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Revista Curinga Edição 12

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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FOTO ARQUIVO PESSOAL<br />

o leitor se divirta. Não ponho limites entre a realidade<br />

e a não-realidade, não quero que meu leitor conclua<br />

facilmente as coisas. Não o subestimo. Recebo muitos<br />

e-mails de meus leitores jovens. Vários deles querem<br />

saber se certo personagem fez, viu ou era “x” ou “y”.<br />

E eu respondo: “não sei”. E, de fato, eu não sei mesmo.<br />

Criei meus enredos para que não haja respostas claras:<br />

nem para o leitor, nem para mim. Em minha literatura,<br />

as cores do crepúsculo são mais interessantes do que as<br />

do sol a pino ou as da noite em breu.<br />

C: Qual seria sua definição para “literatura<br />

fantástica”?<br />

AM: Eu escrevi longamente em minha tese sobre<br />

os numerosos e vãos (apesar de bem intencionados)<br />

esforços em se definir, no decorrer de dois séculos, o<br />

que era a tal literatura fantástica, ou “de fantasia”, ou<br />

“sobre monstros”, ou “do estranho”. Os termos são<br />

muitos. Foram todos empreendimentos que não conseguiram<br />

abarcar todo o universo em torno do que se<br />

chama fantástico. O que me ocorre é que foi feita uma<br />

separação, também muito mais para fins de mercado,<br />

entre a literatura dita “fantástica” e aquela chamada<br />

“realista”. É uma diferenciação problemática. No Brasil,<br />

“comprou-se” muito bem uma ideia: a de que tudo<br />

o que não retrata a “realidade social”, tudo o que foge<br />

das possibilidades “concretas” do cotidiano, é apenas<br />

“literatura de evasão”, perda de tempo, distração para<br />

leitores “principiantes”. Nessas horas, há que se recuperar<br />

os bons defensores da literatura e do fantástico,<br />

como, por exemplo, o autor Jorge Luis Borges.<br />

C: Em sua opinião, que lugar o lúdico e o delírio<br />

ocupam na cultura brasileira?<br />

AM: Gostei dessa aproximação entre “lúdico” e “delirante”,<br />

apesar de ambos não necessariamente serem<br />

correlatos. Mas vou seguir a sugestão: parece-me que<br />

nossa história já nasce fruto de um fascínio delirante,<br />

ora assustador, ora instigante. Os povos que aqui chegaram<br />

depararam-se com civilizações impossíveis, quase<br />

às avessas. E com uma natureza belíssima, mas de teor<br />

inóspito tantas vezes: florestas monstruosas, rios com<br />

aparência de mar, aves raras, insetos famélicos... Uma<br />

animália de excêntrica exuberância. Tanto José de Anchieta<br />

quanto os índios que ele batizava temiam a horrenda<br />

ipupiara, que, séculos depois, foi amalgamada na<br />

doce Iara. Adoro ver, nos relatos históricos e literários<br />

do quinhentismo, os esboços de caminhos que trariam<br />

conformações do que chamamos hoje de cultura brasileira:<br />

a confusão, o hibridismo, a mestiçagem. Não se<br />

trata, portanto, de um lugar para o lúdico e o delirante,<br />

mas, antes, de um processo. Um belo processo.<br />

com isso, ser louco: os homens deslizam entre a fantasia<br />

delirante e a realidade do dia a dia, comum e partilhada.<br />

Se não fosse assim, não haveria as artes. Ou as guerras.<br />

Não haveria amor, nem desamor. O próprio espaço e tempo<br />

sofrem com essa função delirante do sujeito: é penosa<br />

a travessia de pouco mais de meia hora entre São Paulo e<br />

Rio por via aérea para um fóbico. E dois dias inteiros ao<br />

lado da pessoa que se crê amar escorrem em segundos.<br />

C: Para você, afinal, o que seria o “fantástico”?<br />

AM: Jorge Luis Borges nos deixa entrever que a literatura<br />

fantástica não seria menos importante do que a<br />

dita realista – ao contrário do que sempre quiseram boa<br />

parte dos críticos e o próprio pensamento popular –, tampouco<br />

desumanizada, irresponsável, escapista, nem mesmo<br />

“uma espécie de capricho contemporâneo”, tomando<br />

aqui as próprias palavras do grande escritor argentino.<br />

A literatura fantástica – ele bem sabia – seria capaz de<br />

superar o mundo superficial e oferecer metáforas para a<br />

realidade, o que só se daria por meio do rigor e da lucidez.<br />

Não há uma linguagem fantástica em si, e aqui recupero<br />

o pensamento de Irène Bessière: em cada época, em<br />

cada área, o relato dito fantástico é lido (e visto) de uma<br />

forma: seja na Antiguidade, no medievo, nas Luzes, no<br />

gótico literário, ou sob o olhar da psiquiatria, das artes<br />

plásticas, da biogenética. Para fins práticos, hoje diz-se<br />

comumente que o fantástico é o que se aproxima do sobrenatural,<br />

do monstruoso, do maravilhoso, do impossível.<br />

Diz-se também que o fantástico busca violar a norma<br />

e a lei instaurando o reinado da inverossimilhança. Mas<br />

é preciso fugir da obsessão pela especialização textual:<br />

“isso é fantástico, isso não é”. O fantástico me parece,<br />

antes, um termômetro para se avaliar não apenas a inventividade<br />

de uma cultura, mas também os elementos<br />

subterrâneos que a movem. Seus sintomas. Seus recalques.<br />

Seus (impossíveis) objetos. Seus desejos.<br />

Confira a continuação da conversa com o autor em:<br />

www.jornalismo.ufop.br/revistacuringa<br />

C: Para você, qual o limite, se é que ele existe,<br />

entre o real e a fantasia?<br />

AM: O que penso é que não sei se esse limite deve<br />

ser pedido: parece-me que é no interstício, na fresta, na<br />

brecha entre a chamada realidade e o fantástico, que<br />

tudo acontece. Como na vida, em geral. Falamos em delírio<br />

anteriormente. Todo mundo delira um pouco, sem,<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>12</strong><br />

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