse).


que deixemos de observar a exigência de arrependimento, Ele nos informa que Jesus usa o<br />

arrependimento de Nínive como repreensão para a presente geração que não se arrepende<br />

(11.32) e que até menciona Tiro e Sidom, que também não demonstraram arrependimento,<br />

com o mesmo propósito (10.13; essas cidades não teriam resistido à prova dos “milagres”,<br />

como esta geração). Já observamos que Jesus convidou seus ouvintes a refletir sobre a<br />

matança dos galileus sob Pilatos e sobre a morte dos dezoito sobre os quais desmoronou a<br />

torre de Siloé; aqui acrescento que ele disse: “Se não vos arrependerdes, todos igualmente<br />

perecereis” (13.3, 5).<br />

Quando há arrependimento, há alegria no céu — verdade que se repete parábola<br />

após parábola (15.7,10). Arrependimento é o fim do pecado, ejesus ensina que o arrependimento<br />

causa uma alegria que ultrapassa os limites da terra. Mateus tem uma parábola<br />

sobre um pastor que procura uma ovelha perdida, um pastor que se alegra com aquela que<br />

encontrou mais do que com as 99 que não se perderam (M t 18.12-14). Nenhuma palavra<br />

sobre arrependimento, como em Lucas.<br />

Com essa ênfase em arrependimento no ensino de Jesus, não é de admirar que desde<br />

o começo os pregadores da primeira igreja esperassem ver essa atitude. Após o primeiro<br />

sermão cristão, Pedro disse aos seus ouvintes: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado..."<br />

(At 2.38). Ele fez o mesmo no sermão seguinte: "Arrependei-vos e convertei-vos...”<br />

(At 3.19). Pedro repreendeu Simão, o mago, para que se arrependesse (At 8.22), à semelhança<br />

do que Paulo fez com os atenienses (At 17.30). De fato, perante o rei Agripa, Paulo<br />

disse que não fora desobediente à visão celestial, mas que, “primeiramente aos de Damasco<br />

e em Jerusalém, por toda a região dajudéia, e aos gentios”, ele anunciou “que se arrependessem<br />

e se convertessem a Deus, praticando obras dignas de arrependimento” (At 26.20).<br />

Essa afirmação, pelo fato de surgir no fim da sua carreira, abrangendo um espectro tão<br />

amplo de pessoas com quem ele havia trabalhado, deixa claro que o arrependimento era<br />

um elemento essencial em sua pregação.<br />

Algumas afirmações deixam claro que não devemos entender o arrependimento<br />

como uma virtude humana, produzida com recursos humanos. Em certo sentido, é uma<br />

dádiva de Deus, que exaltou a Cristo “a fim de conceder a Israel o arrependimento e a<br />

remissão de pecados” (5.31). E foi Deus quem concedeu aos gentios “arrependimento para<br />

vida” (11,18).<br />

Tudo isso se harmoniza com a grande ênfase cristã na graça. Quem concede o dom<br />

do arrependimento é um Deus gracioso, que, desse modo, admite à vida aqueles cuja conduta<br />

pecaminosa os levava à morte. Devemos observar também que essa exigência de arrependimento<br />

radical e de plena mudança de vida brota do fato de que o caminho cristão é<br />

um caminho de graça. Numa religião da lei, o que importa é manter crédito na conta, ter<br />

um saldo razoável de boas obras. Mas no caminho da salvação pela graça, não basta ter certo<br />

número de boas ações. E preciso parar, não com algumas ações más, mas com todas. O


arrependimento tem de ser de todo o coração, e essa exigência procede da salvação completa<br />

que Cristo conquistou para o seu povo.<br />

S? cenimlidãde da paixão<br />

Como os outros evangelistas, Lucas faz da paixão o ponto alto do seu evangelho.<br />

Está claro para ele, como também para os outros, que a morte e a ressurreição de Jesus<br />

constituíram o coração, o centro do caminho de Deus para nos salvar. Já vimos algumas<br />

provas disso nas previsões da paixão, no conceito de Lucas quanto ao Messias sofredor e na<br />

implementação do plano de Deus, pois, da forma como o evangelista o vê, esse plano colocou<br />

a morte de Jesus no centro do caminho da salvação. O evangelho de Lucas foi estruturado<br />

de tal maneira que faz da paixão o clímax de tudo.<br />

A narrativa da infância em Lucas é uma abertura importante. Não há nada semelhante<br />

em nenhum dos outros evangelhos. Não devemos nos deixar levar pela beleza dos<br />

relatos a ponto de não vermos que Lucas está introduzindo alguns dos temas importantes<br />

que perpassam seu livro. Ali encontramos, por exemplo, que o menino Jesus é Cristo e<br />

Senhor; ele é o Salvador. Ele foi colocado para queda e ascensão de muitos em Israel, e a<br />

espada que haverá de atravessar a alma de Maria aporita para tristeza e rejeição.<br />

Quando Jesus manifestou suas intenções com seu sermão em Nazaré, ele mostrou<br />

que não se concentraria nos mesmos temas de outros que afirmavam ser o Messias. Pelo<br />

fato de anunciar o “ano aceitável do Senhor” (4.18-19), ele estaria enfocando as boas novas<br />

para os pobres, a libertação de cativos, a restituição da vista aos cegos, a liberdade dos oprimidos,<br />

Os ouvintes ficaram atônitos com as “palavras de graça” de Jesus, mas o relato termina<br />

com rejeição (4.29-30), tema que Lucas apresenta também em outros lugares<br />

(7.33-35). Lucas mantém isso em mente desde o começo.<br />

Já vimos que o relato que Lucas faz da transfiguração menciona que Moisés e Elias<br />

conversaram sobre a morte de Jesus (9.31), e mais adiante no mesmo capítulo encontramos<br />

outra previsão que Jesus faz do seu sofrimento futuro (9.44-45). Ele falou do “batismo”<br />

que o aguardava e acrescentou: "Quanto me angustio até que o mesmo se realize!”<br />

(12.50).13 De modo contínuo ele avança em direção à cruz.<br />

Uma peculiaridade de Lucas digna de nota é o registro da viagem (9.51-19.44;<br />

alguns estudiosos terminam esse trecho em outros lugares, como 19.27). Tem havido mui-<br />

G. B. Cairel acredita que Jesus "estava conscientemente ecoando o ensino de João Batista, e incidentalmente<br />

mostrando que grande distância o separava do maior dos se:Us antecessores, João profetizara a vinda daquele<br />

que batizaria com o fogo do julgamento divino; nunca lhe ocorrera que aquele que viria seria o primeiro a<br />

passar por esse batismo” (The Gospel of st Luke. Harmondsworth, 1963, p. 167).


ta discussão e divisão entre os estudiosos sobre esse trecho. Alguns identificam mais de<br />

uma viagem, outros crêem que Lucas usou tradições diferentes da mesma viagem, ainda<br />

outros dizem que, na verdade, não houve nenhuma viagem, mas que Lucas usou esse recurso<br />

com propósitos teológicos.14 W . G. Kümmel acha que há tanta confusão nessa parte do<br />

evangelho, que chega ao ponto de concluir que dificilmente podemos ir além de afirmar<br />

que “o Senhor, que vai para Jerusalém para sofrer de acordo com a vontade de Deus, prepara<br />

seus discípulos para a missão de pregar após a sua morte”.15<br />

Isso, porém, é o que podemos dizer, e é de grande importância. Significa que, de 9.51<br />

em diante, Lucas tem a cruz em vista. Ela não é algo que surgiu no último minuto, quando<br />

as coisas deram errado. Jesus caminhou deliberadamente em direção a ela, cumprindo o<br />

propósito de Deus. E apesar de haver bastante ensino dos discípulos nessa parte do evangelho,<br />

Kümmel nos lembra de que se trata de ensino em face da morte iminente do Senhor.<br />

Todo esse trecho sublinha a centralidade da paixão. Logo no começo, Lucas diz que Jesus<br />

“manifestou, no semblante, a intrépida resolução de ir para Jerusalém” (9.51).<br />

A idéia de ir para Jerusalém é repetida várias vezes na narrativa da viagem (9.51, 53;<br />

13.22; 17.11; 18,31; 19.28). De fato, Lucas tem um grande interesse pela cidade16 e menciona<br />

"Jerusalém” 37 vezes em seu evangelho (Mateus o faz 13 vezes, Marcos, 10, e João, 12).<br />

A exemplo de Mateus e Marcos, Lucas registra a maior parte dos fatos fora da capital; por<br />

isso é ainda mais surpreendente que ele a mencione tantas vezes, João narra boa parte dos<br />

fatos ocorridos em Jerusalém, mas Lucas cita o nome da cidade três vezes mais do quejoão.<br />

Parece que, para Lucas, Jerusalém é a cidade do destino, o lugar em que Deus efetuaria a<br />

obra da redenção na paixão do Senhor, o local em que o Espírito seria concedido, a cidade<br />

em que a igreja teria o seu início. Por isso, tendo a paixão em mente, não é de admirar que<br />

ele repetidas vezes diga que Jesus ia para Jerusalém. Para outro escritor isso talvez não significasse<br />

mais do que o fato de que a capital era o destino da viagem de Jesus. Em Lucas, significa<br />

que ele estava indo para o lugar em que o plano de Deus atingiria o clímax.<br />

Lucas dedica bastante espaço ao relato da paixão em si, a exemplo dos outros evangelistas.<br />

A seriedade com que trata dessa parte do seu evangelho mostra que, para Lucas,<br />

ela era de importância crucial. Em termos gerais, a narrativa segue as mesmas linhas dos<br />

outros evangelhos, mas Lucas inclui algumas informações que os outros não têm. Por<br />

W . G . Kümmel alista as opiniões de sete estudiosos que defendem seis opiniões diferentes sobre a importância<br />

da narrativa da viagem (Introâuction to tbeN ew Testament. London, 1966, p. 99). Todos concordam que a<br />

passagem tem importância teológica, mas evidentemente não há acordo quanto ao modo como se traduz essa<br />

importância.<br />

Ibid*<br />

H á duas formas do nome da cidade. Lucas prefere ’Iep O v aaÀ ijfi, que ele usa 27 vezes no evangelho e 36<br />

em Atos, num total de 63 das 76 ocorrências em todo o Novo Testam ento. Ele também t e m le p o a ó À V jja 10<br />

vezes, mais 23 em Atos, perfazendo 33 das 63 ocorrências no Novo Testamento.


exemplo, ele nos conta a discussão entre os discípulos, na sala da última ceia, sobre qual<br />

deles seria o maior (22.23), o desejo de Jesus de comer a páscoa com eles (22.15-18) e as<br />

palavras de Jesus dirigidas a Pedro de que Satanás queria peneirá-lo como trigo (22.31-32).<br />

Apenas Lucas nos fala das duas espadas (22.35-38), do anjo que fortaleceu Jesus no Getsêmani<br />

e do suor de sangue (22.43-44; há uma incerteza textual nessa passagem). Ele nos fala<br />

da pergunta dos discípulos sobre o uso da espada (23.49), da cura da orelha do soldado<br />

(22.51), da acusação dos inimigos dejesus (23.2) e do comparecimento dejesus diante de<br />

Herodes (23.6-12). Ele nos fala da declaração de Pilatos de que Jesus era inocente<br />

(23.13-16), e registra com dados mais completos do que os outros relatos a exigência da<br />

multidão de que Barrabás lhe fosse entregue. É em Lucas que lemos sobre as “filhas de<br />

Jerusalém” (23.27-31), sobre a oração "Pai, perdoa-lhes...” (23.34), sobre o ladrão arrependido<br />

(23,40-43) e sobre a oração dejesus no momento da morte: “Pai, nas tuas mãos entrego<br />

o meu espírito!” (23.46). Há ainda outros toques pessoais de Lucas. Não tentei ser<br />

exaustivo nessa lista.17<br />

Lucas não está simplesmente repetindo o que outros disseram. Ele está profundamente<br />

interessado na paixão e, apesar de não hesitar em usar material que outros contêm<br />

(um relato da crucificação pressupõe bastante informação em comum), ele coletou dados<br />

que os outros evangelistas não têm. Ele não deixa dúvidas quanto à paixão como a grande<br />

questão central. Foi para isso que Cristo veio. Estamos no meio de muita maldade: as más<br />

intenções dos inimigos dejesus, a disposição dos seus seguidores para traí-lo, a exigência<br />

da multidão de ver derramado o sangue de um homem que, sabia-se, não havia cometido<br />

nenhuma transgressão, a incapacidade do governador romano de libertar um homem que<br />

ele reconhecia inocente. Mas também vemos a mão de Deus. E pelo fato de Deus estar em<br />

ação, a última palavra não é de tragédia mas de triunfo.<br />

O triunfo de<br />

hus<br />

Em todo esse evangelho Lucas nos fala de uma luta entre o bem e o mal, entre Deus<br />

e o Diabo — luta que chega ao clímax na cruz. Não há dúvida de que a última palavra não é<br />

do mal. Ela é proferida por Deus e está com ele.<br />

Como fazem os outros sinóticos, Lucas nos conta várias vezes que Jesus expulsou<br />

demônios (4.33-37, 41; 6.18; 8.2, 27-39; 9.37-43; 11.14; 13.11-16). Devemos ter em mente<br />

que a possessão demoníaca era amplamente reconhecida no mundo antigo, e havia pessoas<br />

V incent Taylor escreveu um livro sobre a narrativa da paixão em Lucas em que ele argumenta que este<br />

evangelista na verdade não depende de Marcos mas de suas próprias fontes de informação sobre a paixão (The<br />

Passion narrative o f st Luke. Cambridge, 1972).


que supostamente expulsavam demônios, mas o fenômeno recebe pouca atenção na Bíblia,<br />

fora dos relatos do ministério de Jesus pelos sinóticos.<br />

Lucas nos mostra um pouco da importância disse no relato do exorcismo em 11.14.<br />

A expulsão do demônio levou alguns críticos a atribuir a Belzebu o que Jesus tinha feito.<br />

Jesus demonstrou que isso significava que Satanás estava dividido contra si mesmo. Isso<br />

também levantou a questão de como os filhos deles realizavam seus exorcismos; se seus<br />

adversários estivessem corretos, estavam com asseclas de Satanás dentro de casa! O golpe<br />

final é desferido quando Jesus diz: “Se, porém, eu expulso os demônios pelo dedo de Deus,<br />

certamente, é chegado [nada menos que] o reino de Deus sobre vós” (11.20). Então ele passa<br />

à parábola do homem forte dominado por alguém mais forte, e conclui: “Quem não é<br />

por mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha” (11.23). Não há neutralidade<br />

na luta em que Jesus está envolvido.<br />

O conflito com os demônios continua em Atos, apesar de não se registrarem muitos<br />

exorcismos ali. Mas com a tendência das pessoas de ver demônios em todo lugar, o fato de<br />

que todas as forças do mal haviam sido derrotadas deve ter sido uma parte importante da<br />

mensagem cristã. Pedro diz que Jesus “andou por toda parte, fazendo o bem e curando a<br />

todos os oprimidos do diabo” (At 10.38), e ele mesmo livrou algumas pessoas de espíritos<br />

imundos, como também Filipe e Paulo (At 5.16; 8.7; 16.18).<br />

Lucas deixa claro que não havia nada mágico nisso. Parece que os exorcistas da<br />

Antigüidade gostavam de se sair com encantamentos novos e mais fortes. Os sete filhos de<br />

Ceva tentaram expulsar um espírito mau usando o nome de “Jesus, a quem Paulo prega”. O<br />

homem, porém, saltou sobre eles e os expulsou da casa nus e feridos (At 19.13-16), Não<br />

devemos entender o nome de Jesus como a mais nova técnica dos praticantes de magia.<br />

Nesse nome os apóstolos realmente fizeram coisas milagrosas, e por meio dele exerceram<br />

poder sobre os demônios. Mas esse poder está ao alcance somente daqueles que, humildes,<br />

entregam-se pela fé ao serviço de Jesus Cristo e procuram favorecer os propósitos de Deus,<br />

não aumentar sua fama de milagreiros.<br />

Em todo o evangelho, Lucas faz ressoar essa nota de conflito com o mal. Jesus é<br />

constantemente enfrentado por forças malignas, e Lucas não dá margem a dúvidas sobre<br />

onde está a vitória. Jesus expulsa os demônios. Eles não podem resistir-lhe. Também não<br />

podem resistir aos que vêm em nome de Jesus. Em certa ocasião, Jesus enviou os Doze<br />

numa missão de pregação e lhes deu autoridade sobre os demônios (9.1). Em outra ocasião,<br />

ele enviou setenta (ou setenta e dois; os manuscritos se dividem) seguidores, e apesar<br />

de não haver menção específica dos demônios em seu comissionamento, quando voltaram,<br />

eles exclamaram com alegria: "Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu<br />

nome!” (10.17). A resposta dejesus começa com: "Eu via Satanás caindo do céu como um<br />

relâmpago” (10,18). As palavras são difíceis, mas esta parece ser a melhor maneira de<br />

entendê-las: "Para o observador desatento, tudo o que aconteceu foi que alguns pregadores


mendicantes haviam falado em algumas cidades pequenas e curado alguns doentes. Nesse<br />

triunfo do evangelho, porém, Satanás sofrera uma derrota notável”.18 Observe que não há<br />

menção de Satanás na palavra de Jesus aos pregadores. Mas sua vitória sobre o mal é uma<br />

vitória sobre Satanás.<br />

Conzelmann nega que haja alguma atividade de Satanás neste evangelho, entre a<br />

tentação e a paixão: "Enquanto Jesus estava vivo era o tempo da salvação; Satanás estava<br />

longe, era um tempo sem tentação. [...] A Tentação se encerra de modo decisivo (navra), e<br />

o mal vai embora. Há uma questão de princípio envolvida aqui, pois o significado é que,<br />

onde Jesus está, de agora em diante, Satanás não está mais — âxpi KCtipou '.19 É difícil alinhar<br />

as afirmações repetidas de Conzelmann com o que Lucas realmente diz. Como<br />

vimos, ele pinta um quadro de combate contínuo entre Jesus e as forças do mal. Ele vê Satanás<br />

derrotado quando os discípulos são bem sucedidos (10.18). Ele refuta a acusação dos<br />

seus inimigos com base na realidade de que, se o que eles diziam era verdade, Satanás estava<br />

dividido contra si mesmo (11.18). Isso ocorre em meio às atividades da sua missão; refere-se<br />

ao tempo em que Jesus estava na terra e em plena atividade. Ele fala de uma “filha de<br />

Abraão” que Satanás mantivera presa por dezoito anos (13.16) e que Jesus libertara, Na<br />

parábola do semeador, Jesus diz que o Diabo vem e tira a palavra do coração das pessoas,<br />

para que não creiam e sejam salvas. Se formos extrair nossa teologia do que Lucas diz e não<br />

das nossas teorias sobre a maneira como ele escreve, não há como não ver que Satanás estava<br />

ativo durante todo o ministério de Jesus, e que uma das principais mensagens de Lucas é<br />

que Jesus constantemente derrotava as forças do mal.<br />

Satanás esteve em atividade principalmente durante a paixão. Ele participou da<br />

traição entrando em Judas (22.3). Queria peneirar Pedro como trigo (22.31). Essa é uma<br />

frase misteriosa, mas que não nos deixa dúvidas de que ele queria destruir o trabalho de<br />

Jesus e que uma grande provação aguardava por Pedro. Quando foi preso, Jesus disse:<br />

“Esta é a hora de vocês — quando as trevas reinam!” (22.53, NVl). E evidente que esse é o<br />

momento crítico no conflito entre Cristo e os poderes do mal.20<br />

Leon Morris, The Gospel accorâing to st. Luke. London, 1974, p. 185. Cf. Marshall: “Essa evidência sugere<br />

que a idéia mitológica da queda e derrota de Satanás está sendo utilizada aqui por Jesus para expressar em termos<br />

simbólicos a importância do exorcismo de demônios. Exorcismos são um sinal da derrota de Satanás”<br />

(The Gospel o f Luke, p. 429). J . M . Creed vê isso de outra forma: “Aqui se insinua uma visão extática por parte<br />

de Jesus, mas não está claro quando devemos entender que ela aconteceu” (The Gospel accorâing to st. Luke. London,<br />

1950, p. 147).<br />

19 The theology o f st. Luke, p. 16, 28; veja também p. 156, 188 et al.<br />

°Cf. Karl H eim : “De acordo com a afirmação do próprio Jesus, trata-se da batalha final, terrível e decisiva,<br />

da guerra que preenche toda a sua vida, contra o poder satânico que quer depor a Deus. [...] A idéia de um poder<br />

oposto a Deus contra o qual essa guerra é travada não pode ser eliminada da mente de Jesus, como se fosse


E, é claro, a cruz leva à ressurreição, o triunfo retumbante de Cristo sobre o Maligno.<br />

O fim do evangelho de Lucas e o início de Atos estão cheios do fulgor desse triunfo. Ê<br />

evidente que ele pegou os seguidores de Jesus totalmente de surpresa. Eles não esperaram<br />

nada parecido com isso e foram lançados nas profundezas da tristeza pelo que acontecera<br />

na sexta-feira da paixão. Todavia, a ressurreição mudou tudo. Ela mostrou que Jesus não<br />

havia sido derrotado pelo mal que seus inimigos podiam fazer. Nada parece ser tão definitivo<br />

quanto a morte, e Jesus havia morrido. Mas para ele isso não foi o fim. Ele ressuscitou<br />

vitorioso.<br />

Tudo isso, é claro, Lucas tem em comum com os outros evangelistas e, na verdade,<br />

com os outros escritores do Novo Testamento. Eles estavam vibrando com a mensagem da<br />

ressurreição. Lucas, no entanto, tem sua maneira própria de expressar esse triunfo. Suas<br />

narrativas da ressurreição, por exemplo, lhe são peculiares, com a exceção de que tem em<br />

comum com Marcos e Mateus a história da visita das mulheres ao túmulo. Quanto lhe<br />

devemos pela história inesquecível dos dois discípulos que andaram com Jesus pela estrada<br />

para Emaús e pela cena em que os discípulos estavam trancados e contaram aos outros que<br />

Jesus realmente havia ressuscitado!<br />

Tendo isso em mente, encontramos temas importantes na primeira parte do evangelho.<br />

Há ali profecias em que Jesus declarou que ressuscitaria (9.22; 11.29-30; 18.33).<br />

Quando elas foram feitas, as palavras devem ter soado misteriosas. Os discípulos devem ter<br />

pensado: “Naturalmente ele devem estar usando essas palavras de modo metafórico, mas,<br />

então, que sentido devemos lhes dar?” Agora podemos ver que Jesus estava simplesmente<br />

prevendo seu triunfo final. E devemos levar em consideração que Lucas registra que Jesus<br />

ressuscitou a filha de Jairo (8.41-56) e o filho da viúva de Naim (7.11-15). Jesus nunca teve<br />

a mesma relação com a morte que têm os filhos dos homens. Ele era o “Príncipe da vida”<br />

(At 3.15); “não era possível que ele fosse retido" pela morte (At 2.24). A ressurreição de<br />

Jesus foi prevista nas Escrituras; portanto, era da vontade de Deus que ela ocorresse. Paulo<br />

via a necessidade da ressurreição de Jesus assim como da sua morte: ele encontrava as duas<br />

nas Escrituras, e por isso as duas tinham de ocorrer (At 17.3).<br />

Lucas tem certeza da ressurreição. Ele começa Atos dizendo a seus leitores que,<br />

depois da paixão, Jesus mostrou estar vivo “com muitas provas incontestáveis” (At 1.3). Os<br />

primeiros capítulos de Atos estão cheios da alegria da ressurreição, e é natural que fosse<br />

assim. E evidente, porém, que os discípulos ficaram totalmente desanimados quando Jesus<br />

morreu. Ele tinha sido o centro do pensamento e da vida deles, e agora estava morto. O<br />

que deviam fazer? Aonde deviam ir? Então, de repente, todo esse pessimismo foi dissipado.<br />

A tristeza desapareceu com a profunda convicção de que o impossível tinha acontecido.<br />

um conceito sem importância atribuído a idéias populares da sua época. Pelo contrário: essa é a convicção fundamental<br />

que transforma toda a obra da sua vida, desde o começo até o fim terrível, numa guerra feroz com<br />

um inimigo invisível” (Jesus the Lord. Edinburgh e London, 1959, p. 90-91).


Jesus triunfara sobre a morte. Ele não estava morto, mas vivo. Nào é de admirar que a<br />

ressurreição tomou conta deles e eles a tornaram o centro da sua mensagem.<br />

Em seu primeiro sermão, Pedro tem um longo trecho sobre isso (At 2.24-36), apesar<br />

de o sermão ter sido provocado pelos acontecimentos extraordinários que acompanharam<br />

a vinda do Espirito Santo. Não se pode dizer que a pregação diminuiu a importância<br />

da vinda do Espírito, mas há muito significado no fato de que nessa ocasião ele falou de<br />

modo tão completo sobre a ressurreição. Essa era a grandiosa e recente ação de Deus que<br />

precisava ser anunciada com clareza. Por isso, a ressurreição ocupa um lugar de destaque<br />

na maioria das pregações do começo da igreja.<br />

Afirma-se repetidas vezes que Deus ressuscitou a Jesus, e não simplesmente que<br />

Jesus ressuscitou (2.32; 3.15, 26; 4.10; 5.30; 10.40; 13.30, 33, 34, 37; 17.31). Da maneira<br />

como Lucas e os primeiros pregadores a viam, a ressurreição significa que o próprio Deus<br />

tinha agido para reverter o que pessoas perversas haviam feito no Calvário e para atingir<br />

seu propósito. Por essa razão, a ressurreição não era simplesmente uma das muitas coisas<br />

que os pregadores mencionavam; podia ser dito que “com grande poder, os apóstolos<br />

davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (At 4.3). Eles “anunciaram, em Jesus,<br />

a ressurreição” (At 4.2).2’ A função de um apóstolo era ser "testemunha [...] da sua ressurreição”<br />

(At 1.22). Mesmo onde provavelmente isso não receberia muita atenção, como<br />

entre os intelectuais de Atenas, a ressurreição foi pregada (veja At 17.18).<br />

Lucas não pára na ressurreição. Ele termina seu evangelho e começa Atos relatando<br />

a ascensão. A ressurreição foi maravilhosa, mas, no fim das contas, ela ocorreu aqui na terra.<br />

O lugar de Jesus, porém, era no céu, e Lucas não nos deixa dúvidas de que ele retornou<br />

para lá. Vimos que ele deu muita ênfase à paixão de Jesus, e sua ressurreição e ascensão<br />

faziam parte da sua morte, em certo sentido. Logo no começo da sua narrativa da viagem,<br />

quando ele antevê a ida de Jesus para Jerusalém para ser crucificado, ele fala do futuro, não<br />

quando Jesus morreria, mas quando seria “assunto ao céu" (9.51).22 Por ocasião da última<br />

ceia, com a cruz sob perspectiva iminente, Jesus fala aos discípulos do "reino” que preparara<br />

para eles; há glória pela frente, assim como há sofrimento (22.29-30).<br />

F. F. Bruce comenta: “O sentido parece ser que eles, a partir do fato de que Jesus ressuscitara (€ V T(ú<br />

IJ](J0 V , no caso de Jesus’), provaram o princípio geral da ressurreição, que os saduceus negavam” (The Acts o f<br />

:he Apostles. London, 1951, p. 116).<br />

22 Alguns tomam a palavra diyáÀrjipL ç como referência à morte de Jesus (p. ex., Gerhard Delling, TD N T 4.9,<br />

apesar de "possivelmente” o termo incluir a ascensão). Melhor é a posição de G . B. Caird: “Lucas coloca uma<br />

teologia inteira na palavra a n a le m p s is , que significa assunção, recepção no céu. A palavra ressoa o tema de<br />

Elias, que já teve tanto destaque no evangelho (cf. 2Rs 2.9-11). M as Lucas usa a palavra aqui de um modo bem<br />

parecido com o de João para cobrir todo o conjunto de fatos pelos quais Jesus transitou da terra para o céu:<br />

crucificação, ressurreição e ascensão" (The Gospel o f st Luke. Harmondsworth, 1963, p. 140).


Essa é a razão de Pedro às vezes falar de exaltação além de ressurreição. Ele pode<br />

dizer: “Exaltado à destra de Deus...” (At 2.33), e novamente: “Deus, com a sua destra, o<br />

exaltou...” (At 5.31).23 Isso provavelmente tem o mesmo sentido de “Deus [„.] glorificou a<br />

seu servo Jesus” (At 3.13) e que ele "fez” Jesus Senhor e Cristo (At 2.36). O ponto central<br />

dessas passagens é que Jesus está no lugar supremo, A ressurreição não significou que ele<br />

simplesmente retornou à vida que tinha antes na terra (como aconteceu com pessoas como<br />

afilha dejairo, o filho da viúva de Naim e Lázaro, o amigo de Jesus). Significou que Deus o<br />

colocara na mais alta posição no céu. Significou que ele estava em uma posição que lhe permitia<br />

fazer coisas como enviar o Espírito Santo com os resultados espetaculares descritos<br />

em Atos 2. Significou que o ser antes humilhado e rejeitado agora se encontrava em toda<br />

supremacia e exaltação. Significou o triunfo de Deus.<br />

0 sentido da cruz<br />

Como a morte de Jesus proporciona salvação? Vimos que Lucas frisa bastante a paixão<br />

e a exaltação de Jesus; que importância tem tudo isso? Não é fácil apresentar uma resposta,<br />

pois Lucas raramente se volta para perguntas assim. Ele proclama o fato sem entrar<br />

muito na maneira por que tudo funciona. Mas aqui e acolá ele faz declarações concernentes<br />

a isso.<br />

E provável que seja importante o fato de ele ver Jesus como o “Servo do Senhor” (At<br />

3.13, 26; 4.27, 30). Apesar de o Servo não ser mencionado no primeiro sermão de Pedro,<br />

ele pode estar pensando nisso. Vincent Taylor escreve: “Já nesse discurso [isto é, At<br />

2.22-36] está claro que o conceito dominante é o do Servo, humilhado na morte e exaltado<br />

por Deus no cumprimento do seu supremo serviço pelo ser humano. Essa afirmação é válida<br />

apesar de o Servo ainda não ter sido mencionado”.24 J. Jeremias acha que o uso do termo<br />

"Servo” pertence a “uma esfera muito antiga da tradição”, e também defende que as referências<br />

a Jesus como “o Justo” (At 3.14; 7.52; 22.14) podem derivar de Isaías 53.11.& Nesse<br />

caso, a intenção provavelmente é que elas nos lembrem do Servo justo do Senhor, Com<br />

certeza, quando Filipe falou com o etíope, ele começou com Isaías 53.7-8 e "anunciou-lhe a<br />

Jesus” (At 8.35).<br />

Essas passagens deixam claro que Lucas entendia que Isaías 53 se refere aos sofrimentos<br />

de Jesus, e uma vez ele nos diz explicitamente que Jesus aplicou palavras desse capítulo<br />

a si mesmo (22.37). Esse capítulo com certeza fala de sofrimentos expiatórios, e J.<br />

N as duas passagens, Tfj ò ( Cl n pode ter o sentido de “por", "em” ou “para a” sua mão direita.<br />

The atonement in New Testament teaching. London, 1946, p. 18,<br />

W . Zimmerli e j. Jeremias, The Servant o f Goâ. London, 1957, p, 91.


Jeremias diz: “Pelo fato de ele caminhar para a morte de modo inocente, voluntário, paciente<br />

e de acordo com a vontade de Deus (Is 53), sua morte tem virtude expiatória ilimitada, E vida<br />

que flui de Deus, e vida em Deus que ele disponibiliza”.26 Podemos dizer pelo menos isso. E<br />

como Isaías 53 está cheio da idéia de substituição, existe pelo menos a possibilidade de que<br />

Lucas tenha visto um pouco disso na maneira como Jesus efetuou a expiação.<br />

As vezes ele faz referências sutis à noção de expiação. Vemos isso em seu relato da<br />

instituição da ceia do Senhor. Entre os evangelistas, só Lucas registra que Jesus disse que<br />

seu corpo estava sendo "dado” aos seus seguidores e “fazei isto em memória de mim”.<br />

Somente Lucas escreve que o cálice era a “nova aliança” no sangue de Jesus (22.19-20; o<br />

adjetivo "nova” falta nos melhores manuscritos nos primeiros dois evangelhos, mas deve<br />

ser lido em Lucas). A morte de Jesus foi vicária, ele firmou uma nova aliança em sua morte<br />

e seu povo deve ter isso constantemente na lembrança através de uma celebração litúrgica<br />

solene; são esses importantes sinais da eficácia da salvação por sua morte.<br />

Novamente, L u c â s fala da “igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio<br />

sangue [ou com o sangue do seu (filho)]” (At 20.28). Isso não está longe da figura da redenção<br />

(que significa o pagamento para libertar alguém do cativeiro). Ao registrar isso, Lucas<br />

está no mínimo dizendo que Deus nos salvou a um alto preço; também está dizendo que o<br />

preço foi a morte de Cristo. Na história da igreja, essa maneira de pensar na expiação atraiu<br />

a muitos; e às vezes levou a um literalismo excessivo, em que se fazia a seguinte pergunta:<br />

"A quem o resgate foi pago?” Lucas não pode ser censurado nessa questão, pois ele não leva<br />

adiante o pensamento. Mas pelo menos ele vê nossa salvação como resultado de um ato de<br />

compra, em que o preço foi o sangue do Salvador.<br />

Três vezes Lucas registra o fato de que Jesus morreu num “madeiro” (At 5.30; 10.39;<br />

13.29). Essa é uma maneira interessante de se referir à crucificação, pois a palavra não é uma<br />

referência natural à cruz* Ela é usada para traduzir vários objetos feitos de madeira, como<br />

porretes (M t 26.47), troncos numa prisão (At 16.24) e madeira para construção (ICo 3.12).<br />

Às vezes a referência é a uma árvore (Ap 2.7; 22,2), tradução que também é possível. Mas o<br />

termo não costumava ser relacionado com uma cruz, e não devemos nos deixar levar pela freqüência<br />

com que ele aparece nos hinos cristãos. Como disse G. B. Caird, ele “não é uma descrição<br />

da crucificação que naturalmente ocorreria a um observador comum”.27 A expressão<br />

podia causar horror ao judeu comum do primeiro século, porque lhe recordava as palavras:<br />

“O que for pendurado no madeiro é maldito de Deus” (D t 21.23). Para alguns judeus era<br />

impossível que Jesus fosse o Messias de Deus, porque morrera de um modo que demonstrava<br />

estar sob a maldição de Deus. A forma de expressão é judaica (muitos chamam a atenção<br />

para passagens relevantes na L X X e em escritos hebraicos).<br />

Ibid., p. 104.<br />

The Apostolic age. London» 1955, p. 40.


Então, por que Lucas decidiu incluir essas passagens, tão incomuns no modo como se<br />

referem ã crucificação, e com um peso de significado tão grande para quem conhecia a maneira<br />

judaica de pensar? Parece que ele queria transmitir a idéia de que Jesus tomou sobre si a<br />

nossa maldição.28 Paulo faz só uma referência à maldição (G13.13), e Pedro também se refere<br />

uma vez ao madeiro (IPe 2.24). Essa maneira de ver a cruz restringe-se no Novo Testamento<br />

a essas três passagens em Atos e a Gálatas e IPedro. O fato de Cristo ter levado sobre si a<br />

nossa maldição não é uma idéia repisada no ensino do Novo Testamento, mas uma maneira<br />

de Lucas olhar a cruz, maneira essa que ele usa mais do que qualquer outro.<br />

Às vezes os teólogos destacam que Lucas não registra o equivalente a Marcos 10.45<br />

— a constatação de que Jesus veio para dar sua vida em resgate de muitos — e que, em seu<br />

longo texto, ele não desenvolve uma teoria própria da expiação. Por isso, afirma-se que<br />

Lucas está interessado nos sofrimentos de Jesus, não como expiação mas como caminho<br />

para a glória. Jesus foi muito maltratado pelos homens, mas suportou seus sofrimentos<br />

com paciência e entrou na glória. Assim, Conzelmann pensa que, em Lucas, “não se extrai<br />

uma importância soteriológica direta do sofrimento ou da morte de Jesus”.29 Alguns estudiosos<br />

concluem que Lucas era um cristão típico do início da igreja: com profunda gratidão<br />

a Deus por ter enviado Jesus, mas sem uma idéia clara de que a morte dejesus trouxe a salvação.<br />

Essa idéia, dizem, é resultado do trabalho de pensadores como Paulo.<br />

Podemos concordar que Lucas não tinha a perspicácia teológica de Paulo, Mas<br />

:quem a tem? Isso não é motivo para descartar as conclusões que Lucas tira. E verdade que<br />

os estudiosos da expiação sempre passarão mais tempo com Paulo do que com Lucas, mas<br />

isso não quer dizer que devem desprezar Lucas. Afinal de contas, ele diz explicitamente<br />

que o corpo dejesus foi dado por nós, que o cálice na última ceia foi a nova aliança no seu<br />

sangue derramado por nós e que devemos recordar tudo isso na celebração da ceia. Ele diz<br />

que a morte de Cristo comprou os pecadores, que a profecia de Isaías 53 com seu sofrimento<br />

vicário foi cumprida e que Cristo levou sobre si a maldição de Deus.<br />

Por que ele dá tanto destaque aos sofrimentos e à morte dejesus? Provavelmente ele<br />

não lhes atribui outro sentido que não o soteriológico. Ele não diz que Jesus foi um mártir,<br />

por exemplo. Quando ele faz várias declarações sobre o sentido da morte de Cristo e dedica<br />

tanto espaço para mostrar isso, podemos aceitar muito bem que, para ele, assim como para<br />

outros escritores do Novo Testamento, o Calvário foi mais do que a rejeição de um<br />

homem bom e religioso. Foi a maneira escolhida por Deus para proporcionar salvação aos<br />

pecadores.<br />

Cf. Marshall: "Podemos nos perguntar se há aqui um indício da idéia, desenvolvida por Paulo, de que se<br />

pensava que alguém que assim morresse estava sob a maldição de Deus” (The Acts o f the Apostles. Leicester,<br />

1980, p. 120). Neil, no entanto, não tem dúvidas, mas fala sobre Cristo ter sido pendurado em uma árvore:<br />

"Isto o fez maldito segundo a lei” (The Acts o f the Apostles, p. 97).<br />

The theology o f st Luke, p. 201.


O êmngelho de<br />

jCucas e Atos<br />

0 Sspíríto Santo<br />

ucas tem muito a dizer sobre o Espírito Santo. Ele usa a palavra pneuma 36<br />

vezes em seu evangelho e 70 em Atos, e esse número é o maior dentre todos os<br />

livros do Novo Testamento (ICoríntios com 40 é o próximo; no entanto, o<br />

total de 146 de Paulo é maior que o de Lucas). As vezes ele usa a palavra para se referir a<br />

espíritos imundos, que tanto se opuseram a Jesus (p. ex., 4.33; 9.39; At 5.16; 8.7), mas a<br />

maioria das vezes se trata do Espírito Santo.<br />

Vemos nos escritos de Paulo que os primeiros cristãos tinham um conceito bem<br />

específico da atuação do Espírito Santo. Enquanto outras religiões entendiam que um<br />

espírito divino vinha apenas sobre algumas pessoas especialmente importantes, os cristãos<br />

compreenderam que o Espírito de Deus vem sobre todos os crentes. E enquanto os pagãos<br />

pensavam que a presença do espírito divino era conhecida por várias formas de êxtase, os


cristãos percebiam sua presença por seu “fruto” na conduta ética. Lucas não enuncia esses<br />

pontos do mesmo modo que Paulo, mas são igualmente importantes para ele.<br />

Ele começa a falar do tema bem no início, com a mensagem do anjo para Zacarias de<br />

que o filho que ele teria estaria “cheio do Espírito Santo, já do ventre materno” (1.15).<br />

Nenhuma parte da vida de João seria vivida sem a presença do Espírito. Afirma-se que o<br />

pai e a mãe de João ficaram “cheios do Espírito Santo” — Isabel, quando Maria veio<br />

fazer-lhe companhia durante sua gravidez (1.41), e Zacarias, quando estava para pronunciar<br />

seu grande cântico (1.67). Nos dois casos, parece que eles foram cheios pelo Espírito<br />

Santo apenas para uma ocasião especial. Parece mais tratar-se de um estado permanente<br />

quando lemos sobre Simeão que “o Espírito Santo estava sobre ele” (2,25). O Espírito lhe<br />

revelou que ele veria o Cristo do Senhor antes de morrer (v. 26), e no momento certo ele foi<br />

ao templo “movido pelo Espírito” (v. 27);* o Espírito o guiou para estar ali quando Maria e<br />

José levaram Jesus. Claramente Lucas apresenta esse homem como alguém em quem o<br />

Espírito de Deus habitava de maneira especial.<br />

ffesuõ e o ôspírífo ôanto<br />

Há algumas declarações importantes ligando o Espírito Santo e Jesus, em especial<br />

na primeira parte do evangelho. Por exemplo, o anjo Gabriel explicou a Maria como suas<br />

palavras seriam cumpridas: “Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te<br />

envolverá com a sua sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será chamado<br />

Filho de Deus” (1.35). Isso significa que o Espírito Santo estava atuando na concretização<br />

da encarnação.<br />

Antes de Jesus começar seu ministério público, João Batista comparou seu trabalho<br />

com o daquele que o seguiria, dizendo que, enquanto ele, João, batizava com água, o Cristo<br />

"vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (3.16). O significado de batizar com fogo<br />

não é óbvio, e várias interpretações têm sido feitas.2 A referência parece ser à purificação, o<br />

complemento que combina com o batismo com o Espírito. Isso não é mencionado nova­<br />

J . Reiling e J. L. Swellengrebel explicam o sentido da expressão como '“no Espírito’, isto é, ‘guiado pelo<br />

Espírito' (NEB), não por sua própria conta ou iniciativa” (A translators handbook on tbe Gospel o f Lukc. Leiden.<br />

1971, p. 132).<br />

Eu as resumi nos seguintes termos: “A referência a fogo é entendida por alguns numa relação de aposiçác<br />

com Espírito: 'o fogo do Espirito' (Harrington); por outros, com o sentido de testar (Creed), por ainda outros<br />

como julgamento. O contexto favorece essa última interpretação, e W . H . Brownlee chamou a atenção pari<br />

uma passagem nos Manuscritos do M ar M orto que se refere ao fogo escatológico do julgamento, a qual, pensi<br />

ele, apóia essa interpretação. Acontece que as mesmas pessoas é que são batizadas com o Espírito Santo e corr.<br />

fogo (os dois são regidos pelo mesmo en em grego). Parece que o melhor é entender que João está pensandc


mente em Lucas, mas Atos registra que Jesus disse aos discípulos que esperassem emjerusalém<br />

pela “promessa do Pai”, e em seguida declarou: João, na verdade, batizou com água,<br />

mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias” (At 1.4-5).<br />

Claramente ele está se referindo à experiência no dia do Pentecostes. Isso é confirmado<br />

pelo uso que Pedro faz da mesma profecia para defender o batismo de Cornélio e dos que<br />

estavam com ele. O Espírito Santo, diz ele, caiu sobre eles “como também sobre nós, no<br />

princípio”, e depois recordou o que o Senhor dissera: “João, na verdade, batizou com água,<br />

mas vós sereis batizados com o Espírito Santo” (At 11.15-16). Deus lhes concedera "o<br />

mesmo dom que a nós nos outorgou” (v. 17). Ser batizado no Espírito Santo significa<br />

receber o Espírito como no Pentecostes (At 2.33).<br />

Quando Jesus foi batizado por João, o Espírito Santo desceu sobre ele na forma<br />

visível de uma pomba3 (3.22; Lucas diz que Jesus estava orando, ou seja, o Espírito veio<br />

sobre ele não durante o batismo, mas imediatamente depois). Está claro que o batismo,<br />

junto com a descida do Espírito e com a voz do céu, marcou o início do ministério de Jesus,<br />

e o fato de o Espírito estar ligado a esse início tem importância especial. Podemos deduzir<br />

com segurança que o Jesus humano necessitava ser equipado pelo Espírito para o trabalho<br />

que estava para começar. Não era uma obra que podia ficar apenas por conta da força e<br />

sabedoria humanas.<br />

Lucas destaca o lugar do Espírito na narrativa da tentação. Jesus estava “cheio do<br />

Espírito Santo” e “foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto” (4.1). Jesus fora chamado<br />

pelo Pai e recebera o Espírito Santo; claramente esse foi o começo do ministério para o<br />

qual ele viera. Mas que tipo de Messias ele haveria de ser? De certa forma, Satanás o tentou<br />

para ser o tipo errado de Messias, que transformasse pedras em pães para seu próprio sustento,<br />

que fizesse milagres espetaculares mas inócuos, que estabelecesse um império mundial<br />

impressionante. Mas isso não é tudo. O Espírito Santo também estava presente, O<br />

Espírito o guiou e esteve com ele todo o tempo em que ele teve de reagir à pergunta sobre<br />

que tipo de Messias ele seria.<br />

Superada a tentação, Jesus, “no poder do Espírito, regressou para a Galiléia” (4.14).<br />

Lucas relata um pouco sobre Jesus ensinando nas sinagogas e depois começa a narrativa da<br />

visita de Jesus a Nazaré, mencionando o sermão na sinagoga dali. Depois de ler uma passagem<br />

de Isaías que começava com “o Espírito do Senhor está sobre mim”, Jesus iniciou seu<br />

nos aspectos positivos e negativos da mensagem do Messias. Aqueles que o aceitam serão purificados como<br />

pelo fogo (cf. M l 3,lss) e fortalecidos pelo Espírito Santo” (The Gospel according to st. Luke. London, 1974, p,<br />

97-98).<br />

O simbolismo da pomba é enigmático, pois nos escritos judaicos esse pássaro era um símbolo de Israel, e<br />

não do Espírito Santo. Mas não pode haver dúvidas quanto ao seu sentido aqui. E um elemento do simbolismo<br />

cristão, não adotado de fontes judaicas (nem gentias).


discurso com estas palavras surpreendentes: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de<br />

ouvir...” (4.18, 21).<br />

O programa esboçado na passagem de Isaías é importante, assim como a maneira<br />

como Jesus o cumpriu. Aqui, porém, nosso objetivo é observar que não se tratava de algo que<br />

podia ser cumprido sem ajuda divina. O Espírito Santo estava sobrejesus, e é impossível restringir<br />

à duração do sermão em Nazaré o sentido que Lucas dá à expressão. O Espírito do<br />

Senhor esteve sobrejesus durante todo o seu ministério, mesmo que Lucas não se refira sempre<br />

a isso (mas cf. sua observação de que Jesus "exultou no Espírito”, 10.21). Lucas registra o<br />

resumo de Pedro do que Jesus fez: Deus o ungiu "com o Espírito Santo e com poder, [e ele]<br />

andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus<br />

era com ele” (At 10.38). O Espírito estava sobrejesus o tempo todo, e todo o seu ministério<br />

resultou da presença do Espírito. E, no fim do ministério terreno de Jesus, pouco antes da<br />

ascensão, Jesus deu ordens aos apóstolos "por intermédio do Espírito Santo” (At 1.2).<br />

O Pentecostes<br />

Para Lucas, o que aconteceu no dia do Pentecostes foi de importância crucial. Ele<br />

registra as palavras de Jesus de que o Pai celestial concederá "o Espírito Santo àqueles que<br />

lhe pedirem” (11.13). Mas, durante o tempo em que Jesus esteve na terra, essa dádiva aparentemente<br />

não fora concedida (ou não amplamente; houve algumas pessoas, como Zacarias,<br />

Isabel e Simeão, que a haviam recebido). Como vimos, Jesus entendeu o cumprimento<br />

da profecia de João Batista, de que ele batizaria com o Espírito Santo, não no que fez<br />

durante seus dias na carne, mas no derramar do Espírito narrado em Atos 2. Houve fenômenos<br />

físicos incomuns: um barulho como de vento muito forte e línguas como de fogo<br />

(At 2.2-3). O que importa, porém, é que todos foram cheios com o Espírito Santo (v. 4).<br />

Isso transformou toda a situação para o pequeno grupo de crentes. Eles estavam se<br />

escondendo num cenáculo, aparentemente ainda um pouco amedrontados, apesar de a<br />

crucificação já ter ficado algumas semanas para trás. Mas com o Espírito Santo dentro<br />

deles, eles saíram para o lugar mais público possível e pregaram com ousadia. E nunca mais<br />

lemos no Novo Testamento que cristãos tinham medo de falar em nome de Cristo. A<br />

vinda do Espírito os transformara.<br />

Isso se descreve de várias maneiras. O relatório inicial diz que eles “ficaram cheios<br />

do Espírito Santo” (At 2.4; cf. 4.8, 31; 9.17; 13.9, 52), e provavelmente isso é o mesmo que<br />

ser "cheios do Espírito Santo” (o uso do adjetivo em lugar do verbo: At 6.3, 5; 7.55; 11.24).<br />

Outras passagens falam de o Espírito Santo “vir sobre” os discípulos (At 1.8; 19.6) ou de<br />

“cair” sobre eles (At 10.44; 11.15). Do mesmo modo, Deus derramou o Espírito sobre as<br />

pessoas (At 2.17-18; 10.45) ou “concedeu” o Espírito (At 15.8; cf. 8.18). Do ponto de vista


humano pode ser dito que a pessoa "recebia” o Espírito (At 2.38; 8.15, 17; 10.47; 19.2).<br />

Não parece importar muito como se expressa isso. Pedro diz que o Espírito "caiu” sobre<br />

Cornélio e sobre os que estavam com ele "como também sobre nós, no princípio” (At<br />

11.15), apesar de o mesmo verbo não ser usado em Atos 2. Sejam quais forem as palavras, a<br />

grande verdade é que Deus, em Cristo, concedeu o Espírito aos que depositam sua fé nele, e<br />

essa dádiva do Espírito Santo é a capacitação necessária para o serviço cristão. Desse ponto<br />

em diante, Atos está cheio de relatos do que as pessoas fizeram quando o Espírito Santo<br />

estava agindo nelas e por meio delas.<br />

Há muitas referências à orientação que o Espírito Santo deu aos servos de Deus.<br />

Jesus disse aos seus seguidores que não ficassem ansiosos quando fossem levados perante<br />

tribunais hostis, porque o Espírito Santo lhes ensinaria o que dizer (12.11-12). A impressão<br />

que os primeiros cristãos causaram em seus juizes (p. ex., At 4.13) mostra como isso<br />

funcionava. Eles encontravam a voz do Espírito também nas Escrituras: o Espírito falou<br />

por Davi (At 1.16; 4.25) e Isaías (At 28.25). Ele também falava às pessoas da época, a<br />

exemplo de Simeão (2.26), Filipe (At 8.29) e Pedro (At 10.19; 11.12). O Espírito falou à<br />

igreja em Antioquia (At 13.2) e iniciou a primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé.<br />

Há uma consciência clara tanto da presença do Espírito quanto da capacidade de discernir<br />

sua orientação ao formularem a decisão do Concílio de Jerusalém: “Pareceu bem ao<br />

Espírito Santo e a nós...” (At 15.28). Semelhantes a essas são as palavras de Pedro e dos outros<br />

apóstolos: “Nós somos testemunhas destes fatos, e bem assim o Espírito Santo...” (At 5.32).<br />

O Espírito está em evidência no relato da ida de Paulo para Jerusalém. Ao terminar<br />

seu trabalho em Efeso, ele “resolveu, no Espírito”, ir para Jerusalém (At 19.21). O fato de<br />

ele ter ido “compelido pelo Espírito” (At 20.22, N V l) parece significar que ele estava sendo<br />

obrigado pelo Espírito a fazer a viagem, apesar de não saber qual seria o resultado. Contudo,<br />

ele sabia um pouco das dificuldades que teria pela frente, pois disse: “O Espírito Santo,<br />

de cidade em cidade, me assegura que me esperam cadeias e tribulações” (v. 23). Em Tiro<br />

havia cristãos que, “movidos pelo Espírito, recomendavam a Paulo que não fosse a Jerusalém”<br />

(At 21.4); isso é uma constatação que nos deixa perplexos, pois era por compulsão do<br />

Espírito que Paulo estava a caminho de lá. Provavelmente o Espírito lhes revelou que Paulo<br />

iria sofrer em Jerusalém e, angustiados com isso, fizeram pressão para que ele não fosse.<br />

Marshall explica assim o fato: “Ê possível que os discípulos em Tiro não estivessem bem<br />

informados dos aspectos mais detalhados da predestinação, e assim pensaram poder dizer<br />

a Paulo: 'Se é isso que vai lhe acontecer, não vá”'.4 Vemos uma situação parecida em Cesaréia,<br />

onde, quando o profeta Agabo tomou o cinto de Paulo, amarrou-se com ele e disse:<br />

“Isto diz o Espírito Santo: assim os judeus, em Jerusalém, farão ao dono deste cinto e o<br />

I. Howard Marshall, The Acts of the Apostíes, Leicester, 1980, p. 339 (publicado no Brasil por Edições Vida<br />

Nova com o título Atos, introdução e comentário).


entregarão nas mãos dos gentios” (At 21.11), os cristãos do lugar insistiram com Paulo<br />

para que não fosse. T odavia, naturalmente ele achou que devia obedecer à orientação do<br />

Espírito, mesmo que isso significasse sofrimento. Por acaso, encontramos Àgabo em outra<br />

ocasião, e ali, como aqui, ele previu o futuro com exatidão, “pelo Espírito” (At 11.28).<br />

No ministério de Paulo e Silas temos um exemplo muito interessante de como o<br />

Espírito dirigia os crentes. Depois que Paulo e Silas tinham “percorrido a região frígio-gálata",<br />

o Espírito os proibiu de pregar na província da Ásia, e eles foram para a Bitínia,<br />

mas novamente o Espírito não o permitiu. Então Paulo teve uma visão em que um macedônio<br />

lhe pedia ajuda, e todos os cristãos concordaram que era nessa direção que o Espírito<br />

os estava dirigindo (At 16.6-10). Não nos é informado como eles sabiam que o Espírito os<br />

estava proibindo de ir para a Ásia e a Bitínia, mas os missionários tinham certeza disso. A<br />

orientação não sobreveio a todos ao mesmo tempo. Eles tentaram mais de um caminho<br />

antes de descobrir aonde o Espírito queria que eles fossem.<br />

O Espírito, portanto, estava muito atuante, dirigindo e orientando os primeiros<br />

crentes. Ele também "arrebatou” Filipe após o batismo do funcionário etíope (At 8.39). Ele<br />

“enviou” os missionários (At 13.4). Ele deu “conforto” à igreja (At 9.31) e “constituiu<br />

bispos” sobre ela (At 20.28).<br />

A partir de tudo isso se conclui que o Espírito é uma personagem muito importante,<br />

que não deve ser desprezada. Jesus ensinou que uma palavra proferida contra o Filho do<br />

Homem podia ser perdoada, mas que quem blasfemasse contra o Espírito Santo não teria<br />

perdão (12.10). Esse pecado é maior do que a mera pronúncia de palavras; é um modo de<br />

pensar e viver que se recusa a tratar o Espírito como santo, que o descarta e rejeita. Ananias<br />

e Safira mentiram ao Espírito Santo (At 5.3) e “entraram em acordo para tentar o Espírito<br />

do Senhor” (v. 9). Sua punição exemplar não foi por causa da mentira, mas pela atitude dos<br />

dois em relação ao Espírito Santo. E Estêvão se queixou de que seus acusadores sempre<br />

resistiam ao Espírito, do mesmo modo como seus antepassados (At 7.51). Para Lucas, é<br />

importante ter a atitude certa em relação ao Espírito.<br />

Atos registra um período empolgante na vida da igreja. Está claro que Lucas via o<br />

Espírito como vivo e atuante, cuja presença iluminava e inspirava a igreja. Distorcer ou passar<br />

por cima desse ensino significa deixar de lado o único elemento que capacita a igreja de<br />

Deus para o trabalho ao qual ela foi chamada e que lhe permite ser a igreja que deve ser.


^ Capitulo 11 j<br />

O Smngelho de<br />

jCucas e Atos<br />

Os discípulos<br />

atuação de Deus em Cristo requer uma resposta, e Lucas é tão claro quanto<br />

os demais evangelistas ao afirmar a necessidade dessa resposta. Ele tem sua<br />

própria maneira de expor isso. Já vimos sua ênfase no arrependimento. A<br />

contemplação do que Deus fez pelos pecadores deve levá-los a ver o erro em que vivem e<br />

afastar-se dele. Isso tem de ser feito de todo o coração. Ninguém pode passar pelo arrependimento<br />

sobre o qual Lucas escreve e continuar a mesma pessoa. Arrependimento equivale<br />

a uma mudança completa de postura, a aquisição de uma nova atitude em relação à vida,<br />

Lucas fala várias vezes do cristianismo como "o caminho” (At 9.2; 19.9, 23; 22.4; 24.14, 22),<br />

e é provável que isso encerre uma importância especial; às vezes ele também o denomina “o<br />

caminho do Senhor” (At 18.25) e “o caminho de Deus” (At 18.26). Interessante é que<br />

todas as referências em Atos estão, de algum modo, ligadas a Paulo, que não usa a expressão<br />

em suas cartas. Lucas parece gostar do termo. Ele chama a atenção para o cristianismo


como um modo de vida, não simplesmente um meio de satisfazer impulsos religiosos,1E<br />

Lucas não fala de “um” caminho, mas “do” caminho; a expressão indica uma profunda convicção<br />

de que o cristianismo está certo2 e que não existe outro caminho que possa levar as<br />

pessoas a Deus.<br />

No material que Lucas tem em comum com os outros evangelistas, ele às vezes<br />

exprime melhor do que os outros a dedicação integral que o chamado para seguir a Cristo<br />

exige. Por exemplo, os três sinóticos registram Jesus chamando Mateus e nos dizem que<br />

Mateus o atendeu e o seguiu. Mas somente Lucas diz que ele "deixou tudo” (5.28). Mateus<br />

e Marcos relatam que Simão e seu irmão abandonaram suas redes e seguiram Jesus (Mt<br />

4.20; Mc 1,18). Lucas tem um episódio diferente, no clímax do qual Pedro e os outros “deixaram<br />

tudo” (5,11), não só as redes. Mateus partilha com Lucas a história dos discípulos<br />

em potencial, dos quais um foi advertido de que as raposas e as aves têm onde descansar,<br />

mas o Filho do Homem (e com ele seus discípulos) não tinha onde reclinar a cabeça, e ao<br />

outro foi dito que deixasse aos mortos o sepultar seus mortos (M t 8.18-22). Mateus pára<br />

aí. Lucas tem um terceiro: o homem que queria despedir-se dos de casa e recebeu de Jesus a<br />

resposta: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o reino de<br />

Deus” (9.61-62).3Os três sinóticos têm a declaração sobre negar a si mesmo e tomar sua<br />

cruz, mas apenas Lucas diz que isso precisa ser feito “dia a dia” (9.23). Lucas não está dizendo<br />

que ser discípulo é mais difícil do que Mateus e Marcos o fazem, mas em alguns lugares<br />

ele mostra com mais força o que está implícito.<br />

O ensino de Jesus sobre o discipulado está, em sua maior parte, preservado apenas<br />

em Lucas (14.25-33; M t 10.37-38 é paralelo aos v. 26-27). Aqui encontramos as difíceis<br />

palavras sobre a impossibilidade de ser discípulo a não ser que se odeie os parentes, “uma<br />

das declarações mais absolutas das exigências do reino no Novo Testamento”.4 Às vezes<br />

“ódio” e “amor" são usados para deixar claro que “odiar” pode significar “amar menos”. Esse<br />

claramente é o sentido quando lemos quejacó se “aborreceu" de Lia (Gn 29.31, 33, na aplicação<br />

feita em Dt 21.15-17). Esse é o sentido que devemos dar à expressão aqui. Jesus exigiu<br />

que amemos os inimigos (6.27); por isso é impossível pensar que ele queira que<br />

literalmente odiemos nossos familiares próximos. O que ele está dizendo é que ser discípu-<br />

A origem do termo é desconhecida (cf. E. Haenchen, The Acts oj tbe Apostles. Oxford, 1971, p. 320), apesar<br />

de algo parecido ser conhecido do uso judaico mais antigo, incluindo os manuscritos de Qumran (c f Günther<br />

Ebel, D IT N T 2:1657). Aparentemente se trata de um nome que os próprios cristãos se davam, e é uma das designações<br />

mais antigas da igreja.<br />

Cf. W ilh elm M ichaelis: “O s cristãos, porém , crêem que estão certos, e isso é expresso pelo uso de<br />

ó S ó ç ”(T D N T 5:89).<br />

152).<br />

4<br />

Cf. E. Earle Ellis: “O serviço do reino demanda lealdade indivisa" (The Gospel oj Luke. London, 1966, p.


lo significa amá-lo de tal maneira que o maior amor deste mundo parece ódio, quando<br />

ambos são comparados.<br />

Em seguida, Lucas registra duas parábolas que sublinham a importância de fazer as<br />

contas (14.28-33). Um agricultor que decide construir um silo parecerá um tolo se começar<br />

a obra para depois descobrir que não tem dinheiro para terminá-la. Um rei que vai à<br />

guerra precisa considerar se tem um exército forte o suficiente para derrotar o inimigo; se<br />

não tem, procurará fazer as pazes antes que a batalha comece. Os dois relatos têm a mesma<br />

lição básica (temos de avaliar o custo), mas eles não são idênticos. O agricultor pode construir<br />

ou deixar de construir, como quiser, mas o rei está em perigo. Seu país está sendo<br />

invadido; o outro rei está “vindo contra ele” e ele precisa fazer alguma coisa. No primeiro<br />

caso, a pergunta colocada ao candidato a discípulo é: "Você consegue ser discípulo?” No<br />

segundo, é: “Você pode deixar de ser?’” As duas coisas eram importantes para Lucas.<br />

As pessoas vivem “diante de Deus”. Lucas nos diz que Zacarias e Isabel eram justos<br />

“diante de Deus” (1.6). A mesma expressão entra na atividade litúrgica do sacerdote (1.8), e<br />

outra parecida quando se diz que Deus estava satisfeito com Maria (1.30). Mesmo algo<br />

pequeno como um pardal não é esquecido "diante de Deus” (12,6), e algumas coisas que parecem<br />

corretas às pessoas são detestáveis "diante de Deus” (16.15). Pedro ejoão perguntaram<br />

se determinada ação era correta diante de Deus (At 4.19), e Estêvão garantiu que Davi<br />

encontrou graça diante de Deus (At 7.46). As esmolas dadas por Cornélio eram lembradas<br />

diante de Deus (At 10.31), e Pedro o encontrou com seus amigos “na presença de Deus” (v.<br />

33). Claramente Lucas entendia que várias atividades se davam na própria presença de Deus.<br />

Isso significa pelo menos duas coisas: 1) somos advertidos de que tudo o que fazemos ocorre<br />

na presença de Deus, para que sejamos pessoas responsáveis, e 2) o discípulo precisa entender<br />

que seguir a Cristo envolve toda a vida, não simplesmente partes dela. Os cristãos, no transcurso<br />

da história, têm sido tentados a compartimentalizar a vida, chamando uma parte dela<br />

de “espiritual” e achando que outros aspectos têm pouco ou nada a ver com sua profissão de<br />

fé. Lucas nos adverte que toda a vida se passa à vista de Deus.<br />

cl)m padrão de oída<br />

Conseguimos ver um pouco do padrão cristão de vida analisando algumas coisas<br />

que Lucas nos relata sobre Paulo. Ele fala da sua conversão espetacular, que dificilmente<br />

pode nos servir de modelo, pois não há registro de nenhuma outra conversão semelhante.<br />

Mas a resposta de Paulo a Cristo pode nos mostrar como deve ser a nossa. Ele era obediente<br />

(At 2.19), o que significou ser batizado e proclamar a Cristo (At 9.18, 20). Significou ser


dedicado a Deus, como na verdade ele sempre fora, mesmo quando era um fariseu perseguidor<br />

(At 22.3-4); ele sempre servira a Deus com boa consciência (At 23.1; 24.16). O<br />

Deus a quem ele servia como cristão era “o Deus de nossos pais” (At 24.14), o mesmo Deus<br />

a quem ele servira quando fariseu. Não fora Deus quem mudara; fora Paulo. Ele dizia que<br />

sua esperança estava em Deus (At 24.15) e que ele esperava a ajuda de Deus (At 26.22).<br />

Paulo creu em Deus (At 27.25), e a fé, obviamente, importava muito a Lucas (ele usa o<br />

substantivo fé 26 vezes em Lucas-Atos e 46 vezes o verbo crer).<br />

E esse tipo de resposta que Lucas espera dos que querem se chamar seguidores de<br />

Cristo. Ele fala de converter-se ao Senhor (At 3.19; 9.35; 11.21; 15.19; 26.18, 20; 28.27). As<br />

pessoas devem ser “servas” de Deus (At 16.17), buscá-lo (At 17.27) e temê-lo (At 10.2, 22;<br />

13.16; cf. 16.14; 18.7). Lucas fala muitas vezes em louvar a Deus (p. ex., 1.64; 2.20; 5.25;<br />

13.13; At 2.47; 3.8-9) e em glorificá-lo (7.16; 17.15; At 4.21; 21.20); não dar glória a Deus é<br />

algo sério (At 12.23).<br />

A fé é especialmente importante. Durante a vida terrena de Jesus a fé muitas vezes<br />

estava ligada a milagres de cura, e freqüentemente encontramos o refrão: “A tua fé te salvou”<br />

(7.50; 8.48; 17.19; 18.42). Nessas passagens há um enfoque óbvio na cura, mas é difícil<br />

pensar que a fé que Jesus aprova nesses casos não significa mais do que fé na possibilidade<br />

de um milagre. Parece muito mais provável que também esteja em vista a atitude em relação<br />

a Jesus, e isso ultrapassa o milagre. No barco, em meio à tempestade, Jesus perguntou<br />

aos discípulos: “Onde está a vossa fé?” (8.15); ele também falou dos que têm fé pequena<br />

(12.28). Os discípulos pediram que ele lhes aumentasse a fé, e isso o levou a falar do que<br />

pode ser feito quando há fé, mesmo que do tamanho de um grão de mostarda (17.5-6).<br />

Em Atos, a fé continua ligada à cura (At 14.9); a fé “no nome” significa fé em tudo o<br />

que Jesus é (At 3.16).6 Todavia, a descrição de Estêvão como um homem "cheio de fé e do<br />

Espírito Santo” (At 6.5) não tem nada a ver com cura; significa que Estêvão tinha um grau<br />

especial de fé. Há uma afirmação semelhante a respeito de Barnabé (At 11.24). Nessas<br />

passagens não se diz nada sobre o objeto da fé, mas outras passagens falam especificamente<br />

da fé em Jesus (At 20.21; 24.24; 26.18). Há algumas referências "à fé” (At 6.7; 13.8; 14,22;<br />

16.5), provavelmente indicando que a fé era a essência do caminho cristão. Os gentios passaram<br />

a ser incluídos na igreja porque Deus abrira uma "porta da fé” (At 14.27).<br />

Quando Lucas usa o verbo crer, ele o faz para referir-se a alguém em particular,<br />

como Maria (1.45), ou em termos gerais, como na interpretação da parábola do semeador:<br />

"O diabo arrebata-lhes do coração a palavra, para não suceder que, crendo, sejam salvos”<br />

A construção no grego está longe de ser direta, mas o sentido parece ser que o milagre ocorreu em resposta<br />

à fé do homem e que essa fé veio “por meio de Jesus”. Cf. E, Haenchen: “O nome é ineficaz a não ser que haja fé,<br />

mas, por outro lado, é o nome pregado por Pedro que permite que a fé surja. A importância da fé é destacada,<br />

naturalmente, porque o conteúdo é um ‘apelo pregado com intenção missionária (Bauernfeind...)” (The Acts<br />

o f the Apostles. Oxford, 1971, p. 207),


(8.12). Ele fala de crer nas palavras de alguém (1.20), mas é claro que o verbo é usado com<br />

mais freqüência para crer em alguém.<br />

Lucas usa várias construções com esse verbo. As vezes é um dativo simples (com o<br />

sentido de “dar crédito a”), como quando se refere aos que não creram em João Batista<br />

(20.5) ou aos que creram em Filipe (At 8.12) ou nos profetas (At 26.27). Às vezes ele o usa<br />

em relação a crer em Deus; nessa forma, o sentido pode ser de fé que salva (At 16.34; 5.14;<br />

18.8) ou de aceitação da orientação que Deus dá (At 27.25). A fé salva quando é posta no<br />

Senhor Jesus,<br />

Ás vezes Lucas tem o verbo seguido da preposição epi, “sobre", mostrando que a fé<br />

tem uma base sólida, ela repousa “sobre” algo ou alguém. Assim, Jesus falou de crer em<br />

"tudo” o que os profetas disseram (24.25). A maioria das vezes, porém, Lucas usa essa<br />

construção quando alguém crê “em” Jesus (At 9.42; 11.17; 16.31; 22.19). Crer eis, “na direção<br />

de”, tem sentido semelhante; a fé nos leva para fora de nós mesmos e para dentro de<br />

Cristo. "Todos os profetas dão testemunho”, disse Pedro, "de que, por meio do seu nome,<br />

todo aquele que nele crê recebe remissão de pecados” (At 10.43; cf. At 14.23; 19.4).7<br />

Lucas também usa o verbo como intransitivo: ele diz simplesmente que alguém crê.<br />

Ou, também, o particípio pode ser usado para referência aos "crentes”. Da perspectiva de<br />

Lucas, não é necessário dizer em quem eles crêem. No contexto cristão, a fé em Cristo é tão<br />

básica que é suficiente usar o verbo, sem qualificação. Encontramos essa forma na interpretação<br />

que Jesus faz da parábola do semeador, O Diabo tira a palavra do coração das pessoas<br />

para que não creiam e sejam salvas (8,12), enquanto há outros que crêem apenas por algum<br />

tempo (8.13). Nenhuma dessas referências à fé é encontrada nas passagens paralelas, mas<br />

isso é próprio de Lucas. Igualmente, Jesus encoraja a Jairo, dizendo: “Crê somente, e ela<br />

será salva” (8.50). Nessa afirmação, a fé parece estar ligada à cura. Lucas faz mais uso dessa<br />

construção em Atos, onde é a expressão característica em relação a se tomar cristão ou ser<br />

cristão. No fim do primeiro sermão de Pedro, Lucas fala de “todos os que creram” (At<br />

2.44), e um pouco adiante diz que "muitos creram” (At 4.4, N V l) . Expressões semelhantes<br />

se repetem (p. ex., At 4.32; 11.21; 13.12, 39, 48; 18.27; 21.20). Está claro que, para Lucas, a<br />

fé era fundamental. E o caminho necessário para ingressar na salvação que Cristo trouxe<br />

por meio de sua morte.<br />

É possível que ele também uma vez faça o verbo ser seguido de O T L, "o que”, indicando que a fé Cem conteúdo;<br />

ela não é um otimismo vago, mas uma convicção firme de que Deus fez ou fará certas coisas. Isabel pronunciou<br />

uma bênção sobre Maria, que “creu OTL serão cumpridas...” (1.45). Aqui, porém, OTí provavelmente<br />

significa “porque". A construção é usada para os seguidores de Jesus em Jerusalém que não creram que Saulo<br />

de Tarso era discípulo (A t 9.26).


0 universalismo<br />

Lucas provavelmente era gentio. Essa pode ser a razão de ele demonstrar que a salvação<br />

em Cristo está ã disposição de pessoas de todas as raças. Na primeira igreja havia<br />

quem afirmasse que o novo caminho estava, sim, aberto a todos, mas apenas sob a condição<br />

de que antes se tornassem judeus: tinham de ser circuncidados e obedecer à lei de Moisés<br />

(At 15.1, 5). Paulo passou a vida combatendo essas posições, e Lucas estava totalmente ao<br />

lado de Paulo nessa questão.<br />

Não que Lucas denegrisse os judeus. Ele inclui no texto o cântico de Simeão, em<br />

que o fiel idoso falou da salvação de Deus como “luz para revelação aos gentios”, mas acrescentando<br />

em seguida: "e para glória do teu povo de Israel” (2.32). É interessante que<br />

Mateus, o evangelho judeu”, tem a visita dos magos na abertura e termina com a missão de<br />

pregar o evangelho a todo o mundo. Lucas, o evangelho gentio, começa e termina com o<br />

templo em Jerusalém! E é Lucas quem nos relata a apresentação do menino Jesus no templo<br />

(2.22ss.) e da sua visita ao local aos doze anos de idade (2.41-52). Como vimos, Lucas<br />

tem muito mais referências ajerusalém do que qualquer outro evangelista. E em Jerusalém<br />

que Deus determinou levar à conclusão a obra de salvação que faria em Jesus. Não pode<br />

haver a menor dúvida quanto à ênfase de Lucas no papel de Jerusalém e, na verdade, de<br />

todos os aspectos judaicos no cenário do cristianismo.<br />

Com tudo isso, porém, Lucas tem uma visão ampla. Ele vê pessoas de todas as raças<br />

incluídas no âmbito da salvação. A mensagem dos anjos aos pastores é de “paz na terra”<br />

(2.14), não simplesmente em Israel. E de importância a constatação de que tanto ele quanto<br />

Mateus citam Isaías 40 em relação com o ministério de João Batista. Mas onde Mateus<br />

tem três linhas da profecia, o suficiente para falar da voz que, no deserto, conclama as pessoas<br />

a preparar o caminho do Senhor, Lucas acrescenta mais cinco, até chegar às palavras:<br />

“E toda carne verá a salvação de Deus” (3.4-6), Lucas compartilha o interesse de Mateus na<br />

voz no deserto e na preparação do caminho do Senhor, mas também deixa claro que a salvação<br />

que o Senhor traz é para o mundo inteiro. Ele fala da perplexidade de Jesus com a fé<br />

do centurião, maior do que qualquer outra que encontrara em Israel (7.9), e registra as<br />

palavras sobre pessoas vindo do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul para tomar<br />

lugar no reino de Deus (13.29). Mateus tem as duas passagens, mas fala apenas dos que<br />

vêm do Oriente e do Ocidente; o interesse de Lucas pelo mundo inteiro talvez possa ser<br />

visto no acréscimo dos outros dois pontos cardeais, Mateus e Lucas têm genealogias do<br />

Senhor, mas enquanto Mateus começa com Abraão, Lucas começa diretamente com<br />

Adão (3.38), pai de todos e não apenas da nação judaica.<br />

Também vemos os samaritanos. Mateus os menciona uma vez: quando Jesus<br />

enviou os Doze numa missão, disse-lhes que não entrassem nas cidades dos samaritanos


(Mt 10.5), Marcos não os menciona nenhuma vez. Lucas, porém, está interessado neles<br />

(como também João). Ele tem a parábola do bom samaritano (10.30-37) e também nos<br />

fala do leproso samaritano que, entre os dez que foram curados, foi o único que voltou para<br />

agradecer a Jesus (17.15-16). Os samaritanos, porém, nem sempre eram pessoas agradáveis.<br />

Uma vez Jesus enviou discípulos para um povoado samaritano para preparar-lhe um<br />

lugar de pernoite, mas os moradores os rejeitaram quando descobriram que estavam indo<br />

para Jerusalém (9.52-53). Apesar da hostilidade dos aldeões, contudo (e de Tiago e João,<br />

que queriam fazer descer fogo do céu sobre eles, v. 54), é digno de nota que Jesus queria<br />

ficar entre eles. Muitos judeus não teriam desejado fazer isso.<br />

Jesus, depois de ressuscitar, disse aos seus seguidores que fossem suas testemunhas<br />

em Jerusalém e em toda a Judéia. Até aí, tudo bem. Mas — e isso pode ter causado uma<br />

pequena surpresa para seus seguidores judeus — ele acrescenta Samaria e depois os “confins<br />

da terra” (At 1.8). O interesse em Samaria continua, pois quando uma perseguição<br />

dispersou o pequeno grupo dos cristãos, Filipe foi para Samaria, onde teve um sucesso<br />

notável. Algum tempo depois, Pedro e João desceram e impuseram as mãos aos novos<br />

crentes ali (At 8.1-25). Essa foi a primeira expansão da igreja para povos fora do judaísmo,<br />

e dali em diante parece que a igreja em Samaria podia ser contada ao lado da Judéia e da<br />

Galiléia (9.31). É interessante que, quando Paulo e Barnabé estavam a caminho do Concílio<br />

de Jerusalém, passaram pela Fenícia e por Samaria e proporcionaram alegria aos irmãos<br />

relatando-lhes a conversão dos gentios (At 15.3).<br />

Podemos perceber como essa tendência de inclusão era revolucionária se lembrarmos<br />

o sermão de Jesus em Nazaré. Quando falou da bênção de Deus sobre a viúva de<br />

Sarepta e do sírio Naamã (4.26-27), os moradores ficaram tão enfurecidos que se levantaram<br />

e arrastaram Jesus para um penhasco de onde pretendiam jogá-lo. A atitude dos<br />

moradores em relação a quem não era israelita mostrava-se obviamente distinta da dele.<br />

Jesus se refere aos gentios em seu discurso escatológico. Lucas inclui as palavras<br />

sobre o povo de Jerusalém, que seria escravizado entre todas as nações, e que, “até que os<br />

tempos dos gentios se completem, Jerusalém será pisada por eles” (21.24). As palavras, é<br />

claro, não falam da salvação dos gentios, mas são outra prova do interesse de Lucas por eles<br />

(não são mencionados nas passagens paralelas).<br />

Atos é quase uma prova em si desse interesse. O livro começa com a igreja em Jerusalém<br />

e, apesar da ordem expressa dejesus de que seus seguidores deveriam levar o evangelho<br />

a outros lugares, os crentes se contentaram em ficar onde estavam, até que a<br />

perseguição começou e os dispersou (At 8.1). Isso levou à evangelização dos samaritanos.<br />

Depois veio a visão de Pedro, sua visita a Cornélio e o batismo dos gentios na casa dele,<br />

depois que o Espírito Santo veio sobre eles.<br />

Lucas passa às viagens missionárias de Paulo com Barnabé e Silas, que trouxeram<br />

muitos gentios para dentro da igreja. Mas não devemos esquecer que, quando Paulo e Bar-


nabé pregaram em Antioquia da Pisídia, eles explicaram aos judeus: “Cumpria que a vós<br />

outros, em primeiro lugar, fosse pregada a palavra de Deus” (At 13.46), Só quando os<br />

judeus rejeitaram a mensagem os discípulos se voltaram para os gentios. Lucas reconhece o<br />

lugar dos judeus (como Paulo em Romanos 1.16: "Primeiro do judeu e também do grego”).<br />

No entanto, o resultado natural de levar o evangelho aos gentios foi que a igreja se tornou<br />

cada vez mais gentia, e Lucas descreve o progresso do evangelho em muitas terras até levar<br />

sua narrativa à conclusão com Paulo pregando em Roma. Lucas nem cogita que o cristianismo<br />

pudesse ser uma pequena seita judaica; era uma religião em que pessoas de todas as<br />

nações teriam seu lugar.<br />

O interesse de Lucas no escopo universal do evangelho não se restringe à sua extensão<br />

nacional e geográfica. Um ponto importante para ele é que pessoas de todas as nações eram<br />

abrangidas pela obra salvadora de Cristo, mas também era importante que o evangelho fosse<br />

levado aos grupos de pessoas que, de algum modo, estivessem privados dele. Pot isso ele<br />

demonstra interesse em mulheres e crianças e nos marginalizados da sociedade. O mundo<br />

antigo em geral aceitava divisões na sociedade sem questioná-las e privilegiava algumas classes<br />

em detrimento de outras. Para Lucas estava claro que Cristo tinha rompido essas barreiras.<br />

Vejamos algumas das mudanças de longo alcance que Jesus fez nos padrões culturais.<br />

mulheres<br />

Aquele mundo era um mundo de homens, e, apesar das diferenças entre uma época<br />

e outra e entre um lugar e outro, em termos gerais se acredita que as mulheres eram vistas<br />

como inferiores aos homens. Daniel-Rops diz sobre as mulheres entre os judeus:<br />

A mulher devia total fidelidade ao marido, mas não podia exigir isso dele. O marido<br />

não tinha o direito de vendê-la, mas não havia dificuldade em repudiá-la; os casos em que a<br />

mulher podia pedir divórcio eram, por outro lado, extraordinariamente raros. Sua posição<br />

na sociedade era inferior sob todos os aspectos, [...] As mulheres não comiam com os<br />

homens, mas ficavam de pé enquanto eles comiam, servindo-os à mesa. Nas ruas e nos<br />

átrios do Templo, elas ficavam a certa distância dos homens. Sua vida se passava em casa..."<br />

A Jewish encyclopedia mostra que não havia muita diferença entre o lugar das mulheres<br />

judias e o das demais mulheres na Antigüidade: "A mulher era considerada menos<br />

importante que o homem”.9Mulheres judias não podiam servir de testemunhas num tri­<br />

Daniel-Rops, Henri, A vida diária nos tempos de Jesus. São Paulo, Edições Vida Nova, p, 88.<br />

The Jewish encyclopedia 12. New York, s/d, p. 557.


unal,10 e às vezes se viam em companhia estranha, quando, por exemplo, eram excluídas<br />

dos que podiam impor as mãos a um animal que seria oferecido em sacrifício e colocadas<br />

junto com surdos, mudos, débeis mentais, menores de idade, cegos, gentios e escravos<br />

(Mishná, Menahoth 9.8).<br />

Os rabinos não recebiam mulheres como discípulas. Mais do que não ensinar<br />

mulheres, eles consideravam um pecado fazê-lo. O rabino Eliezer disse: “Se um homem dá<br />

à sua filha conhecimento da lei, isso é como lhe ensinasse luxúria” (Mishná, Sotab 3.4). Há<br />

uma oração muito antiga que um homem podia fazer: “Bendito é o Senhor, [...] porque não<br />

me fez mulher”, Essa oração é uma evidência religiosa do pensamento predominante. É<br />

interessante que a oração correspondente para a mulher é: “Bendito é o Senhor, pois me fez<br />

segundo a sua vontade”. Podemos ficar com a impressão de que a mulher se saiu melhor (é<br />

melhor ser feito segundo a vontade de Deus do que apenas não ser do outro sexo). Mas essa<br />

é uma perspectiva moderna e cristã, que não seria aceita pelos judeus do tempo do Novo<br />

Testamento.<br />

A sorte das mulheres fora da Palestina era mais ou menos a mesma. M. Cary e T . J.<br />

Haarhoff dizem que, no mundo greco-romano, as mulheres<br />

nunca ficavam sem tutela. Enquanto uma mulher não se casasse, estava sob a autoridade<br />

do pai ou de algum outro parente homem. A mulher que se casava ficava sob o poder<br />

(manus, "mão” em latim) do marido; uma viúva podia “pertencer” ao seu filho. O acerto era<br />

feito, sem que se lhe perguntasse nada, entre seu pai ou responsável e o noivo (ou o pai deste)<br />

e, em troca de uma soma paga à família da noiva como indenização pela perda dos serviços<br />

dela, ela era transferida de uma casa para outra. Ela não tinha posses além do seu<br />

enxoval estritamente pessoal. [...] Se seu marido não estivesse satisfeito com ela, podia<br />

devolvê-la à sua família, ou transferi-la a outro marido.11<br />

Havia mais liberdade para as mulheres em Roma, especialmente para as de classe<br />

alta, do que em outros lugares, e a tendência era que, com o tempo, a sorte delas melhorasse.<br />

Mas não há como negar que, de modo geral, elas estavam em posição subordinada e<br />

eram muito limitadas de todas as formas possíveis.<br />

Em cercas circunstâncias restritas, as mulheres tinham permissão para dar testemunho, mas mesmo assim<br />

podia ser dito: “Mesmo que as mulheres estejam em número de cem, seu testemunho legalmente é igual ao<br />

de uma pessoa” (Talmude, Yebamoth 115a).<br />

U Life and thougbt in tbe Greek and Roman world. London, 1961, p. 142. Eles também mostram que nem na<br />

Grécia nem em Rom a uma mulher podia realizar negócios sem um fiador masculino (p. 145), apesar de, em<br />

alguns casos, ele não passar de um testa de ferro. Havia restrições para os deslocamentos das mulheres; por<br />

exemplo, em Atenas e provavelmente também em outros lugares da Grécia, elas não podiam ir ao teatro<br />

(ibid.). Naturalmente havia diferenças. Em famílias bem de vida as mulheres muitas vezes tinham uma sorte<br />

melhor do que nas pobres, e isso podia mudar com o tempo; em algumas épocas as restrições eram menores do<br />

que em outras. Mas fica claro que, em termos gerais, as mulheres no mundo antigo conviviam com muitas limitações<br />

e enfrentavam diversas dificuldades.


A atitude cristã foi revolucionária. Pense, por exemplo, no fato de que Jesus ensinou<br />

as mulheres desde o começo. Há o exemplo bem conhecido de Maria e Marta. Quando<br />

Marta se queixou de que sua irmã Maria "quedava-se assentada aos pés do Senhor e<br />

ouvia-lhe os ensinamentos”, Jesus elogiou Maria. Ele disse a Marta que a única coisa realmente<br />

necessária, e que Maria havia escolhido, é “a boa parte, e esta não lhe será tirada”<br />

(10.38-42). Claramente Jesus aceitou como normal que as mulheres recebessem instrução<br />

dele, uma atitude muito distante da dos rabinos.<br />

Havia mulheres no grupo que o acompanhava, das quais Lucas menciona Maria<br />

Madalena, Joana e Suzana (8.1-3). Fitzmyer encontra aqui “uma lembrança de como Jesus<br />

divergia radicalmente da postura comum em relação ao papel das mulheres no judaísmo da<br />

época. O fato de ele curar mulheres, conversar com elas, aceitá-las entre seus seguidores<br />

(como aqui) distancia-o claramente de idéias como a que se reflete em João 4.27 ou nos<br />

escritos antigos dos rabinos”,12 O faro de Jesus receber sustento de m ulheres que podiam<br />

ajudar não era surpreendente (os rabinos aceitavam com prazer a ajuda de mulheres devotas).<br />

O que surpreendia era o fato de ele as incluir entre os que viajavam ao seu lado. De<br />

passagem observamos que, enquanto a maioria dos seguidores de Jesus era gente mais<br />

pobre, o fato de que havia mulheres que ajudavam o grupo de apóstolos "com os seus bens”<br />

indica que havia algumas mulheres prósperas (o que também transparece da informação<br />

de que Joana era esposa de um alto funcionário de Herodes).<br />

O evangelho de Lucas começa com uma narrativa bem longa da infância de João<br />

Batista e de Jesus. Como poderíamos esperar, as mulheres são as protagonistas de boa parte<br />

dessa narrativa. Aí encontramos Isabel e Maria e observamos sua consagração. Lucas<br />

inclui o cântico de Maria (1.46-55) no seu evangelho e, em termos gerais, pinta um quadro<br />

de duas personagens atraentes. Quanto Jesus foi apresentado no templo, Ana, uma profetisa,<br />

estava ali para saudar a criança e falar dela "a todos os que esperavam a redenção de<br />

Jerusalém" (2.38).<br />

Lucas também tem várias histórias que envolvem mulheres, como a da viúva de<br />

Naim, cujo único filhojesus ressuscitou (7.11-17). Ele menciona expressamente a compaixão<br />

de Jesus diante da mulher e suas palavras afetuosas: “Não chore”. Ele nos fala da<br />

mulher corcunda, incapaz de se endireitar, e que recebeu uma bênção inesperada quando<br />

foi à sinagoga num sábado e Jesus a curou (13.10-13). O dirigente da sinagoga ficou indignado<br />

porque a cura ocorrera no sábado; para ele, isso era muito mais importante do que o<br />

The Gospel according to Luke (I-IX), p. 696. Fitzmyer cita a M ishná Aboth 1.5 como exemplo do ensino rabínico<br />

que ele tem em mente. Ali se afirma: “Jose b. Johanan de Jerusalém disse: Q ue minha casa esteja com as<br />

portas abertas, e que os carentes sejam membros da minha família; e não conversem muito com as mulheres.<br />

Disseram isso da própria esposa de certo homem; quanto mais da esposa do seu companheiro! Por isso os sábios<br />

dizem: Aquele que conversa muito com mulheres traz o mal sobre si mesmo, negligencia o estudo da lei e-<br />

no fim, herdará o geena”.


alívio da angústia da mulher. A atitude de Jesus estabelece um contraste gritante com a dele<br />

e a dos outros fariseus.<br />

A história da mulher corcunda está só em Lucas. Provavelmente talvez também seja<br />

exclusivo dele a história da mulher que chorou sobre os pés de Jesus quando ele estava reclinado<br />

à mesa de jantar na casa de um fariseu, enxugando-os com o seu cabelo e ungindo-os<br />

(7.36-50).13É impossível imaginar uma mulher fazer isso com um rabino. O espírito geral<br />

se expressa muito bem na desaprovação do anfitrião, que conclui que Jesus não podia ser<br />

um profeta, pois se o fosse teria conhecido “quem e qual é a mulher que lhe tocou” (v. 39).<br />

Ele nem precisou acrescentar que um profeta não teria nada a ver com uma mulher como<br />

essa. Jesus, porém, não olhava para as mulheres, nem mesmo para as pecadoras, como o<br />

fariseu; ele preferiu perdoar-lhe e comentar seu amor e sua fé (v. 47-50).<br />

Lucas compartilha com Marcos a história da moedinha da viúva, mas devemos<br />

observar que ela faz parte do seu interesse pelas personagens do sexo feminino (21.1-4) —<br />

interesse também mostrado na história da mulher com hemorragia e da filha de Jairo. Os<br />

outros evangelistas têm trechos paralelos a boa parte do discurso de 17,22-37, mas não à<br />

advertência de Lucas: "Lembrai-vos da mulher de Ló” (17.32). Somente Lucas nos fala da<br />

mulher que, enquanto Jesus ensinava, exclamou: “Bem-aventurada aquela que te concebeu,<br />

e os seios que te amamentaram!", levando Jesus a pronunciar uma bênção, isto sim, aos que<br />

ouvem e obedecem à palavra de Deus (11.27-28). Apenas Lucas nos conta que Jesus elogiou<br />

a viúva de Sarepta (4,26), e também somente Lucas nos informa da grande multidão<br />

“e também mulheres” que seguiram ajesus em seu caminho para ser executado (23.27-31).<br />

Ele conta como elas ficaram penalizadas e lamentaram sobre ele, e como Jesus lhes disse<br />

que não chorassem por ele. Essas mulheres provavelmente não eram suas seguidoras<br />

(“filhas de Jerusalém”), mas ele teve compaixão delas e tentou voltar-lhes os pensamentos<br />

para coisas mais proveitosas do que ficar de luto por ele. Se não houvesse arrependimento,<br />

coisas horríveis sobreviriam à cidade.<br />

Mulheres são mencionadas com freqüência em parábolas, como a mulher que pôs<br />

um pouco de fermento em três medidas de farinha (13.21). Lucas relata essa parábola a<br />

exemplo de Mateus. Mas ele também tem histórias exclusivas: a do homem que se casara e<br />

por isso não podia ir ao banquete (14.20), a da mulher que perdera uma moeda (15.8-10) e<br />

a da viúva que fora insistente com o juiz injusto (18.1-5).<br />

Os apóstolos fugiram quando Jesus foi preso, mas algumas mulheres ainda estavam<br />

lá quando ele foi crucificado (23.49). Mulheres seguiram José de Arimatéia e ajudaram no<br />

sepultamento (23.55-56). As passagens exclusivas de Lucas na ressurreição, como as dos<br />

Muitos consideram este o mesmo episódio relatado em Mateus 26,6-13; Marcos 14.3-9 e João 12.1-8.<br />

Explanei a questão em meu livro The Gospel according to John. Grand Rapids, 1971, p. 571-574, e cheguei à conclusão<br />

de que os três descrevem o mesmo episódio, mas o de Lucas é diferente.


outros evangelistas, falam muito das atividades das mulheres (24.1-11), Lucas menciona<br />

Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago, e diz que havia outras. Depois de Jesus<br />

subir aos céus, Lucas relaciona os apóstolos que se reuniram em Jerusalém e nos diz que<br />

eles estavam reunidos "com as mulheres" (a mãe de Jesus é mencionada especificamente) e<br />

os irmãos de Jesus (At 1.14).<br />

Evidentemente, as mulheres tinham um papel expressivo na vida da primeira igreja.<br />

No dia do Pentecostes, Pedro citou a profecia de Joel, que, segundo ele, estava sendo cumprida<br />

com a dádiva do Espírito, e inclui especificamente a referência às filhas, além dos<br />

filhos, que iriam profetizar, e às servas de Deus, além dos servos, sobre quem o Espírito<br />

viria e que iriam profetizar (At 2.17-18). Com o crescimento da igreja, havia “uma multidão<br />

de crentes, tanto homens quanto mulheres” (At 5.14), e mulheres são mencionadas<br />

especificamente entre os que foram batizados em Samaria (At 8.12). Três vezes se relata<br />

que o perseguidor Saulo prendeu mulheres, além de homens (At 8.3; 9.2; 22.4). Temos um<br />

vislumbre da vida da igreja na queixa dos “helenistas” contra os “hebreus” de que suas viúvas<br />

estavam sendo preteridas na ajuda diária (At 6.1). Isso mostra que havia pobres na igreja,<br />

ajudados por aqueles que tinham condições melhores de vida, e que se prestava atenção<br />

especial às viúvas (que, na Antigüidade, eram proverbiais por sua vulnerabilidade). Do<br />

lado dos ricos, Safira foi tão culpada quanto seu marido ao reter uma parte do dinheiro da<br />

venda de um terreno que tinham vendido para beneficiar a igreja (At 5.1-2).<br />

Entre os crentes havia Tabita (ou Dorcas), que era “notável pelas boas obras e<br />

esmolas que fazia” (At 9.36) e que Pedro trouxe de volta à vida. Depois havia Maria, a mãe<br />

de João Marcos, na casa de quem os crentes se reuniram para orar por Pedro quando ele foi<br />

preso (At 12.12). Os interesses de Lucas transparecem no episódio divertido da moça que<br />

cuidava da porta, uma escrava chamada Rode, que deixou o apóstolo parado no portão<br />

enquanto correu para dizer ao grupo reunido que Pedro estava ali, tendo discutido com<br />

aqueles que diziam ter ela visto um fantasma (At 12.13-17). Lucas também nos conta de<br />

outra escrava, a vidente em Filipos de quem Paulo expulsou um demônio (At 16.16-18).14<br />

A medida que a igreja se espalhava, foi encontrando oposição de algumas mulheres<br />

devotas (At 13.50),15mas o mais comum era que as mulheres estivessem na vanguarda do<br />

crescimento. Em Tessalônica, “numerosa multidão de gregos piedosos” creu, e Lucas<br />

Cf. F. F. Bruce: “Ela é chamada pitonisa’ por Lucas, isto é, uma pessoa inspirada por Apoio, o deus vinculado<br />

especialmente ao pronunciamento de oráculos, adorado como o deus ‘de Pitos’ no santuário de Delfos<br />

(também chamado Pitos), na Grécia central. Suas declarações involuntárias eram consideradas a voz do deus,<br />

razão pela qual ela era muito solicitada por pessoas que queriam conhecer o futuro" (Commentary on the book of<br />

the Acts. London, 1954, p. 332). Em nota de rodapé ele cita Plutarco, que diz que pessoas assim eram como bonecos<br />

de ventríloquos, “porque suas declarações estavam realmente, e não apenas aparentemente, fora do controle<br />

consciente deles”.<br />

Bruce comenta: “As esposas de muitos desses cidadãos de alta posição — como mulheres de boas condições<br />

financeiras em muitas outras cidades do mundo romano — tinham uma ligação informal com a sinagoga


acrescenta: “E muitas distintas mulheres” (At 17.4). Em Beréia houve mais sucesso: um<br />

grande número de "mulheres gregas de alta posição e não poucos homens” creram (At<br />

17.12).'6 O papel das mulheres talvez tenha sido mais importante ainda em Filipos, pois<br />

quando Paulo e seus companheiros foram até o lugar de oração à beira do rio no sábado (é<br />

evidente que não havia sinagoga nessa colônia romana), ele falou "às mulheres que para ali<br />

tinham concorrido" (At 16.13). A mulher Lídia, cujo coração o Senhor abriu e que foi batizada,<br />

convidou Paulo para transformar a casa dela em sua base (At 16.14-15). Nenhum<br />

homem é mencionado nesse início da igreja, apesar de mais tarde o carcereiro ter crido.<br />

O relato da visita a Listra menciona a mãe de Timóteo, bem como o fato de que ela<br />

tinha casado com um homem grego (At 16.1). A pregação de Paulo em Atenas não trouxe<br />

grandes resultados, mas Lucas menciona que, entre os convertidos, havia “uma mulher<br />

chamada Dâmaris” (At 17.34). Ele nos dá algumas informações sobre Priscila (At 18.2,18,<br />

26); ela ajudou a instruir Apoio, pregador notável, e por isso obviamente era uma mulher<br />

capacitada. Lucas também nos fala do evangelista Filipe, que tinha quatro filhas profetisas<br />

(At 21.9). Mencionadas também são as mulheres de Tiro que saíram com seus filhos para<br />

despedir-se de Paulo quando ele partiu para Jerusalém (At 21.5). Claramente Lucas valorizava<br />

a grande contribuição que as mulheres prestaram nos primeiros dias da igreja.<br />

Ele também fala de algumas que não eram cristãs, como Candace, rainha dos etíopes<br />

(At 8.27); Drusila, esposa do governador Félix (At 24.24); e Berenice, esposa do rei<br />

Agripa (At 25.13, 23; 26.30). Ele ainda registra as palavras de Estêvão sobre a “filha de<br />

Faraó" (At 7.21) e faz uma referência surpreendente à irmã de Paulo, cujo filho avisou o<br />

apóstolo sobre um complô para matá-lo (At 23.16). Será que a família ainda vivia em T arso?<br />

Será que ela se casara com alguém de Jerusalém? Será que ela se convertera? Não há respostas<br />

para essas perguntas. Mas parece que o fato de somente Lucas mencioná-la é típico<br />

desse escritor.<br />

Lucas, igualmente, nos ajuda a ver a enorme mudança de posição que o cristianismo<br />

trouxe para as mulheres. Ele não acompanhou os padrões aceitos em seu tempo, que relegavam<br />

as mulheres a um lugar inferior e lhes davam pouca importância. Ele aprendera algo<br />

melhor do que isso de seu Mestre, e ninguém no Novo Testamento torna o novo lugar das<br />

mulheres mais claro do que Lucas.<br />

como tementes a Deus, e provavelmente foi por meio delas que os maridos foram influenciados, para desvantagem<br />

de Paulo e Barnabé” (Commentary on the book o f the Acts. London, p. 284).<br />

I. Howard Marshall mostra que "a ordem das palavras indica que as mulheres são especialmente proeminentes<br />

no novo grupo cristão” (The Acts of the Apostles. Leicester, 1980, p. 280, [publicado no Brasil por Edições<br />

Vida Nova com o título Atos, introdução e comentário).


9ls crianças<br />

Como vimos no estudo de Marcos, Jesus tinha um interesse especial por crianças.'<br />

Para o mundo antigo em geral e para os grandes líderes religiosos em particular, as crianças<br />

tinham pouca importância. Mas Jesus se dedicava a elas, e Lucas relata algumas histórias<br />

que mostram isso. A exemplo de Mateus e Marcos, ele relata a ressurreição da filha de Jairo<br />

(8.41-56), mas só ele diz que a menina era filha única dejairo (v. 42).18 Vemos a mesma coisa<br />

no caso do menino que tinha convulsões (9.38-43). Novamente Lucas compartilha o<br />

relato com os outros sinóticos, e novamente só ele tem o detalhe de que o menino era filho<br />

único (v. 38). Ele tem esse detalhe de novo na ressurreição do filho da viúva de Naim<br />

(7.12). Claramente Lucas leva em consideração o sentimento que os pais têm em relação a<br />

um filho único.<br />

Ele nos fala, assim como os outros sinóticos, da criança que Jesus tomou para dar<br />

aos discípulos uma lição de humildade (9.47). Marcos e Lucas dizem que Jesus “tomou’<br />

uma criança; ele não teve de mandar chamar uma, havia uma ali. Parece que muitas vezes<br />

havia uma ou várias crianças onde Jesus estava. Ele as atraía. Lucas compartilha com<br />

Mateus o ensino de Jesus sobre a rejeição de João Batista e também da sua, e ilustrou isso<br />

com as brincadeiras que as crianças faziam (7.32). Será que algum outro grande líder religioso<br />

ficava olhando as crianças brincar? E, é claro, Jesus proibiu os discípulos de afastar as<br />

mulheres que queriam levar as crianças até ele (18.15-17): “Quem não receber o reino de<br />

Deus como uma criança de maneira alguma entrará nele” (v. 17).<br />

Lucas contém uma referência a crianças que só ele registra ao recontar o episódio do<br />

homem cujo amigo chega à meia-noite para emprestar um pouco de pão. O outro, relutante,<br />

relacionou as dificuldades: a porta estava trancada, e seus filhos, como ele, já estavam<br />

deitados (11.7). E na vida real vemos o interesse de Lucas mais tarde quando registra o episódio<br />

das crianças de Tiro, que saíram com as mães para ver Paulo partir (At 21.5).<br />

Esse aspecto do modo como Lucas olhava o cenário cristão tem destaque nos relatos<br />

da infância nos primeiros capítulos do evangelho. Se não fosse por ele, não saberíamos<br />

nada sobre a casa e a família de João Batista. Lucas nos deixa ver um pouco do que significou<br />

para o idoso casal sem filhos o fato de Deus lhes ter concedido a dádiva de um bebê.<br />

Temos muitos detalhes desse acontecimento, e é interessante saber que o Espírito Santo<br />

estava sobrejoão não só durante os dias do seu ministério público, mas todos os seus dias<br />

Veja cap. 5, sob a divisão "O reino de Deus”,<br />

Ela era fio u o y e u ijç , Fitzmyer comenta sobre essa passagem: “O texto grego não implica que o homeir.<br />

tinha filhos, mas estava preocupado com sua única filha. Sua angústia é pelo único descendente” ( The Gospe.<br />

according to Luke, ITX , p. 745).


(“já do ventre materno”, 1,15). No dia da sua circuncisão, "a mão do Senhor estava com ele”<br />

(1.66). Ele “se fortalecia em espírito” e “viveu nos desertos até o dia em que havia de manifestar-se<br />

a Israel” (1.80),19<br />

E, é claro, Lucas contém os relatos maravilhosos da vinda do anjo a Maria com sua<br />

mensagem de que ela seria a mãe do Salvador (1.26-28) e do nascimento da criança (2.1-7).<br />

Ele narra a vinda dos pastores (2.8-10). Relata que a criança foi circuncidada (2.21) e apresentada<br />

ao Senhor no templo (2,22-24). Informa sobre a reação de Simeão e Ana quando<br />

viram a criança (2.25-38), Ele nos fala um pouco de como o menino se desenvolveu (2.40,<br />

52) e inclui o relato interessante de Jesus com doze anos no templo, ouvindo os mestres e<br />

fazendo-lhes perguntas (2.41-51).<br />

Com seu interesse incomum pelas crianças, Lucas chama a atenção para outro<br />

aspecto do universalismo inerente à mensagem cristã. T oda vida é importante, e Deus pensa<br />

nas crianças assim como pensa nos adultos. A igreja nem sempre teve em mente essa<br />

lição o quanto devia. T odavia, se negligenciamos as crianças, a culpa não é de Lucas.<br />

Os pobres<br />

Lucas tem um interesse especial pelos pobres. Ele usa a palavraptõchos, “pobre”, dez<br />

vezes, enquanto Mateus e Marcos a registram cinco vezes cada um. Quase sempre, quando<br />

ele usa a palavra “rico”, é para advertir dos perigos das riquezas, de modo que é adequado<br />

estudá-la junto com a palavra "pobre”.<br />

Lucas registra um sermão de Jesus na sinagoga de Nazaré, no início da sua missão<br />

(4,16-30). Ele não o coloca como o início de tudo, pois já registrara uma atividade anterior<br />

(4.14-15). Mas ele escolhe este como o primeiro episódio no ministério público de Jesus a<br />

ser descrito por completo. Parece que ele nos está fazendo um esboço do plano de Jesus.<br />

Essas são as coisas que o Messias iria fazer, e essa era a mensagem que o Messias iria levar. Ê<br />

digno de nota que Lucas começa com Jesus lendo o profeta Isaías: "O Espírito do Senhor<br />

está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres...” (4.18; as palavras são de Is<br />

61.1). A primeira coisa mencionada aqui sobre o ministério de Jesus é que se trata de um<br />

19É possível que João Batista tenha sido criado numa comunidade como Qumran. Sabe-se que os essênios<br />

criavam filhos de outras pessoas, e que os homens de Qumran tinham um profundo respeito por sacerdotes.<br />

O s pais de João Batista eram idosos e muito provavelmente morreram quando ele ainda era bem jovem. A comunidade<br />

de Qumran se opunha fortemente ao que acontecia no templo em Jerusalém, e é interessante que<br />

não há registro de João ter participado do culto no templo, ao contrário de seu pai. Tudo isso não passa de<br />

uma hipótese, mas é interessante como tantas coisas combinam. E, é claro, se foi assim que as coisas aconteceram,<br />

quando chegou a hora João Batista se rebelou contra o sistema em que fora criado, e esse pode ser o sentido<br />

de “veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto" (3,2).


ministério para os pobres. Isso também aparece na resposta que Jesus deu aos mensageiros<br />

de João Batista. João, da prisão, mandara seus seguidores perguntar: "Es tu aquele que estava<br />

para vir ou havemos de esperar outro?” (7.19). Jesus respondeu voltando a atenção deles<br />

para seus atos de misericórdia, restaurando a vista aos cegos e outros semelhantes, e chega<br />

ao ponto culminante, dizendo; “Aos pobres, anuncia-se-lhes o evangelho” (7.22). E isso<br />

que prova que o Messias de Deus realmente havia chegado,<br />

A primeira bem-aventurança em Lucas é: “Bem-aventurados vós, os pobres” (6.20).<br />

Nela, como no sermão em Nazaré, outros desafortunados são ligados aos pobres, e nos<br />

dois lugares alguns exegetas dizem que devemos entender “pobres” em sentido estritamente<br />

literal. Mostra-se que Mateus espiritualiza a afirmação formulando-a assim:<br />

“Bem-aventurados os humildes de espírito” (M t 5.3), e sugere-se que Lucas, em contraste,<br />

refere-se à pobreza material,<br />

Isso, porém, significa deixar de ver alguns fatos essenciais. Lucas antecede as<br />

bem-aventuranças com a informação de que Jesus, “olhando para os seus discípulos, disse-lhes...”<br />

(6.20), e traz as palavras de Jesus como: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque<br />

vosso é o reino de Deus”. Significa também deixar de ver que as pessoas não são pobres<br />

por escolha própria. Algum excêntrico pode eventualmente escolher a pobreza, e há pessoas<br />

que, em revolta contra a sociedade materialista, optam por circunstâncias mais pobres do<br />

que as que facilmente podiam alcançar. Pessoas assim, porém, não são pobres no sentido<br />

quejesus pretendia. Os pobres como classe são pobres porque as circunstâncias lhes impuseram<br />

a pobreza. Não é fácil pensar quejesus chamou pessoas de bem-aventuradas por<br />

causa de algo que não escolheram e gostariam muito de evitar. Devemos ter em mente<br />

algumas palavras de G, Gutierrez. Ele afirma que dizer que Lucas 6.20 se refere a pobreza<br />

material “levaria à canonização de uma classe social. Os pobres seriam privilegiados no reino,<br />

a ponto de ter a entrada garantida, não por alguma escolha que fizeram, mas devido a<br />

uma situação sócío-econômíca que lhes foi imposta".20<br />

As palavras de Jesus não são uma bênção da pobreza como tal (apenas os que vivem<br />

com conforto e os que estão fora das garras da penúria afirmariam uma coisa dessas!). São<br />

palavras de encorajamento aos que abriram mão de tudo para segui-lo. Eram obviamente<br />

pobres no sentido em que este mundo valoriza as riquezas, mas essa não é a consideração<br />

que importa. Eles eram pobres, mas ricamente abençoados. Era para pobres assim que<br />

todo o ministério de Jesus estava voltado.<br />

Somos lembrados do uso freqüente de “pobres” no Antigo Testamento para descrever<br />

os fiéis a Deus: “Clamou este pobre, e o Senhor o ouviu” (SI 34.6, A R C ); “Há espe-<br />

A theology of liberation. London, 1974, p. 297. De modo semelhante, Leonhard Goppelt rejeita a referência =<br />

riqueza e pobreza literal; antes, “perde a vida aquele que pensa que pode viver com o que provê por si mesmo:'<br />

(Theology of the New Testament. Grand Rapids, 1982, 2:281).


ança para o pobre" (Jó 5.16); e há muito mais referências como essas. Repito que não é a<br />

pobreza como tal que é elogiada, mas que são de Deus os que reconhecem que não têm<br />

poder em si mesmos para se ajudar e que confiam em Deus e não na força humana. Em<br />

outras palavras, os ricos neste mundo estão sujeitos a grandes tentações de pôr sua confiança<br />

nas riquezas. Sua riqueza e sua posição lhes permitem fazer tantas coisas que quem tem<br />

menos recursos não pode, que são muito tentados a transferir essa condição para a esfera<br />

espiritual. Eles esquecem que “quem confia nas suas riquezas cairá” (Pv 11,28). Essa atitude<br />

afasta a pessoa da bênção de Deus. Os pobres não são tão suscetíveis a essa tentação,<br />

Eles têm outras tentações que os ricos não têm, mas isso não vem ao caso. O que vem ao<br />

caso é que são de Deus os que aprenderam a pôr nele a sua confiança, e não em seu próprio<br />

braço. A escassez de recursos materiais é um símbolo disso.<br />

Talvez seja isso que dê a Lucas sua profunda preocupação com os pobres. Mesmo<br />

que não seja, não se pode negar que Lucas tem um interesse incomum pelos pobres. Eles<br />

aparecem em suas parábolas: o anfitrião na grande ceia envia seu servo para trazer os<br />

pobres da cidade (14.21) e o rico que ignora o pobre Lázaro (a única pessoa nas parábolas<br />

de Jesus que recebe um nome). Num banquete, Jesus aconselhou seu hospedeiro a não<br />

convidar pessoas ricas para as refeições, “para não suceder que eles, por sua vez, te convidem<br />

e sejas recompensado” (14.12). Em lugar deles, ele devia convidar os pobres — que<br />

não podem compensá-lo, e ele terá sua recompensa na ressurreição.<br />

Jesus observou a viúva que entregou duas pequenas moedas no templo e a elogiou<br />

(21.1-4). Lucas registra as palavras de Jesus ao jovem rico, de que deveria vender tudo o que<br />

tinha e dar o dinheiro aos pobres (18.22). E observa que, quando Zaqueu respondeu à presença<br />

de Jesus, decidiu dar metade da sua fortuna aos pobres (19.8).<br />

Esse último exemplo mostra que Lucas não condena sempre a riqueza. Zaqueu<br />

pode até ter feito sua fortuna de modo condenável: ele era cobrador de impostos (19.2), e<br />

os membros da sua confraria eram famosos por usar o cargo para extorquir dinheiro de<br />

maneiras ilícitas. Mas seu encontro com Jesus mudou tudo isso. “Hoje, houve salvação nesta<br />

casa”, disse Jesus (19.9), e essa salvação significou uma atitude diferente em relação ao<br />

dinheiro, entre outras coisas. Lucas também nos fala dos ricos que davam ofertas para o<br />

trabalho de Deus no templo (21.1). Jesus disse que a mulher pobre com suas duas moedinhas<br />

dera mais do que eles, mas não há nada de errado com o fato de eles estarem ofertando.<br />

E possível que devamos ver o rico na parábola do administrador desonesto como mais<br />

um cuja riqueza não é motivo de crítica; contudo, se J. M. L. Derrett está correto em sua<br />

compreensão desta passagem, o homem era culpado de cobrar juros,21 o que era ilegal,<br />

tendo sucumbido às tentações que assediam os ricos.


Há outros casos em que não restam dúvidas. Lucas registra a advertência de Jesus<br />

aos ricos: “Ai de vós, os ricos! Porque tendes a vossa consolação” (6.24).2" Essas palavras são<br />

opostas à bênção dos pobres, aqueles que não se baseiam em suas próprias conquistas mas<br />

totalmente em Deus, Os ricos geralmente não fazem isso. "É mais fácil passar um camelo<br />

pelo fundo de uma agulha”, Jesus disse, “do que entrar um rico no reino de Deus" (18.25).<br />

Essa declaração vem logo depois do incidente do jovem rico, aquele que pensava estar obedecendo<br />

aos mandamentos, mas que, no fim, preferiu ficar com suas riquezas a obedecer ao<br />

chamado de Deus (18.18-23).<br />

Também devemos notar que os ricos não se dão bem nas parábolas, A história do<br />

rico e de Lázaro é uma ilustração brilhante de como alguém pode ficar tão acostumado<br />

com a riqueza e com as vantagens que ela lhe proporciona que acaba completamente insensível<br />

à sorte do pobre bem à sua porta, e indo para o inferno. O rico tolo, que tinha muitos<br />

bens reservados para vários anos e queria construir depósitos maiores para eles, é mais um<br />

exemplo de alguém tão ocupado com sua riqueza que não conseguiu ter uma visão do<br />

quadro todo (12.16-21).<br />

O destaque dado por Lucas à pobreza, portanto, é um aspecto importante da sua<br />

obra. Ele sublinha a importância da atitude correta em relação a Deus e da facilidade com<br />

que a prosperidade material pode levar as pessoas para longe de Deus.<br />

Os de ma reputação<br />

Vemos o universalismo de Lucas no modo como ele expressa a verdade de que Cristo<br />

traz salvação a pessoas às quais o mundo dá pouco valor. Ele faz isso logo no início, pois<br />

relata como os pastores receberam a mensagem dos anjos quando Jesus nasceu (2.8-10).<br />

Os pastores formavam uma classe desprezada. Não eram considerados confiáveis e não<br />

podiam dar testemunho num tribunal (Talmude, Sanhedrin 25b). A vida nômade que levavam<br />

fazia com que deixassem seus rebanhos pastar em campos que pertenciam a outros.<br />

Fazia também com que sua atitude de “hoje estou aqui, amanhã em outro lugar” os levasse<br />

a cometer pequenos furtos. Seu modo de vida os impedia de observar a lei cerimonial, e por<br />

isso as pessoas religiosas os desprezavam. Mas não seria justo deduzir que os pastores<br />

sobre quem Lucas escreveu não eram tementes a Deus. Não podemos pensar que a mensagem<br />

sobre o Salvador seria dada a eles se esse fosse o caso. Entretanto, não há como negar<br />

que eles vinham de uma classe amplamente desprezada.<br />

MM mostra que, nos papiros, o verbo áfféxM “é encontrado constantemente com o sentido de 'recebi',<br />

como expressão técnica de emitir recibo”.


Outra classe desprezada era a dos cobradores de impostos, e é digno de nota que<br />

Lucas é responsável por 10 das 21 vezes em que eles são mencionados no Novo Testamento<br />

(Mateus tem 8). Os romanos não perdiam tempo implantando uma burocracia complicada<br />

para cobrar seus impostos dos povos conquistados. Eles preferiam leiloar os direitos<br />

de cobrança, concedendo-os à melhor oferta. O vencedor passava a coletar os impostos,<br />

acrescidos de um excedente que era sua remuneração legítima por fazer o trabalho. E, sendo<br />

a natureza humana como é, eles costumavam cobrar mais do que a lei romana previa.<br />

Esse hábito de levar mais do que era devido fez, é claro, com que fossem odiados por quem<br />

tinha de pagar, o que, por sua vez, fazia com que fossem ainda mais severos. Via de regra, os<br />

cobradores eram de fora da Palestina, mas Zaqueu talvez tivesse os direitos sobre Jericó,<br />

pois é chamado de “maioral dos publicanos”.23 Em seu trabalho, estavam em constante contato<br />

com gentios, com o que se tornavam ritualmente impuros, e isso não fazia que caíssem<br />

nas boas graças dos religiosos. Provavelmente eram obrigados a trabalhar no sábado —<br />

outro ponto contra eles. E eles eram colaboradores dos odiados romanos, ajudando-os a<br />

exercer sua soberania sobre Israel em vez de tentar expulsá-los. Por isso, ninguém gostava<br />

deles. Ê digno de nota que tantas vezes leiamos sobre os “publicanos e pecadores”.<br />

Lucas relata que alguns deles foram pedir conselhos a João Batista, que lhes disse<br />

que não cobrassem mais do que tinham direito. Esse é o único conselho que João lhes dá e<br />

isso parece ter uma importância especial. Suas extorsões eram amplamente conhecidas.<br />

Mas pelo menos alguns corresponderam ao quejoão disse e aceitaram seu batismo (7.29).<br />

Jesus chamou um deles, um homem chamado Levi, diretamente da coletoria, e este<br />

organizou uma grande festa, à qual vieram muitos dos seus antigos colegas. Isso fez os religiosos<br />

perguntar aos discípulos por que Jesus fazia uma coisa dessas, o que provocou a declaração:<br />

"Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Não vim chamar justos, e sim<br />

pecadores, ao arrependimento” (5.31-32). Jesus foi acusado de ser “amigo de publicanos e<br />

pecadores” (7.34), acusação esta que parece não ter incomodado nem Jesus nem Lucas.<br />

Lucas introduz suas três parábolas sobre os perdidos — a ovelha perdida, a moeda<br />

perdida e o filho perdido — dizendo: “Aproximavam-se de Jesus todos os publicanos e<br />

pecadores para o ouvir" (15.1), O tempo contínuo pode indicar que isso aconteceu várias<br />

vezes; certamente é isso que Lucas dá a entender. Numa passagem muito importante em<br />

Lucas — a parábola do publicano e do fariseu — um cobrador de impostos chega a ser a<br />

personagem central (18.9-14).<br />

Também constatamos que Lucas inclui o relato sobre a pecadora que chorou sobre<br />

os pés de Jesus, enxugou-os com os seus cabelos e depois os ungiu com óleo perfumado<br />

(7.37-50). Esse parece ser um episódio distinto do outro semelhante nos demais evange-<br />

coisa.<br />

3 A palavra é â p x i T e À ú Jv r jÇ , Ela aparece somente aqui, mas é difícil pensar que pudesse significar outra


lhos, e é digno de nota que Lucas nos diz expressamente que a mulher era pecadora.'4 Por<br />

fim, nessa seção podemos observar que pessoas de má fama são encontradas em várias<br />

parábolas nesse evangelho (7.41-42; 12.13-21; 15.11-32; 16,1-12; 18,1-8).<br />

Claramente, Lucas não se preocupa com padrões de justiça convencionais. Ele estava<br />

bem ciente de que Jesus estava preocupado em salvar pecadores dos seus pecados, e que<br />

sempre podia ser encontrado com pessoas que os líderes religiosos da época condenavam e<br />

rejeitavam. Os líderes cristãos não podem agir assim. Lucas nos deixa ver que há esperança<br />

para as pessoas por piores e desprezadas que sejam. Os seguidores de Jesus não devem<br />

desistir de ninguém.<br />

Os índivíduos<br />

O evangelho é uma mensagem grandiosa, com aplicação universal. Como vimos,<br />

Lucas está interessado em sua abrangência universal e tem várias maneiras de expressar<br />

isso. Mas ele não vê essa realidade em termos de um movimento poderoso que afeta nações<br />

e contagia multidões. Com toda a sua visão da grandeza do caminho cristão, Lucas nunca<br />

perde de vista a importância do indivíduo. Ele nos fala de muitas pessoas, sobre muitas das<br />

quais não temos informações em outro lugar. Assim, ele começa seu evangelho com Zacarias<br />

e Isabel, e passa a falar de Simeão e Ana. Ele nos fala da viúva de Naim, cujo filho único<br />

morrera, e da pecadora que ungiu os pés de Jesus. E neste evangelho que ficamos sabendo<br />

que Maria ficou sentada aos pés de Jesus enquanto Marta preparava a refeição. E Lucas<br />

quem nos fala da mulher encurvada que Jesus curou num sábado na sinagoga e do homem<br />

hidrópico que ele curou na casa de um fariseu em outro sábado. Lucas conta sobre os dez<br />

leprosos e fala da gratidão do samaritano que havia entre eles; Zaqueu também é encontrado<br />

só em Lucas. Da mesma forma, os dois que andaram com Jesus até Emaús são<br />

desconhecidos, e sabemos deles somente porque Lucas registrou a caminhada que faziam<br />

num domingo.<br />

Sabemos muitas coisas sobre os primórdios da igreja pelas cartas de Paulo. Mas<br />

também ali Lucas nos informa sobre muitas pessoas das quais não saberíamos nada se não<br />

fosse por ele. Ele nos diz quem estava reunido na sala da última ceia, orando depois da<br />

ascensão dejesus, e é dali que sabemos que os irmãos dejesus estavam com os cristãos. Ele<br />

nos fala de José, chamado Barsabás, e de Matias, os dois entre os quais foi escolhido o substituto<br />

dejudas no grupo dos apóstolos. Ele escreve sobre Barnabé, que vendeu um campo e<br />

depositou o produto da venda aos pés dos apóstolos. Lemos sobre cristãos achados culpa­<br />

A palavra é à fia p T ú jX ó ç, sobre a qual Marshall comenta: “...provavelmente uma prostituta” (The Gospel oj<br />

Luke, p. 308).


dos como Ananias e Safira; sobre pessoas que careciam de cura, como Enéias e Tabita, que<br />

também era chamada Dorcas; sobre pessoas que se converteram de modo incomum, como<br />

Cornélio e o carcereiro de Filipos; sobre João Marcos, que foi trabalhar com ótimos colegas<br />

mas não esteve ã altura do empreendimento; e sobre Eutico, que não conseguiu ficar<br />

acordado durante um sermão prolongado.<br />

Lucas nos fala de algumas pessoas que se opuseram aos cristãos. Ele nos informa<br />

sobre a família do sumo sacerdote, com Anãs e Caifás, que conhecemos dos evangelhos, mas<br />

também com João e Alexandre. Ele escreve sobre Simão, o Mago, que não havia compreendi'<br />

do como o Espírito Santo é outorgado. Ele fala dos que têm elevada posição envolvidos na<br />

prisão de Paulo e no que se seguiu: o tribuno Cláudio Lísias, o governador Félix, que não se<br />

importava em ser subornado, o orador Tértulo e Festo, o eficiente sucessor de Félix.<br />

Há muito mais. Detalhar todas as personagens que Lucas menciona daria uma lista<br />

longa e não acrescentaria muito ao que se pretende mostrar aqui. Está claro que Lucas se<br />

interessava muito pelas pessoas, tenham elas apoiado a fé cristã ou sido adversárias ferrenhas.<br />

Ele sabe muito bem que, aos olhos de Deus, o mais humilde tem valor.<br />

S? oração<br />

Orar é claramente uma atividade muito importante para o crente, e Lucas retrata isso.<br />

Uma das palavras que este evangelista usa, traduzida por “oração”, proseuchê, aparece três<br />

vezes em seu evangelho e nove vezes em Atos, e o verbo correspondente, “orar”, 19 e 16 vezes<br />

respectivamente. Outra palavra traduzida por oração, deêsis, ocorre três vezes no evangelho, e<br />

seu verbo correspondente, oito vezes, e mais sete em Atos. Ninguém se equipara a ele quanto<br />

a isso. Já vimos que ele dá ênfase ao fato de que somos salvos por Deus em Cristo, e para ele<br />

somos constantemente dependentes de Deus para receber a força e a sabedoria que precisamos<br />

para viver a vida cristã. Por isso ele enfatiza a importância da oração.<br />

Não é só a oração do crente que o ocupa; com freqüência, ele nos deixa ver Jesus em<br />

oração (3.21; 5.16; 6.12; 9.18, 28-29; 10.21-22; 11.1; 22.41-45; 23.46). Algumas das vezes<br />

em que Jesus orou também estão relatadas nos outros evangelhos, mas sete vezes só Lucas<br />

registra sua oração. Ele deixa claro que Jesus orava muito quando enfrentava uma crise em<br />

sua vida. O exemplo do Mestre está muito claro nesse evangelho.<br />

O ensino de Jesus sobre a oração também está muito claro. Ele nos ensinou o modelo<br />

de oração: "Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome" (11.1-4), exortando<br />

os discípulos a orar (22.40, 46). O mesmo se dá em algumas das suas parábolas. O amigo<br />

que chegou no meio da noite (11.5-8) estimula a persistência na oração, enquanto a parábola<br />

do juiz injusto é contada expressamente para que as pessoas “orem sempre sem nunca<br />

esmorecer” (18,1). A parábola do fariseu e do cobrador de impostos não é diretamente


sobre oração, mas certamente nos ensina verdades importantes sobre o tipo certo e errado<br />

de oração. Jesus advertiu que alguns, “para se justificar, fazem longas orações”; eles<br />

receberão uma condenação maior por causa disso (20.47).<br />

O verbo deomai é usado várias vezes em relação às pessoas que pedem que Jesus faça<br />

determinada coisa (5.12; 8.28, 38; 9.38), que pode ou não ser oração como entendemos o<br />

termo, dependendo do que pensavam de Jesus. Mas não pode haver dúvidas quando Jesus<br />

usa o termo para dizer aos discípulos que rogassem "ao Senhor da seara que mande trabalhadores<br />

para a sua seara” (10.2), uma oração que desvia de si e das próprias necessidades a<br />

atenção de quem ora. Jesus, porém, está ciente dessas necessidades e, em outra ocasião, diz<br />

aos discípulos que orem para escapar dos desastres que sobrevirão à terra (21.36). E esse<br />

verbo que Jesus usa ao orar por Pedro para que sua fé não fraqueje (22.32).<br />

Vemos como alguns dos seus seguidores tinham aprendido bem a lição, ao vê-los<br />

orar nos dias após a sua ascensão. Numa ocasião, depois de orarem, o lugar em que estavam<br />

estremeceu e todos ficaram cheios do Espírito (At 4.31). Cornélio era um homem que<br />

orava constantemente (At 10.2), e Filipe exortou Simão, o Mago, a orar pedindo perdão, e<br />

diante disso Simão pediu a Filipe que orasse por ele (At 8.22, 24).<br />

Ninguém que leia Lucas com atenção pode deixar de ficar impressionado com seu<br />

ensino sobre oração. O fiel não consegue viver a vida cristã com suas próprias forças, e por<br />

isso precisa constantemente buscar de Deus a força que necessita. E isso significa que ele<br />

tem de orar. Mas Lucas não nos incentiva a orar simplesmente por nossas próprias necessidades.<br />

Ele deixa claro que devemos orar uns pelos outros e pela concretização dos propósitos<br />

de Deus. Oração verdadeira não pode ser egoísta.<br />

SQlegríã para o mundo<br />

As vezes o cristianismo é apresentado como uma fé muito séria, solene a ponto de<br />

ser sombria. As pessoas têm sido tão orientadas a buscar as alegrias do céu que se esquecem<br />

das alegrias da terra. Lucas não teria reconhecido essa postura como genuinamente cristã.<br />

A alegria perpassa seus dois volumes, e está claro que ele entendia o cristianismo como<br />

uma fé que enche toda a vida de alegria, não importa o que mais faça parte/5<br />

As pessoas cantam nos escritos de Lucas. Logo no começo do seu evangelho temos<br />

alguns dos grandes cânticos na Bíblia — o cântico de Maria (1.46-55), o cântico de Zaca-<br />

Cf. Bo Reicke: "Nenhum outro evangelista ou escritor do Novo Testam ento trata tantas vezes da idéia da<br />

alegria como Lucas”. As vezes ele mantém paralelo com os outros sinóticos, mas “também fala de alegria em<br />

muitas outras passagens, e supera de longe qualquer outro escritor do Novo Testam ento nafreqüència em que<br />

usa a palavra ‘alegria’” (The Gospel ofLuke. London, 1965, p. 77).


ias (1.68-79) e o cântico de Simeão (2,29-32). Há o cântico dos anjos quando eles anunciaram<br />

o nascimento do Salvador (2.14). Uma peça musical interessante, num lugar em<br />

que não esperaríamos, é o cântico de Paulo e Silas aprisionados em Filipos (At 16.25).<br />

Uma prisão típica do primeiro século não era um lugar em que se esperaria encontrar alegria,<br />

mas Paulo e Silas não eram prisioneiros típicos do primeiro século. Apesar das suas<br />

circunstâncias exteriores, eles podiam se alegrar por causa do que Deus havia feito, estava<br />

fazendo e ainda faria por eles e por meio deles.<br />

“Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir”, disse Jesus, e<br />

Lucas registra isso (6.21). A alegria aparece logo no início do evangelho, com a mensagem<br />

dos anjos a Zacarias sobre a criança que nasceria dele e de Isabel: “Em ti haverá prazer e alegria,<br />

e muitos se regozijarão com o seu nascimento” (1.14). Isabel disse a Maria que a criança<br />

em seu ventre “estremeceu de alegria” com a chegada da “mãe do meu Senhor” (1.43-44),<br />

e o cântico de Maria inclui as palavras: "O meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador”<br />

(1.47). Quando Zacarias teve restabelecida a fala depois de ficar mudo durante nove<br />

meses, suas primeiras palavras foram de louvor a Deus (1.64). Simeão bendisse a Deus<br />

quando tomou o menino Jesus nos braços (2.28). Dessa maneira, Lucas deixa claro que a<br />

vinda do Salvador é motivo de grande alegria e também de profunda gratidão.<br />

As pessoas “glorificavam" ou “louvavam" a Deus por sua salvação e sua bondade,<br />

Isso começa com os anjos (2.13) e continua com os pastores (2.20), e vemos a mesma coisa<br />

na bênção que veio durante o ministério de Jesus. Quando ele curou o paralítico que lhe foi<br />

trazido numa maca carregada por amigos, o homem respondeu glorificando a Deus, e as<br />

pessoas que o viram também glorificaram a Deus (5.25-26). Os espectadores glorificaram<br />

a Deus quando Jesus ressuscitou o filho da viúva de Naim (7.16), como fez a mulher encurvada<br />

quejesus curou na sinagoga num sábado (13.13), o leproso agradecido quejesus purificara<br />

(17.15) e o cego a quem Jesus devolveu a visão perto de Jericó (18.43; em todos esses<br />

casos as pessoas também o seguiram). Depois, quando este evangelho começa a chegar a<br />

seu ponto culminante, encontramos grande alegria com a entrada triunfal de Jesus em<br />

Jerusalém, com toda a multidão louvando a Deus (19.37). E Lucas termina seu evangelho<br />

não com um tom de tristeza porque Jesus subira ao céu e se separara dos seus seguidores,<br />

mas com uma tom de alegria e louvor (24.52-53).<br />

Jesus “exultou no Espírito Santo" (10.21).26 E em suas parábolas ele fala de alegria<br />

— alegria das pessoas aqui na terra quando se encontra uma ovelha ou uma moeda perdida<br />

(15.6, 9) e alegria “no céu" (15.7) e "diante dos anjos de Deus” (15.10) por um pecador que<br />

se arrepende. Muitas religiões têm um conceito de Deus tão elevado e santo, que pecadores<br />

A palavra é rjyaX X táaaT O , sobre a qual F. W . Farrar faz o seguinte comentário: ‘“Exultou é um termo<br />

mais forte do que o ‘se alegrou de ARC, e mais valiosa por registrar um elemento — o da alegria exultante —<br />

na vida do Senhor” (The Gospel accordingto stLuke. Cambridge, 1893, p. 251-252). Ele em seguida faz referência


dificilmente chamam a sua atenção; a descrição cristã de Deus é diferente: apesar de Deus<br />

ser infinitamente grandioso, ele se alegra com cada pecador que se arrepende. E maravilhoso<br />

o fato de que ele aceita o pecador arrependido, mas é ainda mais maravilhosa a realidade<br />

da alegria do Deus todo-poderoso por isso. O pecador, é claro, também se alegra com isso,<br />

e Lucas nos mostra uma cena assim com Zaqueu (19.6). Houve muita alegria também em<br />

Samaria, quando Filipe evangelizou ali (At 8.8). Quem também ficou alegre foi o funcionário<br />

etíope quando o evangelho lhe foi pregado (At 8.39), os gentios que creram em<br />

Antioquia da Pisídia (At 13.48) e a família do carcereiro de Filipos (At 16.34).<br />

É difícil ler Atos sem perceber que a primeira igreja era constituída por um grupo de<br />

pessoas muito alegres. Isso aparece em declarações expressas, mas fazia parte da atmosfera<br />

geral da igreja. O poder do Espírito Santo se manifestava, e constantemente pessoas eram<br />

levadas à fé em Cristo. Isso produzia alegria contínua entre os crentes. Pedro citou um<br />

salmo para mostrar que Cristo ressuscitara de acordo com as Escrituras, mas a ênfase do<br />

salmo na alegria refletiu a experiência dos crentes e também o que o apóstolo estava querendo<br />

dizer (At 2.26-28, citando SI 16.8-11). Lucas faz um resumo da vida cristã do<br />

dia-a-dia: “Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam o pão de casa em<br />

casa27 e tomavam as suas refeições com alegria...” (At 2.46; há outra ligação entre comida e<br />

alegria, como dádivas de Deus, na pregação de Paulo em Listra, At 14.17).<br />

Quando Barnabé chegou a Antioquia, “vendo a graça de Deus, alegrou-se” (At 11.23),<br />

e essa alegria espalhou-se amplamente quando ele e Paulo visitaram diversas igrejas após a<br />

primeira viagem missionária e contaram aos cristãos como os gentios haviam se convertido<br />

(At 15.3). Depois, quando os emissários do Concílio de Jerusalém chegaram a Antioquia e<br />

deram seu relatório das decisões do concílio, houve ainda mais alegria na igreja (At 15.31).<br />

A missão a Antioquia da Pisídia terminou em perseguição, e poderíamos pensar<br />

que isso sufocaria a alegria dos novos convertidos. Mas não foi o que aconteceu; “os discípulos<br />

transbordavam de alegria e do Espírito Santo" (At 13.52). Antes disso os apóstolos<br />

em Jerusalém tinham sido presos por causa da pregação, Eles foram açoitados e, antes de<br />

ser soltos, receberam a ordem de não pregar mais, Mas “eles se retiraram do Sinédrio regozijando-se<br />

por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome” (At<br />

5,41). Ninguém costuma ficar alegre quando sofre, mas a alegria dos primeiros cristãos era<br />

tão profunda que circunstâncias exteriores não podiam tirá-la deles. Seu Salvador havia<br />

sofrido para lhes proporcionar salvação, e eles estavam contentes em sofrer ao levar essa<br />

salvação a outras pessoas.<br />

à lenda de que Jesus chorou várias vezes, mas ninguém jamais o viu sorrir. Quem quer que tenha inventado<br />

essa história, não leu Lucas com atenção.<br />

Cf. F. F. Bruce: "Eles comiam por casas’ seria uma tradução literal do grego” (Commentary on the book o f the<br />

Acts♦London, 1954, p. 81 ['de casa em casa transmite muito bem o sentido, N . do T .]). M M traz evidências<br />

dos papiros para apoiar o sentido “por famílias” (em contraste com “por indivíduo”).


Quando pensamos nas circunstâncias dos primórdios da igreja, com suas dificuldades<br />

internas e externas, com sua tarefa assustadora de evangelizar o mundo com recursos<br />

tão escassos, com seus membros consistindo na maior parte de pessoas insignificantes e<br />

sem importância, não seria surpreendente se desânimo e pessimismo houvessem prevalecido.<br />

Entretanto, o tom de alegria que Lucas destaca é inconfundível e importante. A igreja<br />

antiga era com certeza uma igreja alegre, do mesmo modo como o cristianismo autêntico<br />

nos deve fazer ser hoje em dia.<br />

Os primórdios do catolicismo<br />

Em estudos mais recentes tem-se dedicado muita atenção ao papel de Lucas no<br />

com eço da institucionalização da igreja. Alguns estudiosos afirmam que inicialmente o<br />

caminho cristão trouxe às pessoas um profundo senso de libertação, uma vida caracterizada<br />

por liberdade carismática (cf, IC o 14). Com o tempo, os crentes se acomodaram na vida<br />

organizada da igreja católica, com seu ministério ordenado, sua vida sacramental, sua<br />

administração da disciplina, seu moralismo e tudo o mais. O desenvolvimento completo<br />

levou tempo, mas nos últimos textos do Novo Testamento, afirmam eles, temos os primeiros<br />

passos em direção ao que os estudiosos vieram a chamar de “catolicismo antigo”,28 Esses<br />

estudiosos afirmam que Lucas deu o ponta-pé inicial para essas mudanças, e às vezes fazem<br />

isso distorcendo ou perdendo ensinos importantes dos primórdios do cristianismo.<br />

A escatologia ocupa um grande espaço nas discussões. Kãsemann entende que o<br />

catolicismo antigo se completou quando a expectativa de uma parousia iminente desapareceu.29<br />

Acredita-se que os primeiros crentes viveram na expectativa constante de que Jesus<br />

poderia voltar a qualquer momento, o que eliminava toda necessidade da igreja como instituição.<br />

Para Lucas, porém, a idéia de que a volta de Jesus era iminente tinha se desfeito; ele<br />

estava muito mais interessado na vida estruturada da igreja, como mostra o fato de ele<br />

John H . Elliot relaciona as seguintes indicações na direção do catolicismo antigo: “A organização da igreja<br />

de acordo com o ministério hierárquico, em contraste com o carismático; o desenvolvimento do episcopado<br />

monárquico; a objetificação da proclamação e a ênfase numa regra de fé com formulação rígida; a ênfase na ortodoxia’<br />

e na sã doutrina’ em oposição ao ensino errado; a moralização da fé e a concepção do evangelho como<br />

a nova lei; a compreensão da fé em termos objetivos em vez de subjetivos, estáticos em vez de dinâmicos,<br />

quae creditur em contraste com fides qua creditur; o desenvolvimento do princípio da sucessão apostólica e da autoridade<br />

transmitida; a distinção entre leigos e clero; a concepção da interpretação autorizada das Escrituras; a<br />

tendência em direção ao ‘sacramentalismo’; a formulação de uma ‘teologia natural'; a preocupação com a unidade<br />

e a consolidação eclesiástica; e o interesse na compilação dos escritos apostólicos” (CBg31 [1969] :214).<br />

29


escrever uma história dos seus primeiros dias.30 Dessa perspectiva, a salvação era uma esperança<br />

distante; ela fora adiada para a época remota da parousia.<br />

Podemos dizer várias coisas em resposta a isso. A idéia de que a igreja primitiva vivia<br />

na expectativa diária da volta de Cristo não está tão bem fundamentada como muitos dos<br />

seus propositores nos querem fazer crer. Não há nenhuma evidência de que algum crente<br />

defendeu que a pregação devia se interromper depois que Jesus subiu ao céu. Houve sempre<br />

a idéia de um intervalo, e ninguém sabia a duração desse intervalo. Se o retorno era<br />

esperado para qualquer momento, por que Paulo partiu para suas viagens missionárias?<br />

Por que Filipe teve de ir para Samaria e Azoto? Por que o Concilio de Jerusalém se reuniu,<br />

e por que estabeleceu as condições para aceitar gentios na igreja? Não tenho dúvidas de que<br />

alguns dos primeiros cristãos realmente esperavam que o Senhor retornasse a qualquer<br />

momento, mas vejo poucas evidências de que essa convicção dirigisse as ações da maioria<br />

dos primeiros crentes.31<br />

Uma segunda questão é que, como Lucas mostra, a igreja não relegou a salvação a<br />

algum futuro remoto, mas a contemplava como uma realidade presente. O Espírito Santo<br />

estava ativo entre os crentes, e Atos vibra com a maravilha que essa atividade significava.<br />

Sem dúvida havia mais na salvação do que a igreja experimentou na época, mas a parousia<br />

era entendida simplesmente como a culminação de todo o bem que a igreja estava experimentando<br />

no presente.<br />

E a igreja sempre olhava para trás, para o Calvário. Para os escritores do Novo Testamento,<br />

a mensagem da cruz era central. É uma falácia pensar que a igreja sempre olhou<br />

tão intensamente para a concretização da salvação na parousia que se esqueceu de que ela foi<br />

efetuada no Calvário.<br />

5? escatologia<br />

O interesse de Lucas na escatologia não é levado totalmente em consideração por<br />

alguns que o vêem como um expoente do catolicismo antigo.32 Ele tem a idéia do julgamento<br />

escatológico em sua descrição de João Batista com seu “já está posto o machado à raiz<br />

"Ninguém escreve a história da igreja se está esperando que o fim do mundo venha a qualquer momento”<br />

(Käsemann, Essays on New Testament themes. London, 1964, p. 28).<br />

Cf. Leonhard Goppelt: “A questão da expectativa do fim poucas vezes foi levantada pela igreja, e foi discutida<br />

apenas como algo secundário" (W illiam Klassen e Graydon F. Snyder, eds., Current issues in New Testament<br />

interpretation, London, 1962, p. 198).<br />

Käsemann afirma que a tentativa de Lucas de escrever a história da religião cristã como uma história secular<br />

'‘somente se torna possível onde a escatologia cristã inicial, a força dinâmica da pregação do Novo T estamento,<br />

foi encoberta” (New Testament questions of today, p. 21).


das árvores” (3.9), e com sua referência ao processo de peneirar o trigo e queimar a palha<br />

em fogo inextinguível (3.17). Ele relata que Jesus disse aos setenta que anunciassem: “A vós<br />

outros está próximo o reino de Deus” (10.9) e, quando os ouvintes não recebessem a mensagem,<br />

deveriam sacudir o pó da cidade dos pés contra eles e proclamar: “Não obstante,<br />

sabei que está próximo o reino de Deus” (10.11). Mateus tem seu paralelo à primeira referência<br />

ao reino e às palavras sobre sacudir o pó dos pés, mas não tem a segunda referente à<br />

vinda do reino. É a Lucas que devemos as palavras: “Cingido esteja o vosso corpo, e acesas,<br />

as vossas candeias. Sede vós semelhantes a homens que esperam pelo seu senhor...”<br />

(12.35ss). O versículo 39 tem um paralelo em Mateus, mas o fato de Lucas incluir tanta<br />

coisa que Mateus não inclui demonstra com clareza que ele tinha seu próprio interesse<br />

escatológico. Ele não passou simplesmente adiante o que todo mundo dizia.<br />

Pode ser que ele queira que vejamos uma referência escatológica nos discursos à<br />

mesa no capítulo 14. Precisamos ter em mente que, no pensamento judaico, o banquete<br />

messiânico fazia parte do cenário escatológico, e pode ser que, quando Jesus falou de banquetes,<br />

ele tinha isso em mente, qualquer que tenha sido a aplicação contemporânea. Dificilmente<br />

pode haver dúvidas em relação à passagem a respeito da grande festa, pois Jesus<br />

proferiu essas palavras em resposta ao que disse alguém que estava com ele à mesa:<br />

“Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus” (14.15). Referindo-se especialmente<br />

ao versículo 10, Bo Reicke escreve: “A refeição serve apenas de ponto de partida para<br />

a reflexão escatológica".33 Não é fácil ler esse capítulo e concluir que Lucas não tem<br />

interesse em escatologia.<br />

Lucas 17 tem material exclusivo junto com material compartilhado. A Lucas devemos<br />

a declaração de que o reino de Deus está “dentro de vós” (entos hymõn, 17.21).34 Mateus<br />

registra a afirmação a respeito de Noé (v. 27), mas não a respeito de Ló (v. 28-29). Lucas<br />

tem a referência aos dois que estão numa cama, dos quais um será tirado e o outro, deixado<br />

(v. 34). Mateus compartilha com Lucas a afirmação sobre duas mulheres que operam um<br />

moinho. Os dois homens no campo são mencionados apenas por Mateus, enquanto os<br />

dois na cama são mencionados apenas por Lucas. Alguns estudiosos chamam a atenção<br />

para afirmações escatológicas que Lucas omitiu e concluem que ele não se interessa pelo<br />

assunto. Mas ao deixar de ver as afirmações escatológicas que só Lucas tem, eles esquecem<br />

33 The Gospel ojLuke, p. 80. Reicke conclui seu estudo dos discursos à mesa dizendo: "É surpreendente como<br />

exegetas eminentes podem afirmar que Lucas “desescatologizou” o evangelho. Cada palavra nas passagens citadas<br />

pressupõe uma ligação entre a pregação de Jesus no passado, a situação missionária presente e a consumação<br />

futura do reino de Deus” (p. 81).<br />

34George E. Ladd tem uma longa nota sobre esse versículo, em que ele expõe as principais posições, Ele dá o<br />

sentido das palavras como sendo “o reino já estava no meio deles, mas de uma forma não esperada”, e observa<br />

que a passagem passa para a idéia de que “resta no futuro uma vinda do reino com poder apocalíptico" (Jesus<br />

and the kingdom. London, 1966, p. 224 n. 25).


que esre evangelista tem sua maneira própria de fazer as coisas. Ele não teria os toques<br />

peculiares ao seu evangelho se não tivesse um interesse escatológico.<br />

No grande discurso escatológico do nosso Senhor, não é fácil distinguir quais declarações<br />

se referem k parousia e quais à destruição de Jerusalém. Não há dúvida de que Lucas<br />

sabe que Jesus se refere á parousia, pois inclui palavras como: “Então, se verá o Filho do<br />

Homem vindo numa nuvem, com poder e grande glória” (21.27); ele acrescenta algumas<br />

palavras que lhe são exclusivas: "Ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei a<br />

vossa cabeça; porque a vossa redenção se aproxima” (v. 28). No discurso como um todo<br />

Lucas deixa mais claro que os outros escritores que a destruição de Jerusalém é algo bem<br />

diferente daparousia; G. B. Caird vê isso como a “contribuição peculiar de Lucas à escatología<br />

neotestamentária”,’5Mais uma vez temos de dizer que o fato de Lucas fazer as coisas do<br />

seu jeito não significa que ele não dá importância à escatologia. Ele dá, E não quer que seus<br />

leitores a confundam com nenhum outro evento na história humana.<br />

Alguns dos primeiros cristãos podem ter feito exatamente isso. Charles H. Talbert<br />

defende que alguns confundiram a parousia com a ascensão, e outros com o que aconteceu<br />

no Pentecostes. Ele entende que Lucas se opõe a todas essas opiniões e encontra duas ênfases<br />

dominantes na escatologia de Lucas-Atos: “Uma é o anúncio de que o fim está próximo”;<br />

a outra “é a tentativa de evitar uma interpretação errada da tradição de Jesus por<br />

alguém da esfera de influência de Lucas no sentido de que o eschaton já estava sendo plenamente<br />

experimentado no presente”.’6<br />

Não importa o que pensemos dos detalhes do argumento de Talbert, não vejo como<br />

se pode questionar que Lucas está refutando idéias erradas sobre o fim, sem negar que o<br />

fim virá. Ele não está negando que o fim pode vir logo. Muitas vezes se esquece que Lucas<br />

incluiu estas palavras de Jesus: “Não passará esta geração, sem que tudo isto aconteça"<br />

(21.32). Há problemas com este versículo, mas ele com certeza levanta a questão do motivo<br />

de Lucas incluí-lo se rejeitava a iminência da parousia. Ele não está tanto negando a realidade<br />

da parousia quanto deixando claro que há estágios no plano de Deus e fatos que precisam<br />

acontecer antes da parousia.<br />

Portanto, parece que Lucas tem sua própria maneira de ver a escatologia e que muitas<br />

críticas feitas contra ele não querem dizer nada além de que ele expressa essa escatologia<br />

à sua maneira. Ele não está simplesmente repetindo o que outros membros da primeira<br />

igreja disseram. Mas isso não é motivo para negar seu interesse na escatologia, ou para<br />

achar que ele adia a parousia para o futuro remoto. Com base na escatologia não há razão<br />

para achar que ele está tentando estabelecer uma forma de catolicismo.<br />

The Gospel o f st Luke. Harmondsworth, 1963, p. 229.<br />

Jesus and man’s hope, Pittsburgh, 1970, p, 191,


O destaque conferido por Lucas à “palavra” é peculiar. Ele começa seu evangelho<br />

com uma referência a “testemunhas oculares e ministros da palavra” (1.2) — uma maneira<br />

muito incomum de dar destaque à "palavra”. Em seguida ele fala quatro vezes da “palavra<br />

de Deus” e mais três vezes da “palavra” na interpretação da parábola do semeador, sempre<br />

pensando claramente na Palavra de Deus. Uma vez ele se refere à “palavra do Senhor”.<br />

Quando passamos para Atos, vemos essa tendência aumentar muito. “A palavra de Deus”<br />

aparece 13 vezes, “a palavra do Senhor”, 10 vezes, e “a palavra” em termos absolutos, 13<br />

vezes. Também há duas referências à “palavra da graça” e uma à “palavra da salvação” e à<br />

“palavra do evangelho”. Isso dá um total de 40 referências à palavra em Atos, de um modo<br />

ou outro. É claro que ela é muito importante para Lucas.<br />

Harmoniza-se com isso que a atitude de Lucas em relação ao ministério não é “católica”.<br />

O máximo que se pode dizer é que em Atos ele fala da nomeação de presbíteros. No<br />

entanto, ele nenhuma vez menciona uma ordenação. Algumas passagens podem ser interpretadas<br />

como referências à ordenação, mas Lucas não diz isso explicitamente, e um “católico”<br />

nunca poderia ter deixado uma parte tão importante da vida da igreja em dúvida. O<br />

mesmo se dá com a ceia do Senhor. Há passagens em Atos em que “partir o pão” pode indicar<br />

o sacramento, mas todas elas também podem ser entendidas como menção de uma<br />

refeição comum. Não estou dizendo que todas as referências devem ser entendidas assim,<br />

mas que um "católico” não poderia deixar essa margem de dúvida. Um catolicismo sem<br />

ordens válidas ou sacramentos regulares é realmente muito estranho.<br />

Lucas disse aos seus leitores que estava escrevendo para que pudessem “ter plena<br />

certeza das verdades” em que foram instruídos (1.4). Ele deixa claro que seguiu todas as<br />

coisas de perto e fala de “testemunhas oculares” (v. 2). Em outras palavras, ele afirma que<br />

está fazendo um relato autêntico e confiável do que se deve crer a respeito de Jesus.<br />

Ele parece estar fazendo a mesma coisa em Atos. Já foram feitos muitos estudos dos<br />

discursos nesse volume, mas parece que Lucas está apresentando o que os apóstolos pregaram.<br />

Ele não o faz de forma estereotipada, como se a repetição da forma exata das palavras<br />

fosse importante. James Dunn diz: “Os sermões de forma alguma são estereótipos repetidos;<br />

nenhum é totalmente paralelo a outro, cada um tem seus elementos distintivos, [...] e<br />

os discursos de Atos 7 e 17 são completamente diferentes dos demais”.37 Lucas não está<br />

dizendo: “Esta é a forma das palavras que tem de ser aceita”. Ele diz o seguinte: “Isto é o que<br />

os apóstolos pregaram”. Com isso diante deles, os mestres cristãos não poderão apresentar<br />

suas próprias opiniões como cristianismo autêntico. Eles têm de seguir os ensinos tradicio-


nais se quiserem ser aceitos como expositores autênticos do pensamento cristão. Talbert o<br />

formula assim: "Está claro que, na sucessão de Lucas, os presbíteros são nomeados para<br />

servir à tradição. A igreja e seu ministério são colocados sob o julgamento da palavra dos<br />

apóstolos. É a Palavra que legitima a igreja e seu ministério, e não vice-versa”.38<br />

Precisamos ter em mente que, apesar de a declaração da mensagem ser importante,<br />

sua preservação também é uma atividade importante. Lucas pode não ser um teólogo criativo<br />

como Paulo; não encontramos em seus escritos as interessantes e novas maneiras de<br />

compreender a mensagem cristã que surgem com tanta freqüência em Paulo. Mas encontramos<br />

a insistência na retenção das grandes verdades que as mentes criativas tinham<br />

exposto. I. Howard Marshall nos lembra de que “a preservação da verdade do evangelho<br />

pelo apelo à tradição e pela organização do ministério faz parte do todo. Sua função é<br />

subordinada, mas mesmo assim é importante para ajudar na proclamação da palavra da<br />

graça revelada em Cristo, que é o centro da revelação do Novo Testamento”. Rejeitar isso<br />

significa correr o risco de perder o “enfoque no centro do evangelho, pois não há mais salvaguardas<br />

para proteger a verdade da fé entregue de uma vez por todas aos santos”.39<br />

A ênfase de Lucas na "palavra” nem sempre é percebida, mas ela é importante. Ele<br />

usa o termo “palavra” (logos) 98 vezes, das quais 65 em Atos. Muitas dessas referências têm<br />

pouca importância para o nosso estudo, mas algumas são importantes. Por exemplo, em<br />

sua descrição da primeira igreja em Atos, Lucas tem a “palavra de Deus” e a “palavra do<br />

Senhor”, 10 vezes cada uma, e 14 vezes simplesmente “a palavra". Além disso, ele usa<br />

expressões como “a palavra da graça” (duas vezes), “a palavra do evangelho”, “a palavra desta<br />

salvação” e “uma palavra de exortação”. Acrescente a isso uma série de palavras relacionadas<br />

com a proclamação,40 e ficará claro que para Lucas a palavra era muito importante<br />

para a vida e o crescimento da igreja.<br />

É difícil conciliar a idéia de que Lucas está defendendo alguma forma de institucionalismo<br />

com sua forte ênfase na obra do Espírito Santo. Ler Atos significa ter uma visão da<br />

vida de um grupo dinâmico que é a completa antítese da preocupação com instituições.<br />

Quando as pessoas estão basicamente preocupadas em responder ao Espírito, temos um<br />

elemento de imprevisibilidade que não é fácil de encaixar com o que o “catolicismo”<br />

representa.<br />

Jesus and man's hope, p. 206, Cf, C. K. Barrett: "A ênfase de Lucas na proclamação da Palavra [...] mostra<br />

que a Palavra em si era o fator determinante”; a igreja é uma agência da salvação “apenas no sentido de prover o<br />

contexto no qual é feita a pregação da Palavra” (Luke the historian in recent study. London, 1961, p. 72, 74).<br />

Richard N . Longenecker e M erril C, Tenney (eds.), New dimensions in N ew Testament study. Grand<br />

Rapids, 1974, p. 230.<br />

4°Em Atos, Lucas usa evayyeXíÇco 15 vezes, KarayyéXXiú 11, SiajiaervpojiaL 9 (todas essas mais do<br />

que qualquer outro livro do Novo Testam ento), e K r je v a iJ ü J 8 vezes. H á um artigo importante sobre esse assunto<br />

escrito pelo Dr. Meinarth H . Grumm: “Another look at Acts” (ExpT 96, 1984-85:333-337).


Mais uma vez, parece que alguns críticos são muito rápidos para culpar Lucas por<br />

não ser outro Paulo ou João. Ele é ele mesmo e escreve da sua própria maneira. Sua preocupação<br />

com a preservação do que os apóstolos pregaram mostra seu interesse vital na veracidade<br />

do evangelho cristão. Não podemos perder isso de vista. Talbert demonstra que “a<br />

marca de catolicismo antigo em Lucas [...] na verdade é ‘proto-protestantismo’. Sola Scriptura<br />

é uma viga mestra na plataforma teológica de Lucas”,41 Não creio que “catolicismo" e<br />

“protestantismo” sejam bons termos para aplicar a Lucas (mesmo se os qualificarmos<br />

como “antigo”). T odavia, se tivermos de escolher, “protestantismo” combina melhor com o<br />

que ele fez.42<br />

Jesus and man’s hope, p. 39.<br />

42Estudei o assunto com mais vagar no artigo “Lucas and early Catholicism” em W T J 35 (1973):121-136.


ercetrâ parte j<br />

Os escritos joaninos<br />

lguns dos problemas mais difíceis do Novo Testamento são colocados pelos<br />

escritos de João — o evangelho de João, suas três cartas e Apocalipse. Tradicionalmente,<br />

eles têm sido atribuídos ao mesmo autor, o apóstolo João. Na<br />

época moderna, essa posição foi abandonada por muitos. Bem poucos estudiosos defendem<br />

hoje em dia a autoria apostólica de algum desses livros; há uma tendência forte de pensar<br />

em uma “escola” joanina, um grupo de cristãos dos primeiros dias que defendiam várias<br />

posições em comum, diferentes de, por exemplo, Paulo e dos que pensavam como ele, ou<br />

daqueles cuja posição é representada pelas idéias nos evangelhos sinóticos. Isso deve ser<br />

visto como muito provável; quem quer que tenha escrito esses livros escreveu para pessoas<br />

que estariam interessados neles, e não há razão para não imaginarmos uma comunidade de<br />

pessoas que adotavam uma linha “joanina” de pensamento.<br />

Se devemos dividir a autoria dos escritos joaninas entre os membros do grupo é<br />

outra questão. Muitos entendem que Apocalipse tem um estilo tão diferente dos outros<br />

livros joaninos que é impossível pensar numa autoria comum. Outros concordam com a<br />

diferença no estilo, mas lembram que não sabemos até que ponto um amanuense participava<br />

da composição dos textos do primeiro século.'<br />

Para o papel dos amanuenses na com posição dos docum entos na Antigüidade, veja o artigo de E.<br />

Earle EUis m encionado na nota 6 da introdução à prim eira parte (O s escritos paulinos).


Se concordarmos que é improvável que o apóstolo João (que, por profissão, fora<br />

pescador) escreveu algum texto longo sem a ajuda de um escriba a quem ele ditasse, ficamos<br />

com a possibilidade de que esse escriba ajudou a dar forma ao texto. Podemos imaginar<br />

que esse foi um processo longo, pois João e Pedro foram chamados de “homens<br />

iletrados e incultos” (At 4.13). Também devemos sempre ter em mente que, com exceção<br />

de Apocalipse, todos esses livros eram anônimos, e Apocalipse, apesar de dizer que o nome<br />

do autor éjoão, não diz qual João. Tudo isso significa que a questão da autoria é confusa e<br />

difícil. Existem os que mantêm a posição conservadora,2 enquanto outros consideram<br />

vários autores uma hipótese necessária.<br />

Aprofundar-se em perguntas como essas exigiria muito espaço, o que dificilmente<br />

vale a pena em um trabalho como este. Por isso quero simplesmente observar que há problemas,<br />

e deixar as coisas assim. Não estou preocupado aqui, à semelhança de outros casos,<br />

com quem escreveu os livros, mas com o conteúdo dos livros. Em consonância com isso,<br />

proponho estudar primeiro o evangelho, depois as cartas (por certo elas são suficientemente<br />

homogêneas para considerá-las em conjunto) e por último Apocalipse.<br />

E. Stau ffer, por exem plo, afirm a: “T em o s base suficiente para atribu ir esses cinco escritos a um<br />

autor com um de individualidade m arcante e grande im portância, e para identificá-lo com o apóstolo<br />

Jo ã o .” E n tretanto, ele reconhece que há objeçóes, e por isso propõe "um a posição de cautela: os<br />

escritos joan in os do N o vo T esta m e n to devem ser atribuídos ao apóstolo Jo ã o ou à sua influência”<br />

(N ew Testam ent theology. London, 1955, p. 41).


O êvangelho de João<br />

A doutrina de Cristo<br />

xiste um consenso geral de que o quarto evangelho é um dos livros mais importantes<br />

que já foram escritos. Sua influência dentro e fora da igreja é incalculável.<br />

Incontáveis livros foram escritos sobre ele, e os problemas que ele levanta estão<br />

longe de uma solução definitiva. Uma das coisas mais intrigantes nos estudos joaninos é<br />

que, enquanto os estudiosos investigam com afinco os problemas difíceis que ele apresenta,<br />

homens e mulheres comuns — e crianças também — lêem o livro sem fazer perguntas e<br />

descobrem que podem entendê-lo e, além disso, alimentar a alma pela leitura. Tudo isso<br />

quer dizer que não é fácil saber por onde começar o nosso estudo.<br />

Por outro lado, um bom ponto de partida é o do próprio evangelho — Jesus. O livro<br />

se abre afirmando “No princípio era o Verbo...” (1.1), e perto do fim o autor nos diz por<br />

que escreveu: “Estes [sinais] foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de<br />

Deus... (20.31). É um livro sobre Jesus. Isso é reforçado pelo fato de que João usa o nome<br />

“Jesus” 237 vezes, muito mais do que qualquer outro livro do Novo Testamento (o próximo<br />

é Mateus com 150; Lucas tem 89 e Marcos 81; o total de Paulo é 213 vezes, espalhadas<br />

por toda a sua correspondência; sua carta que mais tem o nome é Romanos, com 37). João<br />

está absorto em Jesus e, apesar de ser verdade que ele dá atenção a outros temas, ele vê tudo


pela perspectiva da identidade de Jesus e da importância da sua vinda à terra para viver e<br />

morrer por nós.<br />

$7 Palavra<br />

Em seu prólogo, João refere-se a Jesus 14 vezes como “a Palavra” [“o Verbo”], designação<br />

que ele não usa mais nenhuma vez em todo o evangelho. Nós usamos o termo palavra<br />

em referência a uma unidade da língua, falada ou escrita, mas os gregos o usavam de modo<br />

muito mais amplo. Eles faziam distinção entre o que chamavam de logos prophorikos, palavra<br />

que saía de uma pessoa (é assim que usamos o termo), e logos endiathetos, a palavra que<br />

ficava com a pessoa. O logos endiathetos significava algo muito parecido com nossa “razão”:<br />

indicava o raciocínio, a parte racional da nossa natureza, Quando olhavam para este universo<br />

maravilhoso, alguns filósofos discerniam um principio racional. O sol e a lua se levantam<br />

e se põem com regularidade; os planetas se movimentam dentro da sua órbita; as<br />

estações seguem uma à outra em seqüência regular. Por isso pensavam em um Logos, uma<br />

Palavra, que perpassa todo o universo, algo como uma “alma mundial”.<br />

Os judeus não viam esses dois sentidos, mas há algumas nuanças judaicas importantes<br />

no contexto da maneira que João usa o termo. Há passagens no Antigo Testamento<br />

que usam conceitos como “sabedoria” ou “palavra”. Por exemplo, em Provérbios 8 a sabedoria<br />

é personificada e diz: “O Senhor me possuía no início de sua obra, antes de suas obras<br />

mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da<br />

terra. [...] Quando ele preparava os céus, aí estava eu; [...] eu estava com ele e era o seu<br />

arquiteto” (Pv 8.22-30). Não é fácil saber até que ponto as pessoas tomavam essas passagens<br />

em sentido literal, mas não há dúvida de que os pensadores judeus do primeiro século<br />

especulavam sobre a Sabedoria como ser celestial.<br />

Havia especulações semelhantes sobre a Palavra, baseadas em passagens bíblicas<br />

como esta: “Os céus por sua palavra se fizeram” (SI 33.6). Isso nos lembra de que, no relato<br />

da criação em Gênesis 1, lemos repetidas vezes que Deus falou; essa era a única coisa necessária<br />

para ele criar. Há poder na Palavra de Deus. A Palavra quase tem existência própria<br />

quando vemos que “a palavra do Senhor veio” sobre este ou aquele profeta (p. ex., Jr 1.2, 4;<br />

Ez 1.3; Os 1.1), e em Isaías lemos: "Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará<br />

para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei" (Is<br />

55.11).<br />

A isso poderíamos acrescentar as personificações da Lei. O fato de a Lei e a Palavra<br />

significarem praticamente a mesma coisa pode ser visto na maneira como as duas podem<br />

ser usadas em paralelo: “De Sião sairá a lei, e a palavra do Senhor, de Jerusalém” (Is 2.3; Mq<br />

4.2). A Lei ocupava um lugar muito importante nos estudos dos rabinos.


Também não devemos esquecer os targuns. Tratava-se de traduções do Antigo<br />

Testamento para a língua do povo (a leitura na sinagoga era em hebraico, que a congregação<br />

nem sempre entendia). No começo isso era feito apenas de forma oral, mas com o tempo<br />

alguns targuns foram escritos, e estes dão informações importantes sobre como os<br />

judeus daquela época entendiam as Escrituras. Descobrimos que não se pronunciava o<br />

nome de Deus, e quando o leitor chegava a esse ponto, substituía-o por uma perífrase reverente,<br />

como "o Senhor" ou “o Santo”. E às vezes o leitor dizia “a Palavra”. Era um costume<br />

bem comum. William Barclay diz que, no Targum de Jônatas,1a expressão é usada cerca<br />

de 320 vezes.2 Esse modo de usar o termo não é exatamente o que vemos em João e no Antigo<br />

Testamento, porque aqui a expressão significa o próprio Deus, não alguém perto dele.<br />

Mas fato é que, onde as pessoas estavam acostumadas aos targuns, estavam familiarizadas<br />

com o uso de mtmra, “palavra”, para indicar a divindade,<br />

Muitos entendem que Filo é uma parte importante do contexto em quejoão fez uso<br />

do termo. Esse grande judeu de Alexandria usou muito o termo Logos em sua combinação<br />

incomum do pensamento do Antigo Testamento e da filosofia grega.3Ele falava do Logos<br />

como um “segundo Deus”, mas às vezes aplica o termo ao único Deus em ação. C. H , Dodd<br />

considera Filo muito importante para entendermos João, e afirma, por exemplo, que as<br />

palavras de abertura de João “são inteligíveis apenas se admitirmos que AÓyoç, apesar de<br />

trazer consigo as conotações da Palavra do Senhor do Antigo Testamento, também tem<br />

um sentido semelhante ao do estoicismo modificado por Filo, e paralelo à idéia de Sabedoria<br />

em outros autores judeus”.4<br />

E possível dizer outras coisas nesse sentido. Este estudo, porém, não é exaustivo, e é<br />

suficiente indicar que “Palavra” era um conceito importante para os primeiros leitores de<br />

João, tenha seu contexto sido judeu ou grego. William Temple disse que o Logos,<br />

para judeus ou gentios, representa o fato dom inante do universo com o auto-expressão<br />

de D eus. O s judeus lem brarão que "pela Palavra do Senh or foi feito o céu”; os gregos<br />

pensarão no princípio racional do qual todas as leis naturais são expressões particulares.<br />

A m bos concordarão que este Logos é o ponto de partida de todas as coisas.5<br />

Este é um targum dos profetas anteriores e posteriores, livros que, na nossa Bíblia, vão de Josué a 2Reis<br />

(excluindo Rute) e os dos profetas (excluindo Daniel),<br />

The Gospel o f John. Edinburgh, 1956, 1:7.<br />

De acordo com W . F. Howard, Filo usou o termo ‘ não menos de mil e trezentas vezes” (Christianity according<br />

to st.John. London, 1943, p, 36-37).<br />

The interpretation o f the fourth Gospel. Cambridge, 1953, p. 280. A. W , Argyle é outro que enfatiza a importância<br />

de Filo. Ele duvida que tenha sido feita “alguma outra interpretação totalmente satisfatória” do evangelho<br />

de João, que não o veja sob a perspectiva de Filo (E xpT 63 [1951-52]:385-386).


João diz que este Logos estava "no princípio”, que ele estava com Deus e que era Deus<br />

(1.1). Tem havido muitos debates sobre este último ponto; alguns estudiosos concordam<br />

com Moffatt e afirmam que "o Logos era divino”, entendendo que isso significa menos que<br />

a divindade. Isso, porém, dificilmente pode ser concluído do texto grego, que parece dar a<br />

entender que a Palavra era nada menos que Deus,6 por mais difícil ou fácil que seja encaixar<br />

esse sentido em nossa teologia. João está dando ao Logos a mais alta posição possível.<br />

Ele prossegue enumerando várias coisas que o Logos faz que mostram que ele é a personagem<br />

mais elevada possível, mas então chegamos a esta declaração surpreendente: “O<br />

Verbo se fez carne e habitou entre nós” (1.14). Essa é uma sólida afirmação da encarnação.<br />

"A Palavra” é esse ser chamado "Deus”(v. 1). “Se fez” significa mais do que "se mostrou em”<br />

ou "apareceu como”; o tempo aoristo indica ação em determinado ponto do tempo. Portanto,<br />

João não está se referindo a uma manifestação atemporal, mas a um acontecimento<br />

determinado, num momento específico, E “carne” é um termo muito forte. João acabou de<br />

relacioná-lo (v, 13) com o que é humano em oposição ao que é divino (cf. 3,6; 6.63; 8.15).<br />

João poderia ter atenuado o que tinha a dizer usando alguma frase como “o Verbo assumiu<br />

um corpo” ou “o Verbo se tornou homem”; no entanto, ele escolheu palavras quase ofensivas.<br />

James D. G. Dunn fala da “natureza chocante dessa afirmação”,7 e nós não devemos<br />

perder isso de vista.<br />

Portanto, quando João refere-se a Jesus como a Palavra, ele está chamando a atenção<br />

para a grandeza de Jesus. A Palavra é mencionada como divina; a Palavra é o próprio<br />

Deus. E uma nota forte que soa nesse trecho de abertura. Ao termo, porém, ele acrescenta<br />

a idéia da encarnação. Por mais elevada que seja a Palavra, ela veio diretamente para onde<br />

estamos. Esses pensamentos ocorrem várias vezes no evangelho de João.<br />

ffesus é o Cristo<br />

João nos diz expressamente que escreveu seu livro a fim de crermos que "Jesus é o<br />

Cristo” (20.31). Ele executa esse plano do começo ao fim do evangelho. Ele começa com o<br />

início da narrativa em si, logo após o prólogo. Fala do testemunho de João Batista e diz que<br />

E. C. Colwell reuniu evidências que mostram que, no Novo Testam ento, substantivos definidos que precedem<br />

o verbo não têm o artigo (JB L 52 [1933] :12-21). Devemos entender a frase como: “O Verbo era Deus”.<br />

Unity and diversíty ín the New Testament. London, 1977, p. 300-301. Ele passa a falar da "afirmação escandalosa”<br />

de que “crer em Jesus significa esmagar ou mastigar sua carne e beber seu sangue” (6.51-63). Ele fala disso<br />

como “linguagem desnecessariamente ofensiva” que “somente pode ser entendida como voltada de modo deliberado<br />

e provocativo contra qualquer espiritualização docetista da humanidade de Jesus, uma tentativa de excluir<br />

o docetismo enfatizando a realidade da encarnação com toda a sua ofensa” (p. 301; itálicos de Dunn). Não<br />

devemos deixar de ver a força com que João afirma a realidade da encarnação de Jesus.


suas primeiras palavras à delegação enviada de Jerusalém para investigar suas atividades<br />

foram: “Eu não sou o Cristo" (1.20). O “eu” dejoão Batista é enfático, dando à sua declaração<br />

esta implicação: “Não eu, mas outro quejá está entre vocês é o Messias”.8 João Batista<br />

tem um diálogo longo com a delegação, mas o resumo do que ele diz é que ele mesmo não é<br />

importante; importante é o que vem depois dele (cf. v. 26-27).<br />

João leva adiante o pensamento quando chega à tentativa de Filipe para convencer a<br />

Natanael de vir atéjesus. Filipe assegura a seu amigo que ele e os outros encontraram aquele<br />

de quem o Antigo Testamento dera testemunho, aquele de quem Moisés escrevera na<br />

lei, bem como os profetas em seus escritos (1.45). O fato de as profecias messiânicas de<br />

todo o Antigo Testamento serem cumpridas em Jesus é parte do quejoão está propondo.<br />

Devemos ver isso também nas palavras de Natanael quando ele exclamou diante de Jesus:<br />

“Tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!” (v. 49). Os pronomes pessoais enfáticos e a<br />

ligação de “Filho de Deus” com “Rei de Israel" mostram quejoão tem o Messias em mente.<br />

Em seu capítulo seguinte, João registra a história em que Jesus expulsa os mercadores<br />

do templo. Muitos dos que comentam esse episódio chamam a atenção para a profecia<br />

de Malaquias: “De repente, virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais, o Anjo da<br />

aliança, a quem vós desejais” (Ml 3.1). O ato de purificar o templo não foi, como disse Sir<br />

Edwyn Hoskyns, “o de um mero reformador judeu; é um sinal da chegada do Messias”.9<br />

Voltamos a João Batista depois da conversa de Jesus com Nicodemos. Alguns<br />

seguidores deles estavam incomodados com o sucesso de Jesus, mas João Batista lernbrou-lhes<br />

que ele dissera antes não ser o Cristo, apenas fora enviado à frente dele (3.28).<br />

Depois ele passa à analogia do noivo e do seu amigo. E o noivo que tem a noiva, não seu<br />

padrinho, mas isso não diminui a alegria do padrinho. É clara a mensagem de que João<br />

Batista não ocupava o primeiro lugar, mas sim Jesus, e quejoão Batista estava feliz com<br />

isso. É uma maneira diferente de dizer que Jesus é o Messias, mas o resultado é o mesmo.<br />

A história do encontro de Jesus com a mulher no poço é fascinante, e é o único lugar<br />

neste evangelho (e um dos poucos no Novo Testamento) em quejesus afirmou ser o Messias,<br />

antes do seu julgamento. A mulher afirmou que algumas coisas eram da alçada do<br />

Messias quando ele viesse, e a isso Jesus respondeu: “Eu o sou, eu que falo contigo” (4.26).<br />

Este “eu sou” é o que Schnackenburg chama “a fórmula da revelação”;10 o grego incomum é<br />

a linguagem da divindade, linguagem quejesus usa com freqüência neste evangelho. Talvez<br />

Jesus tenha podido revelar sua condição de Messias a essa mulher samaritana, ao passo que<br />

não o fazia aos judeus, porque o termo não tinha as conotações políticas que os judeus lhe<br />

davam. Os samaritanos imaginavam o Messias (que chamavam de T aheb) principalmente<br />

R. Schnackenburg, The Gospel according to stjobn. New York, 1968, 1:288.<br />

Edwyn Clement Hoskyns, The fourth Gospel, ed. Francis N oel Davey. London, 1948, p. 194.<br />

Schnackenburg, The Gospel according to stjohn, 1:442.


como um mestre. Seja qual for a razão, João nos diz que Jesus, nessa conversa, afirmou ser<br />

o Messias.<br />

A mulher entendeu claramente o quejesus tinha dito. Ela foi ao povoado e chamou<br />

os moradores, dizendo-lhes: “Vinde comigo e vede um homem que me disse tudo quanto<br />

tenho feito. Será este, porventura, o Cristo?” (v. 29). Mais tarde o povo chegou a dizer que<br />

iria seguir a Jesus, não por causa do testemunho da mulher, mas porque "nós mesmos<br />

temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (v, 42). A linguagem<br />

é diferente, mas de novo aponta para a importância messiânica de Jesus.<br />

No capítulo 5 João relata uma cura e um sermão, e perto do fim do capítulo vêm as<br />

palavras de Jesus aos seus opositores: “Se, de fato, crêsseis em Moisés, também creríeis em<br />

mim” (5.46). Jesus é aquele de quem Moisés escreveu — outra maneira de dizer que ele é o<br />

Messias (cf. 1.45).11 João está constantemente mostrando que o Antigo Testamento<br />

aponta para a vinda de Cristo.<br />

Provavelmente há idéias messiânicas por trás do desejo de algumas pessoas de fazer<br />

dejesus um rei, depois de ele multiplicar os pães (6.15). Jesus rejeitou isso com determinação<br />

e se retirou para as montanhas para fugir do entusiasmo do povo por uma causa errada.<br />

João está interessado em mostrar como Jesus rejeita idéias erradas sobre o Messias, assim<br />

como que ele cumpre o que o Messias realmente era. Vemos isso novamente na referência<br />

dejesus ao maná (6.30-31), quando seus opositores o desafiaram a fazer o que Moisés disse.<br />

Jesus acabara de alimentar cinco mil pessoas com alguns pães e peixes, mas parece que<br />

eles estavam pensando que isso não era grande coisa se comparado com o que Moisés fizera.<br />

Ele alimentara um povo inteiro (não só cinco mil pessoas), e o fez durante quarenta<br />

anos (não só para uma refeição). E tratava-se do maná, pão do céu (não pães e peixes<br />

comuns). Havia uma expectativa judaica de que, quando o Messias viesse, o milagre do<br />

maná ocorreria de novo: “Acontecerá então que o tesouro do maná cairá novamente do<br />

alto, e eles comerão dele naqueles anos porque eles são os que terão chegado na consumação<br />

do tempo” (2Baruque 29.8). A exigência de um sinal, feita como foi, claramente tinha o<br />

propósito de quejesus, se realmente fosse o Messias, o confirmasse fazendo cair o maná.<br />

Jesus mostrou alguns erros que havia na posição deles. Em primeiro lugar, não foi Moisés<br />

quem deu o maná, mas Deus. Em segundo lugar, Deus não deu somente pão naquele tempo;<br />

ele o dá continuamente, e este pão "é o que desce do céu e dá vida ao mundo” (6.33).<br />

Novamente há a idéia de quejesus é o Messias, mas não do jeito que eles pensavam. Eles<br />

R . C. H . Lenski vê isso em tudo o que Moisés escreveu: “Ele trata de passagem as coisas importantes, mas<br />

descreve minuciosamente as coisas pequenas, genealogias áridas, episódios inexpressivos na vida dos patriarcas,<br />

porque elas têm importância para o Messias. D a história da criação em diante, por toda a história, cerimônias,<br />

profecias e promessas que seguem, ele está sempre na mente de Moisés (The interpretation oj st, Joh n ’s<br />

Gospel. Columbus, 1956, p. 426),


estavam enganados quanto ao que o Messias seria e faria, e por causa disso não podiam<br />

reconhecê-lo quando estava entre eles.<br />

Há novamente especulação messiânica na festa dos Tabernáculos. Algumas pessoas<br />

se perguntaram se os líderes tinham chegado à conclusão de que Jesus na verdade era o<br />

Cristo, porque não disseram nada quando Jesus ensinava abertamente (7.26). Outros,<br />

porém, objetavam que, quando o Cristo viesse, ninguém saberia de onde ele era. Dessa<br />

perspectiva, Jesus não podia ser o Cristo, porque era de conhecimento público de onde ele<br />

vinha. Alguns judeus diziam que o lugar de origem do Messias era conhecido, pois os principais<br />

sacerdotes e escribas disseram a Herodes que ele nasceria em Belém (M t 2.4-5).<br />

Outros, no entanto, diziam que a vinda do Messias seria totalmente inesperada: "Três vêm<br />

sem ser esperados: o Messias, um objeto encontrado e um escorpião” (Talmude, Sanhedrin<br />

97a). Às vezes se diz que o Messias será “revelado” (p. ex., 4Esdras 7.28; 13.32), o que, é claro,<br />

significa a mesma coisa. Os judeus pensavam que o Messias seria um homem e podia já<br />

estar vivendo entre eles, incógnito até o momento de ser revelado.<br />

Isso é um bom exemplo da ironia dejoão. Se esses opositores realmente soubessem<br />

a origem de Jesus como diziam, teriam desde já sua objeção refutada. Eles pensavam que<br />

era um mero homem de Nazaré. Isso, porém, não era tudo, nem mesmo a parte mais<br />

importante. Ele é “de cima” (8.23; 3.31). João não afirma essa verdade para refutar seus<br />

opositores; ele deixa que seus leitores informados tirem suas conclusões. E ao fazê-lo<br />

expressa outro aspecto da condição de Messias de Jesus.<br />

Depois disso, houve pessoas que consideravam Jesus o Messias com base em seus<br />

milagres (7.31), e houve outras que discordavam que ele fosse o Messias porque ele vinha<br />

da Galiléia, pois pensavam que o Messias viria de Belém (v. 41-42; com certeza eles eram<br />

diferenciados dos mencionados anteriormente, que não sabiam de onde o Messias viria, v.<br />

27). Novamente temos a ironia dejoão. Ele não se deteve para refutar a objeção, mas quem<br />

conhecia os fatos sabia que Jesus nascera em Belém.12 A própria objeção que eles fizeram<br />

era uma prova de que ele é o Messias de Deus.<br />

Quando Jesus disse ser “a luz do mundo" (8.12), parece que estava fazendo outra<br />

afirmação de que era o Messias, pois os rabinos diziam: “Luz é o nome do Messias”.13Em<br />

todo este evangelho, o termo luz encerra um conceito importante, e não é visto como posse<br />

12 Cf, C. K . Barrett: “A ironia d ejoão é muito mais profunda do que isso. O lugar de nascimento de Jesus é<br />

um assunto trivial em comparação com a pergunta se ele é £K T0)1' avtji ou (-K Ttúl' KCiTCú (8.23), se ele é ou<br />

não de Deus” (The Gospel according to st. John, Philadelphia, 1978, p. 330-331). Um pouco adiante Barrett diz:<br />

“Toda essa discussão sobre o lugar de nascimento do Messias, o Hom em celestial, passa muito longe do que<br />

interessa”.<br />

Citado de John Lightfoot, A commentary on the New Testament from the Talmud and Hebraica, 3. Grand Rapids,<br />

1979, p. 330.


natural do ser humano. É algo que só Jesus traz, ele que é a luz do mundo. Assim, de ainda<br />

outro ponto de vista, nós o vemos retratado como o Messias de Deus.<br />

A figura da luz aparece de novo, é claro, na história em que se restituiu a visão ao<br />

homem que nascera cego (cap. 9). Em um lugar, porém, a questão do Cristo se torna bem<br />

específica. Os pais do cego “estavam com medo dos judeus; pois estes já haviam assentado<br />

que, se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga” (9.22). Já houve<br />

muita discussão sobre o que essa “excomunhão” significava naquele tempo e se pode ter<br />

sido usada contra os seguidores de Jesus. De alguma forma, o costume é muito antigo (Ed<br />

10.8), e há afirmações sobre ele na Mishná, por exemplo numa frase atribuída a Simeão<br />

ben Shetá, c. 80 a.C. (Taan. 3.8). Mas não se sabe como ela era aplicada no tempo do Novo<br />

Testamento nem para quais ofensas.<br />

Isso torna difícil entender o dogmatismo de alguns escritores.14 É particularmente<br />

interessante que alguns afirmam que João estava simplesmente transportando para a época<br />

de Jesus o que acontecia em seu tempo. Todavia, não existem mais informações sobre a<br />

excomunhão em qualquer data possível para a redação deste evangelho do que as disponíveis<br />

para a época de Jesus. C. F. D. Moule pergunta “se há algum motivo para declarar isso<br />

como não histórico”,15 e essa parece ser a posição que devemos adotar. As autoridades<br />

judaicas usavam algum tipo de excomunhão, e como se opunham fortemente a Jesus, por<br />

que não usariam essa arma contra ele? Para nossos objetivos, a conclusão é que as autoridades<br />

estavam preparadas para tomar providências enérgicas contra todo aquele que reconhecesse<br />

Jesus como o Messias.<br />

A questão apareceu de novo na festa da Dedicação, quando os judeus encontraram<br />

Jesus no pórtico de Salomão, no templo. A pergunta deles não está clara. Ela pode ter o<br />

sentido de (como na maioria das traduções) “Até quando nos deixarás a mente em suspenso?<br />

Se tu és o Cristo, dize-o francamente” (10.24). Mas a primeira parte pode ser entendida<br />

como “Por que nos atormentas?”, ou até “Por que nos tiras a vida?” (nesse caso pareceria<br />

que eles entendiam que Jesus acabaria com o judaísmo). Felizmente, a segunda parte é clara,<br />

e é ela que nos interessa aqui. Eles exigiam uma resposta direta à pergunta se Jesus era o<br />

Messias. A isso Jesus respondeu: "Já vo-lo disse, e não credes. As obras que eu faço em<br />

nome de meu testificam a meu respeito”. Esse “eu já lhes disse” pode significar que, apesar<br />

de ele não o ter dito diretamente “eu sou o Cristo”, o conteúdo geral da sua mensagem deixa<br />

isso claro. Ou ele pode querer dizer que suas “obras” dizem quem ele é. Elas mostram que<br />

Barrett duvida que haja uma referência clara à excomunhão aqui. Ele aponta para a duodécima das Dezoito<br />

Bênçãos, que, segundo pensa, provavelmente tinha o propósito de excluir os cristãos da comunidade da sinagoga<br />

(The Gospel accordíng to st. John, p. 361-362). Esse texto, no entanto, é de data posterior, e dificilmente<br />

João pode estar se referindo a ele.


ele é realmente o Cristo. Faltava aos fariseus, porém, a percepção espiritual para comprender<br />

o sentido do que Jesus fazia.<br />

Marta é um exemplo notável de alguém que tinha percepção espiritual. E lamentável<br />

que ela seja mais lembrada por suas palavras num dia difícil, quando estava preocupada<br />

em preparar uma refeição adequada para um hóspede importante. Mas quando Jesus<br />

encontrou a família após a morte de Lázaro, ela fez uma confissão impressionante: “Eu<br />

tenho crido que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo” (11.27). Sua afirmação<br />

“eu tenho crido” está no tempo perfeito, com o sentido de que ela veio a crer e que<br />

essa fé permaneceu com ela. E sua confissão usa praticamente as mesmas palavras que João<br />

apresenta como objetivo do seu livro (20.31). Será que ele está dizendo que Marta fez o<br />

tipo de confissão que ele visava?<br />

Há um episódio um pouco intrigante perto do fim do ministério público de Jesus.<br />

Ele previu sua morte nestes termos: “Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a<br />

mim mesmo” (12.32). João explica que “isto dizia, significando de que gênero de morte<br />

estava para morrer" (v. 33). Isso confundiu algumas pessoas da multidão, que disseram:<br />

“Nós [o pronome é enfático] temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre, e<br />

como dizes tu [novamente o pronome enfático] ser necessário que o Filho do Homem seja<br />

levantado?" (v. 34).<br />

O simples fato de eles falarem do Cristo já é interessante. O termo não foi usado na<br />

discussão precedente (na verdade, desde 11.27). Os que perguntam dão a entender que<br />

Jesus afirmou ser o Cristo, mas não há evidências neste evangelho de que ele tenha feito<br />

alguma vez essa alegação em Jerusalém. Talvez eles estivessem tirando conclusões da<br />

entrada triunfal, descrita antes neste capítulo. Eles infeririam que isso apontava para um<br />

conquistador triunfante, e não era fácil harmonizar isso com a morte de Jesus.<br />

Não é fácil explicar por que eles pensavam que o Cristo viveria para sempre, pois<br />

eles apelam à lei, e não se faz uma afirmação dessas nessa parte das Escrituras. No judaísmo,<br />

porém, havia quem defendesse essa posição (p. ex., lEnoque 49.1; 62,14), se bem que<br />

não de modo generalizado (alguns pensavam que o Messias iria morrer). O que João nos<br />

está deixando ver é que, sem que Jesus fizesse alguma afirmação clara, a multidão em Jerusalém<br />

tinha a idéia de que ele se considerava o Messias, e não conseguia encaixar isso com<br />

sua morte.<br />

Este estudo não foi exaustivo, mas pudemos ver que, em cada capítulo deste evangelho<br />

que trata do ministério público de Jesus, surge a questão de Jesus ser o Messias. A afirmação<br />

é feita ou negada, ou os fatos mostram quem é Jesus. Mas João nenhuma vez fica<br />

muito tempo sem apresentar algum aspecto do Messias aos seus leitores. De forma alguma<br />

essa é a única categoria que João usa para interpretar Jesus, mas ela é muito importante.<br />

Não podemos entender o propósito do seu evangelho se não virmos isso.


0 Pilho de Peus<br />

Ao termo “o Cristo" João liga “o Filho de Deus” na declaração do propósito do seu<br />

evangelho (20.31). Como vimos em nossos estudos anteriores, esse termo pode significar<br />

pouca coisa ou muita. Ele podia ser associado com um homem devoto e mostrar que ele<br />

tinha uma relação especial com Deus. Mas também podia ser associado à divindade. Não<br />

há dúvida de que, quando João o aplica ajesus, ele lhe dá o sentido mais pleno possível. Ele<br />

usa a palavra huios, “filho”, para referir-se ao filho em uma família comum; esse é o sentido<br />

comum e dispensa comentário. Mas quando João fala da família celestial, ele prefere usar<br />

um termo diferente para referir-se aos crentes. Quando usa o termo filho com referência a<br />

Deus, é semprejesus que ele tem em mente. Em outras palavras, para ele, Jesus é filho num<br />

sentido especial, bem diferente das pessoas piedosas.<br />

Ele evidencia isso usando o termo monogenês, que ele aplica ajesus quatro vezes. A<br />

palavra é traduzida por "unigénito” por Almeida, mas na verdade significa "único”, “especial”;<br />

ela nada tem a ver com gerar.16 Ela com certeza indica que Jesus tem uma relação com<br />

Deus que ninguém mais tem. João diz ter visto sua glória, “glória como do unigénito do<br />

Pai” (1.14), e aparentemente o chama de “Deus unigénito, que está no seio do Pai” (1.18).1,<br />

E o Filho "único" que Deus enviou ao mundo para trazer salvação (3.16) e em quem é preciso<br />

crer para receber essa salvação. Quem não crer nele está condenado (3.18).<br />

O evangelho de João fala muitas vezes do “Filho” sem adjetivo e sem diferença significativa<br />

da expressão completa, "o Filho de Deus”. Esse uso absoluto é outra maneira de<br />

demonstrar o lugar especial de Jesus. Nós podemos ser "filhos” de Deus, mas ele é "o<br />

Filho”. O Pai “ama o Filho" (3.35; 5.20), e os dois estão tão ligados um ao outro que “o<br />

Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai” (5.19). Em<br />

seu prólogo, João deixou claro que o Logos existe desde a eternidade; ele complementa isso<br />

com as palavras de Jesus: “O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre”<br />

(8.35). Seu ser é eterno. Ele tem vida “em si mesmo" do mesmo modo que o Pai (5.26; essaé<br />

a dádiva do Pai para ele).<br />

M o v o y e v r jÇ está ligado a y iP O f ia i (a raiz é y ei/-), não a yewáo). A palavra é usada em referência à fênix,<br />

a ave lendária única da sua espécie. Em Hebreus ela é relacionada com Isaque (H b 11.17), apesar de este<br />

não ser o único filho de Abraão. Mas ele era "único", o filho da promessa.<br />

Muitos bons manuscritos contêm p . o v o y e v i Q e ó s , como P66, P75, X, BC *L 33, além de muitas citações<br />

dos pais da igreja. O s escribas teriam a tendência de escrever flov oy ev fjS VIOÇ, que tem o apoio de A,<br />

C , K, 0 eí a i T anto as evidências dos manuscritos quanto a probabilidade da transcrição favorecem a primeira.<br />

Veja ainda a nota em Bruce M . Metzger, A textual commentary on the GreekN ew Testament. London, 1971, p.<br />

198.


O testemunho é um tema muito importante para João, como veremos mais adiante.<br />

Aqui percebemos que, desde o começo, foi dado testemunho do Filho de Deus. João Batista<br />

deu testemunho de que “ele é o Filho de Deus" (1.34),18 e Natanael disse que Jesus era “o<br />

Filho de Deus” e “o Rei de Israel” (1.49). Alguns estudiosos afirmam, ser improvável que<br />

Jesus fosse saudado nesses termos tão cedo em seu ministério, mas Dom John Howton<br />

argumentou de modo convincente que João e Natanael realmente usaram o termo, apesar<br />

de não entenderem plenamente seu sentido. Isso faz parte do propósito do apóstolo João<br />

de expressar seu sentido mais pleno.19 É um título que o próprio Jesus atribuiu a si (10.36).<br />

Alguns estudiosos têm argumentado que Jesus aqui está afirmando ser “Filho de<br />

Deus” apenas no sentido em que seres humanos espirituais podem reivindicar o título, mas<br />

eles com certeza estão enganados. Em primeiro lugar, neste evangelho o título nunca é<br />

associado com seres humanos, e em segundo lugar Jesus o explicou: ele está falando de si<br />

mesmo como “aquele que o Pai santificou e enviou ao mundo”. Foi contra esse tipo de alegação<br />

que os judeus levantaram objeções diante de Pilatos; eles disseram que Jesus “a si<br />

mesmo se fez Filho de Deus” (19.7).<br />

Espera-se que as pessoas “honrem o Filho do modo por que honram o Pai" (5.23);<br />

deixar de honrar um é deixar de honrar o outro. De várias maneiras João expressa a idéia de<br />

que o Pai e o Filho encontram-se tão intimamente relacionados que aquilo que alguém faz<br />

(ou deixa de fazer) a um, faz (ou deixa de fazer) ao outro. Ele liga os dois em termos de glória;<br />

a doença de Lázaro era “para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela<br />

glorificado” (11.4). O Pai “é glorificado” no Filho (14.13), e Jesus ora para que um glorifique<br />

o outro (17.1). João tem uma idéia interessante da glória, como vemos nessa declaração<br />

em seu prólogo: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós, [...] e vimos a sua glória” (1.14).<br />

O que as pessoas viam? Viam o homem comum de Nazaré, que passou a vida fazendo trabalhos<br />

comuns e morreu como um criminoso para salvar seu povo. Quando ele diz que viu<br />

“glória”, dificilmente pode ser o tipo de glória manifestada na transfiguração, pois ele não a<br />

registra. Para João, glória verdadeira consiste em aceitar voluntariamente uma posição<br />

inferior para abençoar os outros. Isso vale especialmente para a crucificação, e quando João<br />

escreve sobre a cruz, ele diz que Jesus é “glorificado” (p. ex., 12.23; 13.31). Vincent Taylor,<br />

ao falar sobre algumas passagens de João (3.14; 8.28; 12.32), comenta: “Não poderia haver<br />

Este é o texto da maioria dos manuscritos e aceito por muitos estudiosos. Alguns bons manuscritos, no<br />

entanto, contêm “o eleito de Deus", versão seguida, por exemplo, por BJ. A probabilidade da transcrição a favorece,<br />

pois os escribas teriam muitas razões para alterar outra leitura para “o Filho de Deus", mais comum,<br />

porém é mais difícil entender por que colocariam “o escolhido" no lugar de “o Filho”,


controvérsia mais inútil do que a discussão sobre se nessas passagens está em vista a crucificação<br />

ou a exaltação. A morte é a exaltação”.20<br />

O Filho de Deus traz salvação. João nos diz que Deus amou o mundo de tal maneira<br />

que deu o seu Filho (3.16); ele enviou seu Filho para salvar o mundo (3.17). Provavelmente<br />

devemos entender a concessão da vida pelo Filho (5.21) do mesmo modo, apesar de alguns<br />

acharem que ele está falando da ressurreição no último grande dia. João, é claro, expressa<br />

esse pensamento (5.28-29), mas também é um pensamento joanino que Deus dá vida agora.<br />

A salvação que ele dá significa libertação (8.36). A oferta de salvação espera uma resposta<br />

de fé, e por essa razão João fala de crer emjesus (3.18, 36; 6.40; 11.27; 20.31). Recusar-se,<br />

desobedecendo a essa exigência, significa provocar a ira de Deus (3.36).<br />

O Filho de Deus tem funções escatológicas. Muitas vezes se diz que João se concentra<br />

na vida como uma dádiva presente e esquece aparousia que significava tanto para outros<br />

escritores do Novo Testamento. Contudo, não devemos deixar de notar quejoão nos diz<br />

que “vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua [do Filho de<br />

Deus] voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem<br />

praticado o mal, para a ressurreição do juízo" (5.28-29). Ê interessante que “o Pai a ninguém<br />

julga, mas ao Filho confiou todo julgamento” (5.22). Isso é ensino exclusivo dos cristãos.<br />

Entre os judeus se cria firmemente que o julgamento é uma função que compete<br />

somente a Deus; os judeus não viam o Messias como Juiz.21 João vê Jesus como o Messias<br />

da expectativa judaica, mas não o limita ao que os judeus pensavam que o Messias faria. O<br />

Filho de Deus é uma personagem muito maior do que o Messias que os judeus<br />

imaginavam, e sua função de juiz do mundo evidencia isso.<br />

O c7,'ilho do fornem<br />

« í ; ! r ã i S<br />

No evangelho de João, Jesus muitas vezes se define como “o Filho do Homem”, se<br />

bem que com menos freqüência (13 vezes) do que nos sinóticos, e o título está sempre ligado<br />

de alguma maneira ou à salvação que Cristo trouxe ou à sua relação com o céu. Por<br />

exemplo, Jesus diz a Natanael que ele e outros verão “o céu aberto e os anjos de Deus subindo<br />

e descendo sobre o Filho do Homem” (1.51). Isso parece ser uma referência clara à visão<br />

de Jacó (Gn 28.10-15), mas, no lugar da escada de Jacó, o Filho do Homem é a ponte entre<br />

The atonement in New Testament teaching. London, 1946, p. 147.<br />

S. Mowinckel diz que, nos escritos judaicos, “nunca encontramos a declaração clara e enfática de que o Filho<br />

do H om em ressuscitará as pessoas” (He that cometh. Oxford, 1959, p. 401). Dizer quejesus, além de ressuscitar<br />

as pessoas, também as julgará, é atribuir-lhe funções reservadas a Deus segundo o pensamento judeu.


terra e céu; ele é quem trará as realidades do céu às pessoas na terra. Ele é quem subiu ao céu<br />

(3.13), e Jesus mesmo diz que “subirá para o lugar onde primeiro estava" (6.62).<br />

Jesus diz que o Filho do Homem será “levantado” (3.14; 8.28; 12.32; cf. a resposta da<br />

multidão, 12,34). O verbo nessas passagens (hypsoõ) é freqüentemente associado com exaltação<br />

no sentido de receber um lugar de elevada honra (p. ex., At 2.33; cf. Fp 2.9). João o<br />

aplica a Jesus, que é levantado numa cruz para morrer, como vemos em sua explicação em<br />

2.33. Para João, no entanto, a cruz é a glória suprema, como mostra esse modo de referir-se<br />

a ela. Para o morador comum da Palestina do primeiro século, a cruz era símbolo de vergonha;<br />

para João, era símbolo de glória. De fato, ele usa o verbo “glorificar” ao se referir à cruz<br />

(12.23; 13.31).<br />

Em algumas afirmações que registra, João une o pensamento da morte de Jesus por<br />

nossa salvação ao do alimento espiritual que ele traz. Por exemplo, no discurso sobre o pão<br />

da vida, lemos que o Filho do Homem dá o pão que permanece para sempre (6,27) e que as<br />

pessoas não têm vida em si mesmas a não ser que comam a carne do Filho do Homem e<br />

bebam o seu sangue (6.53). Claramente, nessas declarações, Jesus tinha em mente sua morte<br />

e a salvação que ele traz. Às vezes a ênfase pode recair em uma delas, como na pergunta<br />

que Jesus fez ao homem que fora cego, se ele cria no Filho do Homem (9.35), A referência<br />

obviamente é à salvação, e outras passagens, com a mesma obviedade, apontam para a<br />

morte de Jesus (12.23; 13.31).<br />

S$s afirmações com eu sou<br />

No evangelho de João encontramos um uso distinto de afirmações de Jesus que<br />

começam com “eu sou". A expressão pode, naturalmente, ser usada em afirmações bem<br />

comuns. Mas quando o Antigo Testamento foi traduzido para o grego, os tradutores evidentemente<br />

sentiram que a expressão divina devia ser tratada de modo especial. Por isso,<br />

quando Deus fala, em vez de usar a maneira normal de traduzir “eu sou”, eles muitas vezes<br />

usaram o pronome enfático. É essa forma solene e enfática de linguagem que João atribui a<br />

Jesus em várias ocasiões. Há sete passagens em que “eu sou" tem um predicado, e esse é um<br />

dos aspectos mais apreciados do evangelho de João.<br />

Por exemplo, Jesus diz: “Eu sou o pão da vida” (6.35, 48). Há variações no mesmo<br />

discurso: “Eu sou o pão que desceu do céu” (v. 41); “Este é o pão que desce do céu” (v. 50);<br />

“Eu sou o pão vivo que desceu do céu” (v. 51); cf. “o pão de Deus é o que [ou quem] desce do<br />

céu" (v. 33). Na Palestina do primeiro século, pão era um alimento básico; era necessário à<br />

vida. Jesus está dizendo que ele é o provedor do que é necessário para a vida espiritual. Não<br />

que ele dê esse pão; ele é esse pão. Ir a ele equivale a ingressar numa vida realmente de satisfação,<br />

uma vida em que não há mais um anseio profundo de insatisfação (6.35). Além dis­


so, a vida é dada à custa da morte de Jesus, pois "o pão que eu darei pela vida do mundo é a<br />

minha carne” (6.51; cf. as referências a comer a carne e beber o sangue do Senhor Jesus, v.<br />

53-56). A ilustração do pão obviamente faz muito sentido, e por isso Jesus faz uma declaração<br />

de importância eterna, usando uma frase pequena mas de imenso significado.<br />

Jesus também diz que ele é "a luz do mundo" (8.12; há uma frase semelhante, mas<br />

sem o pronome enfático, em 9.5, e a restituição da visão ao homem que nascera cego com<br />

certeza deve ser vista como uma demonstração do poder de Jesus para trazer luz aos que<br />

estão em trevas). Alguns estudiosos derivam a afirmação de fontes pagãs, mas isso parece<br />

ser desnecessário. A luz é uma ilustração bastante comum e aparece nos mais variados<br />

lugares. Se quisermos procurar um pano de fundo para a afirmação de Jesus, podemos<br />

encontrá-lo na festa dos Tabernáculos, da qual fazia parte iluminar o pátio das mulheres,<br />

no templo, com muitas tochas. Mas essas tochas não eram acesas no fim da festa e, em contraste<br />

com essa escuridão, dizer que Jesus é a luz do mundo carrega um significado muito<br />

importante. Também pode haver uma referência à coluna de fogo na peregrinação dos<br />

israelitas pelo deserto. O capítulo 6 tem uma referência ao maná, e o capítulo 7 aparentemente<br />

tem uma referência à rocha da qual fluiu água, razão pela qual seria apropriado pensar<br />

na coluna de fogo. Qualquer que seja o modo como o entendamos, Jesus é a fonte da<br />

iluminação do mundo.<br />

“Eu sou aporta das ovelhas" (10.7), Jesus disse, e mais uma vez: “Eu sou a porta” (v.<br />

9). No discurso, a porta é primeiramente a entrada para o aprisco, mas claramente Jesus<br />

pensa em mais do que isso. A porta é o caminho para a presença de Deus, e Jesus é o único<br />

meio para chegar a essa presença, Há algo de exclusivo em a porta: é o único caminho. Na<br />

passagem, porém, Jesus usa a ilustração de duas maneiras. Na primeira, ele é a porta pela<br />

qual o pastor entra; os que não entram por essa porta não são pastores de verdade; eles não<br />

amam as ovelhas. Na segunda, ele é a porta pela qual as ovelhas entram; os que passam por<br />

essa porta, entram na salvação.<br />

Jesus continua dizendo: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas”<br />

(10.11), e também: “Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me<br />

conhecem a mim” (10.14). A primeira coisa que ele diz sobre o bom22 pastor é que ele dá a<br />

sua vida pelas ovelhas. Isso imediatamente o diferencia da atividade normal dos pastores<br />

na Palestina. Esses homens viviam com um constante elemento de perigo, e sem dúvida<br />

alguns pereceram no desempenho do seu serviço. Mas a morte nunca era intencional. Em<br />

último caso, eles considerariam sua vida mais importante do que a das ovelhas, Para Jesus,<br />

Além de “bom”, KQÁÓç significa “bonito”, e alguns estudiosos acham que devemos ver esse sentido aqui.<br />

Isso seria esquecer o hábito de João de fazer pouca diferença entre sinônimos, e “o bom pastor” é como devemos<br />

entender a expressão. Mas também devemos dar ouvidos ao comentário de W illiam Temple: “N ão devemos<br />

esquecer que nossa vocação é praticar a virtude de tal maneira que as pessoas sejam ganhas para ela; é<br />

possível ser moralmente correto de modo repulsivo!” (Readings in st. John ’s Gospel, p. 166).


no entanto, é essencial que ele morreria pelos seus. Sua morte salvadora é de importância<br />

central.<br />

Essa dedicação total implica um conhecimento pessoal das ovelhas. Nos tempos<br />

atuais, em que os rebanhos de ovelhas são grandes, é tolice falar da individualidade de uma<br />

ovelha específica. O animal é simplesmente mais um numa grande multidão uniforme.<br />

Com o pastor da Palestina e seu pequeno rebanho não era assim. Nem com Jesus. Por<br />

maior que seja seu povo, ele conhece cada pessoa individualmente, e elas o conhecem —<br />

um aspecto precioso da salvação.<br />

A próxima afirmação com “eu sou” foi dirigida a Maria após a morte do seu irmão<br />

Lázaro. "Eu sou a ressurreição e a vida”, Jesus lhe assegurou. “Quem crê em mim, ainda que<br />

morra, viverá” (11.25). Jesus não só traz ressurreição e vida, ele é a ressurreição e a vida.<br />

Falar de ressurreição e vidajuntas provavelmente tem a intenção de mostrar que é a vida no<br />

mundo futuro que Jesus tem em mente, principalmente. A vida ligada a Jesus não é algo<br />

frágil e perecível, mas uma vida duradoura. E põe a morte física na perspectiva certa. Para<br />

quem está imerso na vida física presente, a morte parece ser o fim de tudo. Mas se quem<br />

morre crê em Cristo, vai viver. Jesus é a vida que triunfa sobre a morte.<br />

A vida também está na próxima afirmação: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”<br />

(14.6), e novamente é a vida eterna que está em vista. O caminho (cf. H b 10.20) é o caminho<br />

para Deus; ele aqui é enfatizado pela repetição (v. 4-5). Como acontece com a porta,<br />

há algo exclusivo a respeito "do” caminho, e isso é mostrado também pela declaração adicional:<br />

“Ninguém vem ao Pai senão por mim”. A verdade com certeza é a do evangelho, a<br />

única que leva pessoas a Deus, e aqui ela está ligada à idéia de que se pode confiar completa-<br />

T 25<br />

m e n te em Jesus.<br />

A última dessas afirmações é: “Eu sou a videira verdadeira” (15.1), repetida como<br />

“eu sou a videira” (v. 5). Enfatiza-se aqui a importância da ligação vital com Cristo. Se o<br />

ramo da videira é separado do tronco, ele morre. Novamente vemos que a vida verdadeira<br />

depende da ligação com Cristo. Isso significa viver nele e tê-lo vivendo em nós (15.4). Tam ­<br />

bém precisamos estar cientes de que a videira às vezes é um símbolo de Israel, o povo de<br />

Deus, e muitas vezes do Israel infiel (SI 80.6-16; Is 5.1-7; Jr 2,21; Ez 15; 19.10-14; Os 10.1).<br />

No lugar do Israel infiel agora temos a videira verdadeira. Devemos observar também que<br />

O uso dos crês substantivos levou alguns estudiosos a sugerir que devemos usar adjetivos em seu lugar —<br />

p. ex., M offatt: “Eu sou o caminho verdadeiro e vivo”. Contudo, "verdade” e “vida” são importantes demais<br />

neste evangelho para que se possa aceitar isso. O fato de cada substantivo ter o artigo é intrigante e faz Moule<br />

perguntar se esse é o costume com um substantivo abstrato, se o segundo e o terceiro são uma simples adequação<br />

ao primeiro (que é exigido pelo contexto) ou se devemos entender a frase como: “Eu sou o caminho, eu sou<br />

a verdade, eu sou a vida” (íBNTG, 112). Melhor é a aceitação, por Turner, da sugestão de Zerwick de que a referência<br />

“é a Cristo como a verdade real, a vida real, a luz real; todas as outras verdades, vidas, luzes são transitórias”<br />

(M oulton-H ow ard-Turner, 3:178).


a passagem transmite a mensagem de que dar fruto é importante, a conseqüência natural, é<br />

preciso dizer, de permanecer na videira (15.2, 4. 8).<br />

Também há passagens em que Jesus usa a fórmula "eu sou” sem acrescentar um predicado.<br />

Por exemplo, ele convida seus ouvintes a “crer que eu sou” (8.24; 13.19) e diz aos<br />

judeus: “Quando levantardes o Filho do Homem, então, sabereis que eu sou” (8.28). “Ser<br />

levantado” significa "ser erguido na cruz”, e Jesus está dizendo que há um aspecto revelador<br />

na crucificação: quando ele tiver sido crucificado, aqueles que refletirem sobre o que foi feito<br />

conhecerão algo de quem ele realmente é. Jesus também enfureceu seus opositores<br />

quando disse: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (8,58). Não é fácil ver isso como menos<br />

do que a linguagem própria da divindade, pois Jesus está afirmando ter existência atemporal.24<br />

Há algo disso também nas palavras tranqüilizadoras quando os marinheiros afligidos<br />

pela tempestade viram-no andando sobre as águas: “Sou eu. Não temais!" (6.20). Apesar<br />

de a afirmação ser principalmente uma maneira de se identificar, o modo como isso é<br />

feito lembra a divindade. O mesmo se aplica quando Jesus se identifica no Getsêmani<br />

(18.5-6, 8).25 Outras passagens podem ter uma nuança semelhante (4.26; 7,34, 36; 8.16,<br />

18). E claro que é possível explicar várias dessas passagens de modo natural, “humano",<br />

mas o grande número delas pede maior atenção. João tem muito mais delas do que qualquer<br />

outro evangelista, e é difícil resistir à impressão de que ele tem algo especial a dizer a<br />

seus leitores, usando essa forma de linguagem. O Jesus que a usa com tanta freqüência tem<br />

um relacionamento muito especial com o Pai.<br />

Outro aspecto incomum da maneira de Jesus falar é seu hábito de prefixar declarações<br />

solenes e importantes com “amém". Mateus tem esse “amém” [em verdade] 31 vezes;<br />

Marcos, 13; Lucas, 6; e João, 50. Um detalhe interessante é que em João o termo é sempre<br />

repetido (“Amém, amém, eu vos digo...”), enquanto nos sinóticos isso não ocorre. Talvez<br />

João tenha mantido a forma que Jesus usava (ele parece ter repetido os nomes, às vezes,<br />

como em “Marta, Marta” e “Simão, Simão”, Lc 10.41; 22.31), “Amém” costumava ser usado<br />

como resposta de uma congregação a algo que o dirigente dizia em lugar do povo; ao<br />

4,1ê y o j eljlL na L X X traduz o hebraico x tt quando Deus fala (cf. D t 32,39; Is 41.4; 43.10; 46.4 etc.). A<br />

forma hebraica pode conter uma referência ao significado do nome divino ItltT (cf. Ex 3.14). Devemos quase<br />

com certeza entender que o uso que João faz da expressão reflete o da LX X . E a maneira de se expressar da divindade,<br />

e aponta para a eternidade de Deus, de acordo com a idéia rigorosa da natureza contínua do presente<br />

eiflL. Ele é constantemente” (Leon Morris, The Gospel auording to John, Grand Rapids, 1981, p. 473, n. 116).<br />

Barnabas Lindars tem dúvidas se João pretende “apontar na direção do nome divino Eu Sou" e entende o propósito<br />

da afirmação como "Jesus ‘permanece para sempre’ (v. 34) e por isso é o eterno Filho de Deus”; a expressão<br />

indica “pré-existência ilimitada” (The Gospel of John, London, 1972, p. 336).<br />

C. H . Dodd vê semelhança, nessa repetição, com 5.50, 51, 52, 53 e diz: “Em cada passagem uma expressão<br />

plenamente natural nas circunstâncias recebe uma importância especial pela repetição, que não é nada natural,<br />

para chamar a atenção do leitor” (Histórica! tradition in thefourth Gospel. Cambridge, 1963, p, 75, n. 2).


dizer “amém”, o povo reconhecia as palavras como suas (a palavra é o particípio de um<br />

verbo que significa “confirmar”).<br />

Jesus, porém, coloca o “amém” à frente das suas próprias palavras e não no fim das<br />

de outra pessoa. Isso as destaca como especialmente solenes e portadoras de sua autenticação.<br />

Podemos ter toda a certeza de que elas são verdadeiras, porque ele as valida solenemente.<br />

Seu uso da palavra tem a implicação de que ele e o que ele diz têm o apoio de Deus,<br />

de modo que a expressão tem implicações cristológicas importantes. Na verdade, Jesus<br />

está dizendo que Deus aceita essas palavras e fará com que se cumpram.26 Falar assim significa<br />

dizer que Deus está nele de uma maneira que não está em nenhum outro.<br />

0 testemunho<br />

Um dos temas característicos do quarto evangelho é o testemunho. João usa o substantivo<br />

14 vezes, comparadas com três vezes em Marcos e uma em Lucas (ele não ocorre<br />

em Mateus); ele também inclui o verbo 33 vezes, enquanto Mateus e Lucas o têm uma vez,<br />

e Marcos, nenhuma. João, na verdade, usa substantivo e verbo mais vezes do que qualquer<br />

outro escritor no Novo Testamento. Desse modo podemos ver claramente como é importante<br />

para ele que haja testemunho amplo das verdades centrais sobre as quais ele está<br />

escrevendo.<br />

Em seu prólogo, João diz que João Batista veio “como testemunha para que testificasse<br />

a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele” (1.7). Depois, nos<br />

três versículos seguintes, ele retoma o assunto. João Batista não era a luz, mas veio “para<br />

que testificasse da luz” (v. 8). Mais adiante, João Batista deu testemunho (v. 15; o uso do<br />

tempo presente parece significar que o testemunho era uma força contínua). E, no que tange<br />

o quarto evangelista, isso é tudo o que João Batista faz. Quando chega ao ministério de<br />

João Batista, ele começa com estas palavras: “Este foi o testemunho de João...” (1.19). João<br />

Batista diz às pessoas que ele não é o Cristo, nem mesmo um profeta, apenas uma voz<br />

(1.19-23). E essa voz continua a dar testemunho de Jesus. João Batista não é digno nem de<br />

desamarrar o cadarço das sandálias daquele que vem após ele (v. 27), e Jesus é apresentado<br />

como aquele que é maior, por causa do sinal do Espírito que veio sobre ele como uma<br />

pomba (v. 32). Assim, João registra que “ele é o Filho de Deus” (v. 34).<br />

26Gerhard Ebeling pensa que o uso de "amém” por Jesus expressa “o fato de que Jesus se identifica totalmente<br />

com suas palavras, que na identificação com essas palavras ele se entrega à realidade de Deus e que deixa sua<br />

existência se basear em Deus, que torna essas palavras verdadeiras e reais” (W ord andfaith. London, 1963, p.<br />

237), H . Schlier afirma que, pela maneira em que Jesus usou a expressão, “temos toda a cristologia in nuce.<br />

Aquele que aceita as palavras dele como verdadeiras e certas também é quem as reconhece e confirma em sua<br />

própria vida, e por isso faz com que, cumpridas por ele, se tornem uma exigência para outros” (TDNT, 1:338).


Joào Batista vem à nossa presença mais uma vez no capítulo 3 e, apesar de a palavra<br />

"testemunho” não ser usada ali a respeito dele, ele estava testemunhando. Alguns seguidores<br />

de João Batista estavam preocupados porque Jesus tinha mais seguidores do que ele,<br />

mas João lhes lembrou que ele sempre dissera que não era o Cristo, apenas aquele que ia à<br />

frente dele (3.28-29). Depois, quando Jesus falou de João Batista, foi em termos de testemunho:<br />

"Mandastes mensageiros a João”, ele disse aos judeus, “e ele deu testemunho da<br />

verdade” (5.33). Ele elogiou João Batista como “a lâmpada que arde e alumia”, e acrescenta<br />

que tem um testemunho maior que o dele (5.35-36; isso quer dizer que ele tinha esse testemunho,<br />

e mais ainda). Bem mais tarde houve pessoas que lembraram que, apesar de João<br />

Batista não ter feito nenhum milagre, "tudo quanto disse a respeito deste era verdade”<br />

(10.41).<br />

João Batista, porém, está longe de ser o único que deu testemunho neste evangelho.<br />

Os que dão testemunho são sete; além do de João Batista, há o do Pai, do Filho, do Espírito<br />

Santo, das Escrituras, das obras de Jesus e das pessoas que responderam ao seu ministério.<br />

Essa é uma lista impressionante e mostra que o evangelista via um testemunho amplo a respeito<br />

de Jesus. Não há desculpa para não crer.<br />

O testemunho do Pai é apresentado nos seguintes termos: "Outro é o que testifica a<br />

meu respeito, e sei que é verdadeiro o testemunho que ele dá de mim” (5.32; observe a típica<br />

ênfase joanina, com a repetição da palavra “testemunho"). Jesus diz ainda: "O Pai, que me<br />

enviou, esse mesmo é que tem dado testemunho de mim” (5.37; cf. 8.18). O testemunho do<br />

Pai não era óbvio aos judeus que se opunham a Jesus, mas porque eles não ouviam a sua<br />

voz, não viam sua forma nem tinham sua palavra em si (5.37-38). Mas foi esse testemunho,<br />

evidenciado nas obras de Jesus (5.36), que trouxe condenação ajesus.<br />

Fala-se muito do testemunho dado por Jesus, e isso tem importância central, pois<br />

neste evangelho é enfatizada a verdade de que Jesus é aquele que revela. E nele que vemos<br />

como Deus é. Ele é “de cima”, não “deste mundo” (8.23). Ele nos deixa ver o que Deus<br />

requer de nós; ele revela a verdade de Deus e o que isso significa para nossa vida na terra e<br />

para nossa esperança de vida futura. Seu lugar é central e seu testemunho mostra isso.<br />

Na primeira ocasião em que o testemunho de Jesus é mencionado, ele une seus<br />

seguidores a si ao afirmar a Nicodemos: “Nós dizemos o que sabemos e testificamos o que<br />

temos visto; contudo, não aceitais o nosso testemunho" (3,11). Jesus estivera falando do<br />

novo nascimento e agora garante ao seu ouvinte que o que dissera tinha base sólida. Jesus<br />

não está ensinando fantasias sem fundamento, Um pouco adiante ele disse que as pessoas<br />

não aceitavam seu testemunho, que “vem das alturas”, e novamente temos a afirmação de<br />

que ele falava do que conhecia (v. 31-32). Essa recusa das pessoas a crer é um fato trágico<br />

que João retoma várias vezes. Jesus veio de Deus, era a revelação de Deus, fora enviado por<br />

Deus, mas o povo não quis lhe dar ouvidos.


Nessa ocasião, no entanto, ele acrescenta: "Quem lhe aceita o testemunho certifica<br />

que Deus é verdadeiro” (v. 33). Ligar-se a Jesus é diferente de tornar-se seguidor de um<br />

homem (como João Batista). Significa que se reconhece que Deus enviou Jesus, que Deus,<br />

num sentido especial, está presente em Jesus. Significa aceitar a verdade da revelação que<br />

Deus fez em Jesus e assim reconhecer a verdade de Deus.<br />

Já vimos alguns trechos de uma passagem importante sobre testemunho em João 5.<br />

Ali Jesus falou do testemunho do Pai e também de João Batista. Mas ele falou também do<br />

seu próprio testemunho, começando com estas palavras: "Se eu testifico a respeito de mim<br />

mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro” (5.31). Um dos fundamentos da lei judaica<br />

dizia que o autotestemunho de alguém não podia ser aceito, e duas ou mais testemunhas<br />

eram necessárias para resolver um caso (D t 19.15).27 Alguns estudiosos acreditam que essa<br />

seja a situação aqui e põem a palavra “válido" em lugar de “verdadeiro”(p. ex., Rieu, Moffatt).<br />

Mas Jesus parece estar dizendo mais do que isso. Seu testemunho sobre si mesmo é tal que,<br />

se estivesse firmado sobre si mesmo, não poderia ser verdadeiro. As coisas que ele dizia<br />

tinham de ser apoiadas pelo Pai; se não fosse assim, não podiam ser verdadeiras.28 E, é claro,<br />

o que todo este evangelho está dizendo é que elas são apoiadas pelo Pai. A. suprema<br />

revelação do Pai é feita em Cristo. Deus, por assim dizer, declarou-se publicamente em<br />

Cristo.<br />

Há evidências concretas disso nas “obras" quejesus praticou (5.36; 10.25; cf. 14.11;<br />

15.24). Os milagres podiam ser mal interpretados, e os judeus insistiam em fazê-lo. Todavia,<br />

se fossem entendidos corretamente, a mão de Deus podia ser vista neles. Isso não é<br />

diferente do testemunho das Escrituras (5.39; cf. v. 45-47). Lidos corretamente, os textos<br />

antigos apontam para Cristo, como mostram os muitos cumprimentos de profecias registrados<br />

nos evangelhos. Os judeus, porém, os liam da forma errada e não discerniam o que<br />

Deus estava fazendo entre eles.<br />

Uma acusação dos fariseus dá outra visão do testemunho sem apoio: “T u dás testemunho<br />

de ti mesmo; logo, o teu testemunho não é verdadeiro” (8.13). Jesus tinha mais de<br />

uma resposta a isso. A primeira é que seu testemunho é verdadeiro porque ele estava qualificado<br />

a dá-lo: ele sabia de onde vinha e aonde estava indo (v. 14). Os fariseus, com seu ju l­<br />

gamento puramente humano (“segundo a carne”), nunca conseguiriam entender Jesus<br />

corretamente. Eles não tinham a percepção espiritual necessária. A segunda resposta é que<br />

O s rabinos diziam coisas como: “N ão se pode crer em alguém que dá testemunho de si mesmo. [«..] N inguém<br />

pode dar testemunho sobre si mesmo” (Mishná, Ket. 2,9).<br />

Temple presta uma contribuição importante ao dizer: "Se sua palavra estivesse sozinha, não seria verdadeira.<br />

A revelação divina não começava e terminava nele, apesar de nele atingir seu ápice e encontrar seu critério.<br />

Devem existir outras evidências, não apenas para apoiar as dele, mas porque a natureza do que ele afirma é<br />

tal que só pode ser verdadeiro se toda a obra de Deus — todo o universo, naquilo em que não está manchado<br />

pelo pecado — o confirma” (Readings in st. John ’s Gospel, p. 116).


Jesus, na verdade, não estava sozinho em seu testemunho: o Pai se unia a ele, o que totalizava<br />

as duas testemunhas que a lei exigia (v, 16-18). A falta de percepção espiritual dos fariseus<br />

significava que eles também não conseguiam reconhecer isso. Mas a incapacidade dos<br />

espiritualmente cegos não invalida a verdade espiritual.<br />

Diante de Pilatos, Jesus resumiu toda a sua missão em termos de testemunho: “Eu29<br />

para isso nasci e para isso vim ao mundo,30 a fim de dar testemunho da verdade” (18,37; ele<br />

acrescenta: “Todo aquele que é verdade ouve a minha voz”), A verdade, naturalmente, não<br />

é simplesmente aquilo que resiste ao teste da falsidade, mas verdade num sentido profundo,<br />

religioso, a verdade de Deus, uma verdade tão intimamente ligada a tudo o que Jesus<br />

representava que ele podia dizer: “Eu sou [...] a verdade” (14.6).31 Aqueles que estão comprometidos<br />

com a verdade de Deus o reconhecem, enquanto outros, como Pilatos, não o<br />

compreendem. Foi em busca dessa verdade que Jesus disse antes aos seus irmãos: “Não<br />

pode o mundo odiar-vos, mas a mim me odeia, porque eu dou testemunho a seu respeito<br />

de que as suas obras são más” (7.7). Parte de ser testemunha do bem é deixar claro o que é<br />

mau.<br />

Jesus deu testemunho de que “um profeta não tem honras na sua própria terra”<br />

(4.44), uma verdade que ele conhecia por amarga experiência própria, e não como mera<br />

proposição intelectual. E temos outro vislumbre do que lhe custou propiciar nossa salvação<br />

quando ele "angustiou-se em espírito e afirmou: Em verdade, em verdade vos digo que<br />

um dentre vós me trairá” (13.21). Não devemos pensar que o Filho de Deus passou pela<br />

vida serenamente acima de todas as aflições que atormentam os outros. Ele também<br />

sofreu, e doía-lhe saber que um dos seus companheiros iria traí-lo.<br />

O testemunho de Jesus é muito importante, mas para João também é importante<br />

notar o testemunho sobre Jesus. De importância primordial aqui é o testemunho do Espírito<br />

Santo (15.26; c f. 16.14). A partida de Jesus da terra não seria o fim de tudo o que ele viera<br />

fazer e ensinar. O Espírito haveria de vir, e seu testemunho continuaria a mesma grande<br />

“Eu" é o pronome enfático sobre o qual Lenski faz o seguinte comentário: "O pronome èy o j está pleno de<br />

majestade; ‘Eu, da minha parte, em contraste com todos os outros já chamados reis" (The ínterpretatíon of st.<br />

John s Gospel, p. 1232).<br />

“O que ele está dizendo de si mesmo põe toda a ênfase em sua origem em outro mundo, e não tem nenhum<br />

outro propósito neste mundo a não ser dar testemunho desse outro mundo e da sua realidade. Daí o<br />

pleonasmo, de que ele 'nasceu para isso' e Veio ao mundo para isso’, para dar testemunho da verdade. Pré-existência<br />

e encarnação são pré-requisitos disso, mas não o propósito dessa maneira de falar" (R. Schnackenburg,<br />

The Gospel according to st John, 3:249-250).<br />

D e acordo com Raymond E. Brown, João retratou Jesus “como o revelador singular, o único que pode falar<br />

e mostrar a verdade sobre Deus. Jesus não tem súditos, como teria se seu reino fosse como os outros; ele<br />

tem seguidores, que ouvem sua voz como verdade. Som ente aqueles que pertencem à verdade podem compreender<br />

em que sentido Jesus tem um reino e é rei” (The Gospel according to John, X III—X X I, New York, 1970, p.<br />

869).


obra divina. O Espírito na igreja não está fazendo algo diferente ou alheio à obra de Cristo.<br />

Ele está dando o seu testemunho da mesma grande obra e da mesma grande pessoa.<br />

João também está ciente de que o testemunho humano tem o seu papel. Não se tratava<br />

de dar a Jesus informações que ele não teria sem nós, pois “ele não precisava de que<br />

alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a<br />

natureza humana” (2.25). O testemunho humano, antes, é em benefício das pessoas; é<br />

declarar os fatos do evangelho, do que Deus fez em Cristo. João dá ênfase, por exemplo, à<br />

realidade da morte de Jesus. Houve quem a visse, e “aquele que isto viu testificou, sendo<br />

verdadeiro o seu testemunho; e ele sabe que diz a verdade...” (19.35). Há alguns problemas<br />

difíceis aqui (veja os comentários), mas está claro que houve uma testemunha que podia<br />

testificar do que foi feito na crucificação. João dá importância considerável a isso.<br />

O mesmo ocorre com a narrativa como um todo. No fim deste evangelho lemos:<br />

“Este é o discípulo que dá testemunho a respeito destas coisas e que as escreveu; e sabemos<br />

que o seu testemunho é verdadeiro” (21.24). Também aqui temos problemas (quem diz<br />

“sabemos”?), mas novamente está claro que o escritor entende como "testemunho" aquilo<br />

que escreveu; ele não fez uma composição original impressionante a partir da sua imaginação,<br />

mas deu testemunho do que foi feito. Essa seria uma função constante dos seguidores<br />

de Jesus após a vinda do Espírito (15.27).<br />

Vemos algo do que o testemunho deve ser e do que pode efetuar no caso da mulher<br />

à beira do poço. Depois de conhecer Jesus, ela o contou aos moradores do seu povoado e os<br />

trouxe até ele. O resultado foi que muitos creram “em virtude do testemunho da mulher,<br />

que anunciara...” (4.39). E mais tarde houve os que tinham estado presentes quando Jesus<br />

ressuscitou Lázaro, que deram seu testemunho e assim fizeram a multidão sair de Jerusalém<br />

para encontrá-lo (12.17-18).<br />

É da natureza do testemunho que a pessoa que o dá esteja comprometida com ele.32<br />

Enquanto eu ficar em silêncio, mantenho todas as minhas opções em aberto. Mas no<br />

momento em que dou testemunho, isso muda. Depois não posso mais dizer algo diferente<br />

sem me denunciar como mentiroso. O testemunho necessariamente envolve compromisso.<br />

João deixa claro que somos pessoas comprometidas, pessoas que dão seu testemunho<br />

de Jesus, E ele traz a idéia impressionante de que Deus se comprometeu, pois deu testemunho<br />

de Jesus. Na verdade, o que ele disse é: “E assim que eu sou”. Deus ofereceu em Cristo<br />

uma declaração pública sobre quem era.33<br />

32Cf. Gabriel Mareei: “Ser testemunha significa agir como fiador. T odo testemunho está baseado no compromisso,<br />

e quem não consegue se comprometer não pode dar testemunho” (The philosophy o f existence. London,<br />

1948, p. 68).<br />

A. A. T rites resume o que tudo isso significa hoje em dia: “Em primeiro lugar, testemunhas estão visceralmente<br />

envolvidas no argumento que apresentam. [...] Em segundo lugar, testemunhas são consideradas res-


Os sinais<br />

João tem sua terminologia própria quando fala dos milagres de Jesus. Os sinóticos<br />

geralmente usam a palavra dynamis ("ato de poder”, “obra poderosa”) quando se referem a<br />

eles, mas João nunca usa esse termo. Ele emprega duas palavras: sêmeiori ("sinal”) e ergon<br />

(“obra”), palavras que os sinóticos não usam quando falam dos milagres de Jesus. Às vezes<br />

eles chegam perto, como quando registram o pedido do povo por um “sinal” de Jesus (Mt<br />

12.38; Lc 11.16), sempre recusado (M t 12.39; 16.4). Também há o "sinal do Filho do<br />

Homem” (M t 24.30), Mas aplicada ao que Jesus realmente fazia, a palavra é usada apenas<br />

por João.<br />

“Sinal” ocorre 17 vezes em João. Uma vez lemos que João Batista não fez nenhum<br />

sinal (10.41), e duas vezes os opositores de Jesus lhe perguntavam que sinal ele faria (2.18;<br />

6.30), e também se perguntaram se o Messias faria mais sinais do que Jesus (7.31).<br />

O próprio Jesus usou a palavra quando falou dos que só crêem quando vêem “sinais<br />

e prodígios” (4.48). Pelo menos uma vez ele disse que seus ouvintes o procuravam não porque<br />

viram sinais, mas porque comeram dos pães e se fartaram (6.26). E intrigante notar<br />

que essas pessoas viram um milagre ser feito e não compreenderam que estavam na presença<br />

do Filho de Deus. Hans Conzelmann o coloca assim: “Eles experimentaram o milagre,<br />

mas não o compreenderam como milagre”.34 Jesus, então, não aplicou o termo muitas vezes<br />

a seus milagres.<br />

Mas João, sim. Para ele os milagres não eram simplesmente maravilhosos e inexplicáveis,<br />

mas tinham sentido. No sentido literal do termo, eles tinham um significado.<br />

Quando ele termina o relato do primeiro sinal de Jesus, a transformação de água em vinho<br />

em Caná na Galiléia, João nos diz que os discípulos "creram nele” (2.11). O acontecimento<br />

era portador de significado, e eles discerniram o suficiente do episódio para ver nele a "glória”<br />

de Jesus. Mais tarde outros vieram a crer por causa dos sinais (2.23), Nicodemos<br />

expressou sua convicção quando disse a Jesus: “Ninguém pode fazer estes sinais que tu<br />

fazes, se Deus não estiver com ele” (3.2), convicção não muito diferente da dos fariseus que<br />

interrogaram o mendigo cego a quem Jesus restituíra a visão e que perguntou: “Como pode<br />

um homem pecador fazer tamanhos sinais?” (9.16).<br />

A diferença de opiniões, nessa ocasião, sobre se Jesus era "de Deus” ou não, mostra<br />

que não era suficiente ver o sinal e seu resultado. Era preciso haver percepção espiritual.<br />

Onde essa faltava, as pessoas simplesmente não criam. Não que elas negassem o milagre;<br />

ponsáveis pela veracidade do testemunho que dão. [...] Em terceiro lugar, testemunhas têm de ser fiéis, não<br />

apenas aos fatos do evento chamado Cristo em si, mas também ao seu significado. Isso implica apresentar<br />

Cristo e sua mensagem com a importância genuína que eles têm” (DITNT 2:2515).


elas simplesmente se recusavam a ver a mão de Deus nisso. Assim eram aqueles que viram<br />

sinais e não creram (12.37). Eles até disseram que, se vissem "sinais e prodígios”, creriam<br />

(cf. 4.48), mas isso não aconteceu. Eles sempre conseguiam olhar um milagre com olhos<br />

críticos. Há uma passagem muito instrutiva no fim do relato da ressurreição de Lázaro. Os<br />

principais sacerdotes e os fariseus não negavam o milagre estupendo que fora feito; na verdade,<br />

disseram: "Este homem opera muitos sinais” (11.47). Mas isso não os levou à fé;<br />

levou-os a planejar a morte de Jesus e também de Lázaro (11,53; 12.10-11), tão longe<br />

estavam de compreender o sentido do sinal sobre o qual estavam discutindo.<br />

Mas havia outros. Algumas pessoas seguiam Jesus por causa dos sinais (6.2; cf.<br />

12.18). Quando Jesus alimentou a multidão com pães e peixes, aqueles que o viram o saudaram<br />

como um profeta (6.14). E temos de lembrar que João escreveu sobre os sinais para<br />

que as pessoas pudessem crer (20.31). E claro que é possível interpretá-los do modo errado,<br />

mas também é possível beneficiar-se com eles.<br />

S^5 obras<br />

A palavra favorita de João para referir-se aos milagres não é “sinais”, mas “obras".<br />

Nem sempre se percebe isso e, por exemplo, Alan Richardson diz sobre este evangelista:<br />

“Às vezes ele usa a palavra ‘obras’, relativamente menos colorida”.35 Mas isso significa deixar<br />

de ver algo importante que João nos está dizendo. A palavra não se restringe aos milagres,<br />

e João a usa para as coisas que as pessoas fazem, sejam boas (p. ex., 3.21; 8.39), sejam<br />

más (p. ex., 3.19-20; 7.7). Ele chama as boas obras de “obras de Deus” (6.28); isso evidencia<br />

a verdade de que não fazemos coisas boas por nós mesmos; Deus está nelas. Há uma declaração<br />

importante de Jesus sobre as boas obras que o crente fará: “Aquele que crê em mim<br />

fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai”<br />

(14.12). A partida de Jesus não significa que sua gente será entregue à própria sorte; pelo<br />

contrário, serão ajudados a tal ponto que farão “obras maiores”.<br />

Todavia, apesar de João usar o termo “obras” para referir-se ao que as pessoas<br />

fazem, o termo é aplicado caracteristicamente ao que Jesus faz. Em 18 das 27 ocorrências<br />

da palavra se trata das obras de Jesus. As vezes ela se refere aos milagres, como quando<br />

Jesus diz: “Um só feito realizei, e todos vos admirais” (7,21). O mais comum é que elajunte<br />

ações miraculosas e comuns, como quando Jesus se refere às “obras” que fez em nome do<br />

seu Pai (10.25). Essa palavra diz respeito especialmente aos seus milagres, mas é geral a<br />

ponto de incluir todas as coisas boas que Jesus fez, miraculosas ou não. A questão é que a<br />

vida de Jesus era uma coisa só; não se pode dizer que ele fez algumas coisas como Deus e


outras como homem. Ele era uma só pessoa. Toda a sua vida era cumprimento de um só<br />

propósito divino dominante.36 Náo devemos restringir o divino ao miraculoso. Provavelmente<br />

também devamos constatar que aquilo que para nós é um milagre, para ele era simplesmente<br />

uma “obra”; sendo quem era, ele fazia essas coisas naturalmente. Não devemos<br />

achar que os milagres eram algo especial, algo a mais, para autenticar o ensino. Eles fazem<br />

parte da revelação; são conseqüência de Jesus ser quem ele era.<br />

As obras são distintas, que “nenhum outro fez” (15.24). Não são obras feitas pelo<br />

homem Jesus, sem ajuda; ele disse: “O Pai, que permanece em mim, [é que] faz as suas<br />

obras” (14.12). Elas são “as obras que o Pai me confiou para que eu as realizasse” (5.36).<br />

Por isso é que Jesus pôde dizer no fim: “Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que<br />

me confiaste para fazer” (17.4).<br />

As obras quejesus fez têm uma função de revelação: elas ensinam sobre Deus. Jesus<br />

diz que suas obras "testificam a respeito dele” (5.36; 10.25), e ele conclama as pessoas a crer<br />

nele por causa das obras: “Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis; mas, se faço, e<br />

não me credes, crede nas obras; para que possais saber e compreender que o Pai está em<br />

mim, e eu estou no Pai” (10.37-38). De modo semelhante, ele diz: "Crede ao menos por<br />

causa das mesmas obras” (14.11). Isso confere um lugar realmente importante às “obras”.<br />

Para João, portanto, esse é um termo muito importante. E a palavra quejesus costumava<br />

usar; duas vezes ele falou de “sinais”, mas em todas as outras ocasiões ele se referiu<br />

aos milagres como “obras”. Talvez possamos ver nisso evidência de um pano de fundo do<br />

Antigo Testamento, pois ali lemos muitas vezes sobre as obras de Deus, principalmente na<br />

criação e na libertação do seu povo. O Deus que fez obras tão maravilhosas no tempo do<br />

Antigo Testamento continuou a fazê-las na vida de Jesus.<br />

O ffesus homem<br />

A respeito do ensino de Jesus e de seus atos miraculosos, João deixa claro que Deus<br />

estava fazendo algo extraordinário. As realidades do céu foram trazidas para as pessoas<br />

aqui na terra. Isso levou alguns estudiosos apensar que, para João, Jesus na verdade não era<br />

humano, mas, no dizer de Kàsemann, “o Deus que anda pela terra”.37 Esse estudioso fala do<br />

B. F. W esrcott entende que as “obras” se referem a “toda a manifestação externa da atividade de Cristo,<br />

tanto os atos que chamamos de sobrenaturais quanto os que chamamos de naturais. Todos, indistintamente,<br />

foram praticados em cumprimento de um só plano e por um só poder” (The Gospel accorâinç to st. John. Grand<br />

Rapids, 1954, p. 199).


“docetismo ingênuo” de João,38 e se refere “à minha palavra-chave, docetismo irrefletido”.39<br />

Evidentemente ele entende quejoão nos pintou o retrato de alguém que não era realmente<br />

humano, mas a divindade andando pela terra. Desse ponto de vista, não houve encarnação,<br />

mas uma vinda da divindade à terra, à maneira das lendas dos deuses gregos. Na Festschrift<br />

para G. E. Ladd argumentei que a posição de Kásemann não se sustenta pelas evidências.40<br />

João, na verdade, retrata um Jesus muito humano. Repetidas vezes ele se refere a<br />

Jesus como ser humano (p. ex., 4.29; 5.12; 7.46; 9.16; 11.47). O próprio Jesus disse que era<br />

um ser humano: “Procurais matar-me, a mim, homem que vos tem dito a verdade” (8.40,<br />

ARC). O mesmo fizeram seus inimigos: “Não é por obra boa que te apedrejamos, e sim por<br />

causa da blasfêmia, pois, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo” (10.33). Interessante<br />

nessa última passagem é que, ao mesmo tempo que os judeus reconheciam quejesus afirmava<br />

ser mais do que um ser humano, eles claramente o viam como ser humano. Portanto,<br />

o próprio Jesus e também os que o cercavam não tinham dúvidas quanto à sua humanidae.<br />

E João o descreve como o ser humano. Por exemplo, ele nos diz quejesus sentou-se<br />

à beira do poço, “cansado” (kekopiakõs) da viagem (4.6), Ele estava com sede, e isso parece<br />

claro em seu pedido de água (v. 7); ele teve sede também na cruz (19.28). Junto ao poço, os<br />

discípulos tentaram fazer Jesus comer algo, e receberam a resposta: “Uma comida tenho<br />

para comer, que vós não conheceis” (4.32). Kásemann pensa que isso mostra que a comida<br />

de Jesus era diferente da que alimenta outras pessoas, mas não há como sustentar isso.<br />

Everett F. Harrison explica as palavras desta forma: “Cristo, naquele momento, tinha perdido<br />

a fome, na grande alegria de conduzir uma alma necessitada ao lugar de perdão e descanso”.41<br />

Não é essa a maneira natural de entender suas palavras? Será que todos os servos<br />

de Deus não experimentam alguma vez a mesma coisa? Seja como for, os discípulos não<br />

pensaram numa fonte diferente e sobrenatural de alimento, pois perguntaram se outra<br />

pessoa lhe tinha dado algo para comer (v. 33). Para eles, ele comia as mesmas coisas que<br />

todo mundo. E eles viviam com ele.<br />

Todo o estilo de vida de Jesus é humano. Ele foi a um casamento com sua mãe (2.1),<br />

e no fim da vida, pendurado na cruz, pensou nela e tomou providências para o seu futuro<br />

(19.26-27). Ele parece ter tido uma vida familiar normal (2,12). Seus irmãos lhe disseram<br />

como se comportar, de uma maneira conhecida por todos os que têm irmãos (7.3-5),<br />

Quando sua morte assomou contornos reais, ele ficou angustiado e perguntou se devia<br />

orar para ser poupado dela (12.27). Ele amou seus amigos (11.5) e derramou lágrimas jun­<br />

Por exemplo, The testament of Jesus, p. 26, 45, 70.<br />

” The testament o f Jesus, p. 66.<br />

“T h e Jesus o f saint John”, em Robert A. Guelich, ed., Unity and diversity in New Testament theology. Grand<br />

Rapids, 1978, p. 37-53.


to ao túmulo de Lázaro (11,35; isso expressa tristeza com a incompreensão das pessoas,<br />

não com o falecimento, pois estava prestes a ressuscitar Lázaro). Ele se sentia angustiado<br />

na ocasião (11.33), e também quando disse aos discípulos que um deles iria traí-lo (13.21).<br />

Há um pequeno problema quanto ao conhecimento de Jesus. Aqueles que imaginam<br />

um Cristo doceta enfatizam o fato de Jesus saber muitas coisas que vão além do<br />

conhecimento dos mortais comuns. Jesus certamente tinha conhecimento incomum (cf.<br />

2.24-25; 5.42; 6.61; 7.29; 10.15). Mas também é verdade que ele tinha de descobrir as coisas.<br />

Por exemplo, ele “encontrou” o paralítico que tinha curado (5.14) e o cego a quem dera<br />

a visão (9.35). Ele “ficou sabendo" (gnous) que o homem junto ao tanque era paralítico há<br />

muito tempo (5.6), e o mesmo verbo é usado quando ele fica sabendo que o povo queria<br />

fazê-lo rei (6.15).<br />

Muitas vezes ele fez perguntas. Às vezes se trata das perguntas que qualquer professor<br />

faz quando a resposta é conhecida; são simplesmente um método para mostrar algo (p.<br />

ex., 8.43, onde Jesus faz uma pergunta e a responde). Em outras ocasiões, porém, ele parece<br />

ter feito perguntas porque não sabia a resposta e queria sabê-la. Por exemplo, ele perguntou<br />

onde estava o túmulo de Lázaro (11.34), e perguntou a Pilatos qual a fonte da informação<br />

que o governador recebera (18.34). Perguntas como essas tornam difícil afirmar que<br />

aqui na terra Jesus era onisciente.<br />

E muito melhor entender que sempre que um conhecimento especial era necessário<br />

para cumprir sua missão, Deus lhe deu esse conhecimento especial. Isso brotava do seu<br />

relacionamento íntimo com o Pai (veja 8.28, 38; 14.10 et ai). Desconhecer algumas coisas,<br />

porém, faz parte da experiência humana normal, e as evidências mostram que, para João,<br />

Jesus tinha esse tipo de limitação.<br />

Aqueles que negam que o Jesus do quarto evangelho era humano com certeza chamam<br />

a atenção para a sua grandeza. Mas temos de tomar cuidado ao explicá-la. Vimos acima<br />

que João define “glória” de modo muito incomum — Orígenes a chamou de “glória<br />

humilde".42 E a glória de alguém que segue um caminho de humildade, quando podia andar<br />

por uma estrada esplêndida. Essa simplicidade é um aspecto muito mais importante deste<br />

evangelho do que geralmente se percebe.<br />

Quem mostra isso é J. Ernest Davey em seu interessante estudo “The dependence<br />

of Christ as presented in John”.4' Este é sem sombra de dúvida o capítulo mais longo em sua<br />

explanação do retrato joanino de Jesus, e ele mostra que Jesus dependia do Pai em todo<br />

tipo de coisa: poder (5.30), conhecimento (8.16), sua missão e mensagem (4.34), seu ser,<br />

natureza e destino (5.26; 6.57; 18.11), sua autoridade e posição (17.2; 5.22, 27; 10.18),<br />

amor (3.16; 17.24-26), glória (13.32; 17,24), seus discípulos (6.37), seu testemunho (5.31,<br />

42<br />

V eja M . F. W iles, The spiritual Gospel. Cambridge, 1969, p. 82.<br />

43


37), o Espírito (1,33), orientação (11,9). Davey vê a dependência de Jesus em sua obediência<br />

ao Pai (4.34) e em passagens como esta: “Aquele que me enviou está comigo, não me<br />

deixou só” (8.29). Ele encontra 22 títulos de Jesus no evangelho e em ljoão, e a maioria<br />

implica dependência (“Filho", por exemplo, implica dependência do Pai).<br />

Davey concorda que há alguns aspectos do evangelho de João que podem ser usados<br />

para apoiar perspectivas docetistas, mas nega que eles sejam típicos. A dependência que<br />

Jesus tinha em relação ao Pai é típica. “Poucas pessoas que não estudaram o quarto evangelho<br />

com atenção para esta questão podem ter alguma idéia da extensão com que o elemento<br />

de dependência é frisado como o principal elemento na experiência que Cristo tinha de<br />

Deus Pai; podemos até chamar essa dependência de aspecto dominante do retrato que<br />

João pinta de Cristo”.44<br />

Portanto, parece que João deixa claro como qualquer um dos sinóticos que Jesus era<br />

plenamente homem. As evidências de que Jesus também era plenamente Deus não nos<br />

devem cegar para a sua natureza humana. Ele trilhou o caminho da humildade, e isso significou<br />

levar uma vida genuinamente humana, em simplicidade e obscuridade, para, no fim,<br />

morrer como um criminoso na cruz. O lugar que João dá à paixão de Cristo não deve ser<br />

menosprezado. Os quatro evangelhos a apresentam como o ponto culminante do ministério<br />

dejesus. E, é claro, essa é mais uma evidência de que a natureza humana de Jesus é uma<br />

realidade. Morrer é humano. A natureza humana dejesus é importante para a compreensão<br />

do propósito do que João inclui em seu evangelho.<br />

The Jesus o f st. John, p. 77. Ele afirma que os quatro evangelhos apresentam a humanidade e a divindade de<br />

Cristo, mas, teologicamente falando, os sinóticos enfatizam a divindade, e João, a humanidade (p. 170). A. M .<br />

H unter aceita esse argumento (According to John. London, 1968, p. 115).


Capítulo 13<br />

O Svangelho de pão<br />

Deus como Pai<br />

ara João, Deus é Pai, e, de fato, ele se prende a esse conceito. Ele usa o termo<br />

“Pai” 137 vezes, o maior número de ocorrências em todo o Novo Testamento.<br />

C fir Mateus tem a palavra 64 vezes (o segundo em número de casos); Marcos, 18, e<br />

Lucas, 56 vezes. Portanto, João usa o termo mais que o dobro de vezes do que o segundo. E<br />

ele o usa quase sempre em referência a Deus (122 vezes). Foi o hábito de João que levou a<br />

igreja a falar de Deus como “Pai” de modo tão característico. Outros escritores usam o<br />

termo, mas ele não é dominante como em João. Ele usa a palavra “Deus” 83 vezes, um<br />

número bastante alto. Mas sua palavra característica é “Pai”,<br />

0 ^ a i e o ilho<br />

Num grande número de casos o Pai e o Filho estão ligados de alguma forma. João<br />

pode falar do que o Pai está fazendo ou do que é em si mesmo, ou pode referir-se ao relacionamento<br />

do Pai com as pessoas. Mas o que dá ao termo “Pai" sua profundidade de sentido


é o que aprendemos sobre sua ligação com Cristo. É no envio do Filho e no que Deus fez<br />

por meio do Filho que vemos o que significa o fato de Deus ser Pai.<br />

A ligação que João faz entre o Pai e o Filho começa no prólogo. Ali ficamos sabendo<br />

que o Logos estava no princípio, estava com Deus, e era Deus (1.1; cf. v. 18). No fim do<br />

evangelho, Tomé diz ajesus: "Meu Senhor e meu Deus!” (20.28). Jesus foi acusado de se<br />

fazer igual a Deus (5.18) e de se fazer Deus (10.33). Ele procede de modo especial do Pai<br />

(1.14; cf. 16.27-28), ele “está no seio do Pai” e revelou o Pai (1.18). A palavra “seio” indica<br />

intimidade e afeto, e aqui mostra que ele vem a nós do próprio coração de Deus. Por causa<br />

desse relacionamento íntimo é que ele pode revelar a Deus do modo como o faz. Ele nos dá<br />

um conhecimento genuíno e íntimo do Pai, por causa do seu relacionamento com o Pai/<br />

Ele “veio de Deus” (8.42).<br />

Jesus tem um relacionamento especial com Deus, pois somente ele viu o Pai (6.46).<br />

Os judeus reconheceram que ele considerava Deus seu Pai em um sentido especial; eles<br />

viram essa relação como blasfêmia e tentaram matá-lo por isso (5.18); eles perguntaram a<br />

Jesus onde seu Pai estava (8.19). Quando Jesus disse: "Subo para meu Pai e vosso Pai, para<br />

meu Deus e vosso Deus” (20.17), ele deixou claro que há uma diferença entre seu relacionamento<br />

com o Pai e o nosso.<br />

Um aspecto persistente do ensino de João é que o Pai e o Filho, em certo sentido,<br />

são um (10.30). Isso deve ser entendido com cuidado, pois também há um sentido em que<br />

Jesus dizia: "O Pai é maior do que eu” (14.28). Isso provavelmente deve ser entendido em<br />

termos da encarnação, que significa a aceitação voluntária de certas limitações, Mas os dois<br />

estão muito próximos, e isso está muito claro em todo o evangelho. Jesus veio "em nome”<br />

do seu Pai (5.43). Repetidas vezes ele atribuiu seu ensino ao Pai (8.38, 40; 12.49-50; 14.24)<br />

e disse receber ordens dele (10.18; 14.31; 15.10). Suas ações eram “as obras do Pai”, que<br />

este lhe dera para fazer (5.36; cf. 10.32, 37); elas foram feitas “no nome" do Pai (10.25) e, na<br />

verdade, foi o Pai, habitando em Cristo, quem as fez (14.10). “De Deus” caracteriza seus<br />

relacionamentos; ele é o “Filho de Deus” (1.34 e muitas outras referências), o "cordeiro de<br />

Deus” (1.29, 36), o "pão de Deus” (6.33), o "Santo de Deus” (6.69).<br />

Conhecer o Filho significa conhecer o Pai (8.19; 14.7; 16.3); parece que nem o Pai<br />

nem o Filho podem ser conhecidos um sem o outro. Deus está com Jesus, que é "um Mestre<br />

vindo da parte de Deus” (3.2). Ver o Filho equivale a ver o Pai (14.9). Havia pessoas que<br />

tinham visto e odiado o Filho e o Pai (15.23-24). E assim que Cristo conhece o Pai, e este o<br />

O verbo é e^ T jy é o fia i, sobre o qual John M arsh diz: “João escolheu uma palavra grega que é o termo técnico<br />

empregado pelo judeu para se referir à transmissão da interpretação rabínica da lei ou à revelação de segredos<br />

divinos, e, ao mesmo tempo, um termo característico da religião grega nas referências à proclamação de<br />

verdades divinas. Assim, parajudeus e gregos, diria o evangelista, o Verbo encarnado traz, do próprio coração<br />

de Deus, a plena revelação do que há em seu coração e mente para o ser humano e para o seu mundo” (Tfee<br />

Gospel o f st. John. Harmondsworth, 1968, p. 112).


conhece (10.15), o Pai está nele, e ele no Pai (10.38). Tudo o que o Pai tem pertence ao<br />

Filho (16.15) e vice-versa (17.10). Cada um está “no” outro (17.21), e os dois são uma unidade<br />

(17.11, 22). Não é de admirar que Cristo diga: "Ninguém vem ao Pai senão por mim”<br />

(14.6).<br />

De acordo com tudo isso está o fato de que o Pai "selou” o Filho (6.27), marcando-o<br />

como seu. Ele o glorifica (8.54) e santifica (10,36). Também há várias referências àquilo<br />

que o Pai dá ao Filho (6.37; 10.29; 13.3; 17.24). Está claro que o Pai estava atuante em toda<br />

a vida terrena do Filho. Não devemos achar que Jesus agiu em independência do Pai. Em<br />

tudo o que ele disse e fez existe a ação de ninguém menos do que o próprio Deus Pai,<br />

Vemos isso na constante referência dejesus ao Pai. Por exemplo, quando sua morte<br />

era iminente, Jesus disse: "Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai, salva-me<br />

desta hora? Mas precisamente com este propósito vim para esta hora. Pai, glorifica o<br />

teu nome” (12.27-28). A oração supostamente feita por Jesus2 pressupõe a possibilidade de<br />

evitar a morte, que estava diante dele, e sugere que ele colocou essa possibilidade perante o<br />

Pai. O próprio Jesus rejeitou isso porque fora por essa razão que ele viera ao mundo. Para<br />

nosso propósito aqui, o importante é que toda essa questão foi levada ao Pai. Fora para<br />

fazer a sua vontade que Jesus viera. Se ele tivesse de evitar a morte, seria apenas porque era<br />

isso que o Pai queria, e ele teria de buscá-lo em oração. Devemos entender outras referências<br />

às orações dejesus do mesmo modo (p. ex., 11.41; 14.16). Quando Jesus ergueu seus<br />

olhos para o céu e disse: "Pai, é chegada a hora” (17.1), estava manifestando a verdade de<br />

que o Pai planejara a obra de salvação e agora a estava levando à consumação. No jardim,<br />

Jesus falou da sua morte como o cálice que o Pai lhe dera para beber (1.11). Na mesma<br />

linha, no discurso por ocasião da última ceia ele se referiu várias vezes a "ir para o Pai" (p.<br />

ex., 13.1; 14.12, 28; 16.10, 17). Após a ressurreição, ele falou de ascender ao Pai (20.17),<br />

Vemos essa atividade do Pai em referências aos seguidores dejesus. O Pai honrará<br />

aquele que servejesus (12.26) e, de outro ponto de vista, foi o que ele ouviu do Pai quejesus<br />

ensinou aos seus discípulos (15.15). Não é surpreendente, portanto, que quando estava<br />

diante de sua partida do mundo, ele os encomendou aos cuidados do seu Pai (17.11).<br />

Como era de esperar, o elo entre o Pai e o Filho é o amor. O Pai ama o Filho (3.35;<br />

5.20; 10.17), e o Filho ama o Pai (14.31). Curiosamente, João 14.31 é o único lugar em todo<br />

o Novo Testamento em que o amor do Filho pelo Paí é mencionado de forma explícita.<br />

É possível entender a passagem no sentido de quejesus realmente orou para que Deus o salvasse daquela<br />

hora (como fazem comentaristas como Bernard e Hendricksen). Todavia, se isso for verdade, Jesus mudou<br />

imediatamente de idéia e disse: “Mas precisamente com este propósito vim para esta hora". A conjunção adversativa<br />

aXXa, que dá início a esse acréscimo também favorece a interpretação de quejesus levantou uma<br />

possibilidade e agora passa para uma razão decisiva contra o caminho proposto. Tam bém devemos observar<br />

que a suposta oração vem precedida de um subjuntivo deliberativo: “Que direi eu?”, que naturalmente iniciaria<br />

uma oração sugerida e não definitiva. A interpretação de que se trata de uma oração hipotética é favorecida<br />

por R. H . Lightfoot, Strachan e outros.


Podemos dizer, sem medo de errar, que seu amor pelo Pai está por trás de muito do que é<br />

dito e pressuposto em outros livros. Mas somente em João nós o vemos expresso com<br />

todas as letras.<br />

O %/ está em ãtivídãde<br />

Os gregos achavam que seus deuses eram muito eminentes para serem perturbados<br />

pelas atividades da insignificante humanidade, Para João, o Pai era muito eminente para<br />

deixar de atender às necessidades daqueles que criara. Ele nos relata o que disse Jesus: “Meu<br />

Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (5.17), e menciona que ele se referiu ao que<br />

vira o Pai fazer, afirmando que fazia as mesmas coisas (v. 19). Essa é uma maneira importante<br />

de demonstrar que Jesus era muito íntimo do Pai: ele não fazia coisas parecidas, mas<br />

as mesmas. Mas também mostra que o Pai está em constante atividade no mundo que<br />

criou. É verdade que Deus descansou depois dos seis dias da criação, mas isso deve ser interpretado<br />

no sentido de que descansou da criação. Se deixasse de estar em atividade, sustentando<br />

o que tinha feito, tudo deixaria de existir.3Jesus está se referindo a essa atividade contínua<br />

de Deus.<br />

Às vezes essa atividade gira em torno da glória relacionada de algum modo com o<br />

Filho encarnado. Jesus orou: “Eu te glorifiquei na terra” (17.4), e o contexto deixa claro que<br />

a glória veio porque Jesus realizara a obra que o Pai lhe dera. Da mesma maneira ele garante<br />

a seus seguidores que responderá às suas orações “a fim de que o Pai seja glorificado no<br />

Filho” (14.13). Ele mesmo orou para que o Pai glorificasse seu nome (12.28), e que glorificasse<br />

o Filho (17.5). A glória do Pai pode ser vista no "fruto” que seus discípulos dariam<br />

(15.8). O que esse “fruto” significa exatamente não é explicado aqui, mas em outras passagens<br />

do Novo Testamento descobrimos que o termo é atribuído às boas qualidades que se<br />

espera que os cristãos apresentem em sua vida (p, ex., Mt 3.8; 7.20; G1 5.22; Fp 1.11).<br />

Quando a obra de salvação de Cristo transforma a vida de pecadores, Deus é glorificado.<br />

A atividade do Pai pode ser vista na maneira em que ele ajuda para que esses frutos<br />

sejam produzidos. Se Cristo é a videira, o Pai é o agricultor (15.1).4 Entregue à própria sorte,<br />

uma videira dará pouco fruto. Para que ela produza muito, precisa ser podada com cuidado,<br />

e Jesus está dizendo que isso também vale para a esfera espiritual. O Pai está sempre<br />

C. H . Dodd cita uma frase dos textos herméticos: “Deus não está ocioso, ou todas as coisas estariam ociosas,<br />

pois todas as coisas estão plenas de Deus” (The interpretation ofthejourth Gospel. Cambridge, 1953, p. 20).<br />

4<br />

A palavra é y e iú p y o ç , que identifica quem cultiva o solo; é um termo mais geral do que “viticultor".<br />

Alguns tradutores tentam mostrar isso com termos como “lavrador" (ARC, BLH). Isso é viável, mas aqui claramente<br />

está em vista alguém que cuida de videiras.


em atividade, podando tudo o que impede a produtividade; o caráter cristão não é produzido<br />

deixando nossas forças naturais correr à solta. Outro aspecto do cuidado de Deus por<br />

seu povo é mostrado nesta promessa: “Da mão do Pai ninguém pode arrebatar” (10.29).<br />

Deus nunca abrirá mão do crente. Nossa confiança não depende de nossa pequena força<br />

para nos segurarmos no Pai, mas de sua força a nos segurar.<br />

5? missão do "ilho<br />

João fala muitas vezes que o Pai enviou o Filho, o que demonstra tanto a unidade<br />

dos dois como a compaixão de Deus com os pecadores. Deus fez isso por pecadores! Há<br />

duas palavras gregas traduzidas por “enviar”, e ambas ocorrem em João mais vezes do que<br />

em qualquer outro livro do Novo Testamento.5Somadas, há 41 referências ao envio do<br />

Filho, e “o Pai que me enviou” é uma expressão comum na boca de Jesus em todo este evangelho.<br />

Para João, é de importância fundamental que Jesus não “apareceu” simplesmente.<br />

Não devemos pensar que ele seja um mero homem religioso com uma percepção especial<br />

para os planos de Deus, a ponto de poder instruir seus contemporâneos na maneira correta<br />

de servir a Deus. Ele não era simplesmente um galileu acima da média, que teve a idéia de<br />

reunir pessoas à sua volta para lhes ensinar coisas que lhe pareciam boas, úteis ou até necessárias.<br />

Ele disse: “Não vim de mim mesmo, mas ele me enviou" (8.42; veja também 7.28;<br />

8.26). Seu ensino não provinha dele mesmo, pois ele falava as “palavras de Deus” (3.34; cf.<br />

7.16; 12.49; 14.24). Seu conhecimento de Deus estava ligado ao fato de que Deus o enviara<br />

(7.29).<br />

É da vontade daquele que enviou Cristo que ele não perdesse nenhum dos que lhe<br />

dera (6.39). A vontade de Deus é que continuem salvos. Eles foram salvos, não porque<br />

decidiram ir a Deus, mas porque o Pai que enviou Cristo os atraiu (6,44) e, tendo começado<br />

uma boa obra, ele a levará a bom termo.<br />

O próprio conceito de missão, de ser "enviado”, contém a idéia de fazer o que deseja<br />

quem enviou, e Jesus disse que sua comida é fazer a vontade daquele que o enviou (4.34);<br />

ele não procurou fazer a sua vontade, mas a daquele que o enviou (5.30); ele veio do céu<br />

exatamente com esse propósito (6.38). Achou necessário "fazer as obras daquele que me<br />

enviou" e se uniu a outros ao fazê-lo (9.4).<br />

Ele usa âTTO


A intimidade entre Pai e Filho é demonstrada com o conceito de missão. Isso significa<br />

que Jesus não está sozinho; ele disse: “Aquele que me enviou está comigo” (8.29; cf.<br />

16.32). Isso se aplica especialmente ao julgamento; quando Cristo julga, ele não está sozinho,<br />

mas o Pai que o enviou está com ele (8.16). Em várias passagens, os atos que um pratica<br />

guardam relação direta com o outro. Crer em Cristo equivale a crer naquele que o enviou<br />

(12.44); vê-lo significa ver aquele que o enviou (12.45); recebê-lo é receber aquele que o<br />

enviou (13.20; aqui também se vê a idéia de que receber um irmão equivale a receber a Cristo).<br />

Quem faz algum mal aos seguidores de Jesus o faz porque não conhece aquele que o<br />

enviou (15.21). O Pai “santificou e enviou” Jesus "ao mundo” (10.36), e isso aponta para<br />

uma missão muito especial. Quem deixa de honrar o Filho, também deixa de honrar "o Pai<br />

que o enviou” (5.23).<br />

Ele era o Filho de Deus, enviado por Deus para trazer salvação ao mundo (3.17).<br />

Por isso era importante que o mundo viesse a crer (5.24). Era evidente que os judeus que se<br />

opunham ajesus não tinham a palavra de Deus neles, porque não creram "naquele a quem<br />

[Deus] enviou” (5.38). A multidão perguntou ajesus o que devia fazer para “realizar as<br />

obras de Deus”, e ele respondeu: “A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por ele foi<br />

enviado” (6.28-29). As “obras de Deus” se reduzem a uma: crer naquele que Deus enviou.<br />

A fé aparece em relação com o envio do Filho também em outros versículos (p. ex., 11.42;<br />

17.8,21). Vida eterna é conhecer a Deus “e ajesus Cristo, a quem enviaste" (17.3). Às vezes<br />

o conhecimento é importante, e a unidade dos crentes deve levar o mundo a conhecer que<br />

Deus enviou Jesus (17.23).<br />

Duas outras coisas devem ser enfocadas. Uma é que, assim como o Filho fora enviado,<br />

um dia ele voltaria àquele que o enviou (7.33; 16.5, 7). A idéia de missão envolve a idéia<br />

da conclusão da tarefa, que é seguida do retorno daquele que foi enviado. A outra coisa é<br />

que Jesus disse aos seus seguidores: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”<br />

(20.21; cf. 17.18). O fato de o Pai ter enviado o Filho tem implicações para a vida daqueles<br />

que seguem o Filho.<br />

Deus é um Deus que envia, e isso também se vê no fato de que ele enviou o Espírito<br />

Santo (14.26). Isso, porém, observaremos quando estudarmos o ensino de João sobre o<br />

Espírito. Aqui basta constatar que João claramente considera Deus um Deus que envia.<br />

Ele enviou o Filho. Enviou o Espírito. E envia discípulos.<br />

^Üm grande CL)eus<br />

João vê a Deus como um ser todo-poderoso, plenamente capaz de realizar seus propósitos,<br />

João não dá ao “reino de Deus” (3.3, 5) nem um pouco do destaque que tem nos<br />

evangelhos sinóticos. Mas que Deus é supremo é tão claro para ele como é para os outros;


João apenas decidiu mostrar isso de maneira diferente. Por exemplo, ele deixa claro que é a<br />

vontade de Deus que é feita. E da vontade de Deus que as pessoas creiam no Filho para ter<br />

vida eterna (6.40). Com esse propósito Deus "traz” pessoas (6.44). Há um forte tom de<br />

predestinação nessas afirmações, e nós o vemos novamente quando Jesus diz: "Ninguém<br />

poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido” (6.65). João sempre deixa claro que a<br />

iniciativa em nossa salvação é de Deus. Ele é quem faz tudo,<br />

Isso pode ser definido em termos de amor, "Deus amou ao mundo de tal maneira<br />

que deu o seu Filho unigénito” (3.16)6 e, dessa maneira, realizou a salvação. Espera-se que<br />

os que foram amados tanto respondam com amor, e Jesus disse: “Aquele que tem os meus<br />

mandamentos e os guarda, esse é o que me ama” (14.21). Ele também fala dos que “não têm<br />

o amor de Deus” em si (5.42).? É possível rejeitar o amor mais maravilhoso que nos é oferecido.<br />

João deixa claro que o amor por Cristo não está separado da conduta ética. E inútil<br />

dizer que o amamos se não lhe prestamos obediência. O apóstolo diz em seguida que quem<br />

ama a Cristo será amado pelo Pai. Não devemos nos esquecer do amor de Deus quando<br />

lembramos como nossa salvação foi efetuada. João repete o pensamento (14.23), e mais<br />

uma vez ele nos diz que Jesus declarou aos seus seguidores: “Não vos digo que rogarei ao<br />

Pai por vós, porque o próprio Pai vos ama” (16.26-27). O caminho está aberto para nos<br />

aproximarmos de Deus por nós mesmos. E não estamos nos aproximando de um tirano<br />

cruel que precisa ser apaziguado por outra pessoa, mas de um Pai que nos ama. Essa<br />

também é a idéia quando Jesus fala do "dom de Deus” (4.10).<br />

Esse amor não quer dizer que as pessoas possam relaxar, achando que, já que Deus é<br />

amoroso, tudo dará certo no final, Existe a terrível "ira de Deus", e João díz que ela permanece<br />

sobre os que não obedecem (3.36). Ele não menciona "ira” novamente, mas suas referências<br />

ao julgamento e à posição que os judeus que se opunham a Jesus tinham diante de<br />

Deus mostra que ele não se esqueceu da realidade que a palavra revela, nem da verdade de<br />

que, no fundo, é preciso contar com ela.<br />

O Pai "tem vida em si mesmo” (5.26), e isso não significa tão-somente que ele está<br />

vivo. Nós estamos vivos, mas nossa vida não é indispensável. O mundo continuaria existindo,<br />

mesmo que nenhum de nós nunca tivesse nascido, Para vivermos, temos de receber<br />

Joâo diz: ü J(7 T € € Ô ú )K € V , náo (ú (J T € ÒOUPCLl, como se poderia esperar, A construção com o infinitivo é<br />

encontrada apenas 21 vezes em 84 ocorrências de (0 (7 T € no Novo Testam ento; portanto, está longe de ser comum<br />

(principalmente se lembrarmos que 15 das 21 ocorrências estão em Paulo). Parece que João está colocando<br />

ênfase no ato de dar de Deus: ele não apenas amou "o suficiente para dar”, mas amou “tanto que<br />

realmente deu”.<br />

Isso provavelmente significa que eles não amam a Deus, mas alguns estudiosos vêem aqui uma referência a<br />

pessoas que rejeitaram o amor que Deus dá. Talvez, sob sua perspectiva, João tenha as duas coisas em mente,<br />

pois, como B. F. W estco tt nos recorda, “Deus é ao mesmo tempo o autor e o objeto deste amor” (T/?e Gospel<br />

accorâing to st. John. Grand Rapids, 1954, p. 202).


vida de alguma forma. Com Deus não é assim. Sua vida é inerente ao seu ser; é vida necessária.8<br />

Sem a vida dele, não pode haver nenhuma outra. Com ele está o “manancial da vida”<br />

(SI 36.9).<br />

Outro aspecto do Pai é revelado na afirmação de Jesus de que ninguém jamais viu o<br />

Pai, “salvo aquele que vem de Deus” (6.46; cf. 1.18). Em harmonia com isso, João ensina<br />

que não se pode conhecer a Deus exceto pela revelação que Jesus traz. O mundo não<br />

conhece o Pai (17.25). A grandeza do Pai é vista nas palavras de Jesus: “O Pai é maior do<br />

que eu” (14.28). Em todo esse evangelho se destaca a grandeza de Jesus, e por isso tal afirmação,<br />

que evidentemente se aplica a ele como o Cristo encarnado, mostra que o Pai é<br />

supremo. A isso devemos ligar as duas formas como Jesus se dirige ao Pai em sua oração<br />

sacerdotal — “Pai santo” e "Pai justo” (17.11, 25). Nenhuma das duas é usada em outro<br />

lugar no Novo Testamento. Elas nos recordam aspectos éticos do ser de Deus; a grandeza<br />

do Pai não consiste em poder a qualquer custo. Deus sempre usa seu poder de modo justo.<br />

Os fílbos do 9W<br />

João traz várias frases que mostram o que significa ser filho de Deus. Deus concedeu<br />

aos que receberam o Logos o direito de se tornarem “filhos de Deus”; eles nasciam não de<br />

ato humano, mas “de Deus” (1.12-13). Isso não se aplica a algum grupinho exclusivista,<br />

porque os filhos de Deus ultrapassam em muito a nação de Israel, e faz parte da tarefa de<br />

Jesus reunir os que estão dispersos (11.52). Também não quer dizer que todos os que afirmam<br />

ser filhos de Deus pertencem realmente à família celestial. Havia quem afirmasse ter<br />

Deus por Pai, mas sua atitude em relação a Jesus e sua sujeição ao pecado mostravam que<br />

não se tratava disso (8.41-42); eram filhos do Diabo (8.44).<br />

Filhos de Deus demonstram sua ascendência com obras “feitas em Deus” (3.21). E,<br />

em resposta a um mal-entendido dos judeus quanto às “obras de Deus”, Jesus disse que<br />

obra de Deus é crer em Deus (6.28-29). Essa fé é importante e está vinculada a crer em<br />

Cristo (14.1).<br />

O templo é a “casa do Pai” (2.16; cf, 14.2), e é de acordo com isso que João dá atenção<br />

ao culto. Os samaritanos e muitos judeus pensavam que Deus tinha de ser adorado<br />

num lugar especial, fosse Samaria, fosse Jerusalém. Jesus, no entanto, disse que chegaria<br />

um tempo em que o culto seria prestado em nenhum desses lugares (4.21).<br />

O lugar não importa. O que importa é como se adora. “Deus é espírito" (4.24); a<br />

essência do seu ser não admite que o confinemos a um lugar. Por ser ele o Deus que é, as<br />

Barnabas Lindars vê aí uma referência ao "ser de Deus que subsiste por si mesmo" (The Gospel o f John, Lon-<br />

dres, 1972, p. 225).


pessoas devem adora-lo “em espírito e em verdade” (4.23). Jesus acrescenta que o Pai procura<br />

pessoas assim para o adorarem. Em outras palavras, nem todo tipo de adoração é aceitável<br />

a Deus. Aqueles que adorarem corretamente honrarão o Pai e honrarão o Filho assim<br />

como honram o Pai (5.23).<br />

O evangelho de João também registra ensinamentos sobre buscar a Deus em oração.<br />

No discurso por ocasião da última ceia, Jesus disse aos apóstolos que eles tinham sido<br />

escolhidos para dar fruto, fruto que permanece, a fim de que tudo o que pedissem ao Pai<br />

em nome de Jesus lhes fosse dado (15.16). Muita gente hoje em dia acha que a oração é<br />

pré-requisito para dar fruto: se formos pessoas de oração, nossa vida será frutífera. Mas<br />

aqui Jesus diz que, para seus apóstolos, vale o contrário disso: uma vida frutífera fará com<br />

que a oração seja mais eficaz. Isso realmente confere muita importância à oração. Jesus<br />

repete a ordem de orar em seu nome (16.23, 26), e “nome” aqui significa todo o caráter.<br />

Assim, espera-se que os discípulos orem, pedindo com base em tudo o que Jesus era e fizera<br />

por eles.<br />

Na sinagoga em Cafarnaum, Jesus citou este texto bíblico: “Serão todos ensinados<br />

por Deus” (6.45; veja Is 54.13; Jr 31.34). E ele afirmou que aquele que busca de verdade<br />

saberia se seu ensino vem de Deus (7.17). Em outras palavras, Deus dá a cada um o ensino<br />

de que precisa. Os que respondem ao que ele lhes diz reconhecem sua presença no<br />

ministério de Jesus.<br />

escãtologíã<br />

A ênfase de João é no presente, O Logos veio para estar entre nós, o que quer dizer<br />

que Deus foi revelado e está presente conosco. O amor de Deus foi dado a conhecer e, com<br />

a morte de Jesus, a salvação se tornou uma realidade presente. “Vida eterna” é uma posse<br />

presente. E possível enfatizar tudo isso a ponto de perder de vista a posição geral do Novo<br />

Testamento de que, no devido tempo, Cristo voltará, porá fim a esta vida e estabelecerá um<br />

estado definitivo para tudo.<br />

Mas isso é muito simples. E verdade que João dá bastante ênfase ao presente, mas<br />

também é verdade que ele sabe que isso não é tudo, pois inclui palavras de Jesus sobre a ressurreição:<br />

"O Pai ressuscita e vivifica os mortos” (5.21). João destaca o papel de Cristo em<br />

tudo o que acontecerá no fim e registra a declaração de Jesus de que o Pai a ninguém julga;<br />

ele passou todo o julgamento ao Filho (5.22). Jesus, no entanto, advertiu seus adversários<br />

de que é Moisés, e não ele, quem os acusará diante do Pai (5.45). O papel do Pai no julgamento<br />

é tão claro neste evangelho como em qualquer outro lugar.<br />

Há um refrão que se repete no discurso de Jesus em Cafarnaum: “Eu o ressuscitarei<br />

no último dia” (6.39, 40, 44, 54). Devemos ligar isso às palavras diretas que Jesus proferiu


quando disse: “Vem a hora em que rodos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua [de<br />

Jesus] voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem<br />

praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (5.28-29). Por ocasião da ceia, Jesus disse aos<br />

discípulos que iria partir, e acrescentou: “E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei”<br />

(14.3). Palavras como essas não nos deixam dúvidas de quejoão esperava a volta de Cristo,<br />

a ressurreição de todos os mortos e o juízo final.


O êvangelho de João<br />

Deus como<br />

êspíríto Santo<br />

í: oão contém ensinamentos muito importantes sobre o Espírito Santo. Ele começa<br />

com o testemunho de João Batista, que viu o Espírito Santo "descer do céu como<br />

pomba e pousar sobre [Jesus]” (1.32). Todos os sinóticos registram o batismo de<br />

Jesus, mas somente o quarto evangelho relata o quejoão Batista disse naquele momento, E<br />

ele relata um detalhe que não consta dos sinóticos: o Espírito Santo permaneceu sobre<br />

Jesus. O ministério público de Jesus não foi só iniciado no poder do Espírito Santo, mas o<br />

Espírito também permaneceu sobre ele por todo o ministério.<br />

João nos diz em seguida quejoão Batista não conhecia a Jesus, e que este foi o sinal<br />

que lhe foi dado para que reconhecesse aquele que batizaria com o Espírito Santo (1.33).<br />

Não está claro se isso significa quejoão Batista nunca se encontrara comjesus (é bem possível<br />

que não; ele crescera no deserto, Lc 1.80) ou se ele não sabia que Jesus era o Messias.<br />

Essa segunda possibilidade é mais provável. Seja como for, somos informados de que a vin-


da do Espírito foi um sinal de que o ministério de Jesus estava começando. A declaração de<br />

que “Deus não dá o Espírito por medida” (3.34) provavelmente se refere ao fato de o Pai ter<br />

dado o Espírito ao Filho.1<br />

cJYãsci bs b Gspírílo<br />

Em resposta ao começo de conversa tão amável de Nicodemos, Jesus disse:'(<br />

dade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o<br />

(3.3). E passou a falar de nascer “da água e do Espírito” (v. 5), do "que é naf''* ~<br />

(v. 6) e de ser “nascido do Espírito” (v. 8). Evidentemente a obra di<br />

na renovação de vidas.<br />

E impossível ter certeza se devemos traduzir<br />

pode significar as duas coisas, mas em todas as outr,<br />

evangelho ele significa "de cima”. Contra isso temo,<br />

como uma referência a um segundo na: ... . físic<br />

no. Mas isso é um erro de interpretai<br />

djlg;<br />

'spirito<br />

é importante<br />

O advérbio<br />

que ele ocorre neste<br />

que Nicodemos o entendeu<br />

is falou de voltar ao ventre mater-<br />

s entender o sentido da palavra como<br />

“novo", não “de novo”. Jesus está falando\p5>lgb completamente novo. Muitas expressões<br />

no quarto evangelho podem ser/érrtmdidas de mais de uma maneira. Seja como for, o nascimento<br />

do qual Jesus^&síáTlãtóido/: um renascimento, mas também é de cima. Não<br />

podemos descartar nenim d^dois.<br />

Há muiC^raéíàXem^-mação a como devemos entender o nascimento “da água e do<br />

Espírito”/ ma^ías\òo^em ser divididas, a grosso modo, em três grupos. Primeiro, há os<br />

que comiá&ram W gna como referência à purificação. E natural associar a água com o lavar<br />

Alguns estudiosos tornam isso específico, mencionando o batismo de<br />

st^como “batismo de arrependimento” (Mc 1.4). A idéia, então, seria que se deve<br />

batismo de João Batista e se arrepender, e depois passar para o “batismo com o<br />

r\ expressão tamoem poae ser entenaiaa no sentiao ae que o rim o aa o espirito aos crentes sem meaiaa.<br />

M as os crentes não têm o Espírito como o Filho o tem e, por outro lado, como Agostinho e Calvino já mostraram,<br />

a graça é concedida a cada um de nós “segundo a proporção do dom de Cristo” (E f 4.7). Em termos gramaticais,<br />

é possível tomar “o Espírito” como sujeito e nâo objeto do verbo, e então o sentido seria que o<br />

Espírito concede seus dons sem limite. Mas não são muitos os que aceitam essa interpretação.<br />

A palavra é à l'b J0 € P , que significa “de cima” em 3.31; 19.11, 23. M as João gosta de usar palavras que podem<br />

ser entendidas em mais de uma maneira, e alguns estudiosos pensam que ele quer que seus leitores vejam<br />

os dois sentidos aqui (cf. Barclay: "renascido de cima”),<br />

Bultmann e outros acham que v S a T O Ç K d í é uma inserção posterior e rejeitam as palavras. Esse juízo,<br />

porém, não foi feito com base textual; as evidências dos manuscritos são convincentes em favor das palavras, O<br />

argumento tem base teológica, e as conclusões a que quer levar não são convincentes. Devemos manter as palavras.


Espírito Santo" que Jesus traz. Ou se pode deixar a coisa mais geral: primeiro precisa ocorrer<br />

a limpeza do mal, a rejeição de tudo o que é errado. Depois essa ação precisa ser completada<br />

por outra — a obra do Espírito, que capacita os crentes a andar no caminho de Deus.<br />

Uma segunda maneira de entender “água” é vê-la relacionada ao nascimento físico.<br />

Se ela se refere ao rompimento da bolsa de água por ocasião do nascimento de uma criança,<br />

Jesus está aludindo ao nascimento físico comum e normal, dizendo que ele precisa ser<br />

seguido de um nascimento espiritual, pois “o que é nascido da carne é carne; e o que é nascido<br />

do Espírito é espírito” (v, 6). O ser humano natural não pode entrar no reino; é necessária<br />

a obra do Espírito Santo antes que isso possa ocorrer.<br />

Também podemos ligar água ao nascimento físico de uma maneira muito diferente<br />

do nosso uso de água. H , Odeberg demonstrou que, em fontes rabínicas e outras fontes<br />

antigas, palavras que indicavam algo molhado (“água”, "orvalho”, “chuva”, “gota” etc.) muitas<br />

vezes eram usadas como eufemismo relacionado com sêmen.4 Isso resultaria num sentido<br />

próximo ao que acabamos de ver — nascido do modo comum, natural, e também<br />

nascido do Espírito.<br />

T odavia, podemos entender “água” e “Espírito” juntos, dando o sentido de “água<br />

espiritual" ou “semente espiritual” (com o apoio do fato de que, em grego, o mesmo “de”, ek,<br />

rege os dois substantivos). Nesse caso, Jesus está dizendo que quem quiser entrar no reino<br />

precisa nascer espiritualmente; a expressão significaria a mesma coisa que nascer “do Espírito".<br />

Essa posição é muito provável porque João usa com freqüência pequenas variações<br />

para dizer a mesma coisa. Desse ponto de vista, ser “nascido da água e do Espírito” teria o<br />

mesmo sentido de ser “nascido do Espírito”.<br />

A terceira maneira principal de entender a passagem é vê-la como uma referência ao<br />

batismo cristão. Alguns estudiosos entendem que a ligação de água, usada quando um<br />

recém-convertido era iniciado na igreja, com “nascer” como início da vida espiritual, parece<br />

indicar de modo irrefutável o batismo. Para apoiar esse ponto de vista argumenta-se que,<br />

na época em que o evangelho de João foi escrito, essa provavelmente seria a maneira mais<br />

natural de se entenderem as palavras, e o escritor devia saber de que modo seus leitores as<br />

entenderiam. E bastante óbvio que esse argumento contém um grande elemento subjetivo,<br />

pois não temos como saber até que ponto essa interpretação teria sido “natural” naquela<br />

época.<br />

Há um argumento muito forte contra essa posição, que é a impossibilidade de<br />

Nicodemos compreender a Jesus, se o sentido fosse esse. No momento dessa conversa, a<br />

instituição da igreja estava alguns anos no futuro, e Nicodemos não poderia ter entendido<br />

Thefourth Gospel, Uppsala, 1929, p. 48-71. Talvez também devamos observar que as religiões de mistério<br />

usavam a idéia de renascimento. Só que elas pensam numa renovação mágica, não na transformação de toda a<br />

vida que caracteriza o nascimento do qual Jesus está falando.


uma alusão a um sacramento ainda não existente. Só podemos manter esse ponto de vista<br />

se abandonarmos totalmente a historicidade do relato.<br />

A melhor maneira de entender a passagem parece-me ser a segunda, e no sentido de<br />

que água aponta para sêmen. Nesse caso, Jesus estaria enfatizando que o modo de entrar<br />

na vida não é pelo esforço humano (independentemente de como queiramos entendê-lo),<br />

mas por obra do Espírito de Deus. Essa é uma verdade que João reforça em todo o seu<br />

evangelho (cf. 1.13). Jesus não veio simplesmente para ordenar que as pessoas se esforçassem<br />

mais; antes, ele veio para lhes trazer nova vida no Espírito. Isso é o que Jesus está<br />

dizendo a Nicodemos. A repetição denota ênfase: nascer de cima, da água e do Espírito, do<br />

Espírito.5E Jesus em seguida diz a Nicodemos que será “levantado" para que todos os que<br />

crerem nele tenham vida eterna (3.14-15). Precisa acontecer a ação do Espírito para podermos<br />

ver o que a cruz significa e entrar pela fé na vida que Cristo veio nos trazer por sua<br />

6<br />

morte.<br />

Há um contraste entre a carne e o Espírito e uma ligação entre o Espírito e a vida<br />

numa discussão depois do sermão na sinagoga em Cafarnaum. Os ouvintes acharam<br />

“duro” o que Jesus dissera (6.60), e ele respondeu dizendo-lhes que é o Espírito quem dá<br />

vida, enquanto a carne para nada aproveita; suas próprias palavras "são espírito e são vida”<br />

(6.63). O pensamento é complexo. Certamente há um contraste entre a interpretação perversa<br />

e carnal que os judeus estavam dando às palavras de Jesus e a compreensão que teria<br />

uma pessoa convencida pelo Espírito. Também há a idéia de que seguir a letra não dá vida,<br />

como os mestres judeus parecem ter ensinado. “Grande é a Lei”, disseram os pais, “pois ela<br />

dá vida àquele que a pratica, neste mundo e no vindouro” (Mishná, Aboth 6.7). Jesus não<br />

está ensinando que se siga alguma lei; ele está enfatizando a liberdade que a vida no Espírito<br />

traz. Suas palavras são "espírito” e são "vida”, não porque formam uma lei nova e com mais<br />

autoridade, mas porque são criadoras: elas põem as pessoas em contato com o Espírito<br />

Santo que dá vida. Isso não se refere apenas a uma frase de efeito aqui e ali; todas as suas<br />

palavras presumem que apenas a obra do Espírito Santo gera vida espiritual. Há uma<br />

ligação inseparável entre vida e Espírito Santo.<br />

É possível que devamos ver uma referência ao Espírito na primeira parte do v. 8, em que a maioria dos tradutores<br />

e comentaristas entende que o sentido é “o vento sopra onde quer...” FÍUÊVpci, porém, é a palavra normalmente<br />

traduzida por “espírito” no Novo Testam ento, e podemos traduzir a frase assim: “O Espírito sopra<br />

onde quer...” A mim parece que “vento” provavelmente é o sentido aqui, mas não devemos descartar a possibilidade<br />

de João ter os dois sentidos em mente.<br />

E. Schweizer observa que os discípulos farão “obras maiores” do que Jesus (14.12) e descarta a idéia de que<br />

isso aponta para milagres como curas (os pagãos tinham histórias como essa). “Parajoão, o milagre supremo e<br />

quando alguém é levado à fé. Quando isso acontece, um novo mundo raia, um novo tipo de vida começa. [...] E<br />

o Espírito Criador que nos chama à vida” (The Holy Spirit, Londres, 1981, p. 71).


0 lempo do Qspíríto<br />

Outra declaração difícil deste evangelho consta do relato que João faz do que Jesus<br />

disse quando ensinou no último dia da festa dos Tabernáculos. Tradicionalmente, a primeira<br />

parte da afirmação tem sido entendida como em A R A : “Se alguém tem sede, venha a<br />

mim e beba, Quem crer em mim, como diz a Escritura., do seu interior fluirão rios de água<br />

viva” (7.37-38). Há dificuldades para encontrar uma passagem do Antigo Testamento que<br />

diga isso, e por isso muitos, hoje em dia, posicionam o ponto depois de “mim” e não depois<br />

de “beba”, como na B J: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba, aquele que crê em mim!<br />

conforme a palavra da Escritura...” As palavras sobre a água viva que fluirá do seu coração<br />

podem, então, ser entendidas como uma referência a Cristo e não ao cristão. Na verdade,<br />

não se ganha muito com isso, porque é mais difícil encontrar uma passagem do Antigo<br />

Testamento que diga que Cristo concede a água viva do que uma que diga isso em relação<br />

ao cristão. Pelo menos para esta há algumas que se referem à bênção de Deus em termos de<br />

água, com a implicação de que ela seja dada adiante (cf. Is 58.11; Ez 47.1ss). Cristo deve ser<br />

visto como a fonte primária, mas também é verdade que o crente passa a bênção para<br />

outros, e parece que é isso que Jesus está dizendo.7<br />

O grande problema, porém, vem com o que João diz em seguida. João diz que Jesus<br />

estava falando do Espírito, que haveriam de receber aqueles que cressem nele, e depois<br />

acrescenta palavras entendidas de várias maneiras: “O Espírito até aquele momento não<br />

fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado” (maioria das traduções), ou “Não<br />

havia ainda Espírito” (B J; Moffatt). Em termos literais, João diz isso mesmo: “Ainda não<br />

Espírito". A dificuldade com a B J é que toda a Bíblia mostra que havia o Espírito Santo, e<br />

sempre houve. A dificuldade com “o Espírito ainda não fora dado” é dupla: 1) Não há palavra<br />

que corresponda a “dado” no texto grego, e 2) na verdade, antes houve pessoas cheias do<br />

Espírito, como Isabel e Zacarias (Lc 1.41, 67).<br />

Devemos levar a sério o sentido literal das palavras. João está dizendo “ainda não<br />

Espírito” no sentido de que vemos o Espírito atuando a partir do dia de Pentecostes.<br />

Haviam ocorrido manifestações do Espírito, mas ele ainda não estava plenamente em ação,<br />

e só estaria depois que Jesus fosse "glorificado”. Na administração divina, a obra do Filho<br />

precedia a do Espírito; era necessário que o sacrifício expiatório fosse oferecido antes que o<br />

derramamento do Pentecostes pudesse ocorrer. Não nos é dito por que isso é assim. Mas<br />

claramente foi o que aconteceu. H á nos evangelhos alguma coisa do que o Espírito estava<br />

fazendo, mas há uma série de atividades do Espírito em Atos que continuam nas epístolas.<br />

A lingüística parece ser contra a variante. Em termos gramaticais, “seu ’ deve se referir a “quem” e não a<br />

“mim”. Além disso, é o sedento que precisa beber, e não o crente. N este sentido metafórico, crer é beber.


0 &spíríto da oerdade<br />

Durante a última ceia, na noite antes da crucificação, Jesus transmitiu um ensinamento<br />

importante sobre o Espírito Santo. Há cinco passagens principais: 14.16-17; 14.26;<br />

15.26; 16.7-11; 16.12-15. Jesus o chama de "Espírito da verdade” (14.17; 15.26; 16.13),<br />

expressão que aponta para um dos grandes conceitos deste evangelho. João fala muito da<br />

verdade e deixa claro que, em seu sentido mais profundo, a verdade tem uma ligação estreita<br />

com Jesus e com o que ele está fazendo (14.6). O Espírito, portanto, está ligado á verdade<br />

de Deus que vemos na obra de Jesus. Ele é "o Espírito que transmite a verdade”,8 o Espírito<br />

que ensina às pessoas a verdade do evangelho, a verdade que está em Jesus.<br />

Os manuscritos de Qumran também usam essa terminologia ao se referir aos "espíritos<br />

da verdade e do erro” (1Q S iii 18-19). Esse, porém, é um exemplo impressionante de<br />

como os mesmos termos contêm uma grande diferença no ensino. Os homens de Qumran<br />

consideravam o "espírito da verdade” um dos espíritos que lutavam pelo domínio dentro<br />

do ser humano. Parece que o "espírito do erro” está no mesmo nível do "espírito da verdade”;<br />

não existe a grandiosidade que João vincula ao Espírito Santo. Aqueles que adoram o<br />

Pai devem fazê-lo “em verdade” (4.23-24), e Jesus é “a verdade” (14.6); “o Espírito da<br />

verdade”, portanto, liga o Espírito ao Pai e ao Filho.<br />

Como Espírito da verdade, o Espírito conduzirá os discípulos em (ou a)9 toda a verdade<br />

(16.13). Isso não é verdade como conceito filosófico, mas a verdade revelada em Jesus;<br />

o Espírito os levará a uma compreensão ainda mais plena do que essa verdade significa. E à<br />

medida que o Espírito nos conduz e não por meio da sabedoria deste mundo que veremos<br />

o que vem a ser a verdade de Deus. Mas o Espírito não está fazendo alguma revelação própria<br />

que substitua aquilo que Jesus disse. Jesus diz expressamente; "[Ele] não falará por si<br />

mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido”; não haverá uma revelação nova, dada pelo<br />

Espírito. O Espírito continuará o ensino que Jesus deu.<br />

Provavelmente devemos entender as palavras que seguem da mesma maneira: "[Ele]<br />

vos anunciará as coisas que hão de vir”. Dificilmente podemos entender isso com o sentido<br />

de que o futuro será esclarecido aos cristãos, porque: 1) as palavras não dizem necessariamente<br />

isso, e 2) em todos esses séculos os cristãos têm estado tão perplexos como todos os<br />

outros quanto ao que está por vir. Antes, as palavras significam que o Espírito levará os<br />

crentes a entender o que o caminho cristão significa. Na época em que Jesus falou não havia<br />

teólogos cristãos que tivessem desenvolvido uma compreensão do que é o cristianismo. Ne<br />

C. K . Barrett, The Gospel according to st.John. Philadelphia, 1978, p. 463.<br />

Alguns manuscritos têm S P e outros (' l Ç. M as essas duas preposições nem sempre são usadas de m o ::<br />

completamente distinto no Novo Testam ento, e talvez não devamos dar muita importância a essa diferença.


transcurso dos séculos, porém, o Espírito esteve agindo na igreja e levou o povo de Deus a<br />

uma maior compreensão do que a sua fé significa.<br />

0 mestre da igreja<br />

Há bastante ênfase na função de ensino do Espírito Santo nesses discursos. Jesus<br />

disse que ele ensinaria aos discípulos “todas as coisas” (panta, 14.26). Isso é ampliado com o<br />

acréscimo destas palavras: "E vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito". Portanto, o<br />

que o Espírito ensina é o que foi revelado em Cristo, O que Jesus ensinou não será substituído<br />

mais tarde por alguma nova “dispensação do Espírito". O Espírito ensina o que Jesus<br />

ensinou. A revelação cristã definitiva foi feita em Cristo, e mesmo que algumas implicações<br />

dessa revelação ainda estejam por se desvendar, é essa revelação e não alguma outra que é o<br />

objeto correto do ensino cristão.<br />

O Espírito “dará testemunho” de Cristo (15.26). A idéia de dar testemunho é<br />

importante neste evangelho e aponta para algo que é certo, não uma possibilidade que possa<br />

ser substituída por algo melhor. Quando, portanto, o Espírito “dá testemunho”, ele está<br />

mostrando quem Jesus era e o que ele fez. E significativo que logo em seguida Jesus diz:<br />

“Vós também testemunhareis”. Não se pede que os apóstolos melhorem o que seu mestre<br />

lhes ensinou e fez por eles; eles simplesmente contarão tudo isso a outros. Mas só o farão à<br />

medida que o Espírito os guiar.<br />

Jesus diz: “[O Espírito] me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há<br />

de anunciar” (16.14). O Espírito não veio para desviar a atenção de Jesus, assim como não<br />

veio para modificar o seu ensino. Por isso, tudo o que ele fizer glorificará a Cristo, e novamente<br />

temos a idéia de que é o ensino dejesus e não alguma novidade que o Espírito transmitirá<br />

aos apóstolos. Desta vez temos um adendo: “Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso<br />

é que vos disse que há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (16.15). Jesus está<br />

falando das coisas que pertencem a ninguém menos que Deus, e essas coisas não podem ser<br />

tratadas com leviandade.<br />

S?presença divina<br />

O espírito estaria com os apóstolos para sempre (14.16). Jesus explica que, longe de<br />

ter o Espírito para sempre, o mundo nem sequer pode receber o Espírito da verdade<br />

(14.17); ele não o vê, não o conhece. Por toda a história da igreja, quem estava fora da igreja<br />

considerou o cristianismo tolice. Ele não faz sentido para aqueles que são insensíveis aos<br />

estímulos do Espírito da verdade. Para aqueles que o recebem, a história é outra. Nada em


todo este mundo pode se comparar ao conhecimento que podemos ter de Deus e à habitação<br />

do seu Espírito em nós, com a paz, o poder e o dinamismo que essas realidades<br />

proporcionam.<br />

“Convém-vos que eu vá”, disse o mestre, “porque, se eu não for, o Consolador não<br />

virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei” (16.7). Para os que estavam com<br />

ele na última ceia, essa afirmação deve ter sido angustiante. Eles tinham deixado tudo —<br />

casa, família, amigos e trabalho — para estar com ele.<br />

Agora ele diz que é melhor para eles que ele os deixe. Ele lhes está dizendo que sua<br />

presença física, que lhes foi útil durante o seu ministério, não era a melhor coisa para eles.<br />

Obviamente ela estava sujeita a limitações de tempo e espaço, e as necessidades dos discípulos<br />

nem sempre surgiam quando eles estavam fisicamente junto dele. A vinda do Espírito,<br />

no entanto, era diferente. Seria uma presença que jamais seria tirada. Era melhor para<br />

eles, como também é para nós, que o Espírito divino esteja permanentemente presente.<br />

Essa presença é algo que pertence aos que são de Deus e somente a eles. Jesus disse<br />

claramente sobre o Espírito que o mundo não o recebe “nem pode”; ele não o vê nem o<br />

conhece (14.17). Há pessoas espiritualmente cegas e ignorantes. Sem visão nem conhecimento,<br />

é claro que elas não podem se pronunciar sobre as atividades do Espírito. Para elas,<br />

esse território é completamente desconhecido. Todavia, Jesus disse aos discípulos que o<br />

Espírito ficaria com eles e estaria neles (14.17). Aquilo que o mundo é incapaz até de perceber<br />

é uma das boas dádivas de Deus para os discípulos. O triunfo sobre o mal não é uma<br />

conquista humana; é resultado da obra do Espírito Santo em seu povo e em favor dele.<br />

Convencendo o mundo<br />

No entanto, apesar de o mundo não reconhecer o Espírito de Deus, e apesar de a<br />

maior parte da atuação do Espírito se dar nos que são de Deus, há uma obra que se realiza<br />

nos incrédulos. E o Espírito que “convence” o mundo do pecado, da justiça e do juízo<br />

(16.8). O verbo é usado com vários sentidos, mas um deles claramente é "provar que<br />

alguém está errado” (p. ex„ quando Tiago fala de ser “arguido pela lei", T g 2.9).10 Büchsel<br />

diz que no Novo Testamento o verbo significa "mostrar a alguém seu pecado e chamá-lo<br />

ao arrependimento”.1'<br />

O verbo é êAéyxco. MM dá exemplos do seu uso nos papiros, incluindo um caso em que o particípio é<br />

usado no sentido de “promotor". Eles vêem o sentido no quarto evangelho, principalmente nessa passagem,<br />

como “revelar o verdadeiro caráter de alguém e sua conduta".


E natural que todos nós coloquemos em destaque o que realizamos. Por natureza,<br />

não nos vemos como pecadores. Sempre há circunstâncias atenuantes, no fundo não<br />

somos maus; fomos tentados além da conta, apanhados num momento de fraqueza, ou<br />

derrotados por tentações inesperadas. É preciso que o Espírito Santo aja em nosso coração<br />

para que nos vejamos como realmente somos — pecadores, pessoas que infringiram a lei<br />

de Deus e são culpadas diante dele, que têm de dizer: "Não fizemos o que deveríamos ter<br />

feito e fizemos o que não deveríamos ter feito”.<br />

A afirmação de que o Espírito convencerá o mundo do pecado Jesus acrescenta:<br />

“Porque não crêem em mim” (16.9). Isso poderia dar a entender que o pecado deles consiste<br />

em não crerem em Jesus, e de fato, não importa como entendamos as palavras, em última<br />

instância a incredulidade é fatal. As palavras, no entanto, podem ser entendidas no sentido<br />

de que a incredulidade é um exemplo notório de pecado, ou talvez que a incredulidade<br />

mostra que o mundo tem idéias totalmente erradas sobre a natureza do pecado. Nenhuma<br />

dessas possibilidades é impossível. Já escrevi que o pecado fundamental é aquele que põe a<br />

pessoa no centro das coisas e que, em conseqüência disso, se recusa a crer. Esse é o pecado<br />

característico do mundo. Ele recebeu sua expressão clássica quando Deus enviou seu Filho<br />

ao mundo e este se recusou a crer nele. O mundo é culpado, mas precisa do Espírito para<br />

entender isso.12<br />

O Espírito também convencerá o mundo "da justiça", porque Jesus iria para o Pai e<br />

os discípulos não o veriam mais (v. 10). O convencimento que resulta da partida de Jesus<br />

está claramente ligado ao que aconteceu no Calvário. A terminologia da justificação, com<br />

sua ênfase na justiça, é típica de Paulo, mas essa passagem mostra que Jesus a usou durante<br />

o seu ministério terreno. Ao morrer, Jesus foi totalmente obediente à vontade de Deus, e<br />

por isso agiu em justiça. E é essa morte que permite a pecadores estar diante de Deus como<br />

justos. A verdade sobre a justiça, porém, não é uma descoberta humana; se chegamos a<br />

conhecê-la, é porque o Espírito Santo realizou sua obra de convencimento.13<br />

A terceira parte da obra de convencimento do Espírito diz respeito ao “juízo, porque<br />

o príncipe deste mundo já está julgado” (v. 11). "O príncipe deste mundo”, é claro, é<br />

Satanás (cf. 12.31), e a cruz de Cristo significou sua derrota. Muitos textos recentes contêm<br />

uma forte ênfase na derrota do Maligno, e essa é uma parte importante da obra expiatória<br />

de Cristo. Mas não devemos esquecer que a expiação não é simplesmente um ato de<br />

poder. Ê um ato de julgamento. Cristo agiu de acordo com o que é certo, e por isso Satanás<br />

não foi destronado simplesmente porque não teve poder suficiente para resistir a Deus, Ele<br />

2 The Gospel accordíng to John. Grand Rapids, 1971, p. 698.<br />

Cf. W illiam Barclay: “Pensando bem, é impressionante o fato de as pessoas colocarem num criminoso ju ­<br />

deu crucificado sua confiança em relação à eternidade. O que convence as pessoas de que este judeu crucificado<br />

é o Filho de Deus? Essa é a obra do Espírito Santo. É o Espírito Santo quem convence as pessoas da justiça total<br />

de Cristo” ( The Gospel ofjohn. Edinburgh, 1956, 2:225),


foi derrubado porque essa era a coisa certa a fazer. Na cruz se fez justiça, mas precisamos<br />

da ação do Espírito Santo para poder ver isso. Do ponto de vista do mundo, a cruz foi um<br />

erro jurídico, a execução indevida de um homem inocente. Mas isso é só uma parte do que<br />

aconteceu ali. O Espírito mostra ao povo de Deus que foi um julgamento justo que<br />

derrubou o Maligno.<br />

0 arácleio14<br />

No discurso da última ceia, Jesus se refere ao Espírito como o paraklêtos, palavra<br />

grega muito difícil de traduzir, e por isso mesmo muitas vezes translíterada simplesmente<br />

como "Parácleto” (cf. B j) . Não se trata de uma tradução de um termo hebraico, e os judeus,<br />

na verdade, também o transliteravam. Por isso temos de procurar seu sentido em fontes<br />

gregas.<br />

Literalmente, o sentido é “chamado para o lado de”, com um pedido de ajuda subentendido.<br />

O léxico de grego de Liddell e Scott define a palavra assim: “Chamado para ajudar<br />

num tribunal; como substantivo, auxiliar de justiça, advogado”. A palavra, por essa razão,<br />

poderia indicar alguém como o advogado de defesa nos tribunais de hoje, e esse é o raciocínio<br />

por trás de traduções como “Conselheiro” ( N V l). Johannes Behm nega que se trata do<br />

termo técnico relativo à pessoa que conduz a defesa num julgamento, mas concorda que ele<br />

deve ser entendido "pelo prisma da ajuda legal, como defesa de alguém”.15 O que ele quer<br />

dizer é que a palavra podia se referir a qualquer pessoa que ajudasse o réu no tribunal, náo<br />

apenas para o profissional que conduz a defesa. Mas pelo menos podemos dizer que a<br />

palavra é aplicada a alguém que ajuda e que ela vem de um contexto legal.<br />

Em suas cinco ocorrências no Novo Testamento (todas nos escritos de João —<br />

quatro vezes no evangelho e uma em ljoão), não há muita ênfase em seu sentido legal (diferente<br />

de ljoão 2.2). Assim, enquanto o assessor legal tinha a tarefa de instruir o tribunal, o<br />

evangelho de João mostra o Parácleto ensinando os apóstolos (14.26), estando sempre<br />

com eles (14.16) e dando testemunho de Jesus (15.26). Ele é quem “convence” o mundo, ou<br />

seja, ele tem a função de promotor, não de defensor.<br />

O que transparece em todas as passagens em que o Parácleto é mencionado é que ele<br />

está em atividade, ajudando as pessoas (Moffatt e N T L H traduzem a palavra por “Ajuda-<br />

Outras grafias recebem apoio dos melhores dicionários: Paráclito, Paracleto, Paraclito (N . do E.).<br />

TDNT, 5:801. Ele diz: “N ão há nenhum exemplo de TTapáKÀrjTOÇ, à semelhança de seu equivalente advo-<br />

catus em latim, usado em referência ao conselheiro ou advogado de defesa de um réu, com o mesmo sentido de<br />

a w S l KOÇ ou avvrj yopoç", que, diz ele, “ainda é a palavra usada em grego moderno nas referências ao advogado<br />

no tribunal” (Ibid., 801 n. 8).


dor”). Podemos ver a origem legal do termo no fato de que os pecadores estarão numa difícil<br />

situação quando acusados no tribunal celestial, e seria correto dizer que toda a ajuda que<br />

o Parácleto dá (ensinando os apóstolos e recordando-lhes o que Jesus disse, além de dar<br />

testemunho de Jesus e convencer o mundo do pecado) tem o propósito de ajudar a preparar<br />

as pessoas para o dia em que se encontrarão com Deus. O Espírito está preocupado<br />

com as questões do fim, além das coisas que importam aqui e agora.<br />

Há um ambiente jurídico, portanto, para o que o Parácleto faz, mas nenhum termo<br />

jurídico abrange completamente o seu trabalho. Podemos usar termos como “amigo” ou<br />

“consolador”, mas eles negligenciam a origem legal. Só nos resta usar a transliteração<br />

“Parácleto”, ou uma tradução que não faz justiça a algum aspecto da obra do Espírito. O<br />

que importa, no entanto, é que entendamos o que o termo significa, não que encontremos<br />

um equivalente em nossa língua que chame a atenção para todos os aspectos do seu<br />

trabalho.<br />

0 Gspíríto na igreja<br />

Na noite posterior à ressurreição, Jesus encontrou seus discípulos reunidos com<br />

portas fechadas. Entre outras coisas, Jesus soprou sobre eles e disse: “Recebei [o] Espírito<br />

Santo” (20.22). Suas próximas palavras podem ser entendidas como: “Se de alguns perdoardes<br />

os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos”, ou: "Aqueles a<br />

quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes<br />

ser-lhes-ão retidos” (Bj).16 Não há muita diferença no sentido, e o problema não é esse. O<br />

problema está em se Jesus está concedendo à igreja o poder de perdoar os pecados das pessoas<br />

por meio dos seus ministros autorizados. A Igreja Católica Romana, por exemplo, vê<br />

aqui o poder da absolvição e entende que o versículo se aplica aos sacerdotes individualmente.<br />

Há dificuldades com essa posição. Uma é o fato de que o verbo “soprou” não tem<br />

objeto. Temos de inserir algo em português, porque não podemos dizer: “Ele soprou e disse...”<br />

Mas devemos ter certeza que não há uma série de sopros sobre indivíduos enfileirados;<br />

João está falando de um único sopro sobre o grupo. E uma dádiva aos discípulos como<br />

um todo, não a indivíduos entre eles.<br />

Depois temos o problema da composição do grupo. Aqueles que vêem aqui o poder<br />

da absolvição geralmente não acham que ele seja concedido a todo cristão (apesar de R. H.<br />

O problema é o sentido de ã v . Pode se tratar da conjunção “se” ou do pronome "aqueles". A maioria dos<br />

tradutores mais recentes faz a primeira opção, ao contrário da BJ,


Strachan adotar esse ponto de vista'7), mas o restringem ao sacerdócio. Eles acreditam que<br />

somente os apóstolos estavam presentes nessa ocasião. Mas há poucas garantias disso. João<br />

certamente está descrevendo a mesma reunião de Lucas 24.33ss., que incluiu Cleopas e<br />

uma pessoa não identificada que estava com ele. É plenamente possível que outros discípulos<br />

estivessem presentes; não temos nenhuma indicação para restringir a reunião aos<br />

apóstolos.<br />

Além disso, o objeto está no plural nas duas frases. Jesus não está falando de indivíduos,<br />

mas de grupos de pessoas, de classes. Quando a igreja é guiada pelo Espírito, ela pode<br />

declarar com autoridade quais pecados são perdoados e quais não. A declaração não deve<br />

ser feita pelo sacerdote ao penitente individual, mas pela igreja ao mundo. A questão não é<br />

diferente do “ligar” e “desligar” dos rabinos, que apontava para atos proibidos e permitidos.<br />

Devemos ter em mente também que o poder de reter pecados está em paralelo com<br />

o de perdoar. Levando em consideração a falibilidade humana, é impossível pensar que<br />

Deus daria a uma pessoa (ou grupo de pessoas) em especial o direito absoluto de reter<br />

pecados no sentido de privar do perdão. Talvez possamos pensar que, quando um sacerdote<br />

cometia um erro e perdoava alguém que não devia ter perdoado, Deus assim mesmo<br />

endossaria a ação. O que não podemos pensar é que, quando um sacerdote comete um erro<br />

e retém um pecado que deveria ter perdoado, Deus não concederá o perdão. Nessa passagem,<br />

porém, as duas coisas andam juntas.<br />

Em todo caso, os verbos (segundo o melhor texto) estão ambos no tempo perfeito.<br />

Jesus está dizendo que, quando a igreja, cheia do Espírito, anuncia que este ou aquele pecado<br />

está perdoado, se verá que o perdão já foi concedido. Ele não está dando à igreja o poder<br />

de fazê-lo ali naquele momento. O Espírito capacita a igreja a declarar com autoridade o<br />

que Deus fez na questão do perdão ou de reter pecados ,'8<br />

João, portanto, tem uma enorme riqueza de ensinamentos sobre o Espírito Santo,<br />

considerando o pouco espaço que dedica ao tema. A maneira como o dom do Espírito é<br />

relacionado à glorificação de Cristo é de grande importância e nos dá a melhor explicação<br />

do motivo de tão pouca informação sobre o Espírito Santo antes dos fatos do dia de Pentecostes<br />

e de tanta coisa sobre ele depois. Em cada época também é vital deixar clara a impor-<br />

R. H . Strachan, Tbefourtb Gospel London, 1955, p. 329,<br />

Alguns estudiosos vêem outra referência ao Espírito nas palavras geralmente consideradas a maneira de<br />

João descrever a morte de Jesus: “Inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (19.30). A maioria dos estudiosos entende<br />

que o artigo “o ” equivale a “seu”, e que Jesus entregou seu espírito na morte. Hoskyns, porém, acredin<br />

ser possível entender as palavras como "ele entregou o Espírito”, palavras “dirigidas aos fiéis que estavam ao r ;<br />

da cruz”. Ele conclui sua análise dizendo que sua interpretação “não é só possível, mas necessária” (E. C<br />

Hoskyns em Tbefourtb Gospel, ed. F. N . Davey. London, 1950, p. 532). Seu argumento, no entanto, não é cor.-<br />

vincente, e devemos ver aqui uma referência ao modo como Jesus morreu, e não à concessão do Espírito ac:<br />

cristãos.


tância central e a absoluta necessidade do renascimento pelo Espírito. É uma tentação<br />

constante, para nós, pensar que entramos na vida eterna por esforço próprio, e temos sempre<br />

de ser lembrados de que, para nascer espiritualmente, não podemos fazer mais do que<br />

fizemos para nascer fisicamente. No evangelho dejoão, o papel do Espírito recebe um destaque<br />

que os cristãos jamais devem desprezar.19<br />

19 Devemos notar que a divisão mais séria na igreja ocorreu, pelo menos oficialmente, por causa da interpretação<br />

de "procede" em 15.26. A Igreja Oriental afirma que isso significa que o Espírito tem sua origem no Pai,<br />

que é visto como a única “fonte” da divindade. O orientais recitam o Credo de N icéia usando a expressão “procede<br />

do Pai”, ao passo que no Ocidente se diz “procede do Pai e do Filho”. N ão pode haver dúvida de oue as<br />

palavras foram inseridas no Credo no O cidente sem a autoridade adequada. Mas isso não 5:£r.:r.c= :<br />

O riente esteja certo. O ponto central em nosso estudo é que TropeV ETai no versículo em questão não esta<br />

descrevendo as relações eternas entre as pessoas da Trindade, mas se referindo ao envio do Espírito ao mundo<br />

depois da partida do Filho. A passaee— não é pertinente para essa controvérsia.


Capitulo 15<br />

J<br />

0 Smngelho de João<br />

A vida cristã<br />

oão tem um grande interesse na maneira pela qual entramos na nova vida possibilitada<br />

pelo que Deus fez em Cristo. Ele está igualmente interessado no que está<br />

envolvido em nossa decisão de viver a vida cristã. Vida é uma categoria importante<br />

em todos os escritos joaninos. A palavra aparece 36 vezes no quarto evangelho, 13 nas cartas<br />

e 17 em Apocalipse. Fora dos textos de João, o maior número de vezes é 14 em Romanos;<br />

depois, 7 em Mateus.<br />

João também usa o verbo “viver” 17 vezes. E evidente quejoão tem um interesse acima<br />

do normal na vida como conceito cristão. Em seu evangelho, ele fala 17 vezes de "vida<br />

eterna", mas não parece estar fazendo uma distinção nítida entre “vida” e “vida eterna”; o<br />

conteúdo mais amplo dado pelo adjetivo torna a vida cristã tão distinta que, sempre que se<br />

refere a ela, a vida eterna é o que ele tem em mente, usando o adjetivo ou não. E, é claro, ele<br />

tem muitas coisas a dizer sobre a vida cristã mesmo quando não usa o termo específico<br />

“vida”. Todavia, convém começar nosso estudo por esse termo.


S? vida elerm<br />

Muito se diz no Antigo Testamento sobre a vida, mas geralmente se trata desta vida<br />

presente em que se deve gozar a bênção de Deus. A vida está ligada à prosperidade (Dt<br />

30.15), à longevidade (SI 91.16), à alegria na presença de Deus (SI 16,11). Esta última pode<br />

ser entendida como mais do que esta vida, pois o escritor fala ainda de “na tua [de Deus]<br />

destra, delícias perpetuamente”. As pessoas más recebem sua recompensa apenas nesta<br />

vida (SI 17.14), o que implica que existe mais do que a vida presente. Os mortos, um dia,<br />

ressuscitarão (Is 26.19), alguns para “vida eterna” (Dn 12.2). Esse assunto não recebe muita<br />

atenção no Antigo Testamento, mas está lá e faz parte do cenário do Novo Testamento.<br />

A idéia de que o povo de Deus estará com ele numa vida que nunca termina desen-<br />

volveu-se entre os judeus no período intertestamentário. Começou-se a pensar na era vindoura<br />

em contraste com esta, e "vida eterna” é a vida da era vindoura, vida que será<br />

experimentada após a ressurreição.<br />

A terminologia dos evangelhos sinóticos é muito parecida, com exceção, é claro, de<br />

que eles não usam o conceito com tanta freqüência, Quando o mestre da lei testou Jesus<br />

perguntando-lhe “que farei para herdar a vida eterna?” (Lc 10.25) e quando o jovem rico fez<br />

a mesma indagação, eles tinham em mente a vida com Deus na era vindoura. Igualmente,<br />

quando Jesus diz que aqueles que fazem sacrifícios por ele herdarão a vida eterna (Mt<br />

19.29), está falando da vida futura, não da vida presente.<br />

João inclui essa idéia, mas quando usa a terminologia da vida eterna, ele pensa em<br />

outras coisas também. A palavra que traduzimos por “eterna” (aiõnios) significa literalmente<br />

“que pertence a uma era (aiõn)”. Teoricamente, essa era pode significar a época antes da<br />

criação ou a era presente, mas na prática a palavra era uma referência à era vindoura. Como<br />

essa era é a culminação de tudo e não tem fim, a palavra significava “eterna”; ela é usada dessa<br />

maneira (p. ex,, M t 18.8; Mc 3.29; Lc 16.9), Pode ser que às vezes João tenha isso em<br />

mente quando usa o adjetivo, mas parece que basicamente ele quer dizer “vida que combina<br />

com a era futura”. Ele está dizendo que a vida que outros esperavam para a era futura está<br />

presente já agora. Aqui e agora os crentes experimentam essa vida. Eles não precisam esperar<br />

passar pela morte para saber o que é a vida nesse sentido de significado mais amplo possível.<br />

João não perdeu de vista a importância do fim desta era. Ele tem uma escatologLs<br />

futurista e registra a afirmação de Jesus de que os que estiverem nos túmulos ouvirão a vez<br />

do Filho do Homem e sairão, alguns para a "ressurreição da vida", outros para a “ressurreição<br />

do juízo” (5.28-29). Do mesmo modo ele se refere aos quejesus ressuscitará “no últirr.:<br />

dia” (6.39-40, 44, 54).


Seu pensamento mais importante, porém, é que a vida eterna é uma posse presente<br />

dos que se chegam a Cristo. Quem ouve a palavra de Jesus e crê naquele que o enviou "tem a<br />

vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida" (5.24). O tempo presente<br />

(“tem”) tem um significado especial; o cristão tem a vida agora. O mesmo vale para o perfeito<br />

(“passou”); ele já passou direto da morte para a vida, a vida eterna. Não se trata, porém, de<br />

citar essa ou aquela passagem. Em todo o evangelho, João pressupõe que aqueles que creram<br />

em Cristo não vivem mais a velha vida. O Espírito operou nessas pessoas um novo nascimento.<br />

Seu ser, em essência, “não é do mundo”, assim como acontece com Cristo (17.16).<br />

Isso é primordial para João. Jesus veio “para que tenham vida e a tenham em abundância”<br />

(10.10). A vida não é um interesse secundário, mas o objetivo da encarnação. O<br />

Filho do Homem seria “levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna”<br />

(3.14-15); “Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que<br />

todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (3.16). Vemos isso de novo no propósito<br />

com que este evangelho foi escrito; para que todos possam crer e ter vida no nome de<br />

Cristo (20.31). João não deixa a seus leitores nenhuma dúvida quanto à centralidade da<br />

vida eterna.<br />

João, repetidas vezes, associa essa vida a Cristo. Em seu prólogo, ele nos diz que a<br />

vida estava “nele” e que “a vida era a luz dos homens” (1.4). A primeira expressão liga a vida<br />

a ele da maneira mais estreita possível e nos prepara para declarações posteriores de que ele<br />

éa vida (11,25; 14.6). A vida, é claro, no fim das contas está ligada ao único Deus e Pai, mas,<br />

assim como o Pai “tem vida em si mesmo”, ele “concedeu ao Filho ter vida em si mesmo”<br />

(5.26). O Filho tem o mesmo tipo de vida que o Pai. E preciso vir a Cristo para ter vida<br />

(5.40); é preciso crer nele (3.16, 36; 6.40); é preciso comer sua carne e beber seu sangue<br />

(6.53-54). Passagens como essas significam que não há outro caminho na vida; a vida está<br />

inseparavelmente ligada a ele.<br />

Esse pensamento é enfatizado no discurso sobre o “pão da vida”. Ao se identificar<br />

com esse pão (6.33, 35,41,48, 51), Jesus afirma ter uma relação especial com a vida e com a<br />

maneira como ela é concedida às pessoas. Não se deve trabalhar pela comida que perece;<br />

importa buscar a comida que o Filho do Homem dá, a comida que permanece para a vida<br />

eterna (6.27). O fato de isso ter ligação estreita com sua morte transparece nas referências a<br />

comer sua carne e beber seu sangue (6.53, 54, 56, 57, 58). Muitas vezes essas palavras são<br />

vistas como referência à ceia, mas há dificuldades com essa posição. A força da linguagem é<br />

uma delas. Jesus diz francamente que, se não comermos essa carne e bebermos esse sangue,<br />

não temos vida (6.53). E impossível aplicar isso a alguma observância litúrgica. Carne e<br />

sangue, quando separados, indicam morte. Jesus está dizendo com certeza de que o caminho<br />

para a vida é apropriar-se do que sua morte conquistou. Recebemos vida por meio da<br />

sua morte. Essa não é uma salvação qualquer, pois o pão que Cristo dá é sua carne, “pela<br />

vida do mundo” (6.51).


Já vimos que a maneira de se apropriar da vida que ele disponibiliza é pela fé. Isso<br />

também pode ser ligado a “ver” o Filho do Homem (6.40), ou às suas palavras (6.63, 68). A<br />

vida é dádiva dele (10.28; 17,2). Também é dádiva do Pai, que deu seu Filho para que todo<br />

o que nele crer tenha a vida eterna (3.16). Ou podemos dizer que todo aquele que crer no<br />

Pai (“que me enviou”) tem vida eterna e não é mais julgado (5.24). Se entendermos que a<br />

“água viva" aponta para o Espírito Santo (7.38-39), então a vida está ligada também a ele,<br />

pois a água que Jesus dá será, naquele que a recebe, “uma fonte a jorrar para a vida eterna”<br />

(4.14; a água que Jesus dá é “água viva”, v. 10). Talvez devamos observar também a convicção<br />

dos judeus de que eles tinham vida eterna nas Escrituras, o que Jesus não contestou,<br />

porque disse: "São elas mesmas que testificam de mim” (5.39). A questão aqui é que os<br />

judeus com certeza associavam a vida ao estudo da Bíblia,1só que sua reverência tola à letra<br />

os impedia de perceber seu verdadeiro sentido. Se a tivessem lido corretamente, teriam se<br />

chegado a Cristo e entrado na vida.<br />

João, portanto, tem várias maneiras de demonstrar que a vida eterna é uma dádiva<br />

gratuita de Deus e que está ligada à obra de Cristo. Pode-se dizer que o Pai, o Filho ou o<br />

Espírito Santo são a fonte dessa vida, e até a Bíblia chega perto dessa condição. Contudo,<br />

não importa como o digamos, a idéia é sempre que a vida eterna é dádiva de Deus, e também<br />

que a recebemos por causa da morte expiatória de Cristo.<br />

O adjetivo “eterna” a vincula ao mundo futuro, e isso é mostrado também de outras<br />

maneiras. Por exemplo, lemos sobre a “ressurreição da vida” à qual chegarão alguns dos que<br />

ressuscitarem no último dia (5.29). Isso provavelmente também deve ser entendido nas<br />

palavras que Jesus dirigiu a Marta: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda<br />

que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente”<br />

(11.25-26). Em outras palavras, essa vida tem um forte aspecto escatológico. Jesus não está<br />

falando de uma vida relevante apenas para aqui e agora. Isso é expresso de outra maneira<br />

quando ele afirma: “Quem ama a sua vida, perde-a; mas aquele que odeia a sua vida neste<br />

mundo preservá-la-á para a vida eterna” (12.25). Concentrar-se neste mundo equivale a<br />

perder o próximo, com tudo o que isso acarreta tanto agora quanto após a morte.<br />

As vezes João transmite verdades importantes sobre a vida falando do seu oposto, a<br />

morte. Ele usa a palavra “morte” oito vezes — um pouco mais do que os outros evangelhos.<br />

Ele a usa para garantir aos leitores que o crente “passou da morte para a vida” (5.24). Todo<br />

aquele que obedece à palavra de Jesus “não verá a morte; [...] não provará a morte, eternamente”<br />

(8.51-52). Também há frases que falam da morte de Jesus (12,33; 18.32), e era<br />

importante deixar claro como ela aconteceria (numa cruz). João não explica por que isso<br />

era importante, mas parece evidente que a razão é que a morte numa cruz significava levar<br />

O rabino Hillel disse: “Quanto mais estudo da Lei, mais vida; [..,] quem adquiriu palavras da Lei, ganhou<br />

a vida no mundo futuro" (Mishná, Aboth 2.7).


sobre si a maldição (D t 21.23; cf. G13.13).2É pela morte dejesus, em que ele levou sobre si<br />

a maldição que os pecadores mereciam, que a vida vem para aqueles que crêem.<br />

S? paixão<br />

Cada evangelista tem sua própria maneira de imprimir em seus leitores a importância<br />

da narrativa da paixão. João a inicia com sua longa descrição do que aconteceu no cenáculo<br />

da última ceia, na noite anterior à crucificação. Os discípulos não sabiam o que estava<br />

imediatamente à frente deles, mas Jesus sabia, e João fala dessa noite tendo isso muito claro<br />

em sua mente.3 Há neste evangelho 12 capítulos dedicados ao ministério público dejesus e<br />

9 aos fatos que cercam sua paixão e ressurreição. Na verdade, é possível inverter esses<br />

números, como faz, por exemplo, P. Gardner-Smith: ele considera o relato da ressurreição<br />

de Lázaro o começo da narrativa da paixão. Ele chega a dizer: "Em certo sentido, todo o<br />

evangelho é uma narrativa da paixão, pois o quarto evangelista tem a grande consumação<br />

sempre diante dos olhos".4<br />

A cruz não é mencionada no prólogo de João, mas, à medida que o evangelho avança,<br />

ela está claramente implícita quando ele fala dos que rejeitam Jesus e da vida que Jesus<br />

traria aos que crêem. Logo no começo do ministério dejesus, João Batista diz que ele é o<br />

"cordeiro de Deus" (1.29, 36). A expressão não aparece antes dessa passagem e seu sentido<br />

não está totalmente claro. Muitos a entendem como uma referência ao sacrifício da Páscoa,<br />

mas contra isso está o fato de que a vítima da Páscoa não era necessariamente um cordeiro<br />

(às vezes era uma ovelhinha); além disso, com o passar do tempo falava-se desse<br />

sacrifício simplesmente como "a Páscoa" (to pascha, como em ICoríntios 5.7). Outras<br />

sugestões são que o “cordeiro de Deus” pode se referir à ovelha levada ao matadouro (Is<br />

53.7), ao Servo do Senhor (Is 53), ao cordeiro manso (Jr 11.19), ao cordeiro triunfante dos<br />

apocalipses, ao cordeiro que Deus providenciou para Abraão e Isaque (Gn 22), à oferta<br />

pela culpa (Lv 14.12ss), ao bode expiatório e outros. Não faltam sugestões, nem há<br />

evidências conclusivas do que João tinha em mente.<br />

Cf. Raymond E. Brown*. “Aos olhos dos judeus, a execução dejesus numa cruz o tom aria mal-afamado.<br />

Ela era comparada à forca (A t 5.30; 10.39), e D t 21.23 enuncia o princípio: ‘T odo aquele que for pendurado é<br />

maldito por Deus’ (veja G1 3.13)” (The Gospel accorâing to John, X III-X X I. New York, 1970, p, 851).<br />

C. H , Dodd mostra que, no trecho que vai de 13.31 a 14,31, “a mais longa passagem sem referência direta a<br />

ir e vir não tem mais de cinco versículos. O diálogo realmente gira em torno da interpretação da morte e ressurreição<br />

de Cristo” (The interpretation o f thefourth Gospel. Cambridge, 1953, p. 403). Apesar de o tema da ":ca e<br />

vinda” não receber tanto destaque após 14,31, a cruz está sempre em vista. T od o o discurso no cer.ír_l;<br />

tima ceia tem o claro propósito de expressar o sentido da cruz.


Entretanto, ele diz que o cordeiro de Deus “tira os pecados do mundo” (1.29), e um<br />

cordeiro que tira o pecado tem de ser um cordeiro do sacrifício. O fato de que é impossível<br />

conferir alguma exatidão à referência, mas que é possível ver que ela aponta para algum<br />

sacrifício (como mostra a lista acima), talvez nos dê a chave para a interpretação. A expressão<br />

aponta para tudo o que os sacrifícios deviam fazer e não podiam, e nos garante que,<br />

aquilo que os sacrifícios prenunciavam palidamente, Cristo efetuaria de modo perfeito. Ele<br />

realmente tiraria o pecado com sua morte.<br />

João relata que, no casamento em Caná da Galiléia, quando a mãe dejesus lhe disse<br />

que o vinho havia acabado, ele respondeu dizendo, entre outras coisas: “Ainda não é chegada<br />

a minha hora” (2.4). Considerando o contexto, podemos entender isso como não mais<br />

que "ainda não chegou a hora de eu agir". Essa, porém, é na verdade a primeira declaração<br />

da série que diz que a "hora” ou o "tempo” dejesus ainda não havia chegado (7.6, 8, 30;<br />

8.20). Depois, quando a cruz está imediatamente à sua frente, Jesus disse: "É chegada a<br />

hora” (12.23, 27; 13.1; 16.32; 17.1), João não chama a atenção para a expressão, mas a<br />

seqüência é notável. De uma maneira muito informal, João deixa entrever que tudo estava<br />

se encaminhando para o clímax pretendido. Jesus viera com um propósito, que era ser visto<br />

na cruz.<br />

Existe o problema bem conhecido da purificação do templo. Será que isso aconteceu<br />

duas vezes? Ou será que João passou o relato do fim do ministério para o começo? Ou<br />

os sinóticos o passaram do começo para o fim? Perguntas como essas não devem nos deter,’<br />

mas devemos notar que João coloca o episódio logo no começo e o liga a uma profecia que<br />

dizia respeito à crucificação e ressurreição dejesus. Os judeus desafiaram Jesus com esta<br />

pergunta: “Que sinal nos mostras, para fazeres estas coisas?", à qual Jesus respondeu: "Destruí<br />

este santuário, e em três dias o reconstruirei" (2.18-19). Eles pensaram que a declaração<br />

se referia à destruição do templo em que prestavam culto, mas João explica que Jesus<br />

estava falando do templo do seu corpo (v. 21). Essa discussão é exclusiva de João; os sinóticos<br />

relatam uma purificação do templo, mas não têm nada parecido com essas palavras de<br />

Jesus.<br />

O sentido da resposta dejesus aos judeus tem sido objeto de debates acalorados.<br />

Alguns estudiosos vêem nela uma referência à igreja (o "corpo de Cristo"), outros pensam<br />

na abolição dos sacrifícios ou na destruição do templo físico.6 Essas posições dependem do<br />

pressuposto de que João tinha uma versão distorcida da declaração ou a entendeu errado.<br />

Para nosso propósito, é importante que João entendeu claramente que as palavras se referiam<br />

à morte e ressurreição de Jesus, e que ele registrou isso com muita clareza em seu<br />

evangelho. Vemos novamente que, desde o começo, a cruz estava em vista.<br />

Analisei os problemas em The Gospel according to John, Grand Rapids, 1971, p. 188-196.<br />

Veja meu livro The Gospel according to John, p. 198-205.


Também há referências ao fato de Jesus ser “levantado" (3.14; 8.28; 12.32-34). Não<br />

pode haver dúvidas de que, para João, o sentido é “ser levantado numa cruz", e na última<br />

passagem ele acrescenta sua própria explicação: “Isto dizia, significando de que gênero de<br />

morte estava para morrer" (12.33). Essa, porém, não é a maneira comum de empregar o<br />

verbo. Nós o encontramos, por exemplo, em Atos 2.33, em referência à exaltação de Jesus<br />

no céu (ele aparece também em Filipenses 2.9 numa forma composta em referência à sua<br />

exaltação), A mesma palavra que a igreja antiga usou para se referir à exaltação de Jesus,<br />

João usa para a sua crucificação.<br />

A isso devemos ligar o conceito de glória de João. Ele diz em seu prólogo: "Vimos a<br />

sua glória, glória como do unigénito do Pai, [...] cheio de graça e de verdade” (1.14). O que<br />

foi que eles viram? Eles viram o homem comum de Nazaré, vivendo entre pessoas comuns,<br />

nos confins do Império Romano. Eles o viram ensinar pessoas comuns, fazer alguns milagres,<br />

viver com correção e coragem, e morrer numa cruz. Alguns estudiosos pensam que<br />

João tinha em mente a glória revelada na transfiguração, mas esquecem que ele não a menciona.<br />

E não vêem seu profundo conceito de glória. Para João, glória, glória de verdade,<br />

deve ser vista quando alguém que poderia ocupar um lugar de majestade e exaltação aceita<br />

ficar numa posição de serviço comum. A glória suprema deve ser vista na cruz, pois ali<br />

alguém que não precisava morrer sofreu no lugar de outros. Por isso, quando João diz que<br />

Jesus foi "glorificado”, muitas vezes quer dizer que ele foi crucificado (7.39; 12.16, 23;<br />

13.31; cf. 21.19). Compreender "glória” como faz João significa ver a cruz como cenário de<br />

toda a vida de Jesus.<br />

Algumas das frases com “Eu sou” apontam para a cruz. Por exemplo, algumas das<br />

declarações sobre o pão da vida (6.35,48 et ai) em si não têm ligação necessária com a morte,<br />

mas a estabelecem quando Jesus começa a falar de que é preciso comer a sua carne e<br />

beber seu sangue (6.51, 53ss), Recebemos vida apropriando-nos da sua morte. O mesmo<br />

ocorre com o Bom Pastor (10.11,14). A essência da sua atividade é que “o bom pastor dá a<br />

vida pelas ovelhas". Talvez possamos ver o mesmo tom na afirmação: "Eu sou a ressurreição<br />

e a vida” (11.25), apesar de alguns acharem que a referência é à ressurreição e à vida do<br />

cristão. No entanto, o que não pode ser negado é que em todo este evangelho é a morte de<br />

Jesus que dá vida a quem crê.<br />

João deixa claro que a salvação que Jesus realizou com sua morte tem abrangência<br />

universal. Jesus é o “Salvador do mundo” (4.42; a expressão é encontrada de novo em ljoão<br />

4.14 e em nenhum outro lugar no Novo Testamento). Isso não significa que todas as pessoas<br />

no mundo necessariamente serão salvas, mas quer dizer que a salvação que Cristo traz<br />

não é uma libertação localizada, mas está disponível às pessoas de qualquer lugar, r.ac<br />

importa sua raça ou nacionalidade. As palavras foram proferidas por samaritanos<br />

recém-convertidos, e isso se reveste de significado especial; eles foram os primeiros frutos<br />

da extensão da salvação para além dos judeus. Sua constatação não é algo isolado. Deus


enviou seu Filho para que o mundo fosse salvo por meio dele (3.17), ejesus deu a sua carne<br />

“pela vida do mundo” (6.51). Jesus procurou suas ovelhas também fora do rebanho de<br />

Israel (10.15-16). Quando Caifás deu seu conselho cínico de que era melhor que um<br />

homem morresse do que uma nação inteira (11.50), João entendeu que isso significava que<br />

Jesus morreria “não somente pela nação, mas também para reunir em um só corpo os filhos<br />

de Deus, que andam dispersos” (v. 52). Jesus compreendeu que o propósito de ele ser<br />

“levantado” era atrair "todos” para si (12.32). E a referência a “toda a carne” na oração de<br />

Jesus por ocasião da última ceia (17.2) provavelmente deve ser entendida como mais uma<br />

indicação de que sua preocupação se estendeu a toda a raça humana.<br />

Há muitas evidências de hostilidade contra Jesus — por exemplo, nos capítulos 7 e<br />

8. Aqui João parece ter concentrado seu relato no tipo de oposição que Jesus encontrou<br />

durante todo o seu ministério. Ele inicia esse trecho do seu evangelho dizendo aos seus leitores<br />

que os judeus estavam tentando matar Jesus (7.1), tema que é repetido (7.19, 20, 25;<br />

8.37, 40; cf. 5.18); houve tentativas de prendê-lo (7.30, 32, 44; cf. também 10.31). Nenhuma<br />

delas teve êxito. João insiste em que elas aconteceram antes de a “hora” de Jesus ter chegado;<br />

até esse momento ele estava a “salvo”. Mas elas mostram que, neste mundo, o Filho<br />

de Deus não era bem-vindo, e assim revelam o clima de hostilidade. Elas fazem parte da<br />

estratégia de João para mostrar que, no fim, a morte de Jesus era inevitável.<br />

Afirmei acima que João interpretou uma afirmação de Caifás em sentido universal.<br />

Vale a pena olhar essas palavras mais de perto. O partido do sumo sacerdote e os fariseus<br />

concordaram que, depois da ressurreição de Lázaro, eles corriam perigo. Concluíram que<br />

todos creriam em Jesus se ele continuasse a fazer seus "sinais", e isso obrigaria os romanos a<br />

agir e retirar as liberdades de que eles gozavam. Mas eles não faziam nada além de resmungar<br />

entre si. Caifás rudemente lhes disse que eram ignorantes ("Vós nada sabeis”, ele disse,<br />

com uma dupla negação enfática — muito apropriada em grego), e continuou: "Nem considerais<br />

que vos convém que morra um só homem pelo povo e que não venha a perecer toda<br />

a nação” (11.49-50). Era um reles expediente político; não importava se o homem era inocente<br />

ou não. "Vamos matá-lo, para não perecermos nós”, era a idéia. João, porém, registra<br />

as palavras porque via nelas uma verdade mais profunda. Como sumo sacerdote, Caifás<br />

estava profetizando. Deus o fez pronunciar as palavras porque eram verdadeiras, só que<br />

num sentido diferente do que ele pretendia. Jesus iria morrer “pela [ou em lugar da] nação";<br />

João acrescenta que isso não dizia respeito apenas à nação judaica, mas a todos os “filhos de<br />

Deus, que andam dispersos”. As palavras de Caifás indicam substituição. Jesus deveria<br />

morrer hyper a nação; ficaria no lugar dela para que ela fosse libertada. Essa é uma indicação<br />

importante de como João entendia a expiação.<br />

No capítulo 12, João conclui seu relato do ministério público de Jesus e faz algumas<br />

declarações importantes que introduzem seu relato da paixão. Alguns gregos se aproximaram<br />

de Filipe e pediram para ver Jesus, e Filipe e André os levaram até ele. João não diz


mais nada sobre eles, mas é evidente que Jesus viu algum significado especial na chegada<br />

deles, pois disse imediatamente: “E chegada a hora" (12.23). A presença desses gregos voltou<br />

os pensamentos de Jesus para a morte que sofreria para levar pecadores a Deus. Ele não<br />

vê sua morte como derrota mas como triunfo, pois fala de ser “glorificado". Em seguida ele<br />

mostra que um grão de trigo fica como está se não cair na terra e morrer. Somente quando<br />

“morre" (ou seja, deixa de existir como grão) ele produz fruto. Isso ensina uma verdade<br />

geral sobre dar fruto. Quem ama a sua vida perde-a, e somente quem a perde neste mundo<br />

conserva-a para a vida eterna (12.24-25). Jesus pensou na possibilidade de orar: "Pai, salva-me<br />

desta hora" (o equivalente joanino do Getsêmani?) e a rejeitou, pedindo em vez disso<br />

que o nome do Pai fosse glorificado (12.27-28). Isso conduz à passagem sobre Jesus ser<br />

“levantado",<br />

Tudo isso nos mostra claramente que o pensamento de que Jesus morreria para trazer<br />

salvação transparece em todo o seu evangelho. João não está pensando em um mestre<br />

que de repente perdeu popularidade e, contra todas as expectativas, foi entregue por seu<br />

próprio povo aos romanos e morto por eles. Ele entende que a cruz estava diante dos olhos<br />

de Jesus desde o começo. Ele veio para morrer pelos outros.<br />

Seu relato da paixão em si lhe é peculiar. Ele tem muito material em comum com os<br />

sinóticos, mas acrescenta-lhe seus toques pessoais. Ele dá destaque ao fato de que a vontade<br />

de Deus foi feita e, por exemplo, mostra que Jesus é senhor da situação. Quando os<br />

guardas vieram prendê-lo, Jesus (“sabendo todas as coisas que sobre ele haviam de vir”,<br />

18.4) não fez nenhuma tentativa de se esconder ou fugir, mas foi ao encontro dos soldados.<br />

Ele lhes perguntou: “A quem buscais?” e por duas vezes os fez dizer que procuravam “Jesus,<br />

o Nazareno” (18.5, 7), o que significava que os discípulos estavam livres. Sua preocupação<br />

com eles nessa hora difícil é notável. O mesmo vale para a atitude majestosa com que ele<br />

enfrentou o inimigo com seu enfático “Eu sou”, a linguagem da divindade. O resultado foi<br />

que eles retrocederam e caíram no chão (18.6). Jesus não é um fugitivo indefeso, caçado até<br />

à morte por um inimigo mais forte. Ele vai ao encontro da sua “hora” e cumpre com fidelidade<br />

a vontade de Deus. Dizemos que ele foi "preso”, mas em João isso não é bem assim. Os<br />

soldados não "prendem" Jesus; ele se entrega.<br />

João omite a história da agonia no Getsêmani. Levantou-se a hipótese de que ele<br />

queria se concentrar no domínio da situação por Jesus naquele momento, e que a agonia<br />

poderia ser mal-entendida. Seja como for, ele já incluiu seu equivalente do interrogatório<br />

em 12.27ss., que segue sua meditação sobre o grão de trigo que cai na terra e morre. Ele<br />

retratou a condição humilde de Jesus em todo o evangelho, e pode ser que não queira concentrá-la<br />

em um único episódio. Seja qual for a razão, ele omite a agonia, e com isso vemos<br />

de outro ângulo que João relata os fatos à sua própria maneira.<br />

João traz vários detalhes que estão ausentes dos outros relatos. Apenas ele re.ata<br />

que Jesus foi levado primeiro perante Anás e que, quando levado para ser crucificace. cir-


egou sua cruz. Devemos a João a informação de que a inscrição na cruz era em três línguas<br />

e que os judeus levantaram objeções aos termos. Ele inclui três coisas que Jesus disse na<br />

cruz que não se encontram em nenhum outro lugar — suas palavras a Maria: “Eis aí teu<br />

filho”; ao discípulo amado: "Eis aí tua mãe” (19.26-27); e as do triunfo final: "Está consumado!"<br />

(19,30). Só João relata que o lado de Jesus foi traspassado pela lança e o papel que<br />

Nicodemos teve no sepultamento.<br />

Uma das contribuições mais importantes dejoão é o que ele nos relata do julgamento<br />

pelas mãos de Pilatos. Em todos os evangelhos fica claro que o julgamento de Jesus se<br />

deu em dois estágios: pelas autoridades judaicas e por Pilatos. João tem pouco a dizer sobre<br />

o que aconteceu perante Caifás, mas muito sobre o que aconteceu quando ele foi<br />

apresentado a Pilatos.<br />

Com muita força dramática João retrata o confronto entre Cristo e Pilatos, representantes<br />

de Deus e de César. Todos os outros atores ficam em segundo plano — Anás,<br />

Caifás, os soldados, o impulsivo Pedro e seus companheiros, e a multidão de Jerusalém —<br />

e ficamos com Jesus e Pilatos falando sobre quem é rei (18.33-38). Com a multidão no fundo,<br />

talvez tenhamos uma indicação de que o estado é varrido por forças que não vemos,<br />

mas o fundamental que João nos está dizendo é que, em última instância, é Cristo ou César<br />

quem governa. Cristo é rei, mas não como César entende o termo; ele é rei no sentido de<br />

que dá testemunho da verdade (18.37). Pilatos, no entanto, nem mesmo sabia o que é a<br />

verdade (v. 38).<br />

E a verdade que importa, não o poder, Pilatos declarou três vezes que Jesus era inocente<br />

(18.38; 19.4, 6). Os judeus, porém, levantaram a questão de ser “amigo de César”<br />

(19,12), fazendo uma pressão nada sutil sobre a decisão de Pilatos. Foi assim que usaram o<br />

poder. E Pilatos sucumbiu. Deu a ordem para que Jesus fosse morto. Foi assim que ele<br />

usou o poder. O poder corrompe.<br />

A verdade de Deus, no entanto, não é derrotada. A ressurreição de Jesus prova que a<br />

soberania está com Deus, como João está mostrando, não com os desprezíveis detentores<br />

do poder terreno. Judas fez sua parte, assim como Anás e Caifás e seus companheiros, que<br />

se mantiveram puros para poder tomar parte da festa. A multidão podia ter exigido a libertação<br />

de Jesus, mas foi manipulada pelos sacerdotes para gritar pela libertação de Barrabás<br />

e clamar pela condenação de Jesus: “Crucifica-o!” Os soldados se divertiram muito com os<br />

comediantes entre eles que arrumaram maneiras de ridicularizar um prisioneiro indefeso.<br />

E ali estava Pilatos, que queria fazer o que é certo, mas não se isso lhe fosse inconveniente.<br />

Foi uma aglomeração surpreendente de pessoas que não eram especialmente más, mas que<br />

podiam dizer: “Não temos rei, senão César!” (19.15). Sua confissão foi verdadeira num<br />

sentido mais profundo do que eles percebiam. João mostra claramente: no fim das contas,<br />

somente Cristo ou César é rei, e, apesar da ilusão passada por pessoas deste mundo, no fim<br />

Cristo é supremo.


9ífê<br />

João deixa claro que a vida vem pela morte, a vida eterna para quem é de Deus pela<br />

morte do Filho de Deus. Como se apropriar dessa dádiva de Deus? A resposta de João é:<br />

“Crendo”.<br />

João usa o verbo “crer” (pisteuein) 98 vezes — um número muito alto num livro de 21<br />

capítulos. Nenhuma vez ele usa o substantivo correspondente “fé”, fato este que nunca foi<br />

explicado satisfatoriamente. Talvez a razão seja que o verbo é mais dinâmico que o substantivo.<br />

Para nós é conveniente usar a palavra “fé”, que ocupa um lugar tão grande na compreensão<br />

cristã das coisas, mas devemos ter em mente a terminologia de João.<br />

João usa esse verbo de quatro maneiras. Sua construção mais freqüente é com a preposição<br />

“em” (eis); a tradução geralmente é “crer em”, e pode ter o sentido de passar a estar<br />

“em Cristo”, para usar uma expressão de Paulo,' Bultmann vê aí uma referência à pregação<br />

missionária nos primórdios da igreja, em que alguém era “convertido da fé (judaica ou)<br />

pagã à fé cristã”.8Devemos entender a fé, no conceito de João, como um compromisso integral<br />

que tornava o crente um só com Cristo, estando dentro dele. João tem muito a dizer<br />

sobre “permanecer em” Cristo (15.4 et ai), e é a esse estado que crer nos conduz. João não<br />

associa explicitamente os conceitos de crer e permanecer, mas às vezes chega perto de<br />

fazê-lo (12.46).<br />

A construção “crer em” é às vezes relacionada com crer em Deus (14.1; também<br />

12.44), mas na grande maioria dos casos ela se refere a crer em Jesus. Algumas vezes, João<br />

registra a expressão “crer no nome [de Jesus]”, em que o “nome” representa a pessoa (2.23),<br />

e há referências a crer no Filho (3.36), no Filho do Homem (9.35), emjesus (12.11), “nele”<br />

(p. ex., 3,16), “em mim” (p. ex., 6.35) e na luz (12.36). Obviamente a construção é uma<br />

maneira de demonstrar a importância de confiar emjesus, e isso pode ser feito de vários<br />

ângulos.<br />

Muitas vezes se diz que fé significa confiança em alguém, não a concordância intelectual<br />

com um conjunto de proposições. E claro que há verdade nisso, e as referências freqüentes<br />

a crer em Cristo certamente o comprovam. Contudo, há também o conteúdo<br />

intelectual da fé, e não entenderemos o que João está dizendo enquanto não virmos isso.<br />

Por exemplo, Pedro disse crer que Jesus é “o Santo de Deus” (6.69); isso, junto com a ver-<br />

J. H . M oulton diz que “e iÇ lembra imediatamente que a alma é trazida para a união mística que Paulo<br />

gostava de expressar com e v x p ícrT id ”(A grammar o f New Testament Greek, i, Prolegomena. Edinburgh. 190c- r-<br />

68). Ele não vê muita diferença entre TTL(JTEV£ll/ ELÇ e 77/ (JTe Óe il' ETTL, mas destaca a diferença er.rre<br />

dois e o dativo,


dade de que Jesus tem “palavras da vida eterna”, tornou impensável para os apóstolos deixar<br />

de seguir Jesus. Marta declarou sua convicção de quejesus era o Cristo (11,27), e todo o<br />

livro de Joáo foi escrito para que as pessoas cressem nisso (20,31). Jesus usou essa construção<br />

várias vezes. Seus ouvintes deviam crer “que eu sou” (8.24; 13.19), e aqui não devemos<br />

deixar de perceber o tom de divindade.9 O relacionamento quejesus tem com o Pai transparece<br />

em outras expressões. “Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim”, disse Jesus<br />

(14.11). Os discípulos foram elogiados por crer que ele viera de Deus (16.27; cf. 16.30). A<br />

fé na realidade de que o Pai enviou ajesus é mencionada várias vezes (11.42; 17.8, 21). Fé,<br />

como João a entendia, é mais do que confiar em Jesus como um bom mestre e uma boa<br />

pessoa. Inclui aceitar certas verdades sobre ele. Na realidade, não podemos crer se não o<br />

virmos como ele é.<br />

A construção com o dativo significa aceitar como verdadeiro, dar crédito a alguém.<br />

João aplica isso a Deus (5.24); é importante crer no que ele disse. E característico que ele o<br />

relacione também com Cristo (p. ex„ 4.21; 8.45-46). A referência pode ser à palavra de<br />

Cristo (4.50) ou às suas palavras (5.47) ou obras (10.38); tudo está ligado à sua pessoa. E, é<br />

claro, espera-se das pessoas que creiam nas Escrituras (2.22), que podem ser particularizadas<br />

pela menção do nome do autor, como Moisés (5.46-47) ou Isaías (12.38).<br />

Crer é muito importante para João; ele usou o verbo tantas vezes que podia fazê-lo<br />

de modo absoluto, simplesmente falando de “crer”; não é necessário dizer sempre em quem<br />

se crê (p. ex., 1.50; 4.41). Os 30 exemplos dessa construção em João deixam claro que, para<br />

ele, crer é de suma importância.<br />

Contudo, não devemos pensar que cada uma dessas construções seja tão distinta<br />

que o uso de uma exclui as outras. Se entendermos fé como João fazia, é evidente que não<br />

importa muito como a expressemos; tudo o que a fé envolve está implícito. Se realmente<br />

confiamos em Cristo, é claro que aceitaremos o que ele diz ser verdade; aceitaremos também<br />

certas verdades sobre sua pessoa e sobre seu relacionamento com o Pai; cremos no Pai<br />

e na revelação feita na Bíblia, e tudo isso é tão fundamental que simplesmente se pode dizer<br />

que cremos. Vemos isso nas passagens em que se usa mais de uma construção. Por exemplo,<br />

Jesus perguntou ao homem que nascera cego: "Crês tu no Filho do Homem:1” Pouco<br />

depois o homem disse: “Creio” (9.35-38). Lemos também: “Quem nele crê [...] o que não<br />

crê...” (3.18), e nessa justaposição de afirmações é impossível fazer diferença de sentido<br />

entre as duas construções. Da mesma forma, João escreveu seu evangelho "para que creiais<br />

quejesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida...” (20.31). Aqui não<br />

9<br />

Cf. R. Schnackenburg: “E a fórmula de revelação do Antigo Testam ento que o Jesus joanino, como revelador<br />

do Novo Testam ento, reivindica para si. Ele está dizendo que nele Deus está presente para revelar sua salvação<br />

escatológica e oferecê-la às pessoas” (The Gospel according to st John. New York, 1982, 2:200).


podemos fazer diferença entre "crer que” e “crer”. Independentemente de como e quando<br />

isso é afirmado, o que importa é que creiamos.10<br />

0 amor<br />

A verdade fundamental é que Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu<br />

Filho para trazer salvação (3.16). Está claro que, nessa declaração de João 3,16, pecadores<br />

estão em vista. João não está falando de um amor extraído de Deus por notáveis méritos ou<br />

pela atratividade das pessoas. O que é maravilhoso no amor de Deus é que ele é derramado<br />

sobre quem não tem méritos e não o merece. E é um amor que custou caro. Custou a cruz.<br />

Foi nesse espírito que Jesus disse aos discípulos que não iria orar por eles, “porque o próprio<br />

Pai vos ama” (16.27).” De fato, em sua importante oração sacerdotal, Jesus disse ao<br />

Pai: “T u os amaste, como também amaste a mim" (17.23). É com um amor realmente muito<br />

grande que o Pai nos ama, amor determinado por sua natureza de amor, não por algum<br />

mérito nosso. Ele ama aqueles que amam ajesus e a ele obedecem (14.21, 23), mas as passagens<br />

anteriores mostram que isso não deve ser entendido como um amor por quem merece,<br />

Quem estuda esse evangelho não deve ter dúvidas quanto à grandeza do amor de Deus<br />

ou quanto ao fato de que ele é derramado sobre nós sem que se pergunte sobre nosso<br />

merecimento,<br />

João fala com freqüência do amor do Pai pelo Filho (p. ex., 3.35; 5.20; 10.17), e claramente<br />

essa é uma das grandes verdades que servem de base a este evangelho. Em Jesus<br />

vemos não simplesmente um visitante do céu, mas o Filho que goza do amor de Deus em<br />

toda a sua plenitude. O amor do Filho pelo Pai é pressuposto constantemente, mas é<br />

expresso apenas uma vez, quando Jesus diz que age para que o mundo saiba que ele ama o<br />

Pai (14.31).<br />

Seu amor pelas pessoas é mencionado mais vezes. Morrer por seus amigos, como<br />

Jesus fez, é mostrar um amor maior que qualquer outro (15.13). Ele os amou intensamente.<br />

A cruz mostra isso, como também o fato de que ele os amou como o Pai o amou (15.9), e<br />

que ele os amou “ao extremo” (13.1 BJn; a expressão também pode significar “até o fim”; no<br />

estilo de João, os dois sentidos podem estar em mente, mas a ênfase recai sobre a qualidade<br />

°D e vez em quando encontramos outras construções com o verbo, como o acusativo (11.26), Tfí p l (“acerca<br />

de”, 9.18, não detectável na maioria das traduções em português) e talvez £V (3.15), apesar de esta última passagem<br />

ser mais bem interpretada como exemplo do uso absoluto, com £V ligado a tXQ-<br />

11 Seu verbo aqui é (fclÁék), enquanto em 3.16 é d y a i r á ú J . Alguns estudiosos acham que há uma diferença<br />

notória entre os dois verbos, especialmente na conversa que Jesus teve com Pedro à beira do lago (21.15-17),<br />

Contudo, é impossível encontrar uma distinção clara na maneira em que João usa os dois verbos de modo geral,<br />

e é melhor não enxergar nisso mais do que uma variação de estilo.


do amor). Jesus exorta seus seguidores a “permanecer” em seu amor (15.9-10). É evidente que<br />

nada pode fazê-lo deixar de nos amar, mas nós podenios viver de maneiras que impeçam a<br />

atuação desse amor. Obedecendo aos seus mandamentos, intensificamos a intimidade dessa<br />

comunhão. João nos diz várias vezes que Jesus amou os discípulos como grupo (13.34; 15.9),<br />

e às vezes menciona o amor de Jesus por indivíduos, como, por exemplo, por Marta, Maria e<br />

Lázaro (11.5; Lázaro também é citado ajesus como "aquele a quem amas”, v 3.). E, é claro, há<br />

referências ao "discípulo a quem Jesus amava” (13.23; 19.26; 20.2; 21.7, 20).<br />

O amor de Deus e de Cristo por nós solicita cpe correspondamos a ele (14.15, 23,<br />

28; 16,27), muitas vezes ligando a obediência aos seuS mandamentos com esse amor. Claramente,<br />

se realmente amamos a Cristo, desejaremos fazer as coisas que lhe agradam,<br />

enquanto, se regularmente descartamos suas instruções, a autenticidade do nosso amor é<br />

colocada em dúvida (cf. 14.24). Jesus deu aos seus discípulos o que ele chamou de "novo<br />

m2LVid-jLm«.Mç>”', “qu«. vos, íotlÇ-Íí, vm\s, ■òwltoç,, assim como cu. voç. arcvti” (13.34*, cf. 15.12,<br />

17). Existe um mandamento muito antigo de que os crentes devem amar uns aos outros<br />

(Lv 19.18), portanto, não é o amor em si que é novo* O que é novo é que devemos amar<br />

como Cristo amou a nós, e seu amor é do tipo que sempre se entrega — a pessoas que não o<br />

merecem. Ele ama porque essa é a sua natureza, não por alguma atração exercida pelos que<br />

recebem seu amor. E quanto mais tivermos absorvido o amor de Deus em Cristo por nós,<br />

seres indignos, mais reagiremos nos tornando pessoas que amam. Ê esse tipo de amor que<br />

permitirá aos outros ver que somos discípulos de Jesus (13.35).<br />

A importância do amor é vista na pergunta tríplice que Jesus fez a Pedro (21.15-17).<br />

Pedro tinha negado três vezes que conhecia Jesus, e sua posição de líder do grupo deve ter<br />

sido abalada. Sua afirmação, repetida três vezes, de que amava o Senhor, junto com a tarefa<br />

que Jesus lhe deu, também três vezes, de apascentar o rebanho, com certeza o restauraram a<br />

essa posição. E interessante que, numa situação como essa, Jesus não lhe fez perguntas sobre<br />

sua coragem, sua capacidade ou sua prontidão para ser um bom líder. Ele lhe perguntou<br />

sobre seu amor, e apenas isso. Não há nada mais importante na vida cristã do que o amor.<br />

João às vezes se refere a outros tipos de amor menos importantes nutridos pelas pessoas.<br />

Ele fala de alguns que amaram a escuridão mais do que a luz (3.19) e daqueles que<br />

amaram o louvor dos outros (12.43). Ele nos lembra de que o mundo ama os seus (15.19), e<br />

nos adverte de que quem ama a sua vida irá perdê-la (12.25; o tempo presente mostra a verdade<br />

de que o próprio fato de amar esta vida significa perdê-la).<br />

O pecado<br />

O interesse de João por temas como a encarnação de Jesus, a vida eterna, a fé e o<br />

amor é bastante óbvio, e alguns estudiosos partem disso para dizer que ele tinha pouco


interesse pelo pecado. Por isso ficamos um pouco surpresos ao descobrir que ele registra a<br />

palavra hamartia, “pecado”, 17 vezes, e ainda o mesmo número em ljoão, mais vezes, portanto,<br />

do que qualquer outro livro com exceção de Romanos (com 48) e Hebreus (com<br />

25). Parajoão, pecado é um conceito importante. Logo no começo ele registra as palavras<br />

de João Batista: "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1.29), e perto do<br />

fim do seu livro ele registra as palavras de Jesus sobre perdoar os pecados (20.23). A vida<br />

eterna, que tanto significa para ele, pode ser entendida em termos de perdão dos pecados.<br />

O pecado é uma coisa muito séria. Jesus disse ao homem que ele acabara de curar da<br />

paralisia que tivera durante 38 anos: “Não peques mais, para que não te suceda coisa pior”<br />

(5.14).J esus falou várias vezes de pessoas que “perecem em seu pecado [ou pecados]” (8.21,<br />

24), obviamente um horror ainda pior por não ser definido. Ele chamou o pecador de<br />

“escravo do pecado” (8.34). Nem todos os pecados estão no mesmo nível, pois Jesus disse<br />

que quem o entregara a Pilatos cometera “pecado maior” do que este (19.11). Isso não quer<br />

dizer que Pilatos não pecara. A expressão “pecado maior" implica que há um “pecado<br />

menor"; Jesus não estava dizendo que Pilatos não tinha culpa. Todo pecado é um mal terrível,<br />

mas a nação que tinha a palavra de Deus e mesmo assim entregava o Filho de Deus para<br />

ser morto estava cometendo um pecado especialmente terrível.<br />

Jesus rejeitou algumas idéias errôneas em relação ao pecado. Por exemplo, João nos<br />

conta de uma ocasião em que, diante de um homem cego de nascença, os discípulos perguntaram<br />

a Jesus: “Quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego" (9.2). A origem<br />

da pergunta deles era uma convicção dos judeus expressa pelo rabino Ammi: "Não há morte<br />

sem pecado, e não há sofrimento sem iniqüidade”.12<br />

Não era fácil ver como alguém poderia, antes de nascer, pecar de um modo tão terrível<br />

que seu castigo fosse cegueira para toda a vida. E não era menos difícil ver como um<br />

pecado dos seus pais, não importa quão terrível tivesse sido, podia resultar em punição por<br />

toda a vida, não a deles, mas do filho. Para os rabinos, esses problemas não eram totalmente<br />

incontornáveis/3 mas os discípulos tiveram dificuldades para explicar a cegueira do<br />

homem. Jesus lhes disse que o pecado não era a causa da triste sorte do homem. Sua afirmação<br />

deve ter produzido um profundo sentimento de alívio nas pessoas acostumadas a<br />

pensar que a todo sofrimento correspondia um pecado cometido.<br />

No fim desse incidente há uma lição importante sobre o pecado. Jesus disse que<br />

tinha vindo a esse mundo para julgar, "a fim de que os que não vêem vejam, e os que vêem se<br />

Talmude, Shab, 55a.<br />

Eles diziam que uma criança podia pecar ainda no ventre da mãe, baseados em Gênesis 25.22 (veja SBK<br />

2:528-529). H á algumas evidências da opinião de que a alma é pré-existente (Sabedoria 8,20), e pensava-se<br />

que ela podia pecar antes de nascer. Essas opiniões, porém, não parecem ter sido muito difundidas. Alguns<br />

pensavam que, quando uma criança nascia leprosa ou epilética, a culpa era dos pais (SBK 2:529). A morte de<br />

um jovem estudioso foi creditada à idolatria da sua mãe enquanto estava grávida dele (Ruth R , V I. 4).


tornem cegos” (9.39). A declaração sobre dar visão, física ou espiritual, não é difícil de<br />

entender, mas a que segue é difícil. Provavelmente Jesus quis dizer que sua vinda desmascara<br />

pessoas como os fariseus, que afirmavam ver, mas eram espiritualmente cegos: agora<br />

ficava evidente que eles eram cegos. Esses fariseus perguntaram: "Acaso, nós também<br />

somos cegos?", ao que Jesus respondeu: "Se fôsseis cegos, não teríeis pecado algum; mas,<br />

porque agora dizeis: Nós vemos, subsiste o vosso pecado” (9.40-41). Eles alegavam ter<br />

visão espiritual, mas agiam como cegos. Esse era o seu pecado.<br />

A vinda de Jesus evidenciou o pecado do mundo que se opôs a ele. Por ocasião da<br />

última ceia, Jesus disse aos seguidores que as pessoas em questão não "teriam" pecado se ele<br />

não tivesse vindo e lhes ensinado. Agora, porém, não tinham desculpa para o seu pecado<br />

(15.22). Ele disse algo parecido sobre as coisas que havia feito. Eles tinham visto o que ele<br />

fizera e mesmo assim o rejeitaram; isso significa que eles tinham visto e odiado tanto ajesus<br />

quanto ao Pai (15.24).<br />

E a rejeição do que Deus estava fazendo em Cristo que mostra que as pessoas são<br />

pecadoras. Mesmo pessoas religiosas se opuseram ajesus e, com isso, a Deus, e não tinham<br />

consciência de agir errado. Carecemos da ação do Espírito Santo em nós para nos tornar<br />

cientes de que somos pecadores (16.8), mas quem rejeita a ação do Espírito, não pode<br />

conhecer seu pecado. Esse pecado tem relação com não crer em Jesus (16.9).<br />

João quase sempre usa a palavra "pecado" no singular — ou seja, não tanto atos<br />

malignos individuais, mas o princípio que nos leva numa direção errada. Este é o nosso<br />

problema básico, e o “Cordeiro de Deus”, com sua morte sacrificial, tira esse pecado (assim<br />

como, é claro, os pecados que as pessoas cometem como indivíduos). As pessoas daquela<br />

época, principalmente as religiosas, podem ter tido a idéia de que às vezes faziam algo errado.<br />

Mas não reconheciam sua pecaminosidade inata, nem sabiam que essa pecaminosidade<br />

os levava a pecar e os tornava escravos do pecado. João via isso claramente e enxergava com<br />

igual clareza que Jesus era a resposta para a desgraça humana. Jesus tirou o pecado do<br />

mundo.<br />

O mundo<br />

João tem muito a dizer sobre "o mundo”. Ele usa a palavra kosmos, “mundo", 78<br />

vezes, ao passo que nenhum escrito não joanino o tem mais de 21 vezes (lCoríntios; ljoão<br />

registra a palavra 23 vezes). O conceito de “mundo” no texto de João é importante para<br />

compreendermos o que Jesus veio fazer.<br />

O termo basicamente significa algo como “ordem”, de onde veio a ser aplicado a<br />

ornamento, adorno (como em IPedro 3.3; cf. “cosmético”). Os antigos, porém, concluíram<br />

que nenhum ornamento, nenhuma jóia, podia rivalizar com o universo em que vivemos


com toda sua ordem e beleza. 0 ornamento, a jóia, portanto, é o kosmos. Vemos essa idéia<br />

na oração de Jesus, quando ele se referiu à glória que ele tinha com o Pai "antes que houvesse<br />

mundo” (17.5; cf. v. 24; 21.25 et aí). No entanto, aos nossos olhos, a parte mais importante<br />

do universo é a em que vivemos, e assim o termo passou a significar esta terra. A<br />

Palavra estava "no mundo” (1.10); Jesus veio do Pai e entrou "no mundo” (16.28). Essa<br />

maneira de usar o termo era bastante comum e dificilmente carece de comentário.<br />

Outro desenvolvimento natural no uso do termo é sua aplicação ao que é mais<br />

importante para quem habita a terra; os próprios moradores. Por isso, Jesus diz que é a "luz<br />

do mundo" (8.12; 9.5) e se refere ao julgamento do mundo (12,47). Os fariseus disseram,<br />

desesperados: "Eis aí vai o mundo após ele" (12,19).<br />

O mundo, nesse sentido, no entanto, não é homogêneo. Algumas pessoas no mundo<br />

respondem de modo favorável à mensagem de Jesus, e outras não. Jesus é chamado "Salvador<br />

do mundo” (4.42); ele disse que veio salvar o mundo (3.17; 12.47). Ele é “o Cordeiro<br />

de Deus que tira o pecado do mundo” (1.29). Por trás dessa obra de salvação está o amor de<br />

Deus, pois "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que<br />

todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (3.16). Cristo "dá vida ao mundo"<br />

(6.33, 51). Passagens como essas não significam que cada indivíduo do mundo será salvo,<br />

mas indicam a abrangência global da salvação que Jesus traz. Ela não está restrita aos<br />

judeus ou a qualquer outra nação, nem aos devotos, aos intelectuais, aos ricos, aos pobres<br />

ou a qualquer outro grupo. E uma salvação aberta a todos, a quem quer que seja. Essa é<br />

uma parte importante da nossa compreensão do conceito joanino do que Cristo fez,<br />

O mais comum, no entanto, é que João veja o mundo como oposto a Cristo e aos<br />

seus. Na última ceia, Judas (não o Iscariotes) queria saber como Jesus se manifestaria a eles<br />

“e não ao mundo" (14.22). Os dois grupos são distintos. Isso é mostrado também quando<br />

Jesus distingue a si mesmo dos "judeus", dizendo: "Vós sois cá de baixo, eu sou lá de cima;<br />

vós sois deste mundo, eu deste mundo não sou" (8.23). A essência do seu ser é celeste e não<br />

pertence a este mundo, como a dos seus adversários. A distinção entre ser “deste mundo" e<br />

não ser dele é, portanto, igual à diferença entre ser "de baixo” e “de cima”. Jesus repetiu a<br />

distinção e ligou os discípulos a si (17.14,16). De outro ângulo, o reino de Cristo não é deste<br />

mundo (18.36), Ele é supremo como rei, mas isso não quer dizer que ele tinha o mesmo<br />

tipo de soberania como Pilatos. Todo o seu alvo e perspectiva eram diferentes.<br />

Os discípulos foram dados ajesus “do mundo” (17.6) e, por não serem do mundo,<br />

este os odiava, Jesus disse aos seus irmãos incrédulos: “Não pode o mundo odiar-vos”. Em<br />

contraste, o mundo o odiava, porque ele dava testemunho de que “as suas obras são más”<br />

(7.7). Sempre haverá oposição entre o mundo que ama suas coisas más e aqueles que pertencem<br />

a Deus e, por isso, se opõem à maldade. Se os discípulos fossem “do mundo”, este<br />

os amaria, mas Jesus os escolhera “do mundo” e isso provocou o ódio do mundo (15.19).<br />

Mas o mundo odiou ajesus antes de odiá-los (15.18); não é de admirar que transferisse aos


discípulos o ódio que tinha pelo Mestre. O mundo os odiava porque não pertenciam a ele<br />

(17,14). O mundo se alegrava quando eles eram entristecidos (16.20).<br />

A oposição do mundo é vista logo no começo deste evangelho, pois já no prólogo<br />

lemos que o Logos estava no mundo, o mundo fora feito por meio dele, “mas o mundo não o<br />

conheceu” (1,10). A luz veio ao mundo, e seus habitantes preferiram a escuridão à luz, por<br />

causa do mal que praticavam (3.19). O mundo não conheceu a Deus (17.25). Isso não surpreende,<br />

pois Satanás é seu regente (12.31; 14.30; 16.11). O mundo não pode receber o<br />

Espírito da verdade (14.17), apesar de esse Espírito o convencer do pecado, dajustiça e do<br />

juízo (16.8).<br />

Tudo isso leva à idéia de que o mundo ainda é objeto do amor de Deus (cf. 3.16). O<br />

Pai enviou o Filho ao mundo (10.36; 17.18; cf. as palavras de Marta: aquele "que devia vir ao<br />

mundo”, 11.27). Jesus falou ao mundo (8.26; 17.13; 18.20), indicando a disposição para ensinar<br />

os que quisessem ouvir. E ele orou, não pelo mundo como tal (como poderia ele orar para<br />

que o mundo continuasse a ser mundano?), mas para que o mundo cresse e reconhecesse que<br />

o Pai o enviara (17.21, 23). E, apesar dejesus não orar pelo mundo (17.9), também não orou<br />

para que os discípulos fossem tirados dele (17.15). Eles tinham um papel a exercer, e assim<br />

como o Pai enviara o Filho ao mundo, o Filho os enviou ao mundo (17,18). Esse papel não é<br />

delineado, mas em todo este evangelho fica claro que eles deviam viver para Deus e proclamar<br />

a mensagem que Jesus lhes dera, para ganhar pessoas para Deus.<br />

Com a cruz se aproximando, e com o pequeno grupo de discípulos na iminência de<br />

abandoná-lo e fugit, ]esus afirmou: "Eu venci o mundo” (16.33). O mundo lhe íez o que<br />

havia de pior, e continuaria a causar problemas ao seu povo (16.33). Mas a vitória não está<br />

com o mundo. Está com Cristo, e para João é essa a verdade que importa. Seus leitores não<br />

deviam ficar desanimados ou enganados. Foi Jesus quem venceu.<br />

S? luz<br />

O conflito entre luz e escuridão é um elemento natural do simbolismo e se encontra<br />

em muitas religiões. João escreveu que o Logos criou todas as coisas, e acrescentou: “A vida<br />

estava nele e a vida era a luz dos homens” (1.4). Isso provavelmente se refere a passagens do<br />

Antigo Testamento que ligam vida e luz a Deus, como, por exemplo: "Em ti está o manancial<br />

da vida; na tua luz, vemos a luz” (SI 36,9). A luz e a vida que os judeus viam em Deus.<br />

João vê no Logos. Quem o seguir terá "a luz da vida” (8.12). Sem ele, estamos no escuro, mas<br />

ele traz a luz que ilumina toda a vida.<br />

"A luz resplandece nas trevas”, escreveu João, "e as trevas não prevaleceram contra<br />

ela” (1.5). A função da luz é exatamente brilhar nas trevas, Não faz sentido acender um fósforo<br />

para iluminar em plena luz do dia, mas, no breu da noite, até uma pequena fonte de luz


é bem-vinda. Os que são de Deus são enviados para iluminar na escuridão. É mais fácil e<br />

mais agradável somar nossa pequena chama à chama que irradiam as pessoas que pensam<br />

como nós. A escuridão do mundo, contudo, carece de iluminação, Isso, diz João, foi o que<br />

ele recebeu quando Jesus veio. A luz continua a brilhar, e as trevas não podem derrotá-la.'4<br />

João continua reafirmando seu tema principal que, em Jesus, vemos o Filho de<br />

Deus, que foi enviado ao mundo para nos trazer salvação, ao custo da sua vida. Ele vê isso<br />

em termos de luz e trevas. O Logos, diz ele, era “a verdadeira luz, que [...] ilumina a todo<br />

homem”, e que ele tinha “vindo ao mundo” (1.9). “A luz veio ao mundo”, disse Jesus<br />

(3.19), e novamente: “Ainda por um pouco a luz está convosco” (12.35). Ele afirmou: “Eu<br />

sou a luz do mundo” (8.12; 9.5), e também: “Eu vim como luz para o mundo” (12.46).<br />

Todas essas declarações revelam que a iluminação do mundo se encontra em Jesus, com<br />

o outro lado sempre implícito e às vezes afirmado: rejeitar a Jesus é rejeitar a luz e tatear<br />

na escuridão.<br />

João Batista era um dos que conheciam a luz. Ele foi enviado por Deus para dar testemunho<br />

da luz (1.6-7). Ele mesmo não era a luz (1.8); veio para testificar dela. As pessoas<br />

da sua época tinham uma idéia difusa do que estava acontecendo, pois quiseram, por algum<br />

tempo, alegrar-se em sua luz (5.35). No fim, porém, recaíram sob a condenação, por amarem<br />

mais as trevas do que a luz, por causa do mal que praticavam (3,19). O fato de eles agirem<br />

errado significava que odiavam a luz e não se aproximavam dela para que seus atos não<br />

fossem desmascarados (3.20). Como quem caminha no escuro, eles tropeçavam, porque a<br />

luz não estava neles (11.10). Note a mudança de figura: Jesus fala de luz como algo dentro<br />

de nós, não como um recurso de fora. Naturalmente ela é as duas coisas; tudo depende de<br />

que perspectiva está sendo encarado. Passagens como essa condenam gravemente o mal<br />

que a escuridão representa.<br />

Por outro lado, há aqueles que, como João Batista, respondem à luz. Eles “praticam<br />

a verdade” e vêm à luz (3.21); eles andam na luz, e a escuridão não os ultrapassa (12.35).<br />

Eles crêem na luz (o que deixa claro que a luz tem uma ligação estreita com Jesus), a fim de<br />

se tornarem "filhos da luz” (12.36). De modo nítido, João considera o conceito da luz uma<br />

maneira importante de ver a Cristo e sua salvação.<br />

A NVI cem na nota: “As trevas não a compreenderam” (cf. ARC). O verbo K Q T ü X aflp C tV tü transmite a<br />

idéia de segurar algo para tomar posse, e isso às vezes pode ser uma referência à percepção m ental Essa tradução,<br />

portanto, pode ser defendida. Só que as trevas não tentam compreender a luz; as duas, na verdade, se<br />

opõem continuamente, Um sentido menos comum do verbo é “derrotar”, e esse parece ser o sentido aqui. João<br />

está retratando o conflito e dizendo que as trevas não venceram. O tempo aoristo talvez se refira ao evento<br />

único do auge do conflito no Calvário. N em ali as trevas saíram vencedoras.


S? verdade<br />

O conceito de verdade nos escritos gregos geralmente é muito parecido com o nosso.<br />

A verdade é uma qualidade do que se diz (verdadeiro em oposição a falso), ou do que se é<br />

(real em oposição a aparente). Mas o conceito é mais rico e variado no Antigo Testamento;<br />

por exemplo, Deus pode ser chamado “Deus da verdade” (SI 31.5; Is 65.16). Conhecemos a<br />

verdade realmente só quando conhecemos a Deus. Isso acarreta conseqüências para quem<br />

somos e para o modo como vivemos. O salmista fala de expressar a verdade não só com os<br />

lábios, mas também com o coração (SI 15.2); ele “anda” (ou seja, vive) na verdade de Deus (SI<br />

26.3). “Ah! S E N H O R , não atentam os teus olhos para a verdade?” (Jr 5.3, A R C ). Há muitas<br />

outras referências à verdade; no Antigo Testamento, trata-se de um conceito rico e pleno.<br />

No Novo Testamento, os escritores tinham esse conceito do Antigo Testamento<br />

como parte do cenário, e para eles a verdade também tinha um sentido abrangente. A<br />

exemplo do Antigo T estamento, em João a verdade é ligada a Deus, cuja palavra “é a verdade"<br />

(17.17). Aqueles que adoram um Deus como este têm de adorar "em espírito e em verdade”<br />

(4.23-24).<br />

A verdade é ligada principalmente a Jesus. Ele garantiu a Pilatos nos termos mais<br />

solenes que a verdade é sua preocupação fundamental: "Eu para isso nasci e para isso vim<br />

ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade" (18.37). O Logos é “cheio de graça e de verdade”<br />

(1.14), e também: “A graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (1.17).<br />

Observe a ligação com a graça. João não usa mais a palavra “graça" em seu evangelho depois<br />

do prólogo, mas ela deve ser entendida junto com verdade, palavra que ele usa com freqüência.<br />

Parece que a verdade ligada tão fortemente com Cristo traz salvação. Graça e verdade<br />

vêm às pessoas somente porque Cristo as traz.<br />

Pilatos fez a pergunta: “O que é a verdade?” (18.38) num momento muito importante<br />

deste evangelho, Jesus estava diante dele, os discípulos tinham fugido, os líderes dos<br />

judeus o haviam entregado, o governador tinha de tomar a sua decisão. Ele falara com Jesus<br />

sobre ser rei, e Jesus lhe dissera que toda a razão de ele vir a este mundo estava ligada à verdade.<br />

Muito bem, o que é a verdade? João não responde com palavras, nem de Jesus, nem de<br />

Pilatos, nem de ninguém. Mas há uma resposta em atos, pois João passa imediatamente ao<br />

seu relato da crucificação. “Só pode haver um sentido de áXijOeia no quarto evangelho: é a<br />

verdade sobre a morte e ressurreição de Jesus, da qual se dá testemunho em 16.7 e 17.19.<br />

Isso está em harmonia com toda a teologia do quarto evangelho, do qual o ponto central é o<br />

‘ser levantado' de Jesus”.'5


Por isso Jesus podia dizer: "Eu sou [...] a verdade” (14.6). Nesse sentido pleno, a verdade<br />

não é algo externo a Jesus, para que ele possa indicá-la às pessoas. Antes, no sentido<br />

mais profundo da palavra, ele é a verdade. Ele dizia a verdade sempre (8.40, 45-46; 16.7).<br />

Neste evangelho, a única coisa que João Batista fez foi dar testemunho de Jesus, e isso é<br />

descrito como dar testemunho da verdade (5.33). Talvez possamos ver o mesmo quando se<br />

diz que o Diabo, o opositor de Jesus, jamais se firmou na verdade, porque a verdade não<br />

está nele (8.44). Da perspectiva de João, não pode haver a menor dúvida de que a verdade<br />

real pode ser alcançada por meio de Jesus e somente por meio dele.<br />

Jesus falou do "Espírito da verdade” (14.17; 15.26; 16.13), do qual uma das funções<br />

era conduzir os seguidores "em” ou “a” toda a verdade (16.13). A verdade é aplicável a eles.<br />

Aqueles que "permanecem” no ensino dejesus, aqueles que são verdadeiramente seus discípulos,<br />

conhecem a verdade, e a verdade os liberta (8.32). Jesus não estava falando primordialmente<br />

de liberdade intelectual, apesar de, em certo sentido, os que foram libertos por<br />

Cristo são mais livres em sua maneira de pensar e em todos os outros sentidos. Ele estava<br />

falando da liberdade de caminhos errados, do engano do pecado, que a salvação traz. O mal<br />

sempre causa escravidão, e os que estão escravizados a ele são (entre outras coisas) ignorantes<br />

da sua verdadeira condição. Apenas a verdade pode libertá-los. E quando a verdade<br />

completa a sua obra, ela se torna característica deles, a ponto de se dizer que eles são "da<br />

verdade” (18.37; cf. a referência aos que são “de Deus”, 8.47). Pode-se dizer que eles "praticam<br />

a verdade" (3.21); a verdade é uma qualidade do que eles fazem, bem como do que<br />

dizem. Eles são santificados “na verdade” (17.17), declaração que provavelmente contém<br />

outra referência à obra de salvação de Cristo, pois ele continua dizendo que santifica a si<br />

mesmo para que eles possam ser santificados na verdade (17,19). Sua santificação de si<br />

mesmo com certeza está ligada à sua morte salvadora.<br />

O juizo<br />

João tem muito a dizer sobre o juízo. Ele emprega o substantivo krisis, “juízo”, 11<br />

vezes (somente Mateus, com 12, o emprega mais vezes) e o verbo krinein, “julgar”, 19 vezes<br />

(somente Atos, com 21, tem mais ocorrências desse verbo; se somarmos os casos do substantivo<br />

e do verbo, Mateus tem 18, Atos, 22, e João, 30). Ás vezes traduzimos as palavras<br />

referentes ao juízo como “condenação” e “condenar”, pois João também usa essas palavras<br />

em relação aos aspectos negativos do juízo (como nós às vezes também, mesmo que talvez<br />

não tanto quanto ele).<br />

Ficamos surpresos ao ler que João algumas vezes escreveu que Jesus não veio para<br />

julgar (3.17; 8.15; 12.47), e outras, que sim (9.39; cf. 3.19; 5.20, 30; 8.16; 12.48). Deve estar<br />

claro para nós que a missão dejesus era de salvação. Ele não veio para julgar ninguém, mas


para salvar as pessoas, Ele morreu na cruz para proporcionar salvação, e sua morte estava<br />

em vista desde o começo (1.29; 3.16). A salvação, porém, não é automática: “Quem crê”<br />

não é julgado; mas "o que não crê já está julgado, porquanto não crê” (3.18).<br />

O julgamento é o outro lado da salvação. Jesus morreu para nos trazer salvação, mas<br />

isso não que dizer que somos forçados a aceitá-la. O caminho está bem aberto, e quem crê<br />

entra por ele. Mas quem se recusa a crer, quem prefere andar em seu próprio caminho egocêntrico<br />

em vez de aceitar as mudanças implícitas em ser de Cristo, traz juízo sobre si. A<br />

oferta de salvação implica julgamento daquele que rejeita a oferta. E impossível separar as<br />

duas coisas. Assim, de um ponto de vista, Jesus não veio para julgar ninguém mas para trazer<br />

salvação, e quem crê é salvo. De outro ponto de vista, porém, a oferta de salvação necessariamente<br />

significa julgamento para quem a rejeita: “Se eu não viera, nem lhes houvera<br />

falado”, disse Jesus, "pecado não teriam; mas, agora, não têm desculpa do seu pecado”<br />

(15.22; afirmação semelhante é feita a respeito das coisas que Jesus fez entre eles, v. 24).<br />

Nós somos criaturas com responsabilidade. Não podemos fugir da responsabilidade por<br />

nossos atos, e uma parte do motivo da vinda de Jesus foi nos fazer assumir essa<br />

responsabilidade — em outras palavras, nos trazer julgamento.<br />

Vemos isso também em passagens que nos dizem algo sobre a natureza do julgamento.<br />

Imediatamente depois das grandiosas palavras sobre Deus, que entregou seu Filho<br />

em amor para que quem crê fosse salvo (3.16), somos informados de que o propósito de<br />

Deus era salvação, não julgamento (v.17). Depois vem uma declaração sobre o que acontece<br />

àquele que crê e o que acontece ao que não crê (v. 18). Este "já está julgado [e] o julgamento<br />

é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz;<br />

porque as suas obras eram más” (v. 18-19). Essa é uma passagem muito importante para<br />

nossa compreensão da posição de João em relação ao juízo. Ele não está dizendo que as<br />

pessoas serão julgadas porque amam mais as trevas do que luz. Ele está dizendo que o fato<br />

de elas amarem as trevas e não a luz constitui seu julgamento.<br />

Imagine uma pessoa sempre presa numa sala escura. Não há janelas, as paredes são<br />

pretas, o teto e o chão também, a porta está fechada, Não há nenhuma luz. Essa pessoa tem<br />

uma existência empobrecida, que praticamente não merece ser chamada de existência.<br />

T odavia, ela não precisa ficar ali. A porta não está trancada. Ela pode abri-la e sair em direção<br />

à luz do sol de Deus. Mas ela não o faz. Ela ama a escuridão. E seu amor pela escuridão<br />

que a confina à sua existência contraída e apertada.<br />

João está dizendo que aqueles que decidem seguir na vida de pecado e se recusam a<br />

crer emjesus Cristo são assim. Não é que Deus esteja dizendo “Eu vou castigar você!”, mas<br />

são eles mesmos que se castigam. Seu amor pela escuridão, sua rejeição da luz é o próprio<br />

castigo deles, e foram eles que fizeram essa escolha.<br />

O juízo, portanto, é uma realidade presente, à semelhança da vida eterna. Entretanto,<br />

haverá uma experiência mais plena da vida eterna após a morte, e o mesmo vale para c


juízo. O juízo atual, que tanto importa para João, não é o único. O dia do juízo, no fim do<br />

mundo, é uma realidade. E o critério naquele dia ainda será o que cada um fez com o ensino<br />

dejesus: “A própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no último dia” (12.48). João<br />

enfatiza que o juiz naquele grande dia será ninguém menos que Jesus. Já vimos que esse é<br />

um ensino distintivo dos cristãos. Os judeus não imaginavam o Messias como juiz; eles<br />

tinham certeza de que o juízo final estaria nas mãos de Deus apenas. João, na verdade, não<br />

muda isso, mas entende que Deus julgará por meio do Filho. O Pai em pessoa “a ninguém<br />

julga, mas ao Filho confiou todo julgamento” (5.22); ele “lhe deu autoridade para julgar,<br />

porque é o Filho do Homem” (5.27). É por isso que, no último dia, os que estiverem nos<br />

túmulos ouvirão a voz do Filho do Homem e sairão, “os que tiverem feito o bem, para a ressurreição<br />

da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo [ou da<br />

condenação]” (5.28-29).<br />

João às vezes fala da qualidade do juízo. Jesus levantou objeções ao julgamento feito<br />

pelos seus opositores porque eles julgavam “segundo a aparência” (7.24) e “segundo a carne”<br />

(8.15). O julgamento dele não é assim. Na verdade, isso pode ser parte do motivo por<br />

que ele disse que não julga (8.15); o que Jesus faz é tão diferente do que eles faziam, que dificilmente<br />

pode receber o mesmo nome. O seu julgamento é “correto" ou “justo" (dikaia, 5.30);<br />

é "verdadeiro” (alêthinê, 8.16). Isso ocorre por causa da sua comunhão íntima com o Pai: ele<br />

não procura fazer sua própria vontade, mas a do Pai (5.30); ele não está sozinho, porque o<br />

Pai, que o enviou, está com ele (8.16).<br />

O que ele diz sobre o julgamento de modo algum é óbvio à pessoa natural, e Jesus<br />

ensina a necessidade da obra do Espírito Santo para convencer alguém do juízo (16.8). Isso<br />

se refere basicamente ao julgamento do "príncipe deste mundo” (16.11), pois está longe de<br />

ser óbvio que, na cruz de Cristo, o Maligno foi julgado. Precisamos da ajuda do Espírito<br />

para compreender isso, E importante ver que a coisa certa está sendo feita na maneira em<br />

que somos salvos, assim como no fato de que somos salvos. Satanás não é apenas<br />

derrotado, mas também julgado.<br />

Os sacramentos<br />

Há muitas opiniões diferentes sobre a importância que João dá ao batismo e à ceia<br />

do Senhor. Ele não menciona nenhum dos dois, e desse fato alguns estudiosos tiraram a<br />

conclusão de que ele não lhes dá importância alguma. Outros, porém, afirmam que, apesar<br />

de não os mencionar, João traz ensino importante sobre o batismo no capítulo 3 e sobre a<br />

ceia no capítulo 6. Podemos ampliar isso, como faz por exemplo Oscar Cullmann, vendo<br />

referências ao batismo nas passagens em que João fala da água, e a relação com a ceia nos<br />

textos em que ele fala do sangue.


Não é fácil desconsiderar o fato de que João não menciona nenhum dos dois. Isso é<br />

ainda mais notável a respeito da ceia, porque seu relato do que aconteceu por ocasião da<br />

última ceia é, de longe, o mais extenso dos quatro evangelhos. Poderíamos esperar alguma<br />

referência a ela. O fato de João não mencioná-la ali certamente indica que ele não lhe atribuía<br />

a mesma posição central que alguns estudiosos lhe dão.<br />

A linguagem de 6.51-58 parece a alguns exegetas tão evidentemente eucarística que<br />

consideram inútil qualquer explicação que não contemple ali uma referência à ceia. Mas há<br />

quatro argumentos fortes contra ela.<br />

Um é o conteúdo. João nos diz que as palavras foram ditas não a um grupo de discípulos<br />

comprometidos, mas à multidão, que incluía adversários de Jesus e pessoas interessadas<br />

nele, mas não realmente comprometidas. Ninguém explicou satisfatoriamente por que<br />

João gostaria que crêssemos que foi a um público como esse que Jesus deu seu ensino sobre<br />

um sacramento que devia ser seguido apenas por cristãos comprometidos. Da mesma forma,<br />

ninguém explicou por que Jesus teria ensinado a esse público um sacramento que ainda<br />

não fora instituído. Eles não poderiam ter entendido o que ele estava dizendo.<br />

Um segundo argumento diz respeito à linguagem, Jesus disse: "Se não comerdes a<br />

carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos"<br />

(6.53). A linguagem é absoluta. Segundo Jesus, sem comer a carne e sem beber o sangue,<br />

não há vida. T odavia, é impossível afirmar que a única coisa necessária para a vida eterna é a<br />

observância de um ritual religioso. Também devemos notar que, na verdade, a linguagem<br />

não é de eucaristia. Jesus falou de comer sua "carne”, não seu "corpo”, e "corpo” era a palavra<br />

usada pela igreja na ceia. A diferença pode não ser grande, mas existe. Não é assim que os<br />

primeiros cristãos se referiam à ceia,<br />

A terceira questão é que a própria passagem que fala das bênçãos decorrentes de<br />

comer a carne e beber o sangue de Cristo diz que elas vêm de receber a Cristo ou crer nele<br />

(v. 35,40, 47). Se a vida eterna é conseqüência de crer em Cristo, então ela não está condicionada<br />

a uma observância litúrgica.<br />

Em quarto lugar, os judeus costumavam usar a metáfora de comer e beber para indicar<br />

a acolhida de algo no íntimo do ser. Ela não se referia necessariamente ao ato físico de<br />

ingerir alimento. Muitas vezes ela se refere a receber a Lei, por exemplo, ou o “alimento<br />

celestial”. Não devemos achar que palavras como essas têm de ser entendidas como sinal de<br />

ingestão de algo físico; elas se referem à dádiva de uma bênção espiritual.16<br />

Uma vez, porém, que entendamos que a passagem se propõe nos ensinar que recebemos<br />

a Cristo de modo espiritual, podemos dizer: “Também é assim que o recebemos<br />

H . Odeberg documenta amplamente esse uso (Tbejourth Gospel Amsterdam, 1968, p. 235-269). Sobre =<br />

idéia de que João 6 se refere à ceia do Senhor, ele diz: “Quem acha que a referência a comer e beber a carne e c<br />

sangue se aplica ao pão e ao vinho da ceia comete exatamente o mesmo engano de Nicodemos no capítulo 3


quando ingerimos o pão e o vinho".17 Mas isso é muito diferente de achar que as palavras<br />

giram primordialmente em torno de um ato sacramental.<br />

Essa é a atitude que devemos ter em relação ao ensino sacramental de João em geral.<br />

Ele não diz nada diretamente sobre essas observâncias. Mas ensina sobre as realidades<br />

espirituais para a qual elas apontam, e compreender o que ele diz nos permite ver melhor o<br />

sentido delas quando as celebramos.<br />

dos judeus’ aqui, ou seja, que a expressão realista de Jesus se refere a objetos do mundo terreno e não do mundo<br />

celestial (p. 239).<br />

1?Cf. F. D . Maurice: “Se, portanto, me perguntarem se ele está falando da ceia aqui, devo dizer: ‘N ão’. Se me<br />

perguntarem onde posso aprender o sentido da ceia, devo dizer: 'Em nenhum lugar tão bem quanto aqui ” ^citado<br />

em C. J, W right, Jesus the revelation of God. London, 1950, p. 180).


Capitulo 16<br />

A s epístolas de João<br />

ssas três cartas têm sido tradicionalmente atribuídas ao autor do evangelho de<br />

João. Há muitas opiniões em relação a isso, mas via de regra se concorda que,<br />

mesmo que não tenham sido escritas pelo mesmo homem, elas vieram do<br />

mesmo círculo de influência. Há nelas muitas idéias repetidas, apesar de às vezes seguirem<br />

desenvolvimentos diferentes. A posição básica é a mesma. Os escritos joaninos formam<br />

um conjunto.<br />

*2)eus como<br />

Há um enfoque muito destacado em Deus nessas cartas. A palavra “Deus” é usada<br />

67 vezes, e “Pai”, 18, das quais 16 se referem a Deus. Tantas referências a Deus num espaço<br />

tão curto não têm equivalente em nenhum outro lugar no Novo Testamento. E há algumas<br />

afirmações notáveis como "Deus é luz” (ljo 1.5) e “Deus é amor” (4.8, 16),<br />

Duas coisas se destacam de forma especial: a ligação entre Deus e Jesus Cristo e a<br />

ligação entre Deus e seu povo. Há repetidas referências ao "Filho de Deus" (p. ex., ljo 3.8;<br />

4.9,15; 5.5,10). Para o autor, é altamente importante que vejamos o relacionamento entre<br />

Jesus e o Pai. Ele fala do “testemunho que Deus dá acerca do seu Filho” (5.10). No estudo<br />

do evangelho vimos como dar testemunho compromete alguém e que João traz a ousada


idéia de que Deus se comprometeu em Jesus. Em ljoão essa idéia é ainda mais clara, se é<br />

que isso é possível. Negar o Filho significa que não temos o Pai, ao passo que confessar o<br />

Filho é ter o Pai (2.23). Permanecer no Filho e no Pai são coisas que andam lado a lado<br />

(2.24). Continuar por conta própria, sem o ensino do Filho, significa que não temos a<br />

Deus, enquanto permanecer no ensino equivale a ter o Pai e o Filho (2Jo 9), pois o Pai<br />

enviou o Filho (ljo 4.9-10, 14).<br />

Os cristãos que receberam ljoão estavam evidentemente confusos a respeito de<br />

“espíritos". Havia pessoas que se declaravam “inspiradas” e, por isso, supunham que seu<br />

ensino tinha de ser aceito. Os leitores são instruídos a não avaliar os "espíritos” segundo a<br />

própria avaliação deles. Eles têm de ser testados, pois "todo espírito que confessa quejesus<br />

Cristo veio em carne é de Deus” (ljo 4.2; cf. 2Jo 7). Todo espírito que não faz essa confissão<br />

prova, com isso, ser "do anticristo” (v. 3).<br />

João declara com ênfase o amor de Deus em todos esses textos (p.ex. ljo 2.5; 3.17) e,<br />

de fato, "Deus é amor” (ljo 4.8, 16), Conhecemos o amor, não em virtude do nosso amor<br />

por Deus, mas por causa do amor dele por nós, ao enviar seu Filho como propiciação por<br />

nossos pecados (4,10), E essa ação de Deus que nos permite ser aceitos na família celestial<br />

(3.1-2,10), e há várias referências a ser “nascido de Deus" (3.9; 4.7; 5.1,4,18). Somos recordados<br />

do ensino sobre o novo nascimento em João 3 (cf. Jo 1.13). Outra reminiscência do<br />

evangelho é o ensino de que se pode ser “de Deus" (efe tou theou, ljo 4.4, 6; 5.19; 3Jo 11; cf.Jo<br />

8.47). Um ensino importante é que devemos "permanecer” em Deus (ljo 4.16). Isso provavelmente<br />

é o mesmo que “ter comunhão” com Deus (1.3, 6; comunhão não é mencionada<br />

no evangelho).<br />

O lugar atribuído a Jesus Cristo é crucial. E evidente que o escritor está enfrentando<br />

forte oposição, até de alguns que haviam saído do grupo (ljo 2.19) e de outros que ficaram<br />

(3Jo 9), entre os quais havia os que afirmavam ser inspirados (ljo 4.1-3). Como os cristãos<br />

podiam saber quem estava certo e quem estava errado? João é muito claro: a atitude em<br />

relação ajesus é decisiva. Aparentemente havia alguns que tinham um conceito altamente<br />

“espiritual” da natureza divina, e muito baixo da matéria. Eles achavam que a divindade<br />

não podia ter nenhum contato com a matéria, e por isso não podia haver encarnação. Para<br />

eles, o homem Jesus não podia ter sido o Cristo divino.<br />

E em face desse cenário que temos de entender palavras como “Quem é o mentiroso,<br />

senão aquele que nega quejesus é o Cristo? Este é o anticristo, o que nega o Pai e o Filho”<br />

(ljo 2.22). Note que o inimigo não está negando apenas Jesus quando diz que ele não é o<br />

Cristo. Está negando também o Pai, pois não o reconhecia como o Deus que enviou seu


Filho para ser nosso Salvador. Um deus que enviasse um homem para ser seu mensageiro é<br />

um ser muito diferente do Pai amoroso que enviou seu Filho para ser nosso Salvador.<br />

Negar quejesus é o Cristo de Deus ou o Filho de Deus é rejeitar o Deus que nos amou com<br />

o amor que vemos no Calvário. Isso é tão fundamental que João diz que quem “não confessa<br />

Jesus Cristo vindo em carne é o enganador e o anticristo” (2Jo 7). Essa pessoa não está<br />

simplesmente cometendo um erro inocente; está enganando os outros.<br />

“Todo aquele que nega o Filho, esse não tem o Pai; aquele que confessa o Filho tem<br />

igualmente o Pai” (ljo 2.23). O Pai e o Filho são inseparáveis. Nenhum profeta é realmente<br />

“inspirado” se não confessar quejesus Cristo veio em carne (4.2). Não confessar Jesus<br />

significa não fazer parte do povo de Deus, mas pertencer ao anticristo (4.3; termo que se<br />

encontra apenas nesses textos em todo o Novo Testamento). É importante confessar que<br />

Jesus é o Filho de Deus (4.15), crer que ele é o Cristo (5.1) e o Filho de Deus (5.5), e crer em<br />

seu nome (3.23; 5.13).<br />

ljoão tem algumas coisas importantes a dizer sobre a expiação que Cristo efetuou.<br />

A carta é mais explícita que o evangelho dejoão sobre esse assunto. Por exemplo, “o sangue<br />

de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (ljo 1.7). Obviamente, é a morte que é<br />

importante. Essa também é a razão da insistência do escritor de quejesus Cristo veio “por<br />

meio de água e sangue; não somente com água, mas também com a água e com o sangue”<br />

(5.6). Tem havido muitos debates sobre essa passagem, mas parece que devemos entender<br />

que a água aponta para o batismo de Jesus, e o sangue, para a sua morte. Havia alguns na<br />

igreja antiga que não podiam aceitar a idéia de que o Cristo fora crucificado. Diziam que o<br />

Cristo divino viera sobre o homem Jesus quando do seu batismo, e o deixara antes da crucificação.<br />

João insiste em que não só o batismo, mas também a cruz de Cristo é importante.<br />

Foi a morte, não o batismo, que retirou o pecado.<br />

Do mesmo modo, Jesus Cristo é nosso advogado junto ao Pai (ljo 2.1), aquele que<br />

intercede por nós quando pecamos. E ele é “a propiciação pelos nossos pecados” (v. 2); e<br />

ainda: “Deus nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados”<br />

(4.10). A exemplo de Paulo, João está dizendo que existe algo terrível, a ira de Deus, voltada<br />

contra os pecadores, e que a morte de Cristo foi a maneira de desviar essa ira de nós.<br />

Também por isso Cristo veio, "para tirar os pecados" (3.5).<br />

Outra maneira de dizer isso é falar de Cristo como “o Salvador do mundo” (ljo<br />

4.14; essa expressão é encontrada apenas aqui e em Jo 4.42), Não se trata da idéia de que,<br />

no fim, todo mundo será salvo, mas de que a salvação não está restrita a algum grupo (como<br />

os judeus) e que ela atende às necessidades de todo mundo, em todo lugar. João também<br />

disse: “Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo” (ljo 3,8).<br />

Vida é um dos seus grandes conceitos: “Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no seu<br />

Filho” (5.11). Ter o Filho significa ter vida; de outro ângulo, vemos que todas as nossas<br />

esperanças de salvação estão em Cristo e no que ele fez por nós. João também tala de per­


dão (1.9; 2.12). A salvação tem muitos aspectos, e apesar dejoão não se propor a nos fazer<br />

uma descrição completa dela, ele não deixa dúvidas de que Jesus fez tudo o que tinha de ser<br />

feito,<br />

O fato de Jesus resolver o problema do pecado é importante porque todos nós<br />

somos pecadores, “Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos,<br />

e a verdade não está em nós. [...] Se dissermos que não temos cometido pecado,<br />

fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós” (1.8-10). O principal pensamento<br />

aqui é que tudo o que Deus faz em relação ao ser humano vem do fato de que ele é pecador.<br />

Séculos antes, Deus enviou seus profetas e legisladores para exortar as pessoas a se desviarem<br />

do pecado, e o ponto culminante de tudo foi a vinda do Filho de Deus para acabar com<br />

o pecado. Por isso, negar que pecamos equivale a negar a verdade de toda a revelação que<br />

Deus fez. “O pecado é a transgressão da lei" (3.4), a recusa a se submeter à lei de Deus e a<br />

afirmação da vontade própria de cada um. Vemos que coisa terrível é isso quando o colocamos<br />

diante do cenário do amor de Deus, apresentado de modo tão nítido nesta carta.<br />

Vê-se o amor de Deus no fato de que ele entrega seu Filho; a cruz é muito eloqüente ao<br />

afirmar seu interesse pelo ser humano. Insistir no próprio caminho e no próprio benefício<br />

em face desse sacrifício pessoal é a coisa mais horrível que existe. Verdadeiramente, "aquele<br />

que pratica o pecado procede do diabo” (3.8).<br />

S? vida cristã<br />

A vida cristã, como se poderia esperar diante de tudo o que Cristo fez, é uma questão<br />

de tudo ou nada. Ela implica renúncia total ao pecado; "Todo aquele que permanece<br />

nele não vive pecando” e "Todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu” (ljo<br />

3.6). Isso pode ser dito de modo muito incisivo: "Todo aquele que é nascido de Deus não<br />

vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode<br />

viver pecando, porque é nascido de Deus” (v. 9). Provavelmente é importante que os tempos<br />

dos verbos aqui são contínuos. O autor não está dizendo que um cristão nunca pode<br />

fazer algo errado; ele está dizendo que ele não pode continuar no caminho errado. Pecar<br />

habitualmente não é possível para alguém que renasceu pelo poder de Deus. Pecar não<br />

combina com seu caráter. Seu hábito é servir a Deus e fazer o que é certo (v. 7),1<br />

I. Howard Marshal diz que essa posição “talvez seja a interpretação mais comum da passagem entre os comentaristas<br />

britânicos" (The epistles o f John. Grand Rapids, 1979, p. 180). Pessoalmente ele prefere pensar que<br />

a passagem significa “a realidade escatológica, a possibilidade aberta ao crente, que é ao mesmo tempo factum


Entretanto, é o amor que recebe a ênfase (agapê ocorre 21 vezes nessas cartas;<br />

agapaõ, 31; e agapêtos, 10). Numa das mais importantes passagens de todo o Novo T e s­<br />

tamento, João diz: “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas<br />

em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (ljo<br />

4.10). Mais uma vez: “Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos<br />

dar nossa vida pelos irmãos” (3.16).<br />

Jamais descobriremos o que o amor significa se partirmos do lado humano. Temos<br />

de partir da cruz, onde vemos o amor de Deus, não pelos atraentes, devotos ou merecedores,<br />

mas pelos pecadores, aqueles que, sem o ato propiciatório do Filho, experimentariam<br />

apenas a ira de Deus, a horrível conseqüência do seu pecado. Isso é o que está por trás da<br />

declaração que se repete: "Deus é amor" (4.8, 16). Deus ama porque amar é sua natureza,<br />

não por sermos atraentes ou porque nossos méritos o tenham obrigado a isso. Como<br />

vimos, somos todos pecadores, epor isso não somos atraentes para Deus. Ele nos ama, não<br />

pelo que somos, mas pelo que ele é.~<br />

Nosso amor, portanto, é uma resposta ao amor de Deus: “Nós amamos porque ele<br />

nos amou primeiro” (ljo 4.19). “O amor procede de Deus” (v. 7). Somente porque experimentamos<br />

o amor que vemos na cruz é que amamos da maneira que distingue o cristão.<br />

Algumas vezes João fala do amor dos cristãos sem especificar o objeto do seu amor, como<br />

quando diz: "Todo aquele que ama é nascido de Deus" (4.7; veja também 3.14,18; 4.8,19).<br />

Quem nasce de novo tem uma nova capacidade para amar. Em certa medida, ele aprendeu<br />

a amar como Deus; ama não só quem é atraente, belo, bom, mas todos os que são objetos<br />

do amor de Deus. Ele ama a Deus (4.20-21; 5.2) e ama o outro (p. ex., 3.23; 4.7); ele “ama a<br />

seu irmão” (p. ex., 2.10; 3.14; 3Jo l) .3Desse modo, o amor de Deus é “aperfeiçoado" neles<br />

(ljo 4.12). De fato, quem ama está preocupado em obedecer aos mandamentos de Deus<br />

(5.3). E impressionante que essas cartas, que dão tanta ênfase ao amor, tenham mais referências<br />

aos mandamentos de Deus do que qualquer outro livro do Novo Testamento<br />

(entolê, “mandamento”, ocorre 18 vezes, ao passo que Paulo registra a palavra apenas 14<br />

vezes em todas as suas cartas). Do mesmo modo, amor e medo são incompatíveis, pois o<br />

amor perfeito lança fora o medo (4.17-18).<br />

O crente passou da morte para a vida (ljo 3.14); ele tem vida eterna (p.ex, 1.2; 2.17;<br />

5.11). Peculiar é a idéia de “permanecer” (o verbo menõ ocorre 27 vezes). Quase sempre essa<br />

('esse não pode viver pecando') e condicional ('[se] permanece nele’)” (p. 182). N o entanto, não é fácil entender<br />

o que isso significa nem como essa posição é mais satisfatória do que a rejeitada por Marshall.<br />

Desenvolvi essa idéia mais amplamente em Testaments oflove, Grand Rapids, 1981.<br />

Alguns estudiosos deduziram da ênfase no amor pelo irmão que o escritor pensa apenas no amor fraternal;<br />

ele não tem amor pelos que estão fora da comunidade cristã. Isso, porém, significa ignorar que ele espera<br />

que os cristãos amem com o Deus ama os pecadores ( l jo 4.10). Isso não é incompatível com o amor pelos irmãos,<br />

porém é mais abrangente.


permanência é em Deus (p. ex., 2.6; 3.6), mas pode ser na luz (2.10), no Filho e no Pai<br />

(2.24), ou no ensino (2Jo 9). Assim, também, a palavra de Deus pode permanecer em nós<br />

(ljo 2.14; cf. 2.24), ou “a unção” (2.27), a vida (3.15), o amor (v. 17) ou a verdade (2Jo 2). E<br />

Deus permanece em nós (ljo 3.24; 4.12), assim como sua "semente” (3.9).<br />

Podemos ver a vida cristã como a negação do "mundo”. Esse termo pode ser usado<br />

em sentido neutro (ljo 2.2; 4.9), mas geralmente se refere ao mundo oposto a Deus e ao<br />

povo de Deus, O mundo, nesse sentido, não conhecia a Cristo, e não conhece os filhos de<br />

Deus (3.1) — e como poderia? Pior ainda, ele odeia os que são de Deus (3.13). Isso não é<br />

de admirar, pois o mundo é ligado aos falsos profetas, ao anticristo, aos enganadores (4.1,<br />

3; 2Jo 7); de fato, o mundo inteiro está sob o poder do Maligno (ljo 5.19). Os crentes,<br />

porém, não precisam ter medo, pois “maior é aquele que está em vós do que aquele que está<br />

no mundo" (ljo 4.4).<br />

Não devemos amar o mundo nem as coisas que há nele (ljo 2.15). Deus amou o<br />

mundo (Jo 3,16), mas é claro que isso não se refere a mundo no sentido de “mundanismo".<br />

Refere-se às pessoas do mundo; Deus as amou e enviou seu Filho para ser o Salvador delas.<br />

Em ljoão 2.15, a idéia é que não devemos amar o mundo presente, não devemos estar voltados<br />

para as coisas mundanas. O vazio do mundanismo significa que aqueles que são<br />

seduzidos pela sua atratividade sofrem prejuízo irreparável. João adverte contra sua superficialidade<br />

e transitoriedade (2.16-17). E trágico trocar o que é sólido pelo que é superficial,<br />

o que é eterno pelo que é temporal.4<br />

Um antigo léxico dá esta definição de K O O jlO S em seu aspecto “mundano”: “Todo o conjunto terreno de<br />

bens, dons, riquezas, vantagens, prazeres, etc., que, apesar de serem ocos, frágeis e voláteis, despertam desejos,<br />

afastam de Deus e são obstáculos à causa de Cristo” (A Greek-English Lexicon o f the New Testament. Tradução<br />

revisada e ampliada de Grimm’s W ilke’s Clavis Novi Testamenti por Joseph Henry Thayer, Edinburgh, 1888, p.<br />

357).


^ Capífulo 17 j<br />

Apocalipse de João<br />

maioria dos cristãos considera Apocalipse um livro difícil, por causa das suas<br />

visões impressionantes, seus monstros interessantes, suas séries de selos,<br />

trombetas e taças, e seu simbolismo estranho. Ele representa um tipo de literatura<br />

bastante comum na época em que o movimento cristão começou, mas não é mais<br />

produzida hoje. Por isso requer um esforço especial para compreendermos o que o escritor<br />

nos está dizendo.<br />

João começa com: “Revelação [apokalypsis] de Jesus Cristo", de onde tiramos a palavra<br />

"apocalíptico”— usada para descrever todo esse gênero de literatura. Este livro, porém,<br />

difere de muitos apocalipses,1e diversas vezes João o chama profecia (1.3; 22.7,10,18-19).<br />

Ele está usando o estilo apocalíptico para transmitir a "palavra de Deus” (1.2) para os seus<br />

dias. Alguns estudiosos negam que João tivesse um propósito teológico sério, e outros<br />

dizem que lhe faltam partes importantes da mensagem cristã. Contra a primeira objeção<br />

podemos lembrar que, nos primórdios da igreja, o autor era chamado ho theologos, “o teólogo”;<br />

os que estavam cronologicamente mais perto dele sabiam do que isso se tratava. E se<br />

ele não tem a mensagem cristã completa, isso significa apenas que ele apresenta em cores<br />

Veja meu livro Revelation o f st. John. London, 1969, p. 23-25.


vivas e no estilo apocalíptico os aspectos dessa mensagem que ele achava necessários para a<br />

sua época.<br />

João escreveu para uma igreja pequena, perseguida, que corria o perigo de ficar desiludida.<br />

Quando o evangelho foi pregado naquela região, as pessoas ouviram que Deus<br />

enviara o seu Filho, que morreu numa cruz para retirar os pecados delas e abrir o caminho<br />

para a vida eterna. O Filho ressuscitara e subira de volta ao céu. N a hora certa voltaria para<br />

reinar sobre toda a terra. Todos os impérios terrenos (como o de Roma) ficariam sujeitos a<br />

ele, e os crentes entrariam no reino glorioso. Para as pessoas comuns, que tinham sido tão<br />

maltratadas pelos romanos, isso era um grande estímulo. Alegremente elas se tornaram<br />

cristãs, e esperavam e ansiavam pelo retorno do Senhor.<br />

T odavia, nada aconteceu. Os romanos os oprimiam como sempre. Alguns crentes<br />

foram mortos ou presos. O mal prosperava como antes. Será que tudo fora um engano?<br />

César era forte demais para Cristo? O mal haveria de prevalecer sempre sobre o bem?<br />

Apocalipse foi escrito para um pequeno grupo de cristãos perplexos com perguntas<br />

como essas. Basicamente, ele apresente uma teologia do poder. O escritor está dizendo<br />

mais ou menos isto: “Vocês estão vendo só um pedaço do quadro. Se pudessem olhar<br />

além da cortina, veriam que Deus está executando o seu propósito e, na hora que lhe for<br />

apropriada, ele derrotará o mal completamente. A salvação conquistada no Calvário não<br />

deixará de atingir seu alvo final". Precisamos ter o propósito de João em mente. Não<br />

encontraremos aqui uma exposição completa de tudo o que o cristianismo ensina, mas<br />

uma concentração nos aspectos da fé que transmitiriam aos seus leitores as verdades que<br />

eles precisavam saber.<br />

0 ôenhor glorioso<br />

João traz saudações “da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha [ou a testemunha,<br />

fiel], o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra” (1.5). Sua primeira visão é<br />

do Senhor em toda a sua glória (1.12-20). Enquanto não virmos o Senhor pelo que ele é,<br />

não teremos visto nada da perspectiva correta. Depois de deixar claro que Jesus é o Senhor<br />

supremo, João faz uma lista de títulos, enquanto o livro se desenvolve. Ele é “o primeiro e o<br />

último e aquele que vive” (1.17-18); ele é quem tem as chaves da morte e do Hades (1.18).<br />

Ele é o "Filho de Deus” (2.18), aquele que é "santo” e “verdadeiro”, “aquele que tem a chave<br />

de Davi, que abre, e ninguém fechará, e que fecha, e ninguém abrirá” (3.7), “o princípio<br />

(NVI traz soberano) da criação de Deus” (3.14), Ele é "o Leão da tribo de Judá, a Raiz de<br />

Davi" (5.5). Depois ele é apresentado “de pé, um Cordeiro como tendo sido morto” (5.6' -<br />

Isso faz parte de uma visão em que o louvor ao Cordeiro é elevado pelos quatro seres vivos e<br />

pelos vinte e quatro anciãos em torno do trono de Deus, dos quais ele passa a miríades e


miríades de anjos, e, como se isso não bastasse, a toda a criação. Tudo, no céu, na terra e<br />

debaixo da terra, forma um grande coro de louvor ao Cordeiro.<br />

O cântico de louvor se ergue porque o Cordeiro é considerado digno de abrir os sete<br />

selos, e é isso que ele faz (p. ex., 6.1, 3). À medida que a narrativa avança, vê-se que o livro é<br />

o livro do destino humano, e a visão quer dizer que o Cordeiro está no controle de tudo. E<br />

evidente que os cristãos, longe de ser um grupo insignificante e sem importância, são os<br />

seguidores daquele em cujas mãos está o destino de todas as pessoas e de todas as nações.<br />

A grandeza do Cordeiro é indicada pela maneira por que ele é ligado a Deus. Há referências<br />

ao “trono de Deus e do Cordeiro” (22,1, 3) e a pessoas em pé diante do trono e diante<br />

do Cordeiro (7.9). Os cento e quarenta e quatro mil são chamados “primícias para Deus e<br />

para o Cordeiro” (14.4). O escritor sempre coloca o Cordeiro no mesmo nível de Deus.<br />

João deixa claro logo no começo que Jesus é supremo. Ele pode gozar de pouca estima<br />

em várias regiões do Império Romano, mas recebe a maior honra no céu. Em todo o texto,<br />

Jesus é visto como o Senhor de tudo. Ele faz o que quer, e os anjos atuam sob seu comando.<br />

João não quer que seus leitores tenham a menor dúvida quanto à grandeza de Jesus.<br />

A grandeza de Jesus torna a sua obra de salvação possível. Já em 1.5 lemos que Jesus<br />

Cristo “nos ama e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados“. Mais tarde lemos que<br />

ele foi morto e, com seu sangue, comprou para Deus pessoas "que procedem de toda tribo,<br />

língua, povo e nação” (5.9). Uma ilustração paradoxal nos informa que os salvos alvejaram<br />

suas roupas “no sangue do Cordeiro” (7.14); em outra visão, ficamos sabendo que a vitória<br />

dos salvos aconteceu “por causa do sangue do Cordeiro" (12.11). A figura do Cordeiro,<br />

neste livro, é surpreendente. Ela aparece a primeira vez quando um dos anciãos diz ajoão<br />

que “o Leão da tribo de Judá” venceu para abrir o livro fechado com os selos. João se volta<br />

para olhar o leão — e vê o Cordeiro (5.5-6)! E interessante que o cordeiro é um símbolo<br />

sempre relacionado com Cristo, pois os símbolos normalmente escolhidos pelos povos são<br />

de aves e animais predatórios.2 As coisas de Deus, porém, não funcionam pelas regras do<br />

ser humano. No fim, não é o poder predatório que importa, mas qualidades muito<br />

diferentes. O Cordeiro é um símbolo dessa diferença celeste.<br />

João, ao usar a figura do Cordeiro, muitas vezes tem a sua morte em mente. O sangue<br />

que Jesus derramou é de importância crucial. De fato, isso está implícito no conceito<br />

do “Cordeiro como tendo sido morto” (5.6; cf. 5.9,12). Ele foi morto “desde a fundação do<br />

mundo” (13.8). O próprio termo "Cordeiro” (quejoão usa 29 vezes em suas 30 ocorrências<br />

João, P. Love comenta: “Esta talvez seja a ilustração mais importante de Apocalipse. Apenas um narrador<br />

inspirado de visões celestes poderia tê-la imaginado. Quando homens terrenos procuram símbolos de poder,<br />

pensam em animais poderosos e aves de rapina. A Rússia tem o urso; a Grã-Bretanha, o leão; a França, o tigre;<br />

os Estados Unidos, a águia — todos predadores. Som ente o reino do céu se atreveria a usar como seu símbolo<br />

de poder não o leão que João procurou, mas o Cordeiro indefeso, e ainda por cima m orto” (John, Jude,<br />

Revelatíon. London, 1960, p. 65).


no Novo Testamento3) indica uma oferta de sacrifício, e o triunfo ligado ao Cordeiro neste<br />

livro com certeza significa triunfo pela morte.<br />

Este livro vibra com o forte tom de vitória, da vitória ligada a Cristo. Por exemplo,<br />

nas cartas às igrejas há um refrão que fala “daquele que venceu”. Isso não deve ser entendido<br />

como se os cristãos, em sua própria força, possam obter a vitória. Antes, é Cristo quem traz<br />

a vitória para o seu povo. Eles simplesmente ficam firmes em todas as dificuldades, fortes<br />

na capacitação divina (cf. 12.11). Isso está implícito também na idéia de que ele fez do seu<br />

povo um “reino, sacerdotes para o seu Deus" (1.6; 5.10). Cristo abriu para o seu povo um<br />

destino glorioso.<br />

tyeus sobre todas as coisas<br />

João tem uma profunda reverência por Deus. Seu livro está repleto de ilustrações<br />

vivas, e ele não hesita em entrar em detalhes quando fala de Cristo, como mostra a visão no<br />

capítulo 1. Mas quando fala de Deus no céu, ele é muito reservado: “Esse que se acha assentado<br />

[no trono] é semelhante, no aspecto, a pedra de jaspe e de sardônio, e, ao redor do trono,<br />

há um arco-íris semelhante, no aspecto, a esmeralda” (4.3). Deus não pode ser descrito; só<br />

podemos nos prostrar diante dele, em profundo temor. A fumaça da glória de Deus mantém<br />

todos fora do templo (15.8); sempre há referências à glória de Deus, Talvez isso atinja seu clímax<br />

com a informação de que a glória de Deus é a luz da cidade celestial (21.23).<br />

Os seres vivos perto do trono nunca param de adorar, dia e noite, exclamando:<br />

“Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que é e que há de<br />

vir” (4.8). Apesar da ênfase que este livro dá ao poder, a primeira coisa que os moradores do<br />

céu dizem sobre Deus é que ele é santo. O poder físico é importante, mas a força moral tem<br />

mais relevância.<br />

Deus está vivo (7.2); ele vive para sempre (4.9-10; 10.6). O “espírito [NVI, BJ: sopro]<br />

de vida, vindo da parte de Deus”, dá vida aos mortos (11.11). Suas obras são maravilhosas,<br />

e a esse fato está ligada a idéia de que seus caminhos são justos e verdadeiros (15.3). Os pensamentos<br />

de João sobre Deus são diversos, Uma coisa, porém, que transparece vez após vez<br />

é o poder de Deus. A pequena igreja não deve ter nenhuma dúvida de que Deus é poderoso<br />

e fará sua vontade, quaisquer que sejam os planos dos tiranos da terra. Repete-se — nove<br />

vezes ao todo — que ele é Todo-Poderoso (p. ex., 1.8; 4.8; 11.17). Os que estão no céu lhe<br />

atribuem força e poder (p. ex., 7.12; cf. 11.17; 12.10).<br />

Sua palavra é à p v ío v , Ele não usa a palavra ã liv ó ç , outra palavra traduzível por “cordeiro” e e n co n tra i<br />

quatro vezes no Novo Testamento.


O grande poder de Deus significa fundamentalmente que, no final das contas, os<br />

tiranos deste mundo não têm poder. Algumas vezes encontramos a idéia de que Deus elabora<br />

seu plano e que eles simplesmente são obrigados a fazer o que ele quer. Por exemplo,<br />

numa visão em que aparecem dez reis e o monstro, João diz: “Em seu coração inculcou<br />

Deus que realizem o seu pensamento” (17.17). O mais das vezes Deus é simplesmente forte<br />

demais para eles, e ele os derrota quando chega a hora. “Poderoso é o Senhor Deus, que<br />

julga [Babilônia]” (18.8). Entretanto, devemos atentar para a palavra “julga”: João não está<br />

escrevendo sobre um Deus que, por acaso, é mais forte do que os reis da terra. Seu Deus<br />

tem um forte propósito moral, e as dores que sobrevêm às pessoas más não são simplesmente<br />

um grande sofrimento; elas são castigos, a recompensa devida pelos males que<br />

praticaram.<br />

O triunfo de Deus é descrito com uma noção realista do poder do mal. O líder das<br />

forças do erro é visto em numerosos disfarces; ele é “o grande dragão, a antiga serpente, que<br />

se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo” (12.9). Lemos sobre o monstro que<br />

saiu do mar e do seu cúmplice, o monstro que veio da terra (13.1, 11). Há espíritos imundos<br />

(16.13; 18.2), demônios (9.20; 18.2), espíritos de demônios (16.14) eos anjos do Diabo<br />

(12.7).J oão tem certeza de que há pessoas más também, e descreve com cores vivas a “grande<br />

meretriz” (17.1) e “Babilônia, a grande" (17.5; 18.2). Ele fala muitas vezes da “grande<br />

cidade”, que para ele parece ser cada cidade e nenhuma especificamente; é o ser humano<br />

organizado em comunidade, que ele vê como hostil a Deus. T udo isso mostra que João não<br />

tem dúvidas sobre a oposição que existe à causa de Deus, originadas de forças humanas e<br />

sobre-humanas. Ele vê o mal à sua volta, mas não considera a maldade humana a pior. Por<br />

trás de todo mal humano está o semblante maligno de Satanás. Há guerra entre as forças<br />

do bem e do mal aqui na terra, mas isso só é parte de um conflito maior, pois João fala de<br />

guerra no céu (12.7). Estamos envolvidos num conflito muito maior do que qualquer coisa<br />

que vejamos aqui na terra. João não é um otimista idealista, incapaz de notar a força da<br />

oposição. Ele sabe muito bem que o mal é forte.<br />

Ao mesmo tempo, João tem plena certeza da vitória. Com o mesmo realismo com<br />

que ele vê a força do mal, ele vê o poder do Deus todo-poderoso. Em todo o seu livro ele<br />

destaca a soberania de Deus, e quando chega ao seu ponto culminante, ele contempla a derrota<br />

definitiva de todas as forças do mal. Ele fala da batalha “do grande Dia do Deus<br />

Todo-Poderoso” (16.14), e abre espaço para relatar como tudo o que está errado será aniquilado<br />

(cap. 17-20). Isso inclui as pessoas más, pois a visão retrata com detalhes chocantes<br />

a destruição da grande cidade (cap. 18) e de Satanás e seus companheiros (20.7-10). No<br />

fim, João pode dizer: “O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele<br />

reinará pelos séculos dos séculos” (11,15).


tyeus e seu povo<br />

O Deus que é tão grande e que enceta uma batalha incansável contra as grandes forças<br />

do erro é grande o suficiente para ter um interesse amoroso pelos seus. A terminologia<br />

do amor não é freqüente neste livro (mas cf. 3.9; 20.9); entretanto, a idéia de que Deus cuida<br />

dos seus perpassa todo o livro. Ele falou com seu povo, e ouvimos da “palavra [ou palavras]<br />

de Deus” diversas vezes (p. ex., 1.2; 17.17; 19.9). Na verdade, todo o livro é uma<br />

revelação “que Deus deu” (1.1). As vezes lemos que Deus falou (1.8), porém é mais comum<br />

(talvez mais reverente) que venha uma voz do céu (10.4) ou um intermediário (7.13ss).<br />

Seja qual for a maneira como João o coloca, fica a idéia de que Deus cuida dos seus e lhes dá<br />

a revelação de que precisam para passar por suas dificuldades.<br />

Nas mensagens às sete igrejas nos capítulos 2-3, temos a idéia constante de que<br />

Deus está interessado em tudo o que seu povo está fazendo; ele conhece os seus fracassos e<br />

sucessos, e lhes dá sua bênção (cf. 2.7; 3.12). Aqueles que Cristo redimiu foram redimidos<br />

"para Deus” (5.9); eles são seus para sempre. A salvação é atribuída a Deus (7.10; 12.10;<br />

19.1), e a cidade santa, o lugar dos salvos, vem de Deus (21,2,10). Num gesto belo e inesperado,<br />

"Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima” (7.17; cf. Is 25.8),<br />

Espera-se que os que foram salvos respondam, Eles são “reino, sacerdotes para o seu<br />

Deus” (1.6; 5,10), Um reino pressupõe um rei; portanto, os salvos são colocados sob a<br />

soberania de Deus; eles não são salvos para uma vida de ócio, mas de serviço. O sacerdócio<br />

também implica serviço, mesmo que de tipo diferente. Observe que essa palavra é aplicada<br />

aos crentes em geral, não a quem tem cargo na igreja ou a qualquer outro grupo restrito.<br />

Todos juntos somos um grupo de sacerdotes, falando ao mundo por encargo de Deus e a<br />

Deus em favor do mundo ao qual levamos a mensagem do evangelho.<br />

Há muita coisa sobre adoração em Apocalipse (o verbo proskyneõ aparece neste<br />

livro em 24 das 59 vezes de todo o Novo Testamento, ficando Mateus em segundo lugar<br />

com 13). Na maior parte das vezes, a adoração ocorre no céu (p. ex., 4.10; 7,11), mas não é<br />

verdade que aquilo que os servos de Deus estão fazendo no céu, o povo de Deus deveria<br />

estar fazendo na terra? Também há referências à adoração a divindades perversas (13.4;<br />

14.11), o que lembra aos leitores que devem tomar cuidado com o alvo da sua adoração.<br />

Isso vemjunto com a advertência que se repete ajoão de que ele não deve adorar um anjo,<br />

mas somente a Deus (19.10; 22.8-9).<br />

A referência ao “dia do Senhor" (1.10) representa a única vez em que o domingo é<br />

assim mencionado no Novo Testamento, apesar de termos outras referências ao culto no<br />

primeiro dia da semana (At 20.7; lC o 16.2; cf. Jo 20.19). Há muitos cânticos em todo este<br />

livro, algo que lembra o aspecto musical do culto, e há referências a dar graças a Deus<br />

(11.17) e a louvar a Deus (19.5) — ações apropriadas ao culto, apesar de também terem<br />

uma utilidade muito mais ampla.


Joáo enfatiza o valor da oração. Ele diz que os quatro seres vivos e os vinte e quatro<br />

anciãos, que estão mais próximos do trono de Deus, têm nas mãos taças cheias de incenso,<br />

“que são as orações dos santos” (5.8). Na terra, a oração muitas vezes parece ser uma coisa<br />

solitária e sem valor, mas no céu os que estão mais perto de Deus se interessam pelas orações<br />

do povo de Deus: as taças são de ouro — o que há de maior valor. Um pouco adiante,<br />

João fala de um momento de silêncio no céu, antes que as orações sejam trazidas. Desta vez<br />

há um anjo com um incensário de ouro, e a oferta é feita sobre um altar de ouro (8.1-3). E<br />

quando a oferta é feita, o incensário é lançado sobre a terra, “e houve trovões, vozes, relâmpagos<br />

e terremoto” (v. 5). João com certeza está dizendo que a oração é valiosa e eficaz.<br />

Muito mais poderia ser dito sobre este livro interessante e emocionante. Ele foi<br />

escrito num estilo individual; não diz nada sobre algumas realidades às quais outros textos<br />

do Novo Testamento dedicam bastante atenção. Mesmo assim, João tem algumas coisas<br />

importantes a dizer. Ele vê Deus entronizado no céu, executando seus propósitos na terra.<br />

As orações do povo de Deus são ouvidas e valorizadas. Aqueles que foram redimidos pela<br />

morte expiatória de Cristo e que confiam nele encontrarão salvação no céu, quando chegar<br />

a hora. Jesus terminou sua obra na terra e retornou para o céu, de onde voltará na hora certa<br />

para libertar seu povo e derrotar todas as forças malignas. As coisas sobre as quais João<br />

escreve têm valor permanente para o povo de Deus.4<br />

4 Este foi um estudo compacto, e não tentei tratar da questão difícil do milênio. Em parte isso é devido ã limitação<br />

de espaço (neste livro tive de omitir muitas coisas que considero importantes e gostaria de ter incluído),<br />

e em parte porque todos os estudos dessa questão difícil e que causa tanta divisão acabam ficando sem<br />

uma conclusão. O s proponentes do pré-milenismo, do pós-milenismo e do amilenismo defendem suas posições<br />

com argumentos que lhes parecem imbatíveis, mas que não convencem os que estão fora do seu círculo.


As epístolas gerais<br />

studaremos agora o grupo de escritos geralmente chamados epístolas gerais. Ao<br />

contrário das cartas de Paulo, elas não foram dirigidas a igrejas específicas, e<br />

somos obrigados a deduzir quem foram seus possíveis destinatários a partir do seu<br />

conteúdo. Além do fato de que elas não foram escritas para destinatários definidos, pouca<br />

coisa as une. No entanto, sempre foram valorizadas na igreja e vale a pena estudá-las.<br />

Hebreus é o maior desses escritos e tem lugar entre os de maior peso no Novo Testamento.<br />

A segunda epístola de Pedro e Judas via de regra não gozam de consideração tão<br />

elevada. Todos estes livros, porém, fazem parte do cânon do Novo Testamento, e se quisermos<br />

levar a sério a idéia de uma teologia do Novo Testamento, temos de prestar atenção<br />

ao que elas dizem. Na pior das hipóteses, elas nos lembram de que, na igreja do Novo<br />

Testamento, nem todos eram como Paulo nem como João. Na melhor das hipóteses, ninguém<br />

pode negligenciá-las sem sofrer algum prejuízo.<br />

Todos esses escritos são individuais, Não foram escritos todos pelo mesmo autor,<br />

nem têm o mesmo tema. Por isso, é melhor estudá-los separadamente. As epístolas joaninas,<br />

é claro, pertencem a esse grupo, mas têm uma associação óbvia com os demais escritos<br />

joaninos, razão pela qual as estudamos na terceira parte. Falta-nos ver que tipo de contribuição<br />

as outras epístolas gerais prestam para a teologia do Novo Testamento.


Capítulo 1ô j<br />

A Spístola aosMebreus<br />

sta epístola distingue-se claramente de todos os outros escritos do Novo Testamento.<br />

Ela se restringe às áreas de interesse judaico e seu conceito de Cristo<br />

como o grande sumo sacerdote é exclusivo. Há polêmica quanto a quem teria<br />

sido o seu autor (que, após todas as conjecturas, permanece desconhecido) e seus primeiros<br />

destinatários (que estavam sendo tentados a abandonar sua profissão de fé cristã e voltar,<br />

ao que parece, ao judaísmo). Mas podemos estudar seu ensino sem entrar a fundo<br />

nessas questões difíceis.<br />

cÜm grande ^2hus<br />

O autor de Hebreus tem um profundo interesse em Deus, que eíe menciona 68<br />

vezes (em média uma vez a cada 73 palavras). Ele conhece um Deus grandioso, que criou<br />

tudo o que existe (1.2; 3.4; 4.3-4; 11.3). E uma coisa terrível cair em suas mãos (10.31), pois<br />

ele é “fogo consumidor” (12.29; cf. a descrição assustadora da sua descida sobre o monte<br />

Sinai, 12.18-21) e sua ira é real (3.11; 4.3). Ele é o juiz de todos (12.23), especificamente de<br />

certos malfeitores (13.4), mas também do "seu povo" (10.30). Realmente, o ensino sobre o<br />

"juízo eterno” faz parte dos “princípios elementares da doutrina de Cristo" (6.1-2). O julga-


mento é certo como a morte (9.27). Somos lembrados de que existem “anjos de Deus” que<br />

o adoram (1.6), e há numerosas referências ao “Deus vivo” (p. ex., 3.12; 9,14). Ele é o “Deus<br />

Altíssimo” (7.1), e está atuando nos assuntos das pessoas, de modo que elas só podem agir<br />

“se Deus permitir” (6,3). Em seu plano de salvação, os antigos serão “aperfeiçoados”<br />

somente junto com os cristãos (11.40). Sua vontade se cumpre na vinda de Cristo (10.7).<br />

Ele pode ressuscitar os mortos (11.19).<br />

O autor de Hebreus, portanto, não tem dúvidas quanto à grandeza de Deus. Sua<br />

ênfase, porém, não está na grandeza de Deus. Está na graça de Deus, que ele menciona de<br />

vez em quando (2.9; 12.15) e que está por trás de boa parte do que ele vê Deus fazer. Por<br />

exemplo, ele tem certeza da revelação de Deus; ele começa nos dizendo que Deus falou de<br />

várias maneiras e em diversas épocas nos tempos antigos, e que agora falou através de seu<br />

Filho (1.1-2); ele nos garante que Deus falou “por Davi” (4.7); ele faz referência à “palavra<br />

de Deus” (4.12; 6.5; 13.7); ele fala dos “oráculos de Deus” (5.12) e do testemunho dado por<br />

Deus em sinais e coisas do gênero (2.4). Deus está tão interessado no ser humano que lhe<br />

dá toda a orientação de que necessita. Há pessoas que fazem parte do “povo de Deus” (4.9;<br />

11.25), também chamado “casa de Deus” (10.21).<br />

Nos tempos antigos Deus fez uma promessa a Abraão e a selou com um juramento<br />

(6.13). O fato de Deus fazer essa promessa mostra seu interesse pelo patriarca, e há mais<br />

uma prova da grandeza de Deus no fato de ter tido ele de jurar por si mesmo, pois não existe<br />

ninguém maior por quem jurar. Também há a idéia de confiabilidade: Deus não pode<br />

mentir (6.18). A idéia de que Deus prometeu abençoar significa muito para esse autor. Ele<br />

usa a palavra “promessa” mais do qualquer outro no Novo Testamento — um total de 14<br />

vezes (depois vem Gálatas com 10). E em cada ocorrência ele faz menção do que Deus prometeu.<br />

Ele pode se concentrar em uma promessa (4.1) ou usar o plural das muitas promessas<br />

de Deus (6.12), mas dos dois modos ele está expressando a idéia de que Deus age pela<br />

graça. A bênção de Deus vem não pelos merecimentos do ser humano, mas por causa da<br />

sua decisão de abençoar. Ele faz suas promessas e as cumpre.<br />

Deus atua na salvação que Cristo efetuou. O autor tem um grande interesse na salvação,<br />

termo que ele usa sete vezes, mais do que qualquer outro no Novo Testamento. Ele<br />

nem sempre especifica quem a operou, mas claramente se trata de Deus Pai, Cristo ou<br />

ambos. Mais uma vez, o sacerdócio de Cristo é “nas coisas referentes a Deus” (2.17; 5.1; cf.<br />

5.4, 10; 9.14), e é de Deus que nos aproximamos por meio dele (7.19, 25); ele se apresenta<br />

diante de Deus a nosso favor (9.24). Em toda a carta está claro que essa ação salvadora de<br />

Cristo é central para o escritor, por isso passaremos ao que ele tem a dizer sobre isso, sem<br />

esquecer que, para ele, é Deus, e ninguém mais, que a realiza.


0 Cristo incomparável<br />

A carta começa com uma longa descrição da pessoa de Cristo. Aqui o escritor deixa<br />

claro que Jesus é uma pessoa maravilhosa, muito acima da criação, estando à altura de<br />

Deus. Ele o identifica como “Filho” (p. ex., 1.2 — ele usa esse termo mais de uma dezena de<br />

vezes), em contraste com os profetas. Imediatamente percebemos que ele está num nível<br />

diferente das pessoas mais impressionantes que já existiram. O escritor nos informa em<br />

seguida que Cristo é o “herdeiro de todas as coisas”, dizendo com isso que, em relação a<br />

toda essa imensa criação, ele tem aposição de herdeiro, de Filho do dono. Foi por meio dele<br />

que Deus fez tudo o que existe.1Ele é o brilho (ou, talvez, reflexo) da glória de Deus e a<br />

“representação exata” do seu ser (1.3, NIV). Ele não esteve atuante somente na criação, mas<br />

também sustenta o universo continuamente. O verbo “sustentar” êpherõ, que transmite a<br />

idéia de levar a criação adiante, talvez para o seu objetivo; é um conceito dinâmico (não<br />

estático, como a idéia grega de Atlas sustentando tudo sobre seus ombros). Ele efetuou a<br />

purificação dos nossos pecados e se sentou à direita de Deus (um pensamento que se repete:<br />

1.13; 8.1; 10.12; 12.2).<br />

Ele é superior aos anjos porque “herdou mais excelente nome do que eles” (1.4); a<br />

essência do seu ser é de outra ordem. O escritor passa a mostrar isso com uma série de citações<br />

das Escrituras que falam do Filho, uma forma de tratamento não usada para anjos<br />

(1-5), ou de anjos que o adoram (1.6) e são seus servos (1.7). Depois fala dele como rei<br />

(1.8), da sua obra na criação e da sua eternidade (1.10-12). Deus jamais convidou um anjo<br />

para sentar-se à sua direita (como fez com o Filho, 1.3) até todos os seus inimigos serem<br />

derrotados (1.13). E um argumento e tanto que os anjos, por mais importantes que sejam,<br />

são inferiores ao Filho de Deus.<br />

Depois de mostrar isso, o escritor passa à “tão grande salvação” que Cristo efetuou.<br />

Ele veio para este mundo como ser humano, inferior aos anjos, mas isso foi apenas<br />

para obter a salvação dos pecadores (2,9). O escritor enfatiza a humanidade de Cristo<br />

como genuína (2,10-18), mas sem modificar o que disse sobre a sua grandeza. O que ele<br />

está dizendo é que Cristo foi grande o suficiente para ocupar o lugar mais inferior, a fim<br />

de realizar a salvação.<br />

Isso o leva à questão seguinte, de que o “Sumo Sacerdote da nossa confissão” é superior<br />

a Moisés (3,1-6). Isso parece ser um anticlímax, pois já tivemos o argumento de que<br />

Cristo é maior do que os anjos. Para os judeus, porém, Moisés também era maior do que os<br />

Ele fez T O V Ç Cllújvaç, "os mundos” (ARC: “o mundo”) ou “o universo”, como nas traduções mais recentes.<br />

A palavra geralmente se refere a “era”, e alguns comentaristas vêem aqui o sentido “as eras” (BJ: “os séculos”).<br />

“O universo” faz mais sentido, apesar de a palavra grega nos lembrar que as coisas são passageiras.


anjos.2 Ele era o homem por meio de quem Deus concedera a lei, e para os judeus isso foi a<br />

maior coisa que havia acontecido na história do mundo. Era inconcebível para eles alguém<br />

ser maior do que Moisés. Porém, o autor mostra que Moisés foi fiel como servo na casa de<br />

Deus, mas Cristo foi fiel como Filho sobre essa casa (3.5-6).<br />

Depois de provar que Cristo é incomparavelmente maior do que qualquer coisa ou<br />

ser em toda a criação, o escritor desenvolve o pensamento de que Cristo trouxe salvação<br />

para todos, e usa conceitos como o do grande sumo sacerdote, o sacerdote como Melquisedeque,<br />

e a nova aliança para ilustrar o que quer dizer. Em tudo isso a grandeza de Cristo se<br />

destaca: ele jamais poderia cumprir o que significa ser “sumo sacerdote” e outros títulos,<br />

não fosse ele tão grande. A equiparação de Cristo a Deus Pai é o pressuposto necessário<br />

para tudo o que ele tem a dizer sobre nosso Salvador.<br />

Verdadeiro homem<br />

Observamos que uma coisa que o autor pensa de Cristo é que ele foi grande o suficiente<br />

para se tornar humano para a nossa salvação. Uma das coisas fascinantes dessa<br />

carta é como ela une a mais elevada cristologia possível à perspectiva mais realista possível<br />

da fraqueza da carne humana. Por exemplo, o escritor nos informa que, “nos dias da<br />

sua carne", Jesus ofereceu, “com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas” (5.7). Isso é<br />

uma referência evidente ao Getsêmani, mas em nenhum outro relato há uma expressão<br />

tão forte da angústia de Jesus. Ele foi ouvido, somos informados, “por causa da sua piedade",<br />

outra indicação de humanidade autêntica. Ele “aprendeu a obediência” pelo que<br />

sofreu, e foi “aperfeiçoado” (5.8-9) “por meio de sofrimento” (2.10). O sacerdócio do<br />

Filho distingue-se do sacerdócio dos sumos sacerdotes terrenos, pois ele foi feito "perfeito<br />

para sempre” (7.28). Existem, é claro, diferentes tipos de perfeição. A perfeição do<br />

botão é diferente da perfeição da flor; existe diferença entre estar perfeitamente pronto<br />

para sofrer e realmente ter sofrido. Podemos dizer que Cristo esteve sempre perfeito no<br />

sentido de estar pronto par sofrer e que, na hora certa, ele alcançou a perfeição de ter<br />

sofrido. Mas o fato é que o escritor aos Hebreus usou algumas expressões surpreendentes<br />

para apresentar esse aspecto da humanidade de Jesus.<br />

Para passagens nos escritos rabínicos que mostram que se imaginava Moisés maior do que os anjos, cf.<br />

SBK, 3:683.


De acordo com Hebreus, Jesus teve de ser3feito como os seus irmãos (2.17). Ele<br />

“sofreu, tendo sido tentado” (2.18); de fato, ele foi “tentado em todas as coisas, à nossa<br />

semelhança mas sem pecado" (4.15). Isso pode significar que, apesar de ser tentado, ele não<br />

pecou, ou que ele conhece todas as tentações, exceto a que vem de ter pecado. De qualquer<br />

maneira, a ênfase é em que a tentação foi real.<br />

Quanto à origem humana de Jesus, Hebreus nos diz que ele pertencia à tribo de<br />

Judá (7.14), Jesus recebeu oposição dos pecadores (12.3) e foi morto fora de Jerusalém<br />

(13.12). Tudo isso aponta para uma vida humana e morte genuínas. Devemos observar<br />

também que o escritor usa o simples nome humano “Jesus” nove vezes, e cada vez parece<br />

haver ênfase na humanidade (ele também registra “Jesus Cristo” três vezes e “nosso Senhor<br />

Jesus” uma, além de “Cristo” nove vezes). O autor insiste em que o lugar de Jesus é com<br />

Deus, e ao mesmo tempo em que Jesus compartilhou, e continua a compartilhar, a<br />

natureza humana inteiramente.<br />

(Sacerdote como cMelquísedeque<br />

O escritor dessa carta tem seu próprio estilo, e nada é mais peculiar do que sua descrição<br />

de Cristo como sacerdote ou sumo sacerdote.4 Isso prova ser uma maneira única e<br />

muito esclarecedora de entender a obra de salvação de Cristo. O autor de Hebreus usa o<br />

termo “sacerdote” 14 vezes (nenhum outro escritor do Novo Testamento tem mais do que<br />

Lucas, com 5) e "sumo sacerdote" 17 vezes (um termo encontrado em outro lugar apenas<br />

nos evangelhos e em Atos — e falando dos ocupantes do cargo, na época). Ele não parece<br />

fazer muita diferença de sentido entre os dois.<br />

O autor traça um perfil altamente particular de Melquisedeque. Ele diz três vezes<br />

que Cristo é um sacerdote ou sumo sacerdote como este homem (5.6,10; 6.20),5e mais tarde<br />

faz um estudo abrangente do tema no capítulo 7. Melquisedeque aparece em um episódio<br />

em Gênesis 15.18-20, Somos informados que ele era rei de Salém e sacerdote do Deus<br />

Altíssimo; ele trouxe pão e vinho a Abraão quando este retornou da vitória na batalha, o<br />

abençoou e recebeu dele uma décima parte dos despojos, Isso é tudo. Nada consta sobre a<br />

O verbo é íú(f>ei/\€V, “ele tinha o dever”. Como escrevi em outro lugar, “há o senso de obrigação moral. A<br />

natureza da obra que Jesus veio realizar exigia a encarnação. Em vista desse trabalho, ele tinha de se tornar<br />

como os ‘irmãos’” (Frank E. Gaebelein, ed., The expositor’s Bible commentary. Grand Rapids, 1981, 12:29).<br />

O . Cullmann tem um estudo valioso do conceito em seu Christology o f the New Testament. London, 1959,<br />

cap, 4.<br />

As traduções costumam ter “um (sumo) sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque". M as precisamos<br />

ter em mente que não há outro sacerdote como este homem. N ão existe “outro”; só existe a figura solitária de<br />

Melquisedeque que, de várias maneiras, prefigura a do Messias,


linhagem ou posteridade de Melquisedeque. Nada mais se diz sobre ele em nenhum outro<br />

lugar do Antigo Testamento, com a exceção de uma referência a um sacerdote como<br />

Melquisedeque em Salmos 110.4.<br />

O nome desse homem significa “rei de justiça”, e seu título significa “rei da paz”.<br />

Ambos apontam para a obra de Cristo, mas essas idéias não são desenvolvidas. Melquisedeque<br />

foi “sem pai, sem mãe, sem genealogia; não teve princípio de dias, nem fim de existência”<br />

(7.3). Isso provavelmente segue uma maneira judaica de raciocinar, que acha<br />

importante o silêncio das Escrituras.6 A Bíblia não diz nada sobre os pais de Melquisedeque,<br />

nem temos sua genealogia ou informações sobre os seus descendentes. Tudo isso<br />

aponta para uma verdade importante sobre Cristo. O que valia para Melquisedeque, no<br />

sentido de que seu registro não revelava mais nada, valia para Cristo como um fato. Ele não<br />

tinha nem origem nem fim. Sua vida era de uma ordem diferente da dos demais. Não devemos<br />

esquecer que Melquisedeque foi “feito como o” Filho de Deus, Não devemos fazer do<br />

sacerdócio de Melquisedeque um padrão e achar que Cristo se adaptou a esse padrão. A<br />

coisa é inversa: o sacerdócio de Cristo é que é definitivo, e Melquisedeque simplesmente<br />

nos ajuda a compreendê-lo um pouco melhor. A vida de Cristo é "indissolúvel" (7.16); não<br />

que ela não vá terminar; ela não pode terminar. Há uma qualidade distinta nessa vida, para<br />

a qual apontam as declarações a respeito de Melquisedeque. Outros sacerdotes morrem e<br />

são substituídos, mas o sacerdócio de Cristo não tem fim (7.23-25).<br />

A permanência desse sacerdócio é demonstrada levando-se a sério o que diz Salmos<br />

110.4: "O Senhor jurou e não voltará atrás. Ele disse: Você será sacerdote para sempre”<br />

(7.20-22, BLH). Deus não fez nenhum juramento quando instituiu o sacerdócio levítico, e<br />

por isso não havia garantia de que ele não faria mudanças algum dia. Com o sacerdote que é<br />

como Melquisedeque, porém, as coisas são diferentes. O fato de Deus ter chamado Cristo<br />

para ser um sacerdote como este e ter jurado que ele seria sacerdote “para sempre” significa<br />

que o sacerdócio de Cristo não pode ser substituído. Ele permanece para sempre.<br />

O pagamento do dízimo a Melquisedeque e a bênção dada por ele são argumentos<br />

em favor da superioridade de Cristo sobre os sacerdotes levitas. Levi, de quem esses sacerdotes<br />

descendem, ainda não tinha nascido, Ele ainda estava “nos lombos” do seu ancestral<br />

Abraão quando o dízimo foi pago; em termos simbólicos, foi Levi quem o pagou (7.9-10,<br />

ARC). E a bênção que Melquisedeque deu a Abraão tem muito significado porque não há<br />

dúvida de que aquele que abençoa é maior do que a pessoa abençoada (7.7). Os dois fatos<br />

apontam para a verdade de que o sacerdócio exercido por Cristo é maior do que o que era<br />

exercido pelos sacerdotes de Jerusalém.<br />

H á um exemplo disso na aplicação que Filo faz do termo á f l TjTCOp, “sem mãe”, a Sara, porque sua mãe não<br />

é mencionada em Gênesis 20.12 (Da embriaguez, 59-61). Isso lhe permite extrair um sentido alegórico edificante.


Melquisedeque, portanto, nos ajuda a ver que a obra de Cristo como sacerdote é<br />

maior do que a dos sacerdotes levitas. Seu sacerdócio é permanente, eterno em sua eficácia<br />

e, por isso, substitui todos os sacerdócios inferiores.<br />

cVm grande sumo sacerdote<br />

Mesmo sem Melquisedeque, o conceito do sacerdócio tem muito a nos dizer sobre a<br />

obra de Cristo. Ele é um “misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus”<br />

(2.7). As qualidades de Cristo são importantes, e também o fato de que seu sacerdócio é<br />

exercido em relação a Deus.<br />

A essência do sacerdócio é a oferta representativa. O sacerdote precisa ser um representante<br />

genuíno daqueles por quem ele é sacerdote, e precisa exercer seu sacerdócio apresentando<br />

uma oferta a Deus (5.1). Sumos sacerdotes terrenos não tinham nenhum problema em<br />

ser representantes genuínos. O sacerdote era um ser humano como os que ele representava, e,<br />

além disso, era pecador, tanto que tinha de oferecer sacrifícios pelos seus próprios pecados,<br />

antes de fazê-lo pelos do povo (5.3). Oferecer sacrifícios era algo sagrado, e ninguém que não<br />

tivesse sido chamado por Deus podia fazê-lo, Isso valia para os sacerdotes levitas, e vale para<br />

Cristo (5.4-5). Sua humanidade genuína é muito importante; como vimos, o autor insiste<br />

nisso. Agora vemos que isso faz parte da qualificação de Jesus para ser um sumo sacerdote.<br />

Sem isso ele não seria um representante genuíno, mas é fato que ele é realmente um conosco;<br />

ele não é alguém que “não possa compadecer-se das nossas fraquezas” (4.15).<br />

Além disso, um sacerdote oferece sacrifícios. Os sacerdotes terrenos dia após dia<br />

oferecem sacrifícios, apesar de estes jamais poderem remover os pecados (10.11), “Todo<br />

sumo sacerdote é constituído para oferecer tanto dons como sacrifícios” (8.3). Por isso, se<br />

quisermos levar o sacerdócio a sério como uma categoria para interpretar a obra de Cristo,<br />

temos de vê-lo oferecendo um sacrifício. Se ele estivesse na terra, não teria sido sacerdote,<br />

pois já havia uma ordem sacerdotal que oferecia dádivas e sacrifícios (8.4).<br />

Uma das principais ênfases de Hebreus é que Cristo apresentou um sacrifício, o<br />

sacrifício de si mesmo, e que esse sacrifício é perfeita e permanentemente eficaz. Em contraste<br />

com os sacerdotes levitas com suas oferendas diárias de sacrifícios, ele sacrificou a si<br />

mesmo de uma vez por todas (7.27). Esse é um pensamento muito importante; ele é repetido<br />

uma vez após outra. “Ao se cumprirem os tempos, [Jesus] se manifestou uma vez por<br />

todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado" (9.26); ele foi oferecido uma<br />

vez para tirar os pecados de muitos (9.28); ele ofereceu um sacrifício pelos pecados (10.12);<br />

com um só sacrifício ele aperfeiçoou para sempre os que são santificados (10.14); “pelo<br />

Espírito eterno [ele] a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus” (9.14). Por isso o autor<br />

pode afirmar em caráter definitivo: “Já não há oferta pelo pecado" (10,18).


A oferta que Cristo faz é o seu corpo (10.10). Há quem interprete essa parte da carta<br />

como se o escritor estivesse afirmando que o que importa é a submissão da vontade, não<br />

a oferta de um sacrifício material. Raciocina-se que os antigos sacrifícios de animais não<br />

tinham valor, porque ocorriam contra a vontade da vítima. Cristo, porém, se entregou<br />

voluntariamente. Naturalmente há alguma verdade nisso. Mas não devemos esquecer que<br />

era da vontade de Deus que fôssemos santificados “mediante a oferta do corpo de Jesus<br />

Cristo, uma vez por todas” (10.10). Não estaremos interpretando Hebreus fielmente se<br />

não virmos que, para o autor, a oferta do corpo tinha significado.<br />

A repetição dos sacrifícios levíticos demonstra sua ineficácia. Se eles realmente<br />

tirassem os pecados, como os adoradores pensavam, não teriam já deixado de ser oferecidos<br />

(10.2)? Se o pecado tivesse acabado, não haveria mais necessidade de sacrifícios. Seja<br />

como for, é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados (10.4). Os sacrifícios<br />

não podem tornar perfeita a consciência do adorador (9.9).<br />

E importante compreender que o sacrifício de Cristo não é simplesmente um caminho<br />

até Deus, mas o caminho. Os sacrifícios da religião antiga não tiravam os pecados. O<br />

sacrifício de Jesus, sim. Essa diferença implicava que, não importa quão atraentes alguns<br />

aspectos do judaísmo pudessem ser, ele não era nem podia ser a religião definitiva. A vinda<br />

do Filho de Deus tornou novas todas as coisas. O caminho da salvação que ele abriu era<br />

eficaz e definitivo.<br />

S? novã aliança<br />

A idéia de que a morte de Cristo marcou o início da nova aliança predita por Jeremias<br />

não é exclusiva do escritor aos Hebreus. Já a encontramos em Paulo e nos relatos da<br />

última ceia nos sinóticos. Mas ninguém a desenvolve tanto quanto este escritor. Mais da<br />

metade das ocorrências da palavra "aliança” (diathêkê) no Novo Testamento (17 de um<br />

total de 33) se encontra em seu escrito, e a maioria delas se refere à nova aliança.<br />

Temos de observar em primeiro lugar que há algo de incomum na terminologia. A<br />

palavra grega normalmente traduzida por “aliança” ésynthêkê, mas ela não ocorre no Novo<br />

Testamento. A palavra diathêkê é a que se usa normalmente em referência à última vontade<br />

ou testamento. Ela é usada constantemente com esse sentido, e fora da Bíblia é muito difícil<br />

encontrar um exemplo de seu uso com outro sentido, A idéia da aliança que Deus fez<br />

com Israel é logicamente um dos principais conceitos do Antigo Testamento. Os tradutores<br />

talvez tenham achado que synthêkê, com sua conotação de duas partes que elaboram os<br />

termos de um acordo e depois o assinam, não era uma boa palavra para descrever o que<br />

aconteceu quando Deus fez uma aliança. Não houve negociação. Deus é quem definiu os<br />

termos; tudo o que Israel fez foi aceitá-los. Tenha sido esta a razão ou não, o fato está claro:


os tradutores escolheram diathêkê, a palavra associada com testamento, para traduzir normalmente<br />

a palavra hebraica correspondente a “aliança”. E isso não de vez em quando; eles<br />

o fizeram 277 vezes.<br />

No Novo Testamento, portanto, somos apresentados a um problema de primeira<br />

grandeza. Será que os escritores do Novo Testamento (e o de Hebreus em particular)<br />

usam a palavra diathêkê do modo como ela era usada nos textos gregos em geral (isto é,<br />

como “testamento”, "última vontade”), ou do modo como ela era usada em suas Escrituras<br />

sagradas ("aliança”)? Tradicionalmente a opção tem sido por “testamento”, e essa é a razão<br />

por que nossas Bíblias têm "Antigo Testamento” e "Novo Testamento” como título de<br />

suas divisões. Alguns estudiosos recentes defendem que o termo deve sempre ser entendido<br />

com o sentido de “aliança”. Uma posição mais equilibrada é que, mesmo sendo “aliança”<br />

o sentido normal na Bíblia, há algumas passagens em que o termo deve ser entendido como<br />

"testamento" (p. ex., 9.17).<br />

Nas primeiras duas vezes em que usa o termo, o escritor diz que Jesus é o mediador<br />

de “superior aliança” (7.22; 8.6), acrescentando na segunda vez que ela foi instituída com<br />

base em promessas superiores.' Vemos algo do que ele tem em mente quando passa a citar<br />

Jeremias 31.31-34 por extenso — a profecia da nova aliança em que Deus escreveria sua lei<br />

no coração dos seus e em que não se lembraria mais dos pecados deles. Ele cita essa profecia<br />

de novo em 10.16-17, mas dessa vez, após as palavras introdutórias, ele passa diretamente<br />

às que falam do perdão. E isso que lhe interessa. O caminho que Jesus abriu de acesso a<br />

Deus não dependia da obediência a um código externo. A lei de Deus estava escrita no<br />

coração dos que são dele. Ela é interior. E, no fim, não são os seus méritos que lhes proporcionam<br />

a salvação, mas o perdão que Jesus obteve derramando o seu sangue. Os sacrifícios<br />

oferecidos sob a aliança antiga não podiam remover o pecado; o máximo que podiam fazer<br />

é recordá-los (10.3). Jesus, porém, acabou de uma vez por todas com o pecado (9.26). A<br />

aliança antiga, para a qual parece que seus leitores estavam se voltando, era obsoleta (8.13).<br />

O escritor mostra que a morte de Jesus possibilita que os chamados recebam “a promessa<br />

da eterna herança” (9.15) e faz a importante afirmação de que é a sua morte que proporciona<br />

redenção das transgressões cometidas sob a primeira aliança. Os sacrifícios<br />

levíticos não removiam os pecados; somente a morte de Cristo podia fazer isso. Mas os<br />

santos do Antigo Testamento foram realmente salvos, pois a morte de Jesus valeu para os<br />

pecados deles, assim como para os daqueles que viriam mais tarde.<br />

O escritor recorre com força à idéia de que, no caminho cristão, as coisas são “melhores" do que no caminho<br />

ao qual os leitores podiam estar sendo tentados a voltar. A aliança, obviamente, é melhor, mas veja também<br />

que há um mediador melhor (1.4), um sacerdócio melhor (7.7), sacrifícios melhores (9.23), coisas<br />

melhores que acompanham a salvação (6.9), promessas melhores (8,6), uma esperança melhor (7.19), bens<br />

melhores (10.34), ressurreição melhor (11.35), algo melhor que Deus proporcionou (11.40), um país melhor<br />

(11.16) e sangue que diz algo melhor que o de Abel (12.24). Ele também pode ter intenções semelhantes com<br />

outros termos, como o ministério mais excelente (8.6).


Em sua bênção magnífica no fim da carta, o escritor se refere ao “sangue da eterna<br />

aliança” (13.20). Está claro que o sacerdócio dejesus era permanente; ele jamais seria substituído<br />

como se dava com o sacerdócio levítico. Agora vemos que isso se aplica também à<br />

aliança. A aliança antiga servira ao seu propósito e fora descartada em Cristo. A aliança<br />

nova, no entanto, era eterna. Nunca seria substituída.<br />

S? solução para o pecãdo<br />

Um aspecto interessante em Hebreus é a variedade de maneiras com que o escritor<br />

explana o significado da obra salvadora dejesus. Em sua frase inicial, ele nos diz que Jesus<br />

fez a “purificação dos pecados” (1.3). O pecado contamina, mas Jesus removeu a contaminação<br />

completamente. Ele é um sumo sacerdote misericordioso e fiel nas coisas de Deus<br />

“para fazer propiciação pelos pecados do povo” (2.17). Muitas traduções usam o conceito<br />

de “expiação” aqui, mas essa palavra pertence ao grupo de palavras que, como já vimos, se<br />

refere ao afastamento da ira. A morte de Cristo removeu a ira de Deus.<br />

Às vezes o autor diz que o pecado foi levado embora, como quando diz que Cristo<br />

foi oferecido “para tirar os pecados de muitos" (9.28). A idéia de "tirar, levar, carregar”<br />

pecados, no Antigo Testamento, significa arcar com as conseqüências ou com o castigo<br />

dos pecados (p. ex., Nm 14.33-34; Ez 18.20), Cristo, portanto, tomou sobre si o que os<br />

pecadores deveriam ter recebido.<br />

O escritor usa a terminologia do sacrifício e diz que Cristo ofereceu, "para sempre,<br />

um único sacrifício pelos [hyper] pecados” (10.12; ele usa “sacrifício” também em 9.26;<br />

10.26; nesta última passagem, "pelos” éperi, não hyper como no v. 12, outra mudança sutil<br />

na maneira de entender o sacrifício). Ou ele fala da “oferta” (prosphora) que Jesus fez de si<br />

mesmo (10.10, 14, 18).<br />

Às vezes o autor prefere usar a terminologia do perdão (10.18; cf. 9.22). O pecado é<br />

“aniquilado” pelo sacrifício de Cristo (9.26), ejesus trouxe redenção (9.15). Duas vezes o<br />

escritor cita a profecia da nova aliança para mostrar que Deus não se lembra mais dos pecados<br />

do que estão na nova aliança (8.12; 10.17),<br />

Podemos ver também que Hebreus fala com freqüência do que o antigo caminho<br />

não podia fazer, sempre com a implicação de que Cristo agora reparou essa deficiência.<br />

Isso tem a ver com a oferta pelo pecado (5.3), com a satisfação da consciência do adorador<br />

(10.2), com a oferta de dádivas e sacrifícios (5.1), com a remoção dos pecados (aphairein,<br />

10.4; períelein, 10.11), e com ofertas queimadas e ofertas pelos pecados (10.6). O caminho<br />

antigo era incapaz de resolver o problema do pecado, mas Cristo o resolveu de maneira<br />

definitiva e permanente.


A variedade de maneiras de ver a obra de Cristo é uma indicação da profunda convicção<br />

do autor de que essa obra tinha muitas facetas e de que era a maneira plenamente eficaz,<br />

divina, de atender à nossa necessidade mais profunda.<br />

Ôombm e substância<br />

Algumas vezes o escritor faz uma distinção entre realidades celestiais e as cópias<br />

imperfeitas que vemos na terra (p. ex., 9.23), e tem havido muitos estudos sobre até que<br />

ponto ele empresta idéias do platonismo para seus argumentos. Platão dizia que a “idéia”<br />

perfeita de tudo existe no céu, de modo que aquilo que vemos na terra não passa de uma<br />

atualização imperfeita do arquétipo celestial. Alguns estudiosos concluíram que o escritor<br />

aos Hebreus está fazendo uso dessa distinção.<br />

Contudo, tem sido rebatido com sucesso que a carta como um todo não apresenta<br />

nenhuma indicação de que seu autor era um filósofo estudado. Somos lembrados de que o<br />

Antigo Testamento nos informa que Moisés foi instruído a preparar tudo para o tabernáculo<br />

“segundo o modelo” que lhe foi mostrado no monte (Ex 25.40); por isso, alguns estudiosos<br />

acham que não precisamos de mais nada para explicar a terminologia do autor.<br />

Há afirmações e textos judaicos que dizem mais ou menos a mesma coisa que Êxodo<br />

— por exemplo: “Mandaste-me construir um templo em teu santo monte e um altar na<br />

cidade onde fixaste a tua tenda, cópia da tenda santa que preparaste desde a origem” (Sabedoria<br />

9.8). A dificuldade com isso é que a ênfase nos escritos judaicos está em que o terreno<br />

é uma cópia exata do celeste, e não é isso que o autor de Hebreus está dizendo.<br />

Provavelmente devemos entender que ele está fazendo uso de uma forma de platonismo<br />

popular em Alexandria. Seu pensamento principal concorda com o Antigo<br />

Testamento, mas ele também declara que o celestial excede de longe o terreno; em algumas<br />

passagens isso é muito importante. Por exemplo, ele vê os sacerdotes levitas servindo<br />

em um santuário que não passava de “figura e sombra" do celestial (8.5), o antítipo do<br />

verdadeiro (9.24). A própria lei não era mais que sombra das coisas boas que viriam; ela<br />

não era a própria realidade (10.1). O ministério de Cristo não foi exercido no templo, no<br />

santuário terreno, mas no “maior e mais perfeito tabernáculo” (9.11), e seu sacrifício foi<br />

melhor do que qualquer uma das “figuras das coisas que se acham nos céus” (9.23). T a l­<br />

vez devamos acrescentar: 1) a avaliação sobre Moisés de que “o opróbrio de Cristo” tinha<br />

mais valor do que os “tesouros do Egito” (11,26), e 2) o contraste entre o monte Sinai e o<br />

monte Sião (12.18ss), com sua advertência que faz o contraste entre a voz do céu e a da<br />

terra (12.25).<br />

T odas essas passagens ajudam o autor a demonstrar que o que aconteceu em Cristo<br />

é muito superior ao que pode ser encontrado em qualquer religião na terra, incluindo o


judaísmo. A maneira por que ele formula isso varia; a convicção de que Cristo e o caminho<br />

aberto por ele devem ser considerados acima de tudo mais é constante.<br />

c7Yossâ resposta à obra de Cristo<br />

Uma das jóias do Novo T estamento é a galeria de retratos de homens e mulheres de<br />

fé em Hebreus 11. Ela representa o tipo de literatura que louvava os heróis do passado, do<br />

qual um exemplo bem conhecido é o que começa com: “Elogiemos os homens ilustres...”<br />

(Eclesiástico 44.1-50.21). Os outros, porém, parecem todos escolher pessoas com várias<br />

qualidades desejáveis; Hebreus fala somente da fé. Nesse sentido, o capítulo é singular.<br />

Alguns estudiosos do Novo Testamento criticam o que o escritor aos Hebreus diz<br />

porque não se trata de uma fé pessoal e calorosa em Cristo conforme vemos em Paulo. Eles<br />

a entendem como uma confiança fria em realidades invisíveis. Mas não é muito justo exigir<br />

que todos os escritores repitam o pensamento de Paulo, mesmo tendo sido o apóstolo um<br />

grande pensador. Fato é que Hebreus tem algo importante a nos dizer, mesmo que não seja<br />

algo que o apóstolo Paulo teria escrito. Não é injusto dizer que, em Paulo, a fé se refere<br />

principalmente ao passado, ao que Deus fez em Cristo, à justificação que dá início à nossa<br />

vida cristã. Em Hebreus, porém, a fé olha para o futuro; é a confiança audaz que parte em<br />

direção ao invisível e desconhecido, na plena certeza de que Deus fará seu servo vencer. Os<br />

dois tipos de fé são exigidos de nós. E não é uma crítica dizer que Hebreus tem seu próprio<br />

conceito de fé.<br />

Na verdade, Hebreus às vezes se expressa de um modo não muito diferente do de<br />

Paulo: devemos ter fé “para a conservação da alma” (10.39); olhamos para Jesus, o “Autor e<br />

Consumador da fé" (12.2); nos achegamos a Deus por meio dele (7.25). E por termos tal<br />

grande sacerdote sobre a casa de Deus que nos aproximamos “com sincero coração, em plena<br />

certeza de fé” (10.22), Isso certamente significa que, para este escritor, a salvação é vista<br />

praticamente da mesma maneira que a vêem os outros escritores do Novo Testamento. A<br />

peculiaridade de Hebreus está em que o autor tem sua própria maneira de dizer isso. Mas<br />

não está defendendo um conceito diferente.<br />

A fé é exigente. Abraão é elogiado porque, quando Deus o chamou, “pela fé, [,..]<br />

partiu sem saber aonde ia” (11.8). Esse foi um teste tão duro como foi a exigência de que ele<br />

sacrificasse seu filho Isaque. Nas palavras de Hebreus, Abraão “ofereceu Isaque” (11.17), e<br />

o tempo perfeito do verbo contempla o sacrifício realizado. Abraão creu que Deus podia<br />

ressuscitar os mortos (11.19), e evidentemente confiou que a ressurreição acompanharia o<br />

sacrifício do seu filho.<br />

Em todo o capítulo 11, as pessoas são convocadas a confiar em Deus quando tudo<br />

está contra elas e não se vê nenhuma saída bem-sucedida para o que quer que estejam


começando. Mas é pela fé e pela perseverança que herdamos as promessas de Deus (6.12);<br />

no sentido inverso, os que não têm fé não se beneficiam; são os que crêem que entram no<br />

descanso de Deus (4.5-6).<br />

Do mesmo modo, o caminho cristão pode ser descrito em termos de suportar a disciplina<br />

e outras dificuldades. O escritor convida seus leitores a se lembrar das tribulações<br />

pelas quais tiveram de passar quando se converteram (10.32-36), e lembra-lhes as angústias<br />

pelas quais o povo de Deus passou durante os séculos (11.33-38). Cristo sofreu fora do<br />

acampamento, e eles deviamjuntar-se a ele ali e sofrer os maus tratos resultantes (13.13).<br />

Numa exposição clássica do tema, o autor mostra que a disciplina é parte necessária<br />

da condição de filho. Os sofrimentos pelos quais os cristãos passam não são horrores sem<br />

motivo, mas disciplina proposital de um Pai amoroso. Eles são evidência, não de que Deus<br />

não os ama, mas do contrário (12.5-11).<br />

A obediência é importante, pois Cristo salva “todos os que lhe obedecem” (5.9). Em<br />

tempos passados, aqueles que ouviram as boas novas mas desobedeceram, não entraram na<br />

bênção (4.6), e os leitores são advertidos a não cair por causa da sua própria desobediência<br />

(4.11), Antes, devem segurar firme a graça* que receberam e prestar um serviço agradável a<br />

Deus “com reverência e santo temor” (12.28). Nada nesta carta abona a idéia de que a vida<br />

cristã seja fácil. O autor não compactua com a idéia de graça barata. Mas ele insiste em que<br />

a graça é uma realidade. Podemos esperar de Deus o que precisamos para levar a vida que<br />

compete aos que foram resgatados por Cristo.<br />

Muitas traduções registram “sejamos gratos” ou algo parecido para traduzir é x o Jft e v X ^PÍV>e essa tra'<br />

dução com certeza pode ser defendida. N esta carta, porém, x ^ p iS significa “graça”, não “gratidão”. Além disso,<br />

“sejamos gratos” não se encaixa muito bem no contexto; é mais que difícil juntá-lo com “pela qual”, que vem<br />

em seguida. E a graça, não a gratidão, que nos possibilita prestar serviço a Deus (o que não deve ser entendido<br />

como uma desvalorização da gratidão; ela é muito importante, mas não parece que o autor estava se referindo<br />

a ela aqui).


A Spistola de Ziago<br />

epístola de Tiago é marcada por uma forte ênfase na vida de retidão, e isso<br />

levou alguns estudiosos a pensar que o escritor tinha pouco interesse teológico,<br />

o que é uma inferência errônea. Tiago não tem dúvidas quanto à importância<br />

de viver plenamente as implicações da profissão de fé cristã, e isso não está baseado<br />

em algum princípio filosófico geral, mas em convicções teológicas. Sua carta é curta, mas<br />

ele dá provas de conhecer um número surpreendente de livros do Antigo Testamento1e de<br />

estar bem familiarizado com os ensinos de Jesus. O que ele escreve procede desse cenário.<br />

Tiago é monoteísta (2.19) e entende que Deus está em atividade. Devemos orar por<br />

sabedoria, pois Deus a dá liberalmente (1.5). Deus escolheu “os que para o mundo são<br />

pobres, para serem ricos em fé” (2.5), o que evidencia tanto o cuidado de Deus pelos pobres<br />

como a fé como dádiva sua. O ser humano foi feito à imagem de Deus (3.9), algo que, naturalmente,<br />

tem implicações para a maneira como ele deve viver; não é apropriado amaldiçoar<br />

alguém, por exemplo. Deus é sempre justo e exige justiça dos seus. Ele não é tentado<br />

J. B, Mayor, em sua obra clássica sobre essa carta, encontra referências ou alusões a vários livros do Antigo<br />

Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, IReis, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes,<br />

Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oséias, Joel, Amós, Jonas, Miquéias, Zacarias e Malaquias (The<br />

epistle of st. Jam es, London, 1897, p. cx-cxvi). Charles C . Ryrie, concordando com W . Graham Scroggie, constata<br />

que "o livro de Tiago reflete os ensinos de Jesus mais do que qualquer outro do Novo Testam ento, à parte<br />

dos registros nos evangelhos” (Biblical theology o f the New Testament. Chicago, 1982, p, 137).


pelo mal, e não tenta ninguém (1.13). Ele quer que os cristãos sejam “tardios para se irar,<br />

porque a ira do homem não produz ajustiça de Deus” (1.19-20). Ele enxerga a visita a viúvas<br />

e órfãos em suas dificuldades como exemplo do tipo de religião que Deus aceita; isso<br />

deve vir junto com o manter-se limpo da imundície do mundo (1.27). Tiago vê que o mundo<br />

está em oposição a Deus, tanto que ser amigo do mundo significa ser inimigo de Deus<br />

(4.4). Deus resiste aos orgulhosos, mas dá graça a quem é humilde (4.6); “sujeitai-vos, portanto,<br />

a Deus” (4.7), Deus responde à atitude correta da nossa parte: “Chegai-vos a Deus”,<br />

diz Tiago, “e ele se chegará a vós outros" (4.8). Vemos isso no caso de Abraão. Esse patriarca<br />

confiou em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça, e ele foi chamado amigo de Deus<br />

(2.23).<br />

"Senhor” às vezes é uma referência a Cristo (1.1; 2.1; 5.7-8), porém aponta na maioria<br />

das vezes para Deus Pai; de fato, Tiago refere-se “ao Senhor e Pai" (3.9). Talvez esse<br />

título nos lembre de que Deus tem exigências que temos de atender, e não fazê-lo acarreta<br />

conseqüências. Os inconstantes não devem achar que receberão a boa dádiva de Deus<br />

(1.7). Todavia, o clamor dos trabalhadores pobres que foram roubados em seus salários é<br />

ouvido pelo Senhor (5.4).<br />

O Senhor é compassivo e misericordioso (5.11), apesar de tratar os malfeitores com<br />

mão firme. Sua disposição de curar os doentes que foram ungidos em nome do Senhor<br />

(5.14-15) mostra isso. Tiago tem muito a dizer sobre a oração, e é evidente que ele a considera<br />

eficaz. Mas isso só acontece porque o Senhor é gracioso e pronto para ouvir e<br />

responder.<br />

e obras<br />

A forte ênfase de Tiago na necessidade de estarmos ativos na obra do Senhor aparece<br />

em sua explanação sobre fé e obras. Evidentemente ele tinha sido confrontado por<br />

alguns cristãos que afirmavam que bastava crer. Eles devem ter dito que, conquanto houvesse<br />

fé, não importava como se vivia. Tiago rejeita isso da maneira mais direta possível, e<br />

sua afirmação: “A fé sem obras é morta” (2.26) levou alguns estudiosos a pensar que ele<br />

estava em conflito com Paulo. Eles dizem que essa parte da carta se opõe ao ensino paulino<br />

da justificação somente pela fé. Paulo, dizem eles, enfatiza a fé, e Tiago, as obras.<br />

Isso, porém, dificilmente faz justiça, nem a um nem a outro. Se um desses escritores<br />

está se opondo ao outro, não se opôs da maneira mais eficaz, porque um não ataca o<br />

ponto central do argumento do outro. Paulo certamente sublinha a importância da fé e<br />

tem afirmações contundentes como: “O homem é justificado pela fé, independente das<br />

obras da lei” (Rm 3.28); isso não é fácil de equacionar com, por exemplo: “A pessoa é ju s­<br />

tificada por obras e não por fé somente” (2,24). Se nos concentrarmos em uma ou duas


declarações como essas, estaremos diante de uma contradição que não pode ser solucionada.<br />

E seja qual for a conclusão a que chegarmos no fim, ficará claro que os dois autores<br />

não estão dizendo a mesma coisa. Provavelmente é correto dizer que Paulo não teria se<br />

expressado como Tiago, nem Tiago como Paulo. Mas eles não estão contradizendo um ao<br />

outro.<br />

Devemos notar em primeiro lugar que Tiago não está desprezando a fé. Ele a aceita<br />

como a postura cristã normal e, por exemplo, fala da “fé em nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

Senhor da glória” (2,1); ele considera os pobres deste mundo “ricos em fé” (2.5); e liga a fé à<br />

oração (1.6; 5.15). Na passagem polêmica em que ele destaca a importância das obras, ele<br />

assim mesmo fala da sua “fé” (2.18), que ele prova com suas obras. Ele pressupõe que a fé é<br />

importante, e sua pergunta não é: “E preciso ter fé?” mas: “Quando a fé está viva e quando<br />

está morta?”<br />

O tipo de fé ao qual ele faz objeção é a fé que os demônios têm (2.19). Eles crêem em<br />

Deus, mas isso não lhes causa mais do que estremecimento. Fé que não transforma o cristão<br />

a ponto de ele dedicar sua vida a fazer coisas boas não é fé no entender de Tiago. É uma<br />

fé morta. E o tipo de fé que diz aos necessitados: “Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos”, mas<br />

não faz nada para atender às suas necessidades (2.15-16).<br />

Tiago não está ensinando a salvação pelas obras, e isso se vê em seu ensino franco<br />

sobre o alcance universal do pecado. “Todos tropeçamos em muitas coisas” (3.2), diz ele, e<br />

exorta os cristãos: “Confessai os vossos pecados uns aos outros” (5.16). O pecado não é<br />

apenas uma questão de agir errado; saber o que é certo e não fazê-lo também é pecado<br />

(4.17). Acepção de pessoas é outro pecado (2.9); não é um pecadinho inofensivo. Falhar<br />

em apenas uma questão da lei significa ser culpado de infringi-la toda (2.10). Quem vive<br />

por esses padrões não espera que as pessoas salvem a si mesmas. Conta-se com a salvação<br />

pela misericórdia, não pelo julgamento (2.13).<br />

Tiago, portanto, não está negando que a fé seja importante, mas insistindo em que<br />

fé é mais do que intelectualismo estéril. Na verdade, o que ele espera ao conceder que tem<br />

fé e também obras é semelhante à “fé que atua pelo amor" de Paulo (G15.6). Apesar da linguagem<br />

muito diferente, ambos concordam que a salvação vem como resultado de uma<br />

ação divina, não de mérito humano; que nos achegamos a ela pela fé; e que é preciso<br />

evidenciar isso com uma vida consagrada.<br />

Devemos observar também que, quando Paulo e Tiago falam de justificação, estão<br />

se referindo a estágios diferentes na vida do servo de Deus. Ambos apelam a Abraão, mas<br />

Paulo está falando do seu passo inicial de fé, a fé que lhe foi creditada como justiça (Rm 4.3,<br />

9-10; cf. Gb 15.6), enquanto Tiago fala de uma época, anos mais tarde, em que Abraão foi<br />

levado a oferecer seu filho Isaque (que ainda não tinha nascido na ocasião à qual Paulo se<br />

referiu) em sacrifício (2.21; cf, Gn 22.2-18). E correto afirmar que, quando alguém se volta<br />

pela primeira vez para Deus, isso é mediado por uma fé simples, mas que, depois de anos de


serviço dedicado a Deus, não é lógico esperar a aprovação divina se não houver obras para<br />

mostrar (c£ lC o 3.12-15). Douglas Moo argumenta, em seu comentário de Tiago,2 que<br />

enquanto Paulo chama de justificação o passo inicial do processo de tornar-se cristão, T iago,<br />

como Mateus e outros, aplica o termo à justificação final, a que veremos no dia do julgamento.<br />

Os escritores do Novo T estamento têm em comum a posição de que o julgamento<br />

terá por base as obras, convicção que eles têm sem prejuízo da verdade de que a salvação é<br />

totalmente uma dádiva de Deus e que a recebemos pela fé.<br />

O serviço do cristão<br />

Tiago tem muito a dizer sobre como os cristãos devem servir a Deus; se quiséssemos<br />

ser abrangentes, teríamos de repetir a carta inteira. Algumas coisas, porém, podem ser<br />

destacadas. Uma delas é o que ele diz sobre pobres e ricos. E evidente que havia alguns ricos<br />

entre os cristãos que ele conhecia, ainda que não muitos. A maioria dos crentes era pobre,<br />

muitos deles oprimidos pelos que tinham mais bens deste mundo. Tiago, no entanto, não<br />

tem dúvidas sobre quem sejam os beneficiários da bênção de Deus. “Não escolheu Deus os<br />

que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do reino que ele prometeu<br />

aos que o amam?” (2.5). Os ricos desonram e oprimem os pobres, mas isso é blasfêmia ao<br />

“bom nome que sobre [eles] foi invocado” (2.6-7). Tiago aconselha seus leitores a não mostrar<br />

preferência pelos ricos, conforme se vê entre pessoas deste mundo. Isso podia se manifestar<br />

num tratamento especial dedicado aos ricos, como a preocupação em reservar-lhes<br />

os melhores lugares (2.2-4). Enquanto os pobres podiam alegrar-se em sua posição elevada<br />

como cristãos, os ricos deviam fazê-lo em sua insignificância (1.9-10). O caminho cristão<br />

reverte padrões comumente aceitos. Tiago faz críticas mordazes aos ricos que oprimem os<br />

pobres e expressa sua certeza de que eles enfrentarão juízo (5.1-6).<br />

Nesse texto notoriamente prático há um longo trecho sobre a língua (3.1-12). T iago<br />

está ciente de que todos pecamos, e é muito fácil pecar com o que se diz. Quem nunca<br />

pecasse dessa maneira seria perfeito (3.2). Ele salienta que conseguimos controlar coisas<br />

grandes como cavalos ou navios com pequenos objetos como cabrestos e lemes, e que, com<br />

um pouco de fogo, podemos incendiar uma floresta inteira. Ele acrescenta que conseguimos<br />

domar todo tipo de feras e aves, mas não a língua. E nos adverte para que tenhamos<br />

cuidado.<br />

A lei é importante, e Tiago fala paradoxalmente da “lei perfeita, lei da liberdade”<br />

(1.25); é por essa lei que todos seremos julgados (2.12). Ele fala também da "lei régia" (2.8),<br />

Douglas J. Moo, The letter o f Jam es: an introduction and commentary. Grand Rapids, 1985 (publicado no Brasil<br />

por Edições Vida Nova sob o título Tiago, introdução e comentário).


que ele explica em termos de amor. Está claro que, para Tiago, a lei tem importância crucial,<br />

mas está igualmente claro que ele não a entende do mesmo modo que os judeus normalmente<br />

faziam. Leonhard Goppelt comenta: “A perfeição da lei não estava em ser ela a<br />

lei ideal, mas em reivindicar o ser humano totalmente para o seu Criador, em tomá-lo<br />

inteiramente por dentro e libertá-lo!”3 A liberdade verdadeira vem apenas do fato de<br />

sermos servos de Deus.<br />

Tiago deseja que os cristãos tenham um poder permanente. Logo no começo ele<br />

aponta para as várias dificuldades que assediam o servo de Deus e as visualiza como meios<br />

de desenvolver perseverança (1.2-4). A perseverança é o caminho para a “coroa da vida”,<br />

que não deixa de ser um presente de Deus (1.12). Ele nos recorda a paciência dos profetas e<br />

de Jó (5.10-11). Os crentes têm um outro incentivo, a volta do Senhor (5.7), que está próxima<br />

(5.8). Temos aqui a conhecida tensão escatológica, que encontramos em todo o<br />

Novo Testamento. O Senhor está próximo, e temos de esperar por ele com grande expectativa.<br />

Mas temos também de persistir em pôr em prática a nossa fé na vida comum do<br />

dia-a-dia.<br />

A oração é uma das partes mais importantes da vida do cristão, e Tiago quer nos ver<br />

fazendo uso pleno dela, especialmente em casos de doença. Mas ele não a restringe a isso;<br />

devemos recorrer a ela em todo momento de angústia. Ele lembra Elias como um grande<br />

homem de oração, e espera que seus leitores tirem proveito desse exemplo (5.13-18).<br />

Há mais coisas que eu poderia dizer. Mas pelo menos este breve estudo da carta<br />

deve ter deixado claro que Tiago com certeza pensava em termos teológicos, seguro de que<br />

Deus está em atividade em tudo na vida e que temos de prestar-lhe contas de tudo o que<br />

fazemos. Para ele, porém, Deus é fundamentalmente a divindade compassiva que nos proporcionou<br />

a salvação. Tiago espera de nós que respondamos de todo o coração.


J<br />

A Primeira £ pistola<br />

de Pedro<br />

er cristão no primeiro século jamais deve ter sido fácil, mas havia períodos em que<br />

isso se tornava mais difícil ainda, e esta carta foi escrita num período assim. Seus<br />

destinatários corriam o perigo de sofrer simplesmente porque eram cristãos<br />

(4.16). Eles já estavam passando por um pouco de sofrimento, pois o autor lhes diz que não<br />

ficassem surpresos com o "fogo ardente” que os assolava (4.12). Claramente ele acreditava<br />

que mais dificuldades semelhantes estavam para lhes sobrevir.<br />

Os cristãos podem sofrer simplesmente por fazer o bem. Não há mérito, no entanto,<br />

em sofrer por merecer, pois quando alguém sofre por fazer o bem é que recebe a aprovação<br />

de Deus (2.20). Mas há um motivo excelente para suportar bem o sofrimento injusto;<br />

os cristãos são instados a isso porque assim estarão seguindo o exemplo do seu Salvador,<br />

que não fez nada de errado, mas foi crucificado (2.21-23). Eles devem ter a mesma atitude<br />

que ele (4.1); na verdade, eles participam dos seus sofrimentos (4.13). Aqueles que sofrem<br />

segundo a vontade de Deus devem “encomendar a sua alma ao fiel Criador, na prática do<br />

bem” (4.19). Se esta é a vontade de Deus, é melhor sofrer por fazer o bem do que por fazer<br />

o mal (3.17). Há bênção em sofrer por agir com correção (3.14; 4.14). Pedro expressa a


esperança de que o sofrimento dos cristãos fosse apenas “por um pouco” e que Deus os<br />

fortaleceria (5.10).<br />

Portanto, não devemos achar que IPedro foi uma carta escrita por acaso a cidadãos<br />

despreocupados que se alegrariam com algumas obviedades bem escolhidas. O escritor<br />

está ciente de que seus leitores corriam perigo, e escreveu sua carta com plena noção da sorte<br />

deles. Escolheu as palavras com cuidado, sabendo que somente o que era verdade eterna<br />

serviria. No pequeno espaço de cinco capítulos ele encaixou uma grande quantidade de<br />

ensino cristão fundamental.<br />

O tyeus vivo<br />

Pedro chama a Deus de "imortal” (1.23, N T L H ), e a idéia de que Deus se ocupa de<br />

modo vital de tudo o que acontece perpassa toda a carta. Deus escolheu os que são dele, e a<br />

idéia da eleição aparece várias vezes (1.1; 2.9; 5.10). A vontade de Deus é feita (2.15; 3.17;<br />

4.2, 19). Ele tem conhecimento prévio de quem é dele (1.2), e sua palavra permanece para<br />

sempre (1.25). Ele é o Criador (4.19), poderoso (1.5; 5.11). No fim, todos teremos de contar<br />

com isso, pois o julgamento é uma realidade para os mortos (4.6), para o povo de Deus e<br />

para os que desobedecem ao evangelho (4.17). Deus resiste aos orgulhosos (5.5).<br />

Contudo, também devemos pensar em Deus em termos de amor, graça e bondade.<br />

Ele é o Pai (1.2-3,17) e “o Deus de toda a graça” (5.10). Toda a carta foi escrita para incentivar<br />

os leitores a testemunhar que "esta é a genuína graça de Deus” em que estamos firmados<br />

(5.12). Isso não é diferente da exortação para pôr a esperança “na graça que vos está<br />

sendo trazida na revelação de Jesus Cristo" (1.13), onde o sentido pode ser de que a graça se<br />

completará por ocasião da -parousia, ou que a graça é uma realidade presente. As duas idéias<br />

estão certas, e não há vantagem em tentar decidir entre as duas. Os profetas falaram da graça<br />

que haveria de vir (1.10), certamente uma referência à graça que Deus concedeu por<br />

meio de Cristo. Marido e esposa são herdeiros conjuntos da “graça da vida” (3.7), e todos os<br />

crentes devem ser bons administradores da “multiforme graça de Deus” (4.10). Deus dá<br />

graça aos de condição humilde (5.5). Claramente, graça é um conceito muito importante; é<br />

o presente de Deus para o seu povo.<br />

A vida cristã é toda ela um presente de Deus, pois, em sua misericórdia abundante,<br />

ele nos fez nascer de novo (1.3); nossa vida espiritual é puro milagre. Por isso temos uma<br />

esperança viva e antevemos uma herança no céu, “incorruptível, sem mácula, imarcescível”<br />

(1.3-4). Nossa fé e nossa esperança estão em Deus (1,21; cf, 3.5), assim como nossa força<br />

para o trabalho (4.11). O serviço cristão pode ser descrito como a oferta de sacrifícios espirituais<br />

a Deus (2.5), e é interessante ver a diversidade de maneiras por que Pedro relaciona


a igreja com Deus. A igreja é o “povo de Deus” (2.10), a “casa de Deus” (4.17) e o “rebanho<br />

de Deus” (5.2), e seus membros são “escravos de Deus" (2.16, NTLH).<br />

Tudo isso compõe um conceito muito satisfatório de um Deus que está ativo sem<br />

cessar em sua criação, e especialmente preocupado com aqueles por quem seu Filho morreu.<br />

Ele está constantemente vigiando sobre eles e, mesmo que sejam chamados para sofrer<br />

por ele, eles precisam saber que seu propósito é implementado até nisso e, no tempo certo,<br />

ele os livrará e levará à glória.<br />

O supremo Castor<br />

Pedro tem muito a dizer sobre o Senhor e sua obra de salvação. Ele o chama “pastor<br />

e supervisor das vossas almas" (2.25, Bj), e a palavra traduzida por “supervisor” (episkopos) é<br />

a mesma relacionada com o bispo na igreja. Provavelmente seja muito cedo para a entendermos<br />

nesse sentido, mas certamente ela indica supervisão e cuidado. O mesmo vale para<br />

“supremo pastor” (5.4), que aparece somente aqui no Novo Testamento. O escritor tem<br />

certeza do lugar superior de Cristo, mas também do seu amor por seu povo e da sua constante<br />

atenção por ele. Ele o chama "Senhor” (1.3) e exorta seus leitores a “santificar” a Cristo<br />

em seu coração como Senhor (3.15). Cristo foi predestinado antes da fundação do<br />

mundo, mesmo que revelado apenas “no fim dos tempos” (1.20). Ele ocupava um lugar<br />

especial no programa de Deus e um relacionamento especial com Deus. Em outras palavras,<br />

ele era o precioso escolhido de Deus (2.4). Pedro tem muito a dizer sobre a obra de<br />

salvação de Cristo, como veremos a seguir, mas ele fala também da sua ressurreição (1.3;<br />

3.21) e do seu lugar elevado no céu à direita de Deus, onde os exércitos celestiais lhe estão<br />

sujeitos (3.22). Não devemos perder de vista a sua grandeza.<br />

Há uma passagem notável sobre a redenção que Cristo realizou (1.18ss), Em termos<br />

literais, redenção significa liberdade em face do pagamento de um valor, e Pedro rejeita<br />

a idéia de que bens valiosos como ouro e prata possam efetuar essa libertação. Na<br />

verdade, a redenção de que ele escreve foi comprada ao preço de "precioso sangue, como de<br />

cordeiro sem defeito e sem mácula”.<br />

Pedro introduz isso com as palavras: “Portai-vos com temor durante o tempo da vossa<br />

peregrinação, sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis que fostes resgatados...”<br />

(1.17-18). Por que Pedro diz “com temor”? Talvez porque o preço que Cristo pagou foi terrível,<br />

e não devemos receber a idéia de redenção com tranqüilidade, como se fosse algo natural.<br />

Os pecadores estavam numa situação da qual parecia não haver escapatória. E extraordinário<br />

que um preço tenha sido encontrado. Essa redenção tem algumas conseqüências. Estamos<br />

agora libertos do “fútil procedimento que nossos pais nos legaram” (1.18). Deus nos libertou<br />

para nos dedicarmos não a futilidades, mas a trabalho com propósito.


A menção de um cordeiro nos conduz à idéia de sacrifício. A morte de Cristo foi ao<br />

mesmo tempo resgate e sacrifício, e tudo o que foi prefigurado nos sacrifícios antigos foi<br />

realizado em Cristo. Os sacrifícios sem sombra de dúvida também estão na mente de<br />

Pedro quando ele escreve sobre “a aspersão do sangue de Jesus Cristo” (1.2).<br />

Outra passagem digna de nota vê os sofrimentos de Cristo como um exemplo e<br />

como a remoção dos pecados (2.21-25). Jesus não foi morto por ter cometido ações reprováveis,<br />

pois ele “não cometeu pecado”. Seus sofrimentos, portanto, são um exemplo para os<br />

leitores que também estavam sujeitos a sofrer sem ter feito nada de errado, mas simplesmente<br />

por sua profissão de fé cristã. Era confortador saber que seu Salvador lhes dera o<br />

exemplo de como deviam suportar esse sofrimento.<br />

Pedro continua dizendo que Jesus carregou, “ele mesmo em seu corpo, sobre o<br />

madeiro, os nossos pecados". Alguns estudiosos entendem que essas palavras significam<br />

que Jesus suportou com paciência todos os maus tratos que recebeu, incluindo a cruz; eles<br />

as vêem como uma continuação da idéia de que ele deu o exemplo de como suportar o<br />

sofrimento. Mas isso não leva em conta a terminologia usada. Pedro não está falando dos<br />

pecados dos que mataram Jesus, mas dos seus próprios pecados e dos pecados dos seus leitores.<br />

Além disso, ele diz “em seu corpo”; ele não está escrevendo sobre a postura de espírito<br />

que sofre maus tratos com a atitude certa (cf. também sua referência ao sofrimento de<br />

Cristo “na carne”, 4,1). E ele se refere ao “madeiro”, não à vida toda. Do mesmo modo, “por<br />

suas chagas, fostes sarados" aponta para a cruz, não para a passividade diante de insultos.<br />

“Carregar os pecados” não é uma expressão comum no Novo Testamento (a única<br />

outra passagem está em Hb 9.28). No Antigo Testamento, porém, ela é freqüente, onde<br />

claramente significa receber o castigo pelo pecado (p. ex., Lv 22.9; Nm 9.13: “levar sobre<br />

si”). Não há motivo para achar que Pedro está usando a expressão com qualquer outro sentido<br />

que não o do Antigo Testamento. Ele está dizendo que Cristo, com sua morte, recebeu<br />

o castigo pelos nossos pecados.1Devemos também levar em conta que a passagem tem<br />

várias coincidências de linguagem com Isaías 53 (“o qual não cometeu pecado”; “nem dolo<br />

algum se achou em sua boca”; “carregando [...] os nossos pecados”; “por suas chagas, fostes<br />

Cf. C. E, B. Cranfield: “Carregar nossos pecados significa sofrer a punição por eles em nosso lugar (cf. N m<br />

14.33). N a cruz ele não passou apenas por sofrimentos físicos e tristeza pelo fato de o ser humano ser táo cego<br />

e mau, mas, e isso é o que foi mais assustador, enfrentou a separação do seu Pai (‘Deus meu, Deus meu, por<br />

que me desamparaste?’) que foi o castigo merecido por nossos pecados" (Thefirst epistle o f Peter. London, 1950,<br />

p. 67-68). F, W . Beare comenta: "O melhor sentido para o verbo aqui parece ser 'sofrer as conseqüências’" (The<br />

Jirst epistle ofPeter. Oxford, 1947, p, 124).


sarados”; “desgarrados como ovelhas”). Obviamente o escritor vê a Jesus como o Servo<br />

Sofredor.“ Jesus morreu por nós; ele tomou nosso lugar.<br />

Pedro tinha isso em mente quando escreveu que Cristo “sofreu pelos pecados de<br />

uma vez por todas, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (3.18, NVl). Estamos<br />

claramente nos movendo no mesmo círculo de idéias. Cristo resolve o problema do nosso<br />

pecado sofrendo, especificamente morrendo em nosso lugar, “o justo pelos injustos”. Para<br />

a preposição “pelos” ele usa hyper, que às vezes tem o sentido de "em favor de”, mas às vezes<br />

também “em lugar de”,3e parece que é esse último sentido que devemos enxergar aqui.<br />

Pedro usa o tema da pedra rejeitada (SI 118.22; Is 8.14; 28.16), sendo Cristo apedra<br />

rejeitada pelos homens mas escolhida por Deus para o lugar mais importante (2.4-8). Não<br />

devemos explicar a cruz de Cristo pelo que ela pareceu às pessoas; Deus tinha seu próprio<br />

propósito com ela, e aquele que foi rejeitado é o mais importante, pois nele a salvação de<br />

Deus é efetuada. A passagem deve ter sido muito animadora para os que estavam sofrendo<br />

por causa da sua fé, pois deixava clara a diferença entre o que seus perseguidores pensavam<br />

deles e a maneira pela qual Deus realizou seu propósito neles.<br />

Os sofrimentos de Cristo foram preditos pelos profetas (1.12); claramente esses<br />

sofrimentos faziam parte do propósito de Deus. Contudo, as glórias subseqüentes também<br />

faziam, e também tinham sido preditas pelos mesmos profetas. Deus chamou os leitores<br />

desta carta “à sua eterna glória em Cristo" (5.10).<br />

Pedro não tem dúvidas quanto à grandeza de Cristo e à maravilhosa salvação que ele<br />

conquistou para nós. Ele tem algumas das declarações mais notáveis no Novo Testamento<br />

sobre o valor expiatório dos sofrimentos de Cristo e sobre a glória que esses sofrimentos<br />

proporcionam aos crentes.<br />

O &spíríto (Santo<br />

Pedro não diz muito sobre o Espírito Santo nesta carta, mas o que diz é expressivo.<br />

Ele começa ligando a “santificação do Espírito” à presciência de Deus e à aspersão do san-<br />

A. F. W alls lembra que o tema do Servo Sofredor pode ser encontrado em Marcos (e ele crê que pode, por<br />

bons motivos, estar ligado a Pedro) e nos discursos de Pedro em Atos, além desta carta. Ele acrescenta: “O u ­<br />

tros escritos do Novo Testam ento, é claro, têm uma dívida para com Isaías 53, mas certamente não é coincidência<br />

que esses textos ligados ao nome de Pedro tenham todos a marca do Servo tão profunda que, por mais<br />

diversos que sejam na forma, ela pode ser identificada como seu pensamento central sobre Cristo” (A. M .<br />

Stibbs e A, F. W alls, The first epistle general o f Peter. London, 1959, p. 33).<br />

Harald Riesenfeld entende que a preposição tem o sentido de “no lugar de” em passagens como<br />

lC oríntios 15.29 (TDNT, 8:512-513), e parece que esse é o sentido exigido aqui. Tenh o uma nota sobre o<br />

sentido dessa preposição em The Apostolic preaching o f the cross. London, 1965, p. 62-64.


gue de Cristo (1.2); portanto, é evidente que ele tem um conceito elevado da pessoa do<br />

Espírito. A obra de santificação do Espírito, separando as pessoas e preparando-as para o<br />

serviço de Deus, faz parte da salvação cristã. O Espírito pode ser chamado “Espírito de<br />

Cristo" (1.11; cf. Rm 8.9),4 e isso mostra algo da sua importância para o sistema cristão e<br />

também o liga intimamente a Jesus, como autor da nossa salvação.<br />

O Espírito Santo está ativo no trabalho de proclamação, pois o evangelho foi pregado<br />

a esses leitores “pelo Espírito Santo enviado do céu” (1.12). A pregação do evangelho<br />

não é uma conquista apenas humana; se o Espírito Santo não agir, não haverá resultado. A<br />

conversão de alguém é obra divina, não humana. E a vida do cristão está sob a influência do<br />

Espírito, porque “sobre vós repousa o Espírito da glória de Deus” (4.14). Os leitores estavam<br />

sendo maltratados e insultados por causa da sua ligação com Cristo, mas eles não<br />

deviam se deixar abalar por isso. Ninguém menos que o Espírito da glória, o Espírito do<br />

próprio Deus, está com eles. O que, então, importam as opiniões do mundo?<br />

S? vida cristã<br />

Como demonstra a ação do Espírito dentro do cristão, ele já desfruta a salvação. Já<br />

está recebendo a salvação da sua alma (1.9; é sobre essa salvação que os profetas antigos falaram,<br />

1.10). Há muita coisa à frente dele, mas, como uma criança recém-nascida, está crescendo<br />

na salvação (2.2). Toda a carta evidencia que o crente possui salvação já nesta vida.<br />

Nos escritos de Pedro, no entanto, vemos novamente a conhecida tensão escatológica<br />

entre o já e o ainda não. A salvação, certamente, é uma posse para o presente. Mas também<br />

será “revelada no último tempo" (1.5). Os leitores precisam “cingir os lombos do seu<br />

entendimento” (1.13, ARC), sendo sóbrios e pondo sua esperança na graça que lhes será<br />

trazida na revelação de Jesus Cristo. Outra exortação à sobriedade vem do fato de que “o<br />

fim de todas as coisas está próximo” (4.7), e isso com certeza não pode ser muito diferente<br />

do “dia da visitação” (2.12), o dia em que o supremo Pastor se manifestará (5.4). Não pode<br />

ser dito que Pedro favorece um dos lados do paradoxo. Ele dá ênfase tanto na salvação presente<br />

quanto na futura. Não devemos nos esquecer de nenhuma das duas.<br />

O apóstolo tem algo a dizer sobre diversas virtudes e experiências cristãs, como fé<br />

(1.7-9, 21), amor (por Cristo, 1.8, e pelos irmãos, 1.22; 2.17; 3,8; 4.8; cf. a saudação com<br />

“ósculo de amor”, 5.14), alegria (1.8; cf, 4.13), esperança (1,3, 13, 21; 3.15) e outras mais.<br />

Seu enfoque, porém, está na mudança de vida que deve caracterizar os cristãos. Nós nasce-<br />

Alguns estudiosos pensam que a expressão aqui signifique "o Espírito que é Cristo” e seja uma referência à<br />

atividade de Cristo antes da encarnação. Isso não é impossível, mas parece mais provável que a referência seja<br />

ao Espírito Santo.


mos de novo, não de semente corruptível, mas incorruptível (1.23), o que indica um nítido<br />

rompimento com o mal. Fomos instruídos a não praticar coisas más como atender aos<br />

desejos da nossa existência anterior (1.14). Temos de nos desfazer de toda malícia, astúcia,<br />

hipocrisia, inveja e maledicência (2.1). Não devemos seguir as paixões carnais (2.11). Os<br />

leitores evidentemente conheciam muitas dessas coisas antes de sua conversão, e Pedro<br />

lhes diz que eles já viveram tempo demais no mal (4.3).<br />

Pedro, todavia, não está traçando alguma filosofia negativa. A vida cristã é gloriosamente<br />

positiva, e ele espera que seus leitores sejam santos em tudo o que fazem (1.15-16).<br />

Eles devem ser obedientes (1.14), viver de modo exemplar (2.12), conviver em unidade e<br />

amor (3.8), ser controlados e orar (4.7), usar o dom que Deus lhes deu (4.10), ser humildes<br />

(5.5-6). Cristo toma as pessoas menos promissoras e as transforma em santos de Deus.<br />

Pedro quer que seus leitores tenham certeza absoluta de que essa transformação não ocorre<br />

simplesmente para torná-los felizes quando a vêem em outros, mas algo que precisa<br />

ocorrer neles também. É uma mensagem que ainda é relevante.<br />

O apóstolo dá um grande valor à vida coletiva dos cristãos. Ele nenhuma vez usa a<br />

palavra "igreja”, mas escreve sobre ela, como quando diz a seus leitores que eles são "raça<br />

eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (2.9). Eles são<br />

como pedras vivas empregadas para constituir uma “casa espiritual”, um sacerdócio santo,<br />

e como tal oferecem “sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”<br />

(2.5). Houve tempo em que eles nem povo eram; agora são povo de Deus (2.10). Isso<br />

significa que aqui eles são estrangeiros e exilados; não pertencem a este mundo (1.1; 2.11).<br />

O interesse do apóstolo na igreja talvez esteja por trás das suas referências ao batismo<br />

(3.21) e aos anciãos (5.1-4).


A Segunda Spistola<br />

de Pedro<br />

esta epístola, Pedro se concentra em alguns poucos pontos. Ele começa com a<br />

i; salvação que Deus proporcionou em Cristo e o tipo de vida que deve caracte-<br />

; rizar aqueles que experimentaram essa salvação. Depois passa ao testemunho<br />

dos profetas e das Escrituras, ao problema causado pelo surgimento de alguns falsos mestres<br />

e termina com um trecho sobre a parousia e sua demora.<br />

Pedro dirige-se aos seus leitores como “os que conosco obtiveram fé igualmente preciosa<br />

na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (1.1). Ele escreve sobre a iniciativa<br />

de Cristo em produzir fé e apresenta a obra de Cristo em termos de justiça, um pouco à<br />

maneira de Paulo. Mas há uma diferença. Em Paulo, justiça é a posição correta que os<br />

crentes têm; aqui a idéia é que a salvação é produto da justiça, ou retidão, de Cristo.1A salvação<br />

não é resultado de esforço humano, mas do que Cristo fez, e nós a recebemos pela fé.<br />

Pedro afirma várias vezes que Cristo é Salvador (1.11; 2.20; 3.2,18). Isso não é expresso da<br />

Cf. J +N . D . Kelly, que diz que nesta carta “dikaiosunê denota regularmente justiça ou conduta correta, o<br />

que faz muito sentido aqui” (A commentary on the epistles o f Peter and o f Jude. London, 1969, p. 297 [publicado no<br />

Brasil por Edições Vida Nova sob o título II Pedro e Judas, introdução e comentário]).


mesma maneira que outros escritores do Novo Testamento teriam feito, mas na essência a<br />

idéia é uma só. A expressão "igualmente preciosa” indica a igualdade entre os apóstolos e<br />

outros cristãos. A salvação acontece do mesmo modo para todos.<br />

Pedro se refere a Jesus como "nosso Deus e Salvador Jesus Cristo” (1.1). Nessa<br />

declaração, ele quase certamente o está chamando "Deus". Pode até ser que o sentido seja<br />

“nosso Deus e o Salvador Jesus Cristo”, mas isso é improvável.2O autor está conferindo a<br />

Jesus o lugar mais elevado possível. Casualmente, ele quase sempre usa o nome composto<br />

"Jesus Cristo” e com freqüência lhe acrescenta "Senhor”.<br />

Para ele, salvação significa que "todas as coisas que conduzem à vida e à piedade” nos<br />

foram dadas (1.3). Fomos “chamados” (1.3, 10), recebemos "preciosas e mui grandes promessas"<br />

(1.4) e “estamos certos da verdade já presente conosco" (1.12). Fica claro que a salvação<br />

é uma dádiva maravilhosa e deve ser muito valorizada. Pedro não deixa dúvida<br />

quanto a isso, a exemplo de qualquer outro escritor do Novo Testamento. E enfatiza que<br />

não a obtemos; ela é dádiva de Deus em Cristo.<br />

Ele demonstra isso ao dizer que somos "co-participantes da natureza divina” (1.4).<br />

Ao lado da idéia de ficar livre da corrupção que há no mundo com sua lascívia, isso chega<br />

perto do pensamento de alguns escritores helenistas, que entendem que o corpo nos aprisiona<br />

com suas paixões e que salvação é libertação do corpo. Não é isso, porém, que Pedro<br />

está querendo dizer; ele está usando palavras que farão sentido aos seus leitores para<br />

expressar o pensamento de que a salvação cristã é o poder de Deus agindo no homem para<br />

que não esteja mais debaixo do poder do mal (cf. Jo 1,12-13; Rm 8.9).<br />

Por essa razão a vida cristã deve ser vivida no poder de Deus, não segundo este mundo<br />

mau. A fé, os crentes devem acrescentar virtude, conhecimento, domínio próprio, perseverança,<br />

piedade, fraternidade e amor (1.5-7). Eles não devem ser ineficientes e<br />

infrutíferos, cegos e míopes, esquecidos de que já foram purificados do pecado (1.8-9),<br />

Devem viver em santidade e devoção enquanto esperam a volta de Cristo (3.11-12),<br />

Devem crescer na graça e no conhecimento de Cristo (3.18).<br />

O escritor propõe tudo isso por causa da certeza dos fatos nos quais a fé dos cristãos<br />

se baseia. Eles não foram atrás de mitos bem elaborados; eram pessoas que, no monte da<br />

T ransfiguração, ouviram a voz do céu dizer sobre Jesus Cristo: “Este é o meu Filho amado”<br />

(1.17). Pedro também aponta para as profecias inspiradas (1.19-21). Ele tem certeza de<br />

que Deus se revelou e que se providenciou uma salvação perfeita com base no sangue derramado<br />

de Jesus Cristo. Os leitores devem viver à luz desse fato.<br />

C. F. D . Moule pensa que é provável que aqui e em T iro 2.13 “o artigo tenha sido corretamente omitido e<br />

que a intençáo é que TOV (fieyáÀ O V ) 06O V se refira a Jesus” (JBNTG, p. 110).


Os falsos mestres<br />

No tempo do Antigo Testamento, Deus enviara grandes profetas a Israel, mas falsos<br />

profetas tentaram conduzir o povo por caminhos errados. Por isso não deve nos surpreender<br />

que os cristãos do Novo Testamento tenham tido de enfrentar falsos mestres.<br />

Pedro não diz muito sobre a forma assumida pelo ensino falso; é claro que ele não<br />

está interessado em divulgar o erro ao reproduzi-lo em sua carta. Mas ele diz que eles<br />

“renegam o Soberano Senhor que os resgatou” (2.1). Isso claramente é uma referência à<br />

cruz como ato de redenção: Cristo comprou todos os cristãos com o seu sangue. Não<br />

temos certeza sobre como os mestres negavam isso. Pode ser que a conduta deles fosse<br />

incompatível com a fé genuína na redenção, ou que eles tivessem uma idéia diferente sobre<br />

o significado da cruz. O que realmente importa é que esses mestres tinham se desviado do<br />

cerne da fé.


Capitulo 2 2<br />

J<br />

A 6<br />

pistola de Judas<br />

: á bastante material repetido em 2Pedro e Judas, e os estudiosos têm investigado<br />

a relação que poderia haver entre esses dois escritos. Geralmente eles<br />

concluem que Judas foi escrito primeiro e que 2Pedro baseia-se nele. Nada<br />

disso importa muito para o nosso propósito aqui. Também não nos importa quem escreveu<br />

esses dois textos nem quando foram escritos. O que importa é que eles fazem parte do<br />

Novo Testamento e devem ser estudados quando olhamos a teologia do neotestamentária<br />

como um todo, Mas não há necessidade de falar muito sobre Judas por causa da superposição<br />

de material com 2Pedro, e mesmo nas outras passagens, os dois autores estão dizendo<br />

mais ou menos as mesmas coisas.<br />

Em 2Pedro há paralelos próximos a tudo o que está em Judas, com exceção dos primeiros<br />

três versículos e dos últimos sete. Os dois escritores enfrentavam hereges que se<br />

esforçavam na tentativa de subverter os fiéis, e ambos escreveram para corrigir a situação.<br />

Judas poderia ter escrito sobre a salvação (v. 3), mas as necessidades prementes da hora<br />

fizeram com que ele tivesse de tratar das questões urgentes. Por isso, acabou falando do<br />

castigo dos pecadores nas mãos de Deus (dos que pereceram no deserto, dos anjos que<br />

pecaram, de Sodoma e Gomorra, v. 5-7). Ao reprovar a soberba dos hereges, ele falou do<br />

arcanjo Miguel e de como recorreu a Deus para expulsar o Diabo; ele não se atreveu a<br />

fazê-lo pessoalmente (v. 8-9). Para Judas, os falsos mestres não tinham entendimento,<br />

compactuavam com o erro a fim de obter lucros (como fizera Balaão) e não tinham<br />

conteúdo; por essas razões receberiam um castigo severo (v. 10-13),


Deus, porém, não é derrotado. Enoque profetizou sobre a condenação dessas pessoas<br />

(v. 14-16) e mais tarde os apóstolos de Jesus também profetizaram a respeito deles (v.<br />

17). Os crentes, por isso, não deviam se deixar perturbar, mas continuar na “fé santíssima"<br />

(v. 20) e levar avante seu trabalho evangelístico e pastoral (v. 21-23).<br />

Há alguns problemas com esse breve escrito, mas talvez seja suficiente observar que<br />

ele diz mais ou menos a mesma coisa que 2Pedro. Ele enfatiza a importância da fé certa e da<br />

vida de retidão. No fim, Judas espera que Deus, em Cristo, nos impeça de cair e, assim, nos<br />

apresente sem máculas diante dele (v. 24-25).


;f |m detalhe que emerge dessa pesquisa é que todos os livros do Novo Testamento<br />

foram escritos por indivíduos. Ninguém estava tentando seguir “a<br />

’L i, linha de um partido”, mas cada um escreveu a partir da sua própria experiência<br />

cristã para atender às necessidades dos seus leitores conforme as via, e escreveu da profunda<br />

convicção de que o que Deus tinha feito em Cristo era de importância fundamental.<br />

A maneira com que cada um se expressou, no entanto, era bem pessoal.<br />

Paulo é surpreendentemente antigo e surpreendentemente original. Seus escritos<br />

mostram que menos de vinte anos após a crucificação os principais contornos da mensagem<br />

cristã estavam claros. Via de regra ele é visto como aquele que enfatizou a centralidade<br />

da justificação pela fé, e há boas razões para isso, pois ele enunciou essa doutrina com<br />

autoridade.<br />

Contudo, não devemos deixar de ver que ele tinha outras maneiras de descrever a<br />

obra salvadora de Cristo e que ele enfatizou a cruz, a reconciliação e a libertação do<br />

domínio de vários tiranos, e que a ira de Deus foi aplacada. Ele tinha certeza de que o ser<br />

humano é incapaz de vencer o mal por sua força própria, e via as forças do mal em muitos<br />

lugares. Há o poder do pecado, da carne (o inimigo interno), do Maligno e de outros espíritos<br />

maus. Estamos sob o poder da morte. Havia aqueles que entendiam que a lei de Deus<br />

está ligada de modo vital à maneira como se deve agradar a Deus, mas, de outro ângulo,<br />

Paulo podia vê-la como mais um tirano que nos mantêm na servidão. Ele também a<br />

considerava santa, justa e boa; sua visão é complexa.<br />

T odavia, não resta dúvida de que Paulo entendia que Deus estava ativo em Cristo,<br />

libertando os que confiam nele. Não é o esforço do pecador que é central ao pensamento de<br />

Paulo, mas a libertação maravilhosa que Deus efetuou em Cristo. Ele usa várias palavras<br />

que ilustram de modo vívido o que Deus fez: redenção, reconciliação, propiciação, a crucificação<br />

do “registro de dívida que havia contra nós” e outras. Tudo o que tinha de ser feito,<br />

Cristo fez, e não há nada imperfeito na salvação que ele realizou.<br />

Por isso somos convidados a viver em amor por aquele que nos amou tanto. E um<br />

pouco surpreendente que boa parte da literatura recente não perceba em que medida Paulo<br />

destaca o amor de Deus, o amor de Cristo e o amor que deve caracterizar os crentes. No


entanto, não há ninguém no Novo Testamento que enfatize tanto o amor quanto Paulo<br />

— ninguém. O amor é de importância central. As vezes ele destaca o lugar do amor com<br />

uma terminologia diferente da que ele usa para a graça, que é nada menos que o amor em<br />

ação. O amor que os cristãos devem demonstrar não é uma conquista humana, e por isso<br />

Paulo destaca o papel do Espírito Santo, que é quem derrama o amor em nosso coração. O<br />

Espírito está ativo, capacitando os crentes, e Paulo fala do que ele faz em todos nós e também<br />

dos "dons” especiais que ele dá a alguns servos de Deus.<br />

Poderíamos continuar na mesma linha. Parece não haver fim para as contribuições<br />

que Paulo presta à nossa visão da vida cristã. Outros escritores, porém, têm sua própria<br />

maneira de dizer as coisas. Vimos que Marcos traz sua combinação da humildade e da majestade<br />

de Jesus, da sua humanidade genuína e da sua posição como o poderoso Filho de Deus.<br />

Marcos fez algo que aparentemente ninguém já havia feito: escreveu um evangelho,<br />

e assim deu origem a um novo gênero literário. Ele escreveu de uma maneira que não deve<br />

ser vista simplesmente como história, apesar de haver história em seu livro. Ele, porém,<br />

estava muito ciente de não estar escrevendo história como tal, e em suas afirmações iniciais<br />

informa ao leitor que esse é um “evangelho”. Ele está relatando as “boas novas” do que Deus<br />

fez em Cristo e, para Marcos, isso significa mostrar que o Filho de Deus veio exatamente<br />

para onde nós estamos. Ele viveu nossa vida, com a exceção de que nós a arruinamos com<br />

nossos atos perversos, ao passo que ele mostrou como a vida humana pode vir a ser se for<br />

vivida como deveria. Assim Marcos nos apresenta os atos de compaixão dejesus, mas também<br />

seus atos de poder. Ele deve ser visto como Deus e também como homem perfeito.<br />

E Marcos dá ênfase à morte dejesus na cruz; a narrativa da paixão domina o seu<br />

livro. E claro que Marcos não é nenhum Paulo. Ele não tem as ricas ilustrações do apóstolo,<br />

e seu pensamento não é tão profundo como o de Paulo. Mas ele é tão claro como este ao<br />

declarar que o que Deus fez em Cristo foi o que realmente importa. E, escrevendo com essa<br />

convicção, produziu uma nova forma literária, o evangelho. Marcos fez algo profundo, que<br />

influenciou tanto os cristãos da sua época como os de hoje.<br />

E interessante que é Marcos quem mostra os fracassos dos Doze de modo mais claro<br />

do que qualquer outro. Ele deixa claro que eles não compreenderam Jesus como poderiam<br />

ter esperado, e sempre ficam longe de ser discípulos ideais. Na hora crucial, todos eles<br />

abandonaram Jesus e fugiram. Para nós é importante ver que a igreja não foi estabelecida<br />

pela formação de um grupo de pessoas notáveis e santas. Pelo contrário, a igreja foi formada<br />

pela pregação de pessoas desacreditadas. Foi o poder de Deus e não a coragem ou a santidade<br />

dos primeiros discípulos que fez surgir a igreja de Deus, verdade essa que até hoje<br />

tem tido grande valor para os seguidores de Cristo frágeis ou desanimados,<br />

Mateus também escreveu um evangelho, mas não disse as mesmas coisas que Marcos.<br />

Ele dá ênfase ao ensino dejesus, e no Novo Testamento nenhum outro nos dá tantas<br />

informações sobre o que o Mestre disse. Devemos a ele o registro de muitas parábolas, e


Conclusão<br />

relatos de ensinos como o Sermão do Monte têm influenciado profundamente todas as<br />

gerações de cristãos.<br />

Quanto às ênfases temáticas deste evangelho, destaca-se claramente que Mateus<br />

tinha um profundo interesse no reino do céu, e é por causa dele que temos tantas informações<br />

sobre o que Jesus disse a respeito do reino. Não é só ele que fala do reino, pois outros<br />

também o mencionam. Mas ele apresentou a sua força de modo mais completo e claro do<br />

que qualquer outro. Ele também tinha interesse na pessoa de Jesus e extraiu muita informação<br />

do sentido do título “Filho de Davi”, por exemplo. Além disso, Mateus é o único<br />

evangelista a usar a palavra “igreja”; ele tinha interesse no conjunto dos cristãos,<br />

Lucas tem tradicionalmente sido visto como historiador, e seu interesse na história<br />

é óbvio. Ele é o único dos escritores do Novo Testamento que nos dá informações sobre a<br />

história do começo da igreja. E ele localiza os atos salvíficos no contexto da história secular,<br />

algo que os outros evangelistas não fazem. Lucas entendia com clareza que Deus está<br />

atuando em tudo na vida, nos assuntos dos governantes pagãos assim como no serviço que<br />

os cristãos prestam a Deus.<br />

No entanto, temos de ver que ele não é apenas mais um historiador, dando informações<br />

sobre a época do primeiro século. Ele também é um evangelista. Escreveu um evangelho,<br />

e Atos nada mais é que a continuação do seu evangelho. Em certo sentido, esses dois<br />

constituem um só livro, em dois volumes. Se o considerarmos apenas história, nós o entenderemos<br />

mal; ele na verdade é o relato do evangelho em ação. Lucas nos está dizendo como<br />

Deus, em Cristo, trouxe salvação a muitos e como a mensagem chegou a Roma, a capital do<br />

mundo.<br />

Lucas é uma figura ímpar; seu texto em dois volumes já mostra isso, mas sua singularidade<br />

também pode ser vista em outras coisas. Geralmente não percebemos que Lucas<br />

liga o sofrimento a Cristo, e o faz várias vezes. Outros escritores concordam que o sofrimento<br />

faz parte do ministério de Jesus, mas o ligam a um título como "Filho do Homem”.<br />

Lucas enfatiza que Jesus sofreu porque era o Cristo. Ele não expõe o sentido da cruz da<br />

maneira multiforme de Paulo, mas deixa seus leitores verem que ela foi importante e, usando<br />

o termo "madeiro”, mostra a verdade de que Jesus tomou sobre si a maldição que cabia<br />

aos pecadores.<br />

Lucas não tem dúvidas de que Deus age nos assuntos humanos, e mostra de modo<br />

fascinante a verdade de que ele guia os seus filhos. Lucas gosta de registrar milagres e, em<br />

seu relato, demonstra como Deus interveio várias vezes. Ele nos mostra como o Espírito<br />

Santo guiou os cristãos desde o começo. Para a vida prática do cristão, é importante saber<br />

que não estamos sozinhos, e Lucas deixa isso claro melhor do que qualquer outro.<br />

Mas talvez o assunto mais valioso que lhe devemos seja o modo como mostrou o<br />

interesse e o cuidado de Deus pelas pessoas do seu tempo a quem a sociedade dedicava<br />

pouco respeito. Lucas tem um lugar especial para os pobres, as mulheres, as crianças e os de


má fama. Em todos esses séculos, os cristãos, muitas vezes, têm se contentado em conquistar<br />

a estima daqueles que costumam ser aceitos pela sociedade da época. Ê a prática de uma<br />

“ética social” em que faziam as coisas que a maioria faria e evitavam os males que a sociedade<br />

em geral reprovava. Não notaram que os cristãos foram chamados para ser diferentes:<br />

para tomar como regra o que Deus lhes ensinou em Cristo, e não o que vêem nos valores<br />

tradicionais ao seu redor. E se eles falham nisso, a culpa não é de Lucas. Ele deixou claro<br />

que Jesus não se alinhou com os valores tradicionais da sociedade do seu tempo e espera<br />

mais do seu povo nessa área.<br />

Para muitos, João é o ponto alto da Bíblia, e isso é compreensível. Só podemos ficar<br />

maravilhados e reverentes diante da compreensão do caminho cristão que nos é apresentada<br />

no quarto evangelho. João pode ter visto mais, e com mais clareza, do que qualquer<br />

outro cristão, e temos uma enorme dívida para com o que escreveu. Ele tem algumas<br />

maneiras incomuns de dizer isso, como a referência inicial ao Salvador como “a Palavra”.<br />

Talvez nem consigamos atingir a profundidade de tudo o que ele diz, mas podemos captar<br />

a importância do que ele está dizendo. E tudo o que ele diz converge em Cristo. Em todo o<br />

seu livro, é o Senhor quem está bem no centro das coisas.<br />

João preserva para nós atos e palavras que nenhum outro registrou, e todas as gerações<br />

de cristãos se beneficiaram com isso. Foi João quem registrou o ensino de que só<br />

depois que nascemos do Espírito Santo é que podemos entrar no reino de Deus. E é a João<br />

que devemos as declarações com “Eu sou", o ensino sobre o pão da vida, a luz do mundo, o<br />

Bom Pastor e muito mais.<br />

O que não observamos tanto quanto deveríamos é que João evidencia a constante<br />

dependência de Jesus em relação ao Pai. O Jesus do quarto evangelho não pode fazer nada<br />

por si mesmo; somente porque o Pai está com ele é que ele pode fazer as coisas que faz. João<br />

tem o conceito admirável de “glória humilde” (nas palavras de Orígenes). Ele vê a glória de<br />

Jesus não na majestade e na pompa, mas no serviço simples. E glória genuína quando<br />

alguém que ocupa posição tão elevada e que poderia exigir tanto para si, em vez disso<br />

renuncia ao seu lugar privilegiado e serve aos outros do modo mais humilde possível. E<br />

João leva isso ao auge incluindo a referência dejesus a ser “levantado”, exaltado, na cruz. O<br />

que para todo mundo parecia o auge da degradação, João viu como suprema exaltação.<br />

Apocalipse, quer tenha sido escrito pelo mesmo autor do evangelho e das cartas,<br />

quer não, é uma obra de caráter notavelmente distinto. As técnicas da literatura apocalíptica,<br />

com suas figuras surpreendentes, são usadas com efeito admirável. Ficamos atônitos,<br />

nós que não estamos acostumados a esse gênero literário e temos de analisá-lo de fora, No<br />

entanto, ninguém consegue escapar à força da demonstração de que, por mais poderosas<br />

que sejam as forças do mal, elas não se comparam ao poder do Senhor Todo-Poderoso, O<br />

mal pode nos parecer tão forte que somos incapazes de derrotá-lo, mas não podemos concluir<br />

disso que ele é insuperável. No fím, é o poder de Deus e do bem que vai prevalecer,


não a força do Maligno e daqueles que se colocam do seu lado. E nossa pobreza teológica<br />

seria muito maior se não tivéssemos o quadro magnífico do "cordeiro como que tendo sido<br />

morto” e da multidão que lavou suas vestes e as alvejou no sangue do Cordeiro. João encerra<br />

com seu quadro magnífico do novo céu e da nova terra, que tem sido uma inspiração<br />

para tantos com o passar dos séculos. Os servos de Deus em qualquer época podem ter<br />

dificuldades em combater o mal, e é fácil ceder à tentação de pensar que nunca poderemos<br />

vencer e é melhor desistir da luta e passar para o lado do inimigo. Apocalipse nos ajuda a<br />

retomar a perspectiva de Deus. As visões do fim são uma demonstração convincente de<br />

que Deus tem coisas maravilhosas guardadas para seus filhos.<br />

Hebreus é outro texto que fala de um mundo diferente do nosso. Mas a descrição<br />

que o autor faz de Jesus como o grande sumo sacerdote, ou como um sacerdote como Melquisedeque,<br />

ou simplesmente como sacerdote, acrescenta algo importante para nossa compreensão<br />

do nosso Salvador e da nossa salvação. Ele conseguiu tomar uma parte das<br />

Escrituras antigas que não tinha tido muita pertinência para outros expositores e mostrar<br />

que o episódio em que Melquisedeque encontrou a Abraão tinha algo importante a ensinar<br />

às gerações seguintes.<br />

Ele também toma a idéia da aliança, encontrada esporadicamente no Novo Testamento,<br />

e mostra que a nova aliança que Cristo realizou derramando seu sangue tem importância<br />

central. O povo judeu sabia que sua aliança com Deus era de relevância primordial.<br />

Ela os tornava povo de Deus de modo especial. Ao considerar essa aliança obsoleta e substituída<br />

pela "nova aliança”, o escritor está insistindo em que o caminho cristão não é um<br />

judaísmo modificado, mas algo radicalmente novo. A terminologia é diferente, mas equivale<br />

à declaração de Apocalipse: "Eis que faço novas todas as coisas”.<br />

O autor recorre a muitas maneiras diferentes de avaliar os efeitos da morte expiatória<br />

de Cristo. Poucos escritores expõem as muitas facetas da expiação como ele. Ele destaca<br />

especialmente os sacrifícios, como poderíamos esperar do seu uso do conceito de sacerdócio,<br />

e sublinha que o sacrifício de Cristo tem validade permanente e que não existe outro<br />

sacrifício que realmente tira pecados. Ele entende que a obra de Cristo foi realizada num<br />

santuário celeste na presença de Deus, enquanto os sacerdotes terrenos necessariamente<br />

trabalham em um templo feito por mãos humanas. O contraste entre o terreno e o celestial<br />

se estabelece várias vezes nesta carta.<br />

Um detalhe digno de nota é o estudo da fé em Hebreus 11, O autor não usa o conceito<br />

de fé do mesmo modo que Paulo, apesar de algumas vezes chegar perto disso. Mas,<br />

enquanto Paulo se concentra principalmente na fé como o meio de sermos aceitos por<br />

Deus, em Hebreus a ênfase é na fé como o meio de servirmos a Deus de modo aceitável. Os<br />

heróis da fé foram pessoas que confiaram que Deus executaria seu propósito quando não<br />

havia nada em suas circunstâncias exteriores que lhes desse esperança. Essa é uma parte<br />

importante da vivência da fé.


Tiago via de regra é conhecido por suas declarações enfáticas a respeito de fé e obras.<br />

Não há necessariamente uma contradição entre o que ele diz e a perspectiva de Paulo de<br />

justificação pela fé, mas Tiago com certeza não se expressa como Paulo o teria feito. Sua<br />

insistência em uma fé viva em contraste com uma fé sem obras é uma parte importante da<br />

noção neotestamentária do serviço a Deus. O mesmo vale para sua insistência em que a língua<br />

é importante e que é fácil pecar com o que dizemos. A igreja pode sempre se beneficiar<br />

da forte ênfase no cristianismo prático que se destaca nesta carta.<br />

A primeira carta de Pedro foi escrita claramente à igreja sofredora, e a insistência do<br />

escritor em que os crentes às vezes podem ser chamados a sofrer por sua fé — sofrer mesmo<br />

tendo agido corretamente — sempre tem sido muito importante para os cristãos. Em<br />

incontáveis ocasiões e em muitos lugares os crentes têm sido chamados a sofrer por sua fé,<br />

como, evidentemente, acontece até hoje em muitos lugares do mundo. A insistência de<br />

Pedro na atitude correta por parte de quem sofre e sua certeza de que a mão de Deus nos<br />

sustenta têm importância permanente.<br />

Esta carta lida com outros aspectos importantes do cristianismo. Pedro mostra um<br />

pouco da importância da igreja, com seu ensino sobre o sacerdócio real, a nação santa e<br />

outras ilustrações. A vida em comunhão dos salvos faz parte do caminho cristão. Além disso,<br />

esse escritor tem ensinos importantes sobre Cristo; por exemplo, é o único escritor do<br />

Novo Testamento que o chama de "supremo Pastor”. Ele também diz que Cristo levou<br />

sobre si nossos pecados (conceito este que ele compartilha com Hebreus). Em outra passagem<br />

ele nega que nossa redenção tenha alguma coisa a ver com coisas preciosas aqui da terra,<br />

como ouro ou prata, mas afirma enfaticamente que ela resulta do sangue precioso de<br />

Jesus.<br />

Muitos estudiosos têm a tendência de não dar muito valor às contribuições de 2Pedro<br />

e Judas, mas não há nenhuma razão para isso. Os dois escritores enfrentaram falsos<br />

mestres e nos lembram de que nem tudo que alega ser cristão deve ser aceito sem averiguação.<br />

E possível invocar o nome de Cristo com propósitos muito diferentes dos dele. 2Pedro<br />

diz que Cristo é nosso "Deus e Salvador” (de acordo com a melhor compreensão do texto);<br />

portanto, o autor realmente tem um conceito muito elevado do Senhor. E ele usa o interessante<br />

conceito de que os salvos são participantes da natureza divina. Esse conceito é semelhante<br />

à idéia de João de nascer do Espírito, mas não é exatamente igual. Ele deve ter tido<br />

muita força em algumas regiões do mundo grego, e isso nos lembra que cada trecho da<br />

Bíblia tem sua própria força e utilidade. Ter parte na natureza divina afeta a vida diária, e<br />

essa carta destaca as virtudes que devem caracterizar a vida do crente. Ela também dá uma<br />

ênfase notável à transitoriedade do mundo e à certeza de sua destruição no fim. O fato de a<br />

parousia ainda não ter ocorrido não significa que ela não ocorrerá, e isso permite a mesma<br />

aplicação hoje em dia.


Judas é um texto curto, mas tem uma ênfase notável na realidade do julgamento.<br />

Somos pessoas responsáveis e um dia teremos de prestar contas do que fizemos, sendo essa<br />

uma parte importante do ensino do Novo Testamento, Judas mostra que quem distorce o<br />

ensino cristão é culpado e terá de se justificar diante de Deus. Ele não nos deixa dúvidas<br />

quanto à gravidade de abraçar ensinos errados. Sua bênção final tem sido muito apreciada<br />

pelos cristãos de todos os tempos.<br />

Essa rápida visão panorâmica não tem a intenção de fazer um resumo enlatado de<br />

todo o ensino dos vários escritores. É simplesmente uma maneira de mostrar que eles são<br />

todos indivíduos. De nenhum dos seus textos pode se dizer: “Não se perderia muito se não<br />

tivéssemos isto aqui’’. Todos podemos ter nosso autor favorito no Novo Testamento, mas<br />

isso não nos dá o direito de negligenciar os outros. Também não devemos distorcer o que<br />

um escritor está dizendo para igualá-lo ao que algum outro escreve. É possível que dois (ou<br />

mais) deles transmitam a mesma mensagem em linguagem diferente. Mas também é possível<br />

que dois deles (ou mais) destaquem aspectos diferentes da fé. Mesmo essa breve visão<br />

panorâmica é suficiente para mostrar que cada escritor fez sua própria seleção de doutrinas<br />

cristãs e se expressa de sua maneira peculiar.<br />

Com todas as suas diferenças, porém, há uma concordância impressionante em certas<br />

verdades fundamentais. Todos eles são “cristãos”, mesmo que nem todos usem essa palavra.<br />

E isso significa que eles encontraram um lugar especial para Jesus Cristo. Alguns dão mais<br />

ênfase na humanidade genuína de Jesus do que outros, e alguns falam da sua divindade com<br />

mais clareza do que outros. Os escritores dos evangelhos obviamente prestam muito mais<br />

atenção aos detalhes da vida terrena de Jesus do que os escritores das cartas, mas é sobre o<br />

mesmo Jesus que eles estão escrevendo. E, apesar de nem todos os escritores terem como<br />

João maneiras tão sucintas de dizê-lo (“a Palavra era Deus”; “Senhor meu e Deus meu”), para<br />

todos eles, Jesus é mais do que um simples homem. Mais tarde, quando os teólogos da igreja<br />

vieram a caracterizar Jesus Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, eles estavam<br />

simplesmente expressando em suas próprias palavras a verdade que enxergaram em todo o<br />

Novo Testamento. O que os estudiosos de hoje gostam de chamar de “evento Cristo” foi<br />

central para todos os escritores do Novo Testamento.<br />

Isso significa que esses escritores tinham um conceito de Deus radicalmente distinto<br />

da maior parte do pensamento da Antigüidade. Uma característica dos gregos era o costume<br />

que eles tinham de colocar os deuses no remoto monte Olimpo. Esses deuses eram<br />

muito grandiosos para se preocupar com os assuntos insignificantes do pequeno ser humano.<br />

Por isso, os pecados das pessoas não eram tão sérios como diziam os cristãos (a não ser<br />

que alguém fosse infeliz ou tolo o suficiente para pecar de uma maneira que chamasse a<br />

atenção dos deuses). Isso significava também que não se podia esperar afeto ou ajuda dos<br />

deuses. Às vezes alguém esperava merecer a aprovação de alguma divindade, mas não podia<br />

ter certeza de que alguém tão grande como um deus lhe prestasse muita atenção.


Os cristãos não viam nenhuma realidade nesses tipos de deuses, e por isso rejeitaram<br />

radicalmente todos esses conceitos. O Deus que eles conheciam era um ser muito diferente.<br />

Ele criou todo este universo e toda a raça humana e manteve o interesse por sua<br />

criação; na verdade, ele a amava. Em todo o Novo Testamento o amor de Deus e seu afeto<br />

com os seus são sempre enfatizados. Isso recebe um destaque maior de alguns escritores do<br />

que de outros, mas é uma realidade para todos eles. Seu Deus é um Deus que se envolve.<br />

Ele está constantemente em ação no mundo. Um dia ele levará este mundo ao fim, e toda a<br />

raça humana será julgada. Ele está interessado no modo como vivemos, e em sua graça e<br />

misericórdia providenciou tudo o que precisamos. Os escritores do Novo Testamento<br />

deixam claro que na morte de Cristo ele agiu para trazer salvação.<br />

Quando eles falam do que Cristo fez por nós, enfatizam a crucificação. Não há a<br />

menor dúvida de que, em todo o Novo Testamento, a cruz é “crucial”. Há inúmeras maneiras<br />

de olhar para ela, e recorre-se a conceitos como redenção, aliança, sacrifício, sacrifícios<br />

específicos como a Páscoa ou o Dia da Expiação ou a oferta pelos pecados, purificação dos<br />

pecados, tirar o pecado e muitos mais. Quando pensamos que no mundo antigo a morte<br />

por crucificação era considerada algo vergonhoso, é surpreendente ver que os crentes concordaram<br />

que a crucificação de Cristo foi tão importante e tão gloriosa.<br />

A ela, naturalmente, devemos juntar a ressurreição, cuja importância é enfatizada<br />

especialmente em certos momentos, como imediatamente após o Pentecostes. Nessa época<br />

os pregadores lhe deram muito destaque. Mas em todo o Novo Testamento ela sempre<br />

é vista como um dos grandes fatos a respeito de Jesus, A morte não pôde segurá-lo. Ele é<br />

superior a ela, ressurgiu triunfante,<br />

Tudo isso significa que os crentes entram numa nova vida. Há bastante ênfase nisso,<br />

de vários ângulos. Às vezes temos a idéia de vida eterna, de que a vida cristã pertence à<br />

era futura. A era futura irrompeu no mundo do tempo e dos sentidos e criou uma situação<br />

totalmente nova.<br />

Os escritores do Novo Testamento são pessimistas quanto à capacidade do homem<br />

natural de viver de acordo com a vontade de Deus. Eles nos consideram escravos do pecado,<br />

dominados pela carne, vencidos pelas tentações do Maligno, e nenhum escritor do<br />

Novo Testamento entende que somos capazes de viver para o reino de Deus pelas próprias<br />

forças. Estamos sujeitos ao julgamento de Deus e encaramos a certeza da derrota por causa<br />

do nosso pecado. A ira de Deus é real. O que está claro é que, seja como for que entendamos<br />

a perdição humana, Cristo atendeu plenamente às nossas necessidades.<br />

Por isso, os cristãos vivem num patamar mais elevado do que antes de conhecerem a<br />

Cristo. Nada é mais peculiar ao Novo Testamento do que sua insistência em que os que<br />

foram salvos por Cristo devem viver de acordo com sua salvação. Às vezes encontramos listas<br />

de atos de perversidade para nos lembrar de que esse era o tipo de coisa que os crentes<br />

faziam antes de se tornar cristãos. Não devemos pensar que a igreja em seus primórdios foi


composta de cidadãos honrados e honestos. Numa pessoa após a outra, o evangelho transformou<br />

aquilo que parecia impossível ser mudado.<br />

Deus concedeu seu Espírito Santo àqueles que confiaram nele, e o Espírito proporcionou<br />

o poder que possibilitou aos crentes se elevarem acima do melhor nível que antes<br />

podiam atingir com seus talentos naturais. A morada do Espírito nos crentes é uma parte<br />

fascinante do ensino do Novo Testamento, fascinante porque tantos dos primeiros cristãos<br />

eram pessoas com pouca capacidade para o raciocínio metafísico profundo, e.^ jo<br />

modo de vida anterior não os havia preparado para os elevados padrões que se exigiam ><br />

cristãos. O que é interessante não é que alguns deles caíram, mas que tantos se<br />

para o Espírito e viveram em sua força. A igreja não só exigiu mas alcançou ufíCp? râ<br />

vida único na Antigüidade.<br />

De um modo ou de outro, todos os escritores do Novo T tôt destacam a<br />

importância do amor. “Deus é amor” é uma declaração que (<br />

explícita apenas<br />

em ljoão, mas sua verdade permeia cada livro e capítuldX,<br />

realidade de que<br />

Deus é um Deus de amor e de que a salvação efetuada^£mü>. ç ea manifestação do amor<br />

de Deus.<br />

,—. I v J j<br />

O amor, como o Novo T estam en rtX N O cijmT^eíe, era algo novo. É claro que havia<br />

vários tipos de amor no mundo antigo. Mas é^rtsKer mandamento de Jesus era o mandamento<br />

de amar como ele amou. E o seu amornaO era apenas por pessoas que tinham atrativos,<br />

mas pelos pecadores. Jesus eniííríoa seus seguidores a serem pessoas que amam. Deus<br />

______ ___________ x 1___________ x -------- ------- n —<br />

nos ama porque e um .<br />

jsQ/porque amar é da sua natureza. Por isso ele ama a<br />

todos, não apenas os i simpáticos, devotos, honestos ou atraentes de alguma outra<br />

forma. Esse é o tif<br />

é exigido dos seguidores de Jesus — o tipo de amor que o<br />

Espírito proc<br />

amor pelos outros, no espírito do amor que Cristo teve<br />

quando morreu pM^iós, quando ainda éramos pecadores, é demonstrar que ocorreu uma<br />

re^oha,ç/o(4e)il^o de nós. Por ter Cristo feito tanto por nós, a única resposta correta que<br />

íãr é estar dispostos a amar como ele amou.<br />

}Os escritores do Novo Testamento deixam claro que a partida de Cristo desta terra<br />

jenas temporária. Eles esperavam por seu retorno na hora certa, e aparousia era uma<br />

CAj-'OCLd.LiVti CUIlùLctllLC. 1 lit UiaCUÛàUCÙ OIJ.LLC Uù CûlUUlUaUÙ dU 1 ULLLVdlU UX. LOlii^U l^LiL<br />

os cristãos em geral achavam que isso levaria, mas não há dúvidas de que essa era uma<br />

expectativa preciosa dos primeiros cristãos. A vinda de Cristo havia alterado tudo, Agora<br />

os crentes estavam vivendo nos “últimos dias”, dias de qualidade diferente por causa do que<br />

Cristo tinha feito.<br />

Eu poderia continuar. Não estou relacionando tudo o que a igreja creu no começo<br />

nem mesmo os pontos teológicos que me parecem ser necessariamente os mais importantes.<br />

Estou simplesmente mostrando que, no N ovo Testamento, é evidente que há alguns<br />

fatos de valor permanente sobre Deus, sobre Cristo, sobre o Espírito Santo, sobre a raça


humana em pecado, sobre a igreja de Deus e sobre o tipo de serviço que os redimidos<br />

devem prestar. Esses ensinos são o patrimônio comum da igreja, não a opinião particular<br />

desse ou daquele mestre. T odas as questões que mencionei neste resumo são representativas.<br />

Pode-se dizer sem medo de errar que elas são “ensino do Novo Testamento”.<br />

A conclusão de tudo isso é que existe algo que se pode chamar de ensino cristão<br />

autêntico. Os seguidores de Cristo têm lido muitas vezes suas próprias idéias nas entrelinhas<br />

da Bíblia e imposto suas posições pessoais aos outros. Essa atitude levou muitos a<br />

duvidar de doutrinas e a se convencer de que precisamos de um cristianismo não dogmático,<br />

Ê fácil ver por que alguns adotam essa posição e é impossível não lhes ser simpático.<br />

Dogmatismo bitolado é repugnante. Mas há alguns grandes ensinos que são parte necessária<br />

do cristianismo autêntico, e esses ensinos precisam ser defendidos com muita firmeza,<br />

tanto agora quanto em qualquer outra época.

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