Identidade Quando a memória se texto: Hélen Cristina arte: Jéssica Moutinho
O Alzheimer é uma doença degenerativa e se apresenta como demência, ou perda de funções cognitivas como memória, orientação, atenção e linguagem. Não se sabe por que ocorre, mas são conhecidas algumas lesões cerebrais características dessa doença. As duas principais alterações que se apresentam são o surgimento de placas senis decorrentes do depósito de proteína beta-amiloide, anormalmente produzida, e os emaranhados neurofibrilares, frutos da hiperfosforilação da proteína tau. Outra alteração observada é a redução do número das células nervosas (neurônios) e das ligações entre elas (sinapses), com redução progressiva do volume cerebral. O neurologista Leonardo Brandão afirma que uma forma de prevenção é se manter mentalmente ativo. Segundo ele, é sabido que a pessoa que lê mais, que executa mais atividades que envolvam o cérebro tem uma probabilidade menor de desenvolver a doença. Mas ressalta que é fundamental que seja uma leitura da qual se possa emitir algum tipo de juízo crítico, “não é simplesmente ler; é ler, processar o que está acontecendo e ter uma opinião sobre o assunto. É preciso que esta leitura estimule o cérebro”. Ainda assim, ele destaca que 50% das pessoas com mais de 80 anos de idade terão Alzheimer, isto porque um fator de risco, não modificável, para a ocorrência da doença é envelhecer. A doença não se caracteriza pura e simplesmente pela perda de memória, mas esta é a principal alteração notada pelas pessoas que convivem com portadores do Alzheimer. Geralmente eles se esquecem de coisas recentes, mas lembram com perfeição de fatos que aconteceram há vários anos. E muitas vezes passam a agir como se vivessem no passado. É muito comum também que não reconheçam os membros mais jovens da família, mas em casos mais graves, até mesmo pessoas mais velhas, com as quais convivem diariamente, são esquecidas. Em meio a tudo isto, a figura do cuidador é fundamental, porque na grande maioria das vezes a pessoa que desenvolve a doença não percebe o que está acontecendo, ela é geralmente levada ao consultório médico por familiares que percebem alterações no comportamento. A partir do diagnóstico inicia-se uma nova fase, principalmente para quem vai acompanhar o paciente. O cuidador tem que se adaptar a esta nova realidade e passa também a habitar o mundo particular de quem convive com o Alzheimer. Para alguns, apenas um desafio, para outros, uma lição de vida. perde Uma fantástica prova de amor Como você reagiria se corpo e mente não acompanhassem o mesmo relógio? O corpo vai aos poucos envelhecendo, perdendo suas habilidades, enquanto a mente está presa num passado distante. Como seria se a cada dia você se afastasse um pouco mais da realidade e passasse a habitar um mundo só seu, onde o presente está sempre no passado? É assim que vive grande parte dos portadores da doença de Alzheimer. Júlia de Macedo Neves, 94 anos, foi diagnosticada com a doença há oito anos. Tudo começou um pouco antes, quando ela perdeu a visão por causa de um glaucoma. Obrigada a abandonar sua rotina agitada, Jú, como é carinhosamente chamada pela família e amigos, começou a passar seus dias no quarto, ouvindo música e tendo as lembranças como companhia, até que este recolhimento se transformou em doença. Em meio a tudo isso, Maria Aparecida Barbosa da Silva, 71, é figura fundamental. Sobrinha e cuidadora de dona Júlia, também teve que se adaptar a essa nova realidade. Elas sempre viveram juntas e cultivaram uma grande amizade, e isso fez toda diferença na hora de lidar com a doença. Jú teve redobrada toda atenção e carinho que sempre recebeu da sobrinha. “No início foi difícil, às vezes ela ficava duas noites e dois dias seguidos sem dormir, a gente olhava e parecia que tinha dormido a noite inteira. Mas ela foi minha segunda mãe. Sempre tivemos uma ótima relação, e isso continua até hoje,” conta Maria. E se engana quem pensa que o portador de Alzheimer se torna um fardo, pelo menos não para Maria Aparecida. Ela diz que a aceitação e a adaptação à doença aconteceram de uma maneira muito natural, que não saía muito e que já havia viajado bastante, então decidiu que não lutaria contra algo que não tinha solução. “A vida aqui sempre foi muito tranquila, acho que isso tudo passa, e agora estamos vendo as consequências, porque está sendo tudo muito fácil. Jú não é um peso, eu me sinto bem de saber que estou ajudando ela, que nos ajudou muito.” Mesmo com a doença, dona Júlia tem uma vida tranquila. Maria Aparecida faz questão de controlar seus horários, cuida pra que a tia se exercite, caminhando pelo quintal, ou mesmo dentro de casa, em dias chuvosos, e também não deixa de conversar, para que ela não perca totalmente a lucidez, e lembra com entusiasmo da rotina agitada que dona Júlia mantinha: “Jú foi secretária, era muito dinâmica, alegre e muito boa, gostava de ajudar as pessoas. Era ótima em tudo que fazia: crochê, tricô, cozinhava, era uma verdadeira líder”. Todo carinho dispensado à tia tem amenizado os sintomas da doença, mas a perda de memória é algo sobre o qual não se tem controle: às vezes dona Júlia acorda no meio da noite e pede para que preparem a mamadeira do sobrinho, que há muitos anos deixou de ser criança. Apesar de tudo, Maria Aparecida acredita que a falta de memória causada pelo Alzheimer tenha um lado bom: “com a doença ela não tem dimensão do que ela foi, do que ela fazia, ela não tem essa percepção. E isso é bom porque ela em fantasianão sofre. E eu também não”. CURINGA | EDIÇÃO <strong>12</strong> 41