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Revista LiteraLivre - Edição Especial 01

Primeira Edição Especial "Melhores do Ano da Revista LiteraLivre"

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Ano <strong>01</strong> - <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> “Os Melhores<br />

do Ano”<br />

Jacareí – SP - Brasil<br />

Expediente:<br />

Publicação: Bimestral<br />

Idioma: Português<br />

Editora-chefe: Ana Rosenrot<br />

Revisão: Todos os textos foram<br />

revisados por seus autores e não<br />

sofreram nenhuma alteração por parte da<br />

revista, respeitando assim a gramática, o<br />

estilo e o país de origem de cada autor.<br />

Diagramação: Ana Rosenrot – Alefy<br />

Santana<br />

Suporte Corporativo:<br />

Julio Cesar Martins – Alefy Santana<br />

Imagens: as imagens não creditadas<br />

foram retiradas da internet e não<br />

possuem identificação de seus autores.<br />

A <strong>Revista</strong> <strong>LiteraLivre</strong> foi criada para<br />

unir escritores de Língua Portuguesa,<br />

publicados ou não, de todos os<br />

lugares do mundo.<br />

Toda a participação na revista é<br />

gratuita, com publicação em PDF e<br />

distribuição on-line.<br />

Direitos Autorais:<br />

Os textos e imagens aqui publicados podem<br />

ser reproduzidos em quaisquer mídias,<br />

desde que sejam preservados os nomes de<br />

seus respectivos autores, que seja citada a<br />

fonte e que a utilização seja sem fins<br />

lucrativos. Seguindo também a doutrina de<br />

“fair use” da Lei de Copyright dos EUA<br />

(§107-112)<br />

A responsabilidade pelo conteúdo de<br />

cada texto ou imagem e dos textos das<br />

colunas assinadas é exclusiva de seus<br />

autores e tal conteúdo não reflete<br />

necessariamente a opinião da revista.<br />

Capa: De edições anteriores<br />

Site da revista:<br />

http://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/<br />

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Contato: revistaliteralivre@yahoo.com<br />

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© Todos os direitos reservados


Editorial<br />

Caríssimos, tenho a honra de trazer ao conhecimento de todos “Os<br />

Melhores do Ano da <strong>Revista</strong> <strong>LiteraLivre</strong>”.<br />

Através da opinião de leitores, assinantes e de leitores beta (todos não<br />

participantes da revista), foram revisitadas todas as edições de 2<strong>01</strong>7 e<br />

escolhidos somente 6 textos de cada uma delas para compor esta edição<br />

especial.<br />

Lembrando que, como tudo o que fazemos, nossa intenção foi dar um<br />

incentivo a mais aos autores participantes; portanto, não se trata de nenhuma<br />

premiação com excesso de formalidade, ouvimos somente a parte mais<br />

importante de todas: os leitores.<br />

Quero agradecer a todos os participantes, que também são vencedores por<br />

dedicarem suas vidas ao universo literário; aos que ajudaram na árdua tarefa<br />

de escolher os selecionados e parabenizar aos que estão aqui compondo esta<br />

edição especial.<br />

Obrigada pelo carinho e atenção de todos! Mês que vem (janeiro) teremos<br />

a edição de 1º aniversário e as inscrições para a edição 08 (de março), estão<br />

abertas até 10 de fevereiro.<br />

Quero desejar boas festas e um ano novo com muita “Literatura com<br />

Liberdade” para todos!!!


Neste número<br />

1ª <strong>Edição</strong>:..............................................................................................................................................1<br />

Conto Tirado de um Poema..................................................................................................................1<br />

Humano Eva.........................................................................................................................................5<br />

O talento está no sangue.......................................................................................................................7<br />

Picolés Bonsucesso.............................................................................................................................12<br />

Súplicas da Solidão.............................................................................................................................15<br />

Viver a minha vida..............................................................................................................................17<br />

2ª <strong>Edição</strong>.............................................................................................................................................19<br />

Breve Perfil.........................................................................................................................................20<br />

Erotic Sapiens.....................................................................................................................................22<br />

Sem Sinal............................................................................................................................................23<br />

Soneto da Moça de Pedra...................................................................................................................26<br />

Um Retrato de Mim............................................................................................................................27<br />

Xawdoon.............................................................................................................................................29<br />

3ª <strong>Edição</strong>.............................................................................................................................................30<br />

Ele Mora Ali.......................................................................................................................................31<br />

Hoje Não Será Amanhã......................................................................................................................32<br />

Mãe Meu Porto Seguro.......................................................................................................................33<br />

Não é Tempo de Morrer......................................................................................................................34<br />

O Poço................................................................................................................................................35<br />

Podridão de Partículas........................................................................................................................39<br />

4ª <strong>Edição</strong>.............................................................................................................................................41<br />

Bob Dylan: Inevitável Interseção Entre Lírica Musical E Literatura.................................................42<br />

Conversa Barata..................................................................................................................................45<br />

Coração de Uma Mulher....................................................................................................................47<br />

Dig a Pony (revisitado).......................................................................................................................48<br />

O Estrangeiro......................................................................................................................................49<br />

Paixão Proibida...................................................................................................................................56<br />

5ª <strong>Edição</strong>.............................................................................................................................................57<br />

A Espera de Pantera............................................................................................................................58<br />

Aldravias*...........................................................................................................................................59<br />

Antes do Voo.......................................................................................................................................61<br />

Atenção às Perguntas..........................................................................................................................63<br />

Estranho Na Madrugada.....................................................................................................................64<br />

Não se Queixe, Cante, Dance, Escreva…..........................................................................................68<br />

6ª edição:............................................................................................................................................70<br />

Contentores.........................................................................................................................................71<br />

Cruzamentos.......................................................................................................................................73<br />

Facilitar a Vida?..................................................................................................................................75<br />

O Drama da Surdez............................................................................................................................77<br />

O Quadro Dessa Gente.......................................................................................................................80<br />

Um Abraço..........................................................................................................................................81


1ª <strong>Edição</strong>:<br />

Janeiro/2<strong>01</strong>7<br />

Conto tirado de um poema – Tiago Feijó<br />

Humano Eva – Maciel Guerra<br />

O Talento Está no Sangue - Helder Guastti<br />

Picolés Bonsucesso - Cristina Bresser de Campos<br />

Súplicas da Solidão - Fausto Diniz<br />

Viver a Minha Vida - Carlos Costa


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Tiago Feijó<br />

Guaratinguetá/SP<br />

Conto Tirado de um Poema<br />

“João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da<br />

[Babilônia num barracão sem número”<br />

Poema tirado de uma notícia de jornal,<br />

Manuel Bandeira.<br />

João Gostoso desce as vielas íngremes e irregulares do morro da Babilônia. À<br />

sua frente, sob o anoitecendo do céu, pululam as luzes de Copacabana; luzes<br />

estas que João não vê, ou vê mas não repara, posto que em seus olhos fixa-se<br />

agora a lembrança de outras luzes. As luzes de Ritinha, sorrisonha, metida<br />

numa abundância de plumas e brilhos, a devassar o desejo dos homens no<br />

furdúncio do carnaval. Carregador de feira-livre, o árduo trabalho dos braços<br />

esculpiu no corpo negro de João muitas saliências de músculos e fez brotar<br />

nele a força desumana da ressaca das marés. Mas esse corpo, bruto tronco<br />

robusto de ébano, é casca falsa que envolve um homem pacífico, erguido em<br />

bondades, de mãos de trabalho e carícia. João Gostoso desce o morro,<br />

indistinto nos recantos de escuridão, levando na caixa do pensamento a mulata<br />

Ritinha, cravo cravado na carne de seu amor, ferida funda que não sabe<br />

cicatrizar, envolta nas brumas de um antigo carnaval. Em pouco, João pisa na<br />

Avenida Atlântica e se dá conta do mar, um mar de desilusão, e o rumor das<br />

vagas enche de mágoas o corpo colosso de João. Mas ele continua a caminhar,<br />

visto que tem destino certo de chegada e que o mar, posto assim nos olhos, é<br />

como um novo jeito de se afogar. E por agora João quer viver, viver e sofrer as<br />

dores inventadas para ele, que todo homem tem lá o seu quinhão e carregá-lo<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

é questão de honra.<br />

Copacabana é uma festa, riqueza sem fim. Gente vestida de claridade, rindo<br />

aos trambolhos, saltando de carros lustrosos e exalando perfumes de línguas<br />

estrangeiras. João pensa na alegria dessa gente, nas suas soltas gargalhadas,<br />

habitantes de altos edifícios, com o extenso mar emoldurado nas vidraças de<br />

suas janelas. Tão diferente dele, essa gente. Eles que não suspeitam da sua<br />

fome incurável, do seu perfume de feira, de fruta, da sua roupa puída, do seu<br />

barracão sem endereço perdido na barafunda da Babilônia. Cresce em João um<br />

asco por essa gente, porque foi o dinheiro deles que comprou a sua única<br />

riqueza, o seu bem mais valioso. Foi o dinheiro deles que levou de João a sua<br />

paz. João caminha apressado porque o samba não é afeito a esperar. Já no<br />

Arpoador, as espumas das ondas fazem João recordar a brancura das plumas<br />

de Ritinha no distante carnaval em que se conheceram. Ela, corpo em<br />

sarabanda, tremelicando as trigueiras ancas, abria em seu redor um círculo de<br />

admiração. Ele, estacado no meio da multidão, o sangue assanhado, tinha os<br />

olhos enfeitiçados pelos sortilégios da mulata que parecia levitar no centro do<br />

carnaval. Enfeitiçado, nem percebeu quando a moça passou a sambar em seu<br />

derredor, circunavegando seu corpo, ilha de prazer, ele, o escolhido, o eleito,<br />

terra selvagem a ser desbravada. E, no delírio do carnaval, os olhos de um<br />

dizendo aos olhos do outro o desejo de seus corpos. E João foi rei, e João foi<br />

estrela, e João foi madeira de fogueira. E João conheceu finalmente o amor...<br />

Agora, emaranhado nas ruas de Ipanema, com seu teto de folhagens, João<br />

pensa ouvir os batuques do samba de outrora, os mesmos batuques que o<br />

conduziram aos braços cheirosos de Ritinha naquele feliz carnaval de sua vida,<br />

o único carnaval do qual consegue se lembrar, como se a tal festa da carne não<br />

houvesse ocorrido senão uma única vez. Mais adiante, João compreende que a<br />

batucada não vem do antigamente, mas que retumba no presente, ecoando na<br />

estrangulada noite do agora. E enfim João vislumbra, lançado no meio da rua,<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

um facho de luz expulso do bar Vinte de Novembro, seu destino e seu fim. É<br />

de lá que pulsa o sangue do samba.<br />

O bar está em polvorosa, com grande azáfama de gentes. O samba, no seu<br />

compasso cardíaco, perverte as pessoas, instala nelas um assanhamento de<br />

fogo, de labareda, bulindo com elas por dentro, afrouxando nervos e músculos,<br />

libertando dos corpos a malícia da carne. E muita pele suada de mulata<br />

procura no corpo de João o seu cais, o seu desvelo, o seu descanso. E muito<br />

braço de homem, risonho de safadezas, aperta o amigo João, abraça o parceiro<br />

João. E muita boca de birita, melada de embriaguez, despeja na orelha de João<br />

manhas e promessas de mulheres e camas. E os copos tilintam, erguidos na<br />

luxúria do brinde. E o samba cresce, imenso, enorme, poderoso, grassando de<br />

perna em perna a volúpia do seu veneno. João finalmente está entre os seus.<br />

E entre os seus, João bebe, João canta, João dança, sem que ninguém perceba<br />

a sua amargura infindável, a sua solidão medonha, abismo tão negro quanto a<br />

sua pele, a sua tristeza de pedra, inabalável, presentes ofertados pela mão da<br />

mulata Ritinha ao abandoná-lo na espessura das trevas. E a noite de então é a<br />

noite de João!<br />

Tudo tem seu fim: o amor tem seu fim, a noite tem seu fim, o samba tem seu<br />

fim. E agora, após o rebuliço das pernas e o delírio dos copos, João Gostoso<br />

caminha sozinho e atordoado na madrugada em declínio. Da banda do mar, um<br />

clarão anuncia o parto da manhã de um dia azul. E João, homem feito de amor<br />

e desesperança, sem saber um jeito de esquecer, não faz outra coisa senão<br />

recordar... Ela, que já não tem mais nome; ela, que já não tem mais corpo;<br />

ela, que já não tem mais voz... Ela, que agora, neste agora de João, é apenas<br />

aquela que, em noite nefasta, ele viu descer de dentro de um luxuoso carro<br />

branco, brilhante, como aqueles de Copacabana, toda ela vestida de claridade,<br />

de anel reluzente no dedo, nos braços de um homem que a beijava e a cobria<br />

com mãos de desejos. Aquilo foi como uma faca no coração de João! Depois,<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

as palavras dela queimando como brasa a pele de João: “João, você me<br />

desculpa? Você é o homem mais bonito desse mundo, João! Mas você é<br />

ninguém e eu nasci pra ser rainha!” João nunca mais viu Ritinha, que foi<br />

embora viver seu sonho de rainha. Afundado num tempo de angústias, João<br />

sobreviveu e se esqueceu do homem, do luxuoso carro branco e das palavras<br />

de brasa sopradas pela boca de Ritinha. Mas não pôde se esquecer dela, não<br />

soube se esquecer dela. E Ritinha ficou ali, guardada no fundo dos olhos de<br />

João, envolta nas plumas de um fabuloso carnaval, pairando sobre a face de<br />

todas as coisas.<br />

João está agora à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, enquanto um último resto<br />

de madrugada se recolhe para detrás da carcunda das montanhas. E João a vê<br />

pela última vez. É ela. É Ritinha, no seu abundante corpo de mulata, que sobe<br />

à superfície do espelho d’água, requebrando as ancas no cerco dos<br />

admiradores. É ela. Cravada nos olhos de João, dançando em torno de João,<br />

buscando o corpo de João, naquele carnaval que não deveria ter fim. E João<br />

não quer mais suportar, porque a saudade, gota a gota, enche o peito de João.<br />

É ela. E João pensa que já não vale mais a pena, que aquilo já não é viver, é<br />

arrastar-se, arrastar-se para o nada, porque para ele só existe o nada. É ela. É<br />

somente ela. E João abre os braços, tal qual o Cristo Redentor sobre o<br />

Corcovado, e se atira na Lagoa Rodrigo de Freitas para morrer afogado.<br />

A morte de João Gostoso coube apertada numa curta notícia de Jornal.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Humano Eva<br />

Maciel Guerra<br />

Lucas do Rio Verde/MT<br />

Vejam só como é que é<br />

A criação de Deus<br />

Quando ele decidiu<br />

Fazer a mulher<br />

No homem o Adão<br />

Deu-lhe uma injeção<br />

Deixando-o cair num sonão<br />

Anestesia geral<br />

Tirou-lhe uma costela<br />

Começando a fazer ela<br />

Transformou aquela costela<br />

Clonagem e engenharia genética<br />

Que bela era o clone Eva<br />

Como se isso não bastasse<br />

O corte fechou sem sequela<br />

Cirurgia plástica<br />

Oh céus quanta arte<br />

E como um artesão<br />

Fez Eva do outro humano Adão<br />

E como um fantástico cirurgião<br />

Anestesiou, clonou, e fez plástica<br />

Eva feita de uma costela, não da mão<br />

A costela no corpo humano é proteção<br />

Protegendo órgãos vitais<br />

Como os pulmões e o coração<br />

Desprezar estes detalhes<br />

É não prestar atenção<br />

Numa romântica criação<br />

Deus como um poeta em ação<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Com o propósito divino<br />

Fazendo Eva para completar Adão<br />

Pois Deus sabia que o homem<br />

Não era bicho de solidão<br />

Tem necessidade de interagir<br />

Chorar, se alegrar e sorrir<br />

Se surpreender, entender se divertir<br />

Tendo Eva o propósito de aconselhar<br />

A mulher que veio edificar, completar<br />

E ao homem sempre ajudar<br />

Auxiliar é o princípio básico<br />

Para a sua existência<br />

Servir o homem com competência<br />

Mas hei homens não se iludam não<br />

Em absolutamente és superior<br />

A esta bela e romântica criação<br />

Feminino e masculino não<br />

É questão de nenhuma competição<br />

Deus nos fez um do outro<br />

Com beleza única,<br />

As nossas diferenças<br />

Se encaixam como num quebra cabeça<br />

Assim como côncavo e convexos<br />

Pensando em Eva nascida de Adão<br />

Entenda de uma vez, tenha gratidão<br />

Deus nos fez com um propósito<br />

Único de harmonia e união<br />

gueeramaciel.blogspot.com.br<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

O talento está no sangue<br />

Helder Guastti<br />

João Neiva/ES<br />

Todas as manhãs o ritual se repetia. Levantava da cama, tomava o café<br />

da manhã e ia afinar as cordas do violão.<br />

Espalhadas por todo o ambiente da diminuta casa, memórias de um<br />

tempo de grandiosidade e reconhecimento há muito esquecidos. Por vezes<br />

sentia que aquelas fotos estavam ali apenas para assombrá-lo, fazendo-o<br />

recordar de um tempo que nunca mais voltará. Toda a glória e sucesso que<br />

obteve percorrendo diversos estados junto a seus companheiros de banda,<br />

hoje são surreais. A única realização que tem é quando consegue receber<br />

cinquenta reais com suas apresentações ao ar livre...<br />

Violão afinado. Chegou o momento de sair em busca do pão de cada dia.<br />

A verdade é que não fazia isso pelo dinheiro. Até porque, diariamente, a<br />

quantia que conseguia adquirir fazendo suas apresentações em praças e<br />

calçadas, era mínima, só dava mesmo para comprar o essencial para sua<br />

sobrevivência.<br />

Pedro Júnior foi integrante de uma banda de rock nos anos oitenta. Uma<br />

daquelas bandas que surgem em garagem, com amigos reunidos, cigarros<br />

acesos e cervejas geladas. Num golpe de sorte, Pedro e seus amigos de banda<br />

foram descobertos por uma grande gravadora. Lançaram vários discos, saíram<br />

em turnê, tinham videoclipes sendo exibidos constantemente na televisão,<br />

matérias em jornais e revistas e, para aqueles jovens, o que mais importava:<br />

muitas mulheres a seus pés.<br />

Era incrível, nem Pedro ou seus companheiros poderiam ser vistos como<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

grandes galãs, mas o sucesso era algo mágico. As mulheres pareciam se<br />

derreter a seus pés. Bastava subir ao palco e tocar um acorde de guitarra para<br />

elas ficarem ensandecidas e aparecerem depois dos shows nos bastidores.<br />

Bons tempos...<br />

Colocou o violão dentro da capa, o maço de cigarros dentro do jeans<br />

rasgado, o tênis de lona bastante gasto com alguns buracos e a sola meio<br />

frouxa, trancou a porta e saiu.<br />

Sentiu o vento gelado cortar sua face. Acendeu um cigarro, a fim de<br />

desanuviar seus pensamentos e memórias e aquecer seu interior.<br />

Andou alguns metros, indiferente a paisagem e pessoas a seu redor. O<br />

tempo passou, a dificuldade tornou-se uma constante em sua vida, o dinheiro<br />

acabou, a fama e o sucesso se extinguiram, mas a marra e o porte de artista<br />

haviam permanecido. Pedro tinha um ar blasé, adotava uma postura de<br />

superioridade. Algumas vezes, enquanto performava sobre um caixote ou<br />

sentado no meio fio parecia, aos olhos do público, que ele estava fazendo um<br />

favor a eles, que deviam agradecê-lo imensamente por estar ali, cantando e<br />

tocando para seus ouvidos inferiores, reles mortais. Talvez esta atitude seja<br />

uma das razões que fazem com que Pedro não receba muitas ofertas enquanto<br />

toca. Mas, honestamente, ele não se importa. É claro que os transeuntes, que<br />

não passam de criaturas banais, não conseguiriam compreender sua arte. Sua<br />

música era para poucos. Era obra divina.<br />

Após meia hora sentado num caixote de verduras vazio que estava<br />

largado na entrada de um mercado, Pedro, de cabeça baixa dedilhando<br />

algumas notas em seu violão, sentiu que estava sendo observado. Levantou os<br />

olhos levemente e notou uma presença austera em frente a si. Empertigou-se<br />

no caixote, adotando uma postura ereta e ares de soberano das artes, e<br />

começou a tocar freneticamente. Seus dedos deslizavam pelas cordas,<br />

produzindo notas e sons elaborados, seu corpo inteiro parecia mover-se em<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

consonância àquela melodia. Em sua mente o universo ia tomando forma e<br />

cores, criando vida e exuberância. De olhos fechados, sentindo a música<br />

preencher seu vazio interior, Pedro, por um momento, sentiu sua espinha gelar.<br />

Parou em meio a um acorde complexo. Abriu os olhos. A sombra da<br />

figura agigantou-se sobre si. Notou que a pessoa (era um homem ou uma<br />

mulher?) havia se aproximado mais dele e estava com a mão estendida.<br />

— Companheiro; não sei se você é de fora ou veio do interior, mas, aqui<br />

na cidade, quem está se apresentando é que recebe uma oferta de quem está<br />

assistindo. Portanto, como eu estava aqui expondo minha alma artística e<br />

deixando todo meu talento mergulhar em sua audição banal, você é quem<br />

deve me pagar. Não adianta estender essa mão, a não ser que queira me dar<br />

os parabéns por ser um artista tão maravilhoso.<br />

A criatura permaneceu estática, com a mão estendida.<br />

— Escuta aqui, você não vai colaborar não? Tudo bem. Já era de se<br />

esperar que um sujeito tão estranho como você não saberia reconhecer um<br />

artista quando o encontrasse. Agora, vai ficar fazendo hora com a minha cara?<br />

Não tenho tempo para lidar com estupidez, saia da minha frente! – levantou-se<br />

abruptamente do caixote e acertou um tapa na mão da figura com sua mão<br />

direita.<br />

Assim que tocou na mão daquela criatura, que até o momento não havia<br />

conseguido decifrar se era um homem ou uma mulher, Pedro Júnior sentiu seu<br />

corpo se retesar. Um frio subiu pela espinhal dorsal, um calafrio se fez notar<br />

em seu ventre, os pelos do braço e nuca se eriçaram. A visão escureceu.<br />

— Mas que merda está acontecendo aqui? – balançava a cabeça feito um<br />

pêndulo, mas nada conseguia visualizar.<br />

Passados alguns minutos de muita tremedeira e angústia, vislumbrou,<br />

com o canto esquerdo de seus olhos, um objeto. Aproximou-se relutante e<br />

sorrateiramente, mas, conforme se aproximava, notou a familiaridade do<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

objeto e avançou a passos largos. Era seu violão.<br />

Assim que pôs as mãos no violão o ambiente pareceu ganhar vida.<br />

Refletores apontavam luzes sobre seu corpo. Notou que estava sobre um<br />

palco de piso escuro. Colocando as mãos por sobre os olhos, vislumbrou o<br />

grande público que o observava. E, como o narcisista que era, começou a tocar<br />

as melodias e músicas mais complexas que conhecia, passando os dedos por<br />

toda a estrutura do violão, emitindo sons excepcionais, balançando seu corpo<br />

envolto naquele rito de prazer e egocentrismo. O suor pingava de sua face.<br />

Após o que considerou um grande ato, uma apresentação memorável<br />

que com certeza ficaria gravada eternamente na mente de todos ali presentes,<br />

Pedro parou de tocar, fazendo uma grande reverência para o público.<br />

Esperando os aplausos e a ovação, levantou a cabeça, desconcertado. O<br />

ambiente parecia morto. Conferiu mais uma vez por sob a luz dos refletores se<br />

a audiência ainda estava presente... Todos estavam em silêncio.<br />

— Continue! – ecoou uma voz. Não conseguiu distinguir de onde ela<br />

vinha. Parecia que vinha de dentro de seu cérebro.<br />

- Não irei continuar seu bando de estú... – antes de terminar sua ofensa,<br />

seus braços moveram-se involuntariamente e seus dedos começaram aquela<br />

dança frenética tão conhecida por ele. Estava tocando majestosamente, mas<br />

sem controle de suas ações.<br />

De olhos arregalados e boquiaberto, Pedro Júnior tocou por horas. Seu<br />

corpo inteiro suava. Sua camisa estava colada a seu tronco. Seus pés doíam<br />

por ter permanecido em pé por tanto tempo. A coluna dava indícios de que<br />

necessitava de um descanso. Mas o pior de tudo eram seus dedos. Eles<br />

sangravam, calos e bolhas haviam se formado em suas mãos. O sangue<br />

escorria e misturava-se às cordas do violão que já estava respingado por suor<br />

e por sangue.<br />

As lágrimas escorriam de seus olhos, indo ao encontro das gotas de suor<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

e sangue que compunham aquela melodia irresistível.<br />

Pedro fez o melhor show de sua vida.<br />

Eternamente.<br />

http://tempestadeinterior.blogspot.com<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Picolés Bonsucesso<br />

Cristina Bresser de Campos<br />

Curitiba/PR<br />

Fiuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii<br />

Olha o picolé Bonsucesso, custa só dois reais!<br />

Dois reais o picolé mais gostoso da temporada. Tem morango, limão, coco,<br />

abacaxi, uva, chocolate, manga, milho verde e baunilha.<br />

Quem vai querer um picolééééééé?<br />

Com licença, vizinha, deixa eu te falar: o Cardoso está me pedindo a quitinete<br />

de volta, sabe como é, eu atrasei o aluguel de novo...<br />

Aí o Carlinho me emprestou esse carrinho de sorvete só hoje pra eu tentar<br />

descolar um troco e conseguir pagar uma parte, aí ele não me despeja da<br />

quitinete, tão boazinha, lá no centro.<br />

Olha, eu não aguento mais ficar tocando essa flautinha, já até quebrei ela, olha<br />

só e vou ter que pagar outra pro Carlinho. O calor tá infernal e eu to de jeans<br />

aqui na areia, por favô me dá uma força aí vizinha...<br />

Certo, vou comprar um picolé, tem de quê?<br />

Tem morango, limão, coco, abacaxi, uva, chocolate, manga, milho verde e<br />

baunilha.<br />

Me dá um de coco, então (vai saber que água eles usam pra fazer esse picolé?<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Nem é de marca conhecida, Kibon, Nestlé, Deus-o-livre!)<br />

De coco acabou, vai um de milho verde?<br />

Ah, não, eu detesto milho verde (vai comprar pra fazer caridade ou pra chupar<br />

o picolé? Pega qualquer um, oras).<br />

Tem de chocolate? Me dá um de chocolate então!<br />

Aqui, ó moço, o dinheiro.<br />

Não tem trocado, vizinha? Só recebi nota grande hoje.<br />

Pelo bolo de notas que sai do bolso dele, o aluguel tá pago até o fim do ano.<br />

Quem disse que marketing é assunto de bacana com diploma? Uma mentira<br />

bem contada nem precisa de português correto pra emplacar.<br />

Nossa que sorvete ruim, parece que to chupando uma lata de nescau gelada!<br />

Foi pra ajudar o rapaz ou pra engordar? Joga fora e não reclama.<br />

Fiuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii<br />

Olha o picolé Bonsucesso, custa só dois real!<br />

Dois real o picolé mais gostoso da temporada. Tem morango, limão, coco,<br />

abacaxi, uva, chocolate, manga, milho verde e baunilha.<br />

Quem vai querê um picolééééééé?<br />

Moça, compra um picolé da gente por favô minha mãe pegou esse carrinho prá<br />

trabalhar pra poder sustenta a gente desde que meu pai largou ela e deixou a<br />

gente na mão.<br />

Enquanto ela não vendê tudo hoje a gente não pode saí da praia e tá um calor<br />

13


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

dos infernos.<br />

Não fala em inferno Francisco que o pastor briga e manda lavá a boca com<br />

sabão.<br />

Desculpe maninha num conta pra ele não. Moça, vai comprá?<br />

Não quero picolé, to de regime, mas toma aqui esse dinheiro e pega aí um<br />

picolé pra cada um!<br />

Com esse dinheiro a gente vai compra picolé da Kibon moça, isso sim, porque<br />

esse aqui é ruim demais, presta não. Deus abençoe, moça!<br />

http://www.cristinabresser.com.br/<br />

14


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Fausto Diniz<br />

Súplicas da Solidão<br />

Belo Horizonte/MG<br />

EAPOE !!! EAPOE !!! mande -me seu corvo<br />

Pois dele eu vou precisar<br />

Mande-me também a Minerva<br />

Para que nos seus ombros, eu possa lamentar.<br />

No calvário de meus desidérios, incessante eu vou clamar<br />

Minha solitude eterna, no manto da escuridão<br />

Em prantos vão transformar<br />

Nas asas do corvo negro, no infinito irei morar.<br />

Das montanhas tenebrosas ouço os ventos a sibilar<br />

Das grotas profundas ouço os regatos a chorar<br />

Sob as asas do corvo negro, incólume<br />

Pairando na imensidão<br />

Abominável que sou, sem forças para soerguer<br />

Vislumbro no infinito o eterno anoitecer<br />

Minha voz se calou ha muito, nas profundezas de minh’alma<br />

Mudo estou sem mordaças para conter.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Vejo-me na solitude a cada instante enlouquecer<br />

Ouço distante, bem distante, as ondas revoltas do mar<br />

Nos rochedos negros violentas a quebrar<br />

Já não tenho mais amores, para nos ombros me acalentar.<br />

Meu tempo já se foi, incólume passado solitário me prostrou<br />

Vejo nos meus pensamentos a lua cheia distante<br />

Nas ondas perenes solitária a bailar<br />

Foi se o encanto da mocidade, nos salões dourados a cantar.<br />

Julgava me imortal,vencedor de mil procelas<br />

Armadilhas que meu espírito, impiedosas subjugaram<br />

Cansado e entorpecido, busco distante fragmentos de saudades<br />

Que em suplícios infindos, atrozes se transformaram.<br />

EAPOE !!! EAPOE !!!<br />

Voltai com seu Corvo e sua Minerva<br />

Não há mais sentido de ser<br />

Morrerei só, minguando ao anoitecer<br />

Esta pobre alma, nas profundezas do inferno<br />

Simplesmente desaparecer..…<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Carlos Costa<br />

Viver a minha vida<br />

Leme/SP<br />

Viver a minha vida<br />

A minha verdade<br />

Jamais viver na falsidade<br />

Só para agradar<br />

Aqueles que não estarão<br />

do meu lado<br />

Quando eu precisar<br />

Pois é, não da pra saber quem estará<br />

Quem permanecerá, até o fim<br />

Quem vai dizer sim quando o Mundo desabar<br />

E você sabe esse momento chegará<br />

Ninguém pode escapar, não adianta se enganar<br />

Muito menos trapacear, arregar, dar pra traz<br />

A única frase que vai sobrar é a que diz aqui jaz<br />

Então olhe ao seu redor<br />

Escolha melhor, de valor ao seu suor<br />

Não engane a si mesmo<br />

Carregue o peso de ser verdadeiro<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Como aquele grande homem carregou a cruz<br />

Eu sei que uma porção de likes seduz<br />

Status, faminha, comentários na fotinha<br />

Interesse na imagem, apenas<br />

Ninguém quer saber dos seus problemas, dilemas<br />

Do seu dia-a-dia, da sua correria, se mata ou não um leão por dia<br />

Por isso eu prefiro<br />

Viver a minha vida<br />

A minha verdade<br />

Jamais viver na falsidade<br />

Só para agradar<br />

Aqueles que não estarão<br />

do meu lado<br />

Quando eu precisar<br />

www.poeticamente.com.br<br />

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2ª <strong>Edição</strong><br />

Março/2<strong>01</strong>7<br />

Breve Perfil – Thássio Ferreira<br />

Erotic Sapiens – Elicio Santos<br />

Sem Sinal - Maria Rosa de Miranda Coutinho<br />

Soneto da Moça de Pedra - Paulo Rogério Aires Martins<br />

Um Retrato de Mim - Maria Beatriz Jurado<br />

Xawdoon - Maya Rubinger


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Thássio Ferreira<br />

Rio de Janeiro/RJ<br />

Breve Perfil<br />

Nas costas tatuara, na<br />

pele mais próxima à<br />

própria alma, imagem<br />

sua de liberdade.<br />

Expirava um pouco de si,<br />

sem pressa, porém sem<br />

calma,<br />

(distraído...) a cada<br />

palavra soprada.<br />

Quando sorria, creio fosse<br />

de alegria por<br />

compartilhar comigo<br />

aquele tempo de<br />

instantes tantos.<br />

(Poderia dizer assim: menino<br />

bonito, interessante,<br />

desconhecido e interessado<br />

faz-me sempre encanto.)<br />

Ma(i)s não direi.<br />

Calo. Dar palavras a<br />

20


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

lembramentos é gastá-los. Hei<br />

de mais guardá-los somente<br />

em mim.<br />

21


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Erotic Sapiens<br />

Elicio Santos<br />

Ilhéus/BA<br />

Estou de viagem no teu corpo, amor<br />

Me dá direito à nova passagem<br />

E que eu só vá até onde você por Sua<br />

licença na minha bobagem<br />

Eu tô a fim do cheiro bom<br />

Que sai da luz do nosso encontro<br />

Encanto, nem tanto, mais canto Só<br />

no teu porto, tão flor de tom!<br />

Estou de viagem no teu corpo, amor<br />

Me dá passagem de novo: me atrase!<br />

Não vou se você não for<br />

Toda à vontade na minha bagagem<br />

Meu ponto é você, mesmo no fim<br />

Chego quando te avesso em mim<br />

Porque nosso roteiro é o mesmo<br />

Eu e você o tempo inteiro<br />

Não compro seus centímetros, você sabe Só<br />

sou sua casa quando a gente se cabe Pele,<br />

toque, alma, quem sabe? Nossa pobre, rica,<br />

louca, sóbria, verdade.<br />

https://www.facebook.com/Elicio.Santos.Escritor.Brasil/?fref=ts<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Sem Sinal<br />

Maria Rosa de Miranda Coutinho<br />

Joinville/SC<br />

A mulher rude e de poucas palavras havia enfim decidido fazer parte do<br />

mundo tecnológico. Esquecida pelo tempo, pois apenas trazia alguns fios<br />

brancos de cabelo e conservava uma pele ainda jovial, esqueceu-se ela<br />

também de se atualizar no novo século que chegou muito depois do seu<br />

nascimento, de sua vivência de infância e de um difícil amadurecimento.<br />

Maria foi o nome que recebeu e nada mais a ele foi acrescentado. Estava<br />

escrito somente em seus documentos e talvez um dia seja inserido em sua<br />

lápide.<br />

Na velha casa, separou suas economias. Contou e recontou cada nota de<br />

dinheiro que guardava no fundo da gaveta de sua cômoda.<br />

Herdou de sua família a cansativa atividade de feirante e embora<br />

reservada, sabia oferecer as muitas hortaliças que cultivava em seu quintal<br />

com o valor apropriado. Não conseguia, contudo, imaginar quando abandonaria<br />

tal lida.<br />

Maria caminhou algum tempo pelo centro da cidade até deparar com a<br />

loja pretendida. Entrou cabisbaixa sem dirigir-se a ninguém. Tinha receio dos<br />

olhares e das perguntas. Sua linguagem revelava seu desconhecimento à<br />

modernidade, o que a colocava em um universo à parte.<br />

Os estranhos objetos estavam lá, expostos nas vitrines tão alheios a tudo<br />

quanto aquela mulher. Sua solidão, apressada pela viuvez precoce, fez dela<br />

ainda mais indiferente às novidades urbanas, e agora estava ali envolta ao que<br />

não conhecia.<br />

Subitamente foi interrogada sobre sua busca. Desafiada pela insistência<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

da vendedora, Maria relatou sua intenção:<br />

– Quero comprar um telefone.<br />

– A senhora tem algum modelo de celular de sua preferência?<br />

– Não conheço bem esse negócio – Justificou asperamente amulher.<br />

Diversos tipos de aparelhos lhe foram apresentados que receberam o<br />

olhar curioso da cliente. Enquanto examinava cada um, pedia explicações<br />

sobre seu uso.<br />

A compra foi fechada, finalmente, e a mulher se retirou carregando o<br />

pacote ¨esquisito¨. A proximidade com a tecnologia, podese dizer que apenas<br />

iniciava. Enquanto isso, Maria abraçou a rua com uma fisionomia mais<br />

confiante.<br />

Seu retorno não fora percebido pela vizinhança que pouco a viam.<br />

Sua casa estava como havia deixado: silenciosa, cafona e triste.<br />

Antes mesmo de rever o aparelho comprado, abriu uma das janelas para<br />

que a luz do dia entrasse – ainda forte – clareando sua sala. Desembrulhou a<br />

caixa com uma delicadeza que não lhe era comum e esquecida das orientações<br />

da vendedora, tratou de procurar o papelzinho onde anotou os passos para o<br />

correto manuseio.<br />

Ensaiou a digitação de números aleatórios com os dedos grossos e quase<br />

sem tato. Num primeiro momento quis apenas brincar com as teclas do<br />

aparelhinho sem qualquer objetivo. Familiarizou-se com os comandos, mas<br />

ainda sem entender muito bem todos eles. Estava farta da brincadeira e numa<br />

fração de segundos ergueu-se da cadeira lembrando-se de regar a horta.<br />

O sol se punha mais rápido naquela estação menos quente, e a mulher<br />

enveredou-se pelo quintal determinada a concluir logo a empreitada.<br />

Não saía do seu pensamento a nova aquisição. Buscou na memória<br />

algum número para o qual pudesse ligar, sem resultado. Enumerou seus velhos<br />

conhecidos, de outras regiões do país, e nada. Encontrou dificuldades para<br />

24


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

estrear o telefone, e já não era mais a ausência de tecnologia. Enquanto<br />

voltava para o interior da casa, refletiu sobre seu isolamento.<br />

O celular estava à mesa. Ao seu alcance. Ligado com a bateria<br />

necessária. Inútil para Maria. Quem sabe dali alguns dias descobriria um<br />

número conhecido para ligar. A mulher cansada – pensativa – recostou seu<br />

corpo em sua mobília ouvindo tão somente a própria respiração.<br />

25


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Soneto da Moça de Pedra<br />

Paulo Rogério Aires Martins<br />

Mossoró/RN<br />

Guardei-a ansioso<br />

No meu coração adolescente<br />

E no amor fantasioso<br />

Aquele desejo irreverente.<br />

Era a moça da janela.<br />

Por que estaria ela<br />

Encravada na pedra?<br />

Seria uma flor da pedra?<br />

Sua encantadora beleza<br />

Continua mirando a mina<br />

E a exuberante natureza.<br />

Cresci e voltei ao pé da serra<br />

Ela de cabelos altos e tiara<br />

Espera vigilante seu amante tabajara.<br />

https://www.facebook.com/paulorogerio.airesmartins<br />

26


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Um Retrato de Mim<br />

Maria Beatriz Jurado<br />

Porto – Portugal<br />

Esse olhar de luz cristalizada,<br />

Suspenso da volumetria inconsistente<br />

De fiapos celestes em fuga,<br />

É o de hoje,<br />

Como o foi sendo,<br />

Muito embora.<br />

Como outrora,<br />

Falo e calo<br />

Ainda e sempre<br />

Na proa do arrebatamento,<br />

Na agudíssima vibração<br />

Do desalento,<br />

Tolhida de espanto.<br />

Canto<br />

O equilíbrio imprevisto e sublime<br />

Dos versos do Poeta,<br />

Repetindo-me no estremecimento<br />

Entre pausas e estâncias.<br />

Declino<br />

As minhas circunstâncias,<br />

Em toada consoante,<br />

No ritmo persistente,<br />

De quem, de si,<br />

Mais não sabe,<br />

27


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Nem compreende.<br />

Tão sempre a mesma,<br />

Vaga, perplexa, insegura,<br />

Nem de si senhora,<br />

Não se vislumbrando serva;<br />

De tal sorte perdida,<br />

Na vontade, contrafeita,<br />

Falhados os sonhos<br />

Que, agora, por fim,<br />

Enjeita;<br />

Espera na morte, que augura,<br />

O sentido que suspeita.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Maya Rubinger<br />

Belo Horizonte/MG<br />

Xawdoon<br />

Xawdoon, minha terra encantada<br />

País de duendes e fadas<br />

De onde vim<br />

E para onde retorno<br />

Sempre que me sinto só<br />

Não tem endereço<br />

Nem está no mapa<br />

Xawdoon é magia<br />

Melodia<br />

E meu guia é o coração<br />

Sua beleza<br />

Irradia pureza<br />

Da criança que habita em mim<br />

Lá encontro a inocência da infância<br />

Minha infância<br />

Meu pequeno mundo!<br />

Não temos shopping<br />

Nem ricos caros de luxo<br />

A beleza de lá<br />

É como a simplicidade e a pureza<br />

Da poesia de Vinícius de Morais<br />

Ah, minha terra amada<br />

Meus sonhos de menina<br />

Que desejo profundo de te reencontrar...<br />

Mas os anjos diziam<br />

Que só as crianças<br />

Possuíam a chave de seus imensos portões<br />

O que faço agora<br />

Pra voltar a infância?<br />

Ou será que Xawdoon<br />

Cresceu dentro de mim?<br />

www.memoriasdexawdoon.blogspot.com<br />

29


3ª <strong>Edição</strong><br />

Ele Mora Ali - Day Santana<br />

Hoje Não Será Amanhã - Flora Salvador Tito<br />

Mãe Meu Porto Seguro - Igor Rodrigues Santos<br />

Não é Tempo de Morrer - Maroel Bispo<br />

O Poço - Gerson Machado de Avillez<br />

Podridão de Partículas - Morphine Epiphany


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Day Santana<br />

São Paulo/SP<br />

Ele Mora Ali<br />

Ele mora ali, só pode ser ele mora dentro do peito dela. Acredito que já tenha<br />

criado um lugar bem quentinho e aconchegante pra ficar, porque ele não sai de<br />

lá, de jeito nenhum.<br />

Entra ano e sai ano, os fogos estouram, a vida ganha novas formas, ela fecha<br />

os olhos e faz novos pedidos, mas, ainda assim, ele não sai de lá. Ele mora no<br />

peito, na mente, no coração, acho que em cada parte daquele corpo ele deixou<br />

um pedacinho, ela já tentou varrer a casa da alma e limpar cada espaço, mas<br />

ele parece àquelas sujeiras que impregnam.<br />

Ela não consegue esquecer, não consegue não pensar a cada manha, vive<br />

fazendo comparações inúteis e todo fim de tarde percebe que está pensando<br />

na possibilidade de tudo ter sido diferente.<br />

Ela não entende nada a respeito desse amor, não consegue compreender o<br />

porquê de tanta obsessão, já se passaram tantos anos, nada se viveu, foram<br />

apenas passagens, sonhos interrompidos, sonhos dela, desejos dela,<br />

momentos dela. Talvez ele nunca tenha participado verdadeiramente de tudo,<br />

ela crê que bem no fundo ele não participou de nada.<br />

Ele já te esqueceu menina, ele nem se lembra mais do toque da sua mão na<br />

dele, não lembra daquele abraço e nem do seu cheiro. Ele não arriscaria contar<br />

mais nada sobre aquela conversa, ele já te esqueceu.<br />

http://dadaysantana.blogspot.com.br/<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Hoje Não Será Amanhã<br />

Flora Salvador Tito<br />

Luanda - Angola<br />

Hoje não será amanhã<br />

Colho do teu néctar<br />

Sem esperar que seques<br />

Garantindo meu coração<br />

Hoje não será amanhã!<br />

Disseram-te que sou perverso<br />

Com um ferrão deixo tenso<br />

Tudo para que fiques longe<br />

Pois, elas gostam do meu mel<br />

Hoje não será amanhã!<br />

Não espero a tua vinda<br />

Em noite sem luar<br />

Debruço-me ao teu encontro<br />

Com cansaços e ardores<br />

Hoje não será amanhã!<br />

Hoje é o dia<br />

Amortalhado chuvoso ou triste<br />

Não importa que hoje seja qualquer coisa triste<br />

Corre-te um rio dos olhos<br />

Em fim…<br />

Hoje não será amanhã!<br />

Certezas firmes e belas<br />

Que nem os olhos podem negar<br />

Se te pedirem amor<br />

Entrega-te como for<br />

Como guerreiro a sua espada<br />

O amor és tu, não eu<br />

E o hoje não será amanhã.<br />

32


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Mãe Meu Porto Seguro<br />

Igor Rodrigues Santos<br />

Minha mãe que me ensinou a sorrir<br />

Minha mãe que tanto amo<br />

Você é, e sempre será a razão do meu viver<br />

É por ti que ao chora eu chamo<br />

Quando sinto frio e dor, quando tenho fome, te chamo<br />

Quando tenho medo, quando meu mundo está vazio<br />

É você que com seu amor o preenche<br />

Quando meu quarto está escuro<br />

Logo ele é iluminado com seu brilho<br />

Suas doces palavras sempre me trazem paz<br />

Suas mãos me guiam e me encontram quando estou perdida<br />

Minha mãe, hoje é seu dia, e é com muita alegria<br />

Que quero te dizer,<br />

Que se eu tiver que um dia renascer<br />

Quero ser outra vez sua filha<br />

E ter a chance de poder viver<br />

Do jeitinho que até agora vivi com você<br />

33


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Maroel Bispo<br />

Feira de Santana/BA<br />

Não é Tempo de Morrer<br />

Que vontade louca de sumir<br />

O Meu destino mesmo é não ir<br />

Não vou por medo das alturas<br />

Não vou e mergulho nas agruras<br />

É assim a minha simples vida<br />

Conduzida pelos ditames da lida<br />

Agora é tarde, mas não morri<br />

Eu fui moído mas eu persisti<br />

Ignorante, percebi logo meu fim<br />

Antevi o futuro e disse a mim:<br />

Volta! Volta! Que queres fazer?<br />

Volta! Não é tempo de morrer<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

O Poço<br />

Gerson Machado de Avillez<br />

Rio de Janeiro<br />

"O misticismo surge da intolerável dispariedade entre imensidão de seus desejos e a<br />

estreteza de sua realidade."<br />

Miguel de Unamuno<br />

João Silveria fintava o céu estrelado cujo fulgor do luar cortava brilhando<br />

seus olhos num descontento final, fintava o vazio de seu derradeiro destino<br />

compelido por um desejo banal. João então relembrou toda sua história até ali,<br />

naquele poço ao ser traído e atraído por seus próprios desejos.<br />

Sua vida e a história ligava-se aquele lugar, estavam entrelaçadas com a<br />

incógnita história daquele poço erguido em imemoráveis tempos. Para alguns<br />

obra do demônio, era uma obra o qual remetia a tempos antecedentes a de<br />

Portugal rezava a lenda. Poderia ser como uma lenda qualquer de poço dos<br />

desejos, mas aquele era de testemunho combalido não somente por sua<br />

origem jamais descortinada, mas por realizar todos os desejos de seus<br />

pedintes.<br />

Assim João abraçou o mesmo e por meses depositava-lhe os poucos réis<br />

que lhe sobravam, e aqui está sua história.<br />

João era um negro alto e de físico vigoroso pelo trabalho duro como<br />

ajudante de ferreiro, pertencente a uma geração de negros livres ante uma<br />

anterior de escravos fora afortunado agraciado pela lei do ventre livre. Tinha<br />

olhos negros e profundos, mas um sorriso luminoso principalmente ante seu<br />

35


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

alvo de afeto, Justine, uma jovem e formosa moça filha de Joaquim, o ferreiro<br />

dono do lugar.<br />

O fato é que João perdido em seu platonismo pela jovem temia nunca<br />

poder conquistar seu afeto e amor sem as virtudes financeiras dos abastados<br />

brancos e por isso apelou ao poço por meses a fio. Poço, pai indireto de muitos<br />

segundo seu pai, que lhe contava as histórias desde a tenra idade.<br />

De certo muitos testemunhavam a favor de um misticismo envolvendo o<br />

poço de maneira que o senhor de seu pai, Zulu Silveira, apenas logrou sucesso<br />

com o mesmo. Vindo pra terras de pindorama, falido e condenado pela coroa,<br />

pagou por seus pecados em terras tupiniquins até que visando tirar do papel<br />

um projeto de moinho e fábrica de farinha clamou ao poço dando-lhe<br />

oferendas de dobrões por escravos que o executassem. Assim veio a ele dado<br />

por um amigo, escravos como Zulu Silveira, escravos que compelidos ao<br />

trabalho edificaram o projeto de seu senhor, Emmanuel Nogueira.<br />

Porém, extenuado das longas jornadas de servidão, Zulu Silveira clamava<br />

em seu âmago íntimo pelo descanso da liberdade e em segredo pediu ao poço,<br />

com poucos dobrões custosos, por uma família livre. Assim fora que<br />

engravidou sua mulher de João Silveria quando ainda no percurso da gravidez<br />

se anunciou a lei do ventre livre e com notável esperança, Zulu viu se formar<br />

no ventre da jovem negra o futuro de uma família livre através de João<br />

Silveira.<br />

João cresceu ouvindo as histórias do famigerado poço que estava em<br />

meio a uma densa floresta no meio do nada, e quando cresceu seu pai pediu<br />

para que ele vivesse o que nunca viveu. Fosse ao sabor do vendo que lhe<br />

desvelaria os caminhos da liberdade e lhe dissesse aonde eles deram, pois<br />

João teria como senhor apenas Deus.<br />

Porém, com temor João viu sua liberdade cerceada pelas limitações<br />

36


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

financeiras impostas pela sociedade, assim fugiu ao amor por Justine a quem<br />

fintava seus cachos dourados em segredo, amar era o significado mais cheio<br />

de ternura de sua liberdade, ainda que um amor platônico e meio a sua<br />

malfadada desventura financeira.<br />

A jovem e bela Justine também teria sido fruto do ocaso do poço ao luar,<br />

seu patrão, o ferreiro Joaquim contava-lhe que ao deflorar sua amada mulher<br />

descobriu que ela era estéril. Assim Joaquim clamou ao Deus do alto e o poço<br />

do baixo o qual a fundura não se podia desvelar, depositou toda semana um<br />

dobrão naquele poço até que com os meses a resposta lhe sobreveio pela<br />

esperada gravidez de sua mulher. Joaquim que conhecia terras inglesas assim<br />

batizou Justine por considerar justiça e gracejo do insondável poço o qual<br />

somente se poderia vislumbrar pelo ribombar dos sons dos dobrões caindo em<br />

seu fundo.<br />

Muitas eram as histórias de desejos atendidos por coincidência e sorte ou<br />

destino dos deuses e orixás. Mas João ainda que um crente no Deus dos<br />

cristãos passou lá depositar moedas junto com sua fé, na esperança de que<br />

seu desejo se concretizasse.<br />

Durante o primeiro mês João passou depositar todos os sábados suas<br />

finanças e esperanças, mas como num infortúnio não teve respostas a não ser<br />

um agourento silêncio do poço. Assim passou-se dois meses e mesmo quando<br />

as trevas da noite se adensavam João passou a depositar e depositar.<br />

Passou-se então quatro meses, cinco e seis até que numa noite sob a lua<br />

cheia João parecia exasperado com aquele lugar. Depositou suas moedas até a<br />

última o fundo tocar e murmurou e depois praguejou contra o infortúnio do<br />

poço que tragou por gerações passadas adentro fortunas. Tomado então por<br />

uma perplexidade mesclada a fúria inclinou-se sob a abertura na esperança de<br />

que o fulgor do luar lhe descortinasse algo. Ouviu água, mas apenas de forma<br />

37


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

pardacenta consegui contemplar até que o muro que lhe escorava cedeu até o<br />

fundo a seu derradeiro fim.<br />

Seu corpo estava estropiado e contorcido por fissuras e fraturas expostas<br />

quando despertou a fintar o céu estrelado e o luar pela abertura do poço de<br />

onde caiu. Sentiu então desvanecer-se suas forças junto ao sangue que<br />

escorria de seu corpo junto as fontes cristalinas. João estava em seu fundo e<br />

como último esforço virou-se para o lado e contemplo infindáveis dobrões,<br />

moedas de todas gerações acumuladas como num grande cofre natural. Seu<br />

sangue que manchava as imaculadas águas corria entre as peças de ouro e<br />

prata. Naquele momento ele finalmente compreendeu, o poço que lhe atraiu,<br />

não lhe traiu, mas apenas cumpriu o que ele sempre clamou em sigilo<br />

insondável, morrer rico. Lá estava ele agora cercado de toda riqueza que<br />

sonhou e clamou, o depósito de inúmeros pedidos e desejos cujas histórias<br />

nunca conheceu, mas que de um modo a outro o levou inexoravelmente até<br />

aquele momento.<br />

http://www.facebook.com/Filoversismo<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Podridão de Partículas<br />

Morphine Epiphany<br />

São Paulo/SP<br />

Pura infecção generalizando<br />

as entranhas<br />

E os meus pés na<br />

imundície destas ruas<br />

Não se diferem do odor<br />

de cada esgoto<br />

Abutres possuem o amor pela carne<br />

Eles desejam nossos intestinos<br />

saboreiam pústulas, enfermidade<br />

e depois vasculham outro moribundo<br />

Muitas pessoas não conseguem cheirar<br />

as partículas podres da alma<br />

Eu saio pelas vitrines<br />

com a podridão por excelência<br />

Esse ranço de pecados,<br />

pus e desprezo<br />

Sim, essa invisível projeção fede muito<br />

Centenas de pessoas tentam perfumar,<br />

39


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

encobrir e até plastificar a alma<br />

Mas, o meu faro alimentado pelo pior<br />

sempre as persegue nas calçadas<br />

Tentam embelezar seus assassinatos<br />

Não sabem que alma<br />

é uma espécie de privada<br />

Quando você deposita mentiras,<br />

a descarga te suga<br />

Não sabem que corpo<br />

é um amontoado de vermes<br />

Quando você aplica farsa,<br />

ele acaba corroendo.<br />

https://www.facebook.com/cristiane.v.defarias<br />

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4ª <strong>Edição</strong><br />

Bob Dylan: Inevitável Interseção Entre Lírica Musical E Literatura - Gilmar<br />

Duarte Rocha<br />

Conversa Barata - Aparecida Gianello dos Santos<br />

Coração de Uma Mulher - Lenilson de Pontes Silva<br />

Dig a Pony (revisitado) - Tim Soares<br />

O Estrangeiro - Regina Ruth Rincon Caires<br />

Paixão Proibida - África Gomes


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Bob Dylan: Inevitável Interseção Entre Lírica Musical E<br />

Literatura<br />

Gilmar Duarte Rocha<br />

Brasília/DF<br />

Sou suspeito em dizer que para mim foi mais do que justa a<br />

premiação do Nobel de Literatura deste ano para o compositor, cantor,<br />

poeta e escritor norte-americano Bob Dylan. A suspeição decorre do fato<br />

de acompanhar a carreira desse músico e poeta desde o meu tempo de<br />

adolescência, quando passei a colecionar seus discos e a acompanhar a<br />

sua carreira, ou melhor, resgatar um fecundo legado que ele já havia<br />

produzidos nos torrenciais, fecundos e caudalosos culturais anos<br />

sessenta.<br />

Como morava à época no interior da Bahia, no tempo em que a<br />

internet ainda residia na cabeça de algum marciano, não era nada fácil<br />

conseguir obra de artista ou escritor de vanguarda: tinha-se que realizar<br />

autênticas peregrinações pelos centros urbanos onde se respirava algum<br />

tipo de cultura.<br />

Com a mudança para a capital, e o consequente envolvimento com<br />

jovens colegas universitários também interessados em tudo que se<br />

denotava novo e avant-garde, fui compreendendo, que, por trás das<br />

baladas temperadas com blues, rock & roll e música americana de raiz,<br />

existiam letras complexas, bastante distintas de tudo aquilo que<br />

entendíamos como lírica de uma melodia. Havia fogo por trás daquela<br />

fumaça intrigante.<br />

Pois bem, após o anúncio da láurea deste ano, ponderei sobre um<br />

depoimento do periódico católico L’Osservatore Romano acerca da<br />

premiação: “... compositor de música popular não é literato...”.<br />

O prestigiado veículo de comunicação do Vaticano talvez tenha as<br />

suas razões em proceder tal asseveração. No entanto, cabe salientar que<br />

Bob Dylan, cujo nome de batismo é Robert Allen Zimmerman, filho e<br />

neto de judeus imigrantes russos, não é o primeiro melodista a ser<br />

contemplado com o renomado prêmio. Rabindranath Tagore, músico e<br />

poeta prosador indiano, já amealhou tal titulação na edição de 1913. E<br />

não foi contestado por ninguém pelo que eu saiba.<br />

Independente da polêmica do estereótipo, se compositor popular é ou<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

não escritor, jogo as cartas na mesa e ponho em cheque até mesmo a<br />

justificativa da Academia Sueca para a concessão do galardão: “... por<br />

ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição da<br />

música americana”<br />

Achei falto nessa alegação do júri de Estocolmo. Penso que, para ter<br />

premiado Bob Dylan com uma honraria que um Guimarães Rosa, um<br />

Jorge Amado, um Manuel Bandeira, um Graciliano Ramos – apenas para<br />

citar alguns expoentes das letras brasileiras – não tiveram a graça de<br />

obtê-la, poder-se-ia ir além, na justificação, talvez fazendo referência às<br />

aleias brumosas de Paris, no tempo de Rimbaud, de Baudelaire, de<br />

Verlaine, de Mallarmé, do simbolismo francês onde o nosso personagem<br />

americano bebeu água da fonte quando jovem.<br />

Ou até mesmo revisitar os anos sessenta, percorrendo os becos de<br />

Greenwich Village, os pubs e bares sombrios do Soho, do sul da ilha de<br />

Manhattan, do Chelsea, onde o músico e poeta iniciante Robert<br />

Zimmerman conviveu com expoentes do movimento poético chamado<br />

beat (ou beatnik) como Allen Grinsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory<br />

Corso e Michael MacClure, e absorveu toda a efervescência daquela<br />

emergente e multiforme poesia como uma verdadeira esponja humana,<br />

amalgamando versos de extrema inspiração com o ritmo frenético da<br />

música americana de raiz negra.<br />

Talvez aqui resida uma explicação melhor para a distinção do Nobel.<br />

Tem-se de um lado um oceano de ideias em forma de letras. De outro,<br />

um rio caudaloso pleno de versos musicais. Deduz-se, por corolário, que<br />

o estuário desse fluxo represente toda a riqueza que o espírito literário<br />

requer.<br />

Enfim, outro dia, queimando os meus neurônios para dar vida a um<br />

personagem do meu próximo romance em progresso, dei de encontro<br />

com os versos de uma música de Bob Dylan intitulada Please Crawled<br />

Out Your Window:<br />

He sits in your room, his tomb with a fist full of tacks<br />

Preoccupied with his vengeance<br />

Cursin' the dead that can't answer him back<br />

You know that he has no intentions<br />

Of looking your way, unless it's to say<br />

That he needs you to test his inventions<br />

Hey, come crawl out your window<br />

Use your hands and legs it won't ruin you<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

How can you say he will haunt you?<br />

You can go back to him any time you want to<br />

…<br />

He looks so righteous while your face is so changed<br />

As you sit on the box you keep him in<br />

While his genocide fools and friends rearrange<br />

Their religion of the little ten women<br />

That backs up their views but your face is so bruised<br />

Come on out the dark is just beginning<br />

...<br />

Peço escusas em não correr o risco de traduzir o trecho em<br />

português, mas o coloquei apenas para ilustrar o luzidio que a<br />

mensagem dessa canção (no seu inteiro teor) fez invadir o meu espírito<br />

e abriu a minha mente para enriquecer o complexo personagem que já<br />

vinha trabalhando há algum tempo.<br />

Congratulações a Bob Dylan. Congratulações a todos nós, literatos,<br />

que não dispensam fonte alguma de inspiração e conhecimento, venha<br />

ela dos velhos livros de cavalaria da Idade Média, dos sermões de Padre<br />

Vieira, dos autos de cordel, do I-Ching, de Camões, dos livros do<br />

apóstolo Paulo, das canções de vaqueiro tão bem absorvidas e traduzidas<br />

por Guimarães Rosa, da prosa e poesia genial de Jorge Luís Borges, dos<br />

sambas do terreiro de Tia Ciata, da simplicidade de Mark Twain, da<br />

complexidade de James Joyce, da Grécia Antiga, fecundo berço da<br />

civilização ocidental.<br />

Penso que um paradigma cultural foi rompido nessa outorga. Afinal,<br />

o universo resume-se tão somente a esse em que vivemos?<br />

44


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Conversa Barata<br />

Aparecida Gianello dos Santos<br />

Martinópolis/SP<br />

Cientistas afirmam que elas sobreviveram às bombas nucleares que<br />

caíram sobre Hiroshima e Nagasaki, vivem há mais de trezentos milhões<br />

de anos, além de somarem cerca de cinco mil espécies no mundo e<br />

poderem ficar quarenta minutos sem respirar. No reino dos insetos, se<br />

existe forte candidato a dominar o mundo, é a barata.<br />

Quando criança, meu primeiro trauma com baratas foi saber que<br />

voavam. Tudo por causa daquela musiquinha que cantavam na escola:<br />

“Havia uma barata na careca do vovô, assim que ela me viu bateu asas e<br />

voou...”. Na adolescência, eu dormia com um mosquiteiro na cama (não<br />

por causa dos mosquitos). Mesmo assim, uma noite, acordei com uma<br />

baratona dentro do véu. Quase tive um ataque ao imaginá-la passeando<br />

pelo meu corpo enquanto eu dormia. Pelas horas seguintes tomei três<br />

banhos, escovei os dentes uma porção de vezes e ainda dedetizei o<br />

quarto.<br />

Certa vez, cortei a cabeça de uma barata ao tentar matá-la e ela<br />

continuou andando. O que explica a Ciência: o cérebro delas fica em<br />

seus corpos. Está aí mais uma coisa incrível sobre esses bichos. E ainda,<br />

aquela só não morreu de fome em nove dias (tempo que sobrevive uma<br />

batata com a cabeça cortada), porque eu a matei bem morta segundos<br />

depois da primeira falha tentativa.<br />

45


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Conheci um sujeito na internet tão fã de baratas que Jerry O’ Connell,<br />

em “Joe e as baratas”, o invejaria. Só de ver uma imagem de barata no<br />

lugar da foto de perfil, logo pensei: “não dá pra confiar nesse cara...”. Ele<br />

sabia tudo sobre as criaturas, tinha um arsenal de imagens e artigos e,<br />

pasmem, fazia até poemas a elas. Isso sim é esquisitice. E eu aqui<br />

preocupada com uma fobia...<br />

Para encerrar esta conversa barata e desbaratar de vez esse meu medo<br />

de baratas, vou contar o pior lance que tive com uma (faz parte da<br />

terapia...). Era tarte quando, numa de minhas últimas ações ritualísticas<br />

antes de ir para a cama, ao abrir o armário para pegar minha escova de<br />

dentes, me deparei com a mais nojenta de todas as baratas da face da<br />

Terra. Fiquei sem ação, acho até que ela me hipnotizou, desaparecendo<br />

em seguida. Tudo bem, nada de pânico. Desinfetei a escova (não são<br />

baratas) e voltei ao meu ritual... Bochecho, uma espiada no espelho e,<br />

de repente, vejo a bichona subindo pelos meus cabelos. Senti um arrepio<br />

eletrizante que ia da nuca à última vértebra. Eu não sabia se gritava,<br />

sapateava ou descabelava. Fiz tudo isso junto, o que me impossibilitou<br />

de ver para onde havia ido aquele bicho dos infernos.<br />

A minha escova eu vi, minutos depois, boiando... dentro da privada.E, a<br />

saber, minha “catsaridafobia” ainda resiste. Bem como as baratas.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Coração de Uma Mulher<br />

Lenilson de Pontes Silva<br />

Pedras de Fogo/PB<br />

Carinhoso, num pode ficar triste,<br />

Cristalino para os olhos de todos.<br />

Não há coração mais puro<br />

Com tanto afeto e acalanto,<br />

E sei que por mais sagrado,<br />

Não há de ser inventado.<br />

Que não sofras tanto<br />

Possamos acreditar<br />

Que mal irá passar<br />

E todos ficaram juntos,<br />

Seu coração e o mundo.<br />

Queremos-te por perto<br />

E sempre te queremos.<br />

Por quanto tempo passe,<br />

Nunca haverá um coração puro,<br />

Porque o seu coração é único,<br />

É um passaporte para o amor...<br />

É o que precisa este mundo.<br />

47


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Dig a Pony (revisitado)<br />

Tim Soares<br />

Florianópolis/SC<br />

Façamos um brinde<br />

À tudo o que vamos perder<br />

Às mulheres que nunca vamos ter<br />

E aquelas que nos farão sofrer<br />

Aos abraços que serão negados<br />

Aos braços<br />

Aos beijos que serão negados<br />

Aos lábios<br />

Façamos um brinde<br />

Às camas de hospitais<br />

Aos velórios e funerais<br />

Ao amor mal feito<br />

Aos flertes<br />

E aos vulgares trejeitos<br />

À cocaína<br />

À heroína<br />

E à benzedrina<br />

À cachaça de graça<br />

À densa fumaça<br />

E à desgraça<br />

Ao maquinário leproso dos dias<br />

Aos copos meio vazios<br />

E os vazios de todos nós<br />

Façamos um brinde, meus amigos<br />

Ao final de todas essas hecatombes particulares<br />

Com um pouco de sorte<br />

Sairemos todos ilesos<br />

E um pouco mais fortes<br />

48


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Regina Ruth Rincon Caires<br />

Araçatuba/SP<br />

O Estrangeiro<br />

Escada de madeira, avariada. Puída como tudo o que a vista alcança dali.<br />

Cassiano, acomodado num degrau, tronco dobrado sobre os joelhos, esfrega o<br />

dedo do pé na saliência de um prego pronto a se soltar.<br />

Na cabecinha de onze anos, é um vaivém de imagens que analista<br />

nenhum conseguiria ordenar. No peito, é só amargura. Sente-se como um<br />

alienígena, pior que isso, um terrestre desfocado. Não tem nada a ver com<br />

tudo aquilo. A cidade, o mar, a vida da favela... Tudo lhe é terrivelmente<br />

estranho! Nem mesmo estes dez meses o deixaram mais familiarizado. Não se<br />

afina, é sempre um vendido!<br />

Bem que avisara o pai... Não é vida para eles! Como poderia uma família da<br />

roça, rude, simplória, acostumar-se numa cidade daquele tamanho?! Pode até<br />

ser uma cidade linda, maravilhosa, cheia de modernices, mas os problemas<br />

que lhes traz a tornam uma cidade madrasta. Que saudade do seu cantinho!<br />

Chega a lhe doer no peito!<br />

Sente uma pena tão grande do pai! Está cada dia mais magro, consumido,<br />

desesperado. É muito mais difícil do que imaginara! Com a graça de Deus, a<br />

mãe havia conseguido colocação na casa de uma dona, lá na cidade. Cuida da<br />

roupa e da arrumação da casa. Sai ainda escuro, e volta já à noitinha. Sempre<br />

cansada, desgastada.<br />

A irmã, no viço dos seus dezesseis anos, não consegue trabalho. Cuida do<br />

barraco, displicentemente, e dorme quase o dia todo. Quando escurece, veste<br />

a mesma roupa surrada de todas as noites, e sai. Sempre tem uma amiga para<br />

visitar, um emprego para ver... Sempre arruma motivo para sair, se bem que o<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

pai já não está engolindo tudo isso! Cassiano percebe que o velho fica ainda<br />

mais abatido quando, vendo a filha sair, encosta-se à porta do barraco e deixa<br />

os olhos correrem pela escada, vendo-a desaparecer na penumbra, lá<br />

embaixo. Se pelo menos não pintasse tanto o rosto, não usasse aquela água<br />

de cheiro tão forte!<br />

Cassiano entende tudo, não pode afirmar nada, mas tem a liberdade de, pelo<br />

menos em pensamento, maquinar suas premissas. Aliás, é isso que faz o<br />

tempo todo! A lógica é uma constante. Tem os pés no chão. Não é dado a<br />

aventuras. Por ele nunca teriam arredado pé do mato. Lá estava a dignidade.<br />

Pobreza não é a morte, pior que ela é a indignidade da vida que levam agora.<br />

Pai teimoso! Não é teimoso... É descabidamente sonhador, só isso! Pensava ter<br />

na cidade grande a mola mágica para o sucesso. Não vacilou em vender toda a<br />

colheita, pedir as contas, botar os trens num caminhãozinho alugado e rumar<br />

para cá. Nem precisa dizer que o dinheiro não deu nem para o começo! Foi<br />

suficiente apenas para comprar o barraco. Chegou todo animado e sonhou até<br />

com a compra de uma casa! Andava de corretor em corretor, com o dinheiro<br />

embolado nos bolsos. Não demorou a se decepcionar e tentar, pelo menos<br />

tentar, pôr os pés no chão.<br />

E foi este barraco que conseguiu pagar. Desde então, só Deus sabe da<br />

penúria. A comida, minguada, como podia... Agora, com o emprego da mãe,<br />

pelo menos pão não falta. Leite? Só no sonho... Perceptível até para olhos<br />

menos detalhistas, a fome que os aflige. A magreza cadavérica do pai, o<br />

raquitismo de Cassiano, com braços demasiadamente longos, evidenciados<br />

pela extrema fragilidade do corpo. As pernas, sequiosas de carne, deixam os<br />

joelhos saltados, salientes, desproporcionais. O calção nem lhe para na cintura,<br />

vive caído, à altura dos quadris e, consequentemente, quase lhe cobrindo os<br />

joelhos. Figura triste aos olhos! Tremendamente frágil, chegando mesmo a<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

instigar pena.<br />

Mais triste ainda é sua inércia. Passa o tempo todo ali, naquela mesma escada,<br />

olhando sem perceber, o sobe-e-desce das pessoas. Às vezes encolhe-se,<br />

tomba o corpo de lado para dar lugar a um passante mais descuidado,<br />

estabanado. Dali só sai para ir ao barraco pegar um pão, e quando escurece.<br />

Nem à escola vai! O pai, aborrecido, decepcionado, achou melhor nem tentar a<br />

matrícula. A escola do sertão era tão fraca que Cassiano não tem condição de<br />

acompanhar o estudo daqui.<br />

Cassiano até que gostou! Não tem mesmo ideia pra aprender nada, ainda mais<br />

aqui! Só faltava ter que ir pra escola! Seria em outra situação e mais uma vez,<br />

um peixe fora d’água.<br />

Em meio a tudo isso, nessa aflição, ainda tem o direito de ficar ali, sentado,<br />

parado. Graças a Deus não é exigido pra nada! Não tem ânimo mesmo! Se<br />

bem que é torturante ficar ali, remoendo todos aqueles martírios na cabeça,<br />

mas que fazer?! Dos males, o menor... Duro mesmo deve ser o dilema do pai!<br />

Afinal, ele deve se sentir responsável por todo esse transtorno.<br />

Cassiano pensa no pai... Hoje ele saiu cedo, como quase todos os dias. Nem<br />

imagina o que ele faz pelas ruas. Diz que vai à procura de emprego, mas...<br />

Inutilmente. Sempre volta arrasado, mais desiludido que quando saiu.<br />

No começo, quando chegou, Cassiano ainda se animava em subir, à noite, até<br />

o barraco de Dona Guidinha e passar os olhos pela televisão. Mas eram tantas<br />

crianças que se juntavam à porta, faziam tanto barulho que mal dava para<br />

Cassiano ouvir o som que saia do aparelho. Não podia reclamar, ia contra a<br />

corrente e ali no morro, ou se é mais um ou está morto. Cassiano preferiu se<br />

calar. Conhecia bem a política do morro e, aos poucos, foi abandonando o<br />

passatempo. Agora, bastava escurecer e ele já se deitava.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

É isso que não conseguia engolir! A violência da favela. O perigo iminente e<br />

latente do morro... É assustador! Coisa comum é ver brigas, tiros, mortes.<br />

Nem sabe quantos garotos da sua idade morreram por aqui nestes últimos<br />

meses! É rotina... Toda manhã os corpos aparecem jogados, perfurados por<br />

balas ou castigados por pancadas. Comum acontecer e difícil suportar...<br />

Impossível mesmo! Cassiano fica apavorado, temeroso, perdido.<br />

Sua irmã chega à porta do barraco. Espreguiça o corpo demoradamente.<br />

Dormiu até agora. Já é quase noite! Está chegando a hora de Cassiano entrar.<br />

Sente vontade de esperar a mãe, ali. Mas, é perigoso, não convém.<br />

O pai está demorando mais que o costume! Cassiano não se sente confortado.<br />

Gosta de ter o pai por perto quando a noite chega. Não tem remédio... É noite,<br />

e o jeito é entrar.<br />

Cassiano ergue o corpo, olha novamente lá embaixo, no pé da escada. Nada...<br />

Nenhum dos dois aponta. Entra no barraco. A irmã, exalando um cheiro de flor,<br />

enjoativo, tem um espelho nas mãos e passa, repetidas vezes, o batom nos<br />

lábios. É bonita a danada! Cassiano olha-a demoradamente e pensa em como<br />

seria bom se ela tivesse metade da beleza em juízo. No mínimo sofreria menos<br />

no futuro. Esse tipo de vida nunca acaba bem, sempre deixa marcas e<br />

dissabores profundos.<br />

Está assim, pensando, quando ouve a porta do barraco bater. A danada já saiu<br />

e ele nem tinha percebido!<br />

Cassiano estremece quando se lembra de que está sozinho. Bem que a mãe<br />

podia chegar logo! Olha pela fresta da porta, mas nada vê. Está muito escuro<br />

lá fora... Senta-se no banco da cozinha e não consegue ficar sereno. Dentro do<br />

peito, a aflição, o desespero, o medo. Não quer ficar sozinho... Por que sua<br />

irmã não ficou com ele até a mãe chegar? Menina matreira! Pensa em contar<br />

tudo ao pai. Por que ele também não chega?!<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Cassiano resolve se deitar. Quem sabe o sono vem e leva toda essa aflição.<br />

Amanhã é outro dia...<br />

Bobagem! Nem deitado consegue sossego. A cama é um suplício quando está<br />

ansioso! Parece que vem vindo alguém... Ainda bem, é a mãe!<br />

Tem vontade de correr, jogar-se em seus braços, esquecer toda aquela<br />

angústia, mas não tem costume! Não quer que ela saiba que sentiu medo. Já<br />

está tão baqueada, chega a dar pena! Ele não se acha no direito de levar<br />

queixume algum até ela. Tem de ajudá-la, isto sim!<br />

- Cassiano, cadê o pai?<br />

- Ainda não voltou. Saiu cedo e não falou nada...<br />

- E Clarinha?<br />

- Já saiu. Deve ter ido na casa...<br />

- Deixa pra lá, filho... Já comeu?<br />

- Já, mãe.<br />

Nem bem entra e pega na arrumação. Clarinha, ultimamente, tem sido mais<br />

desleixada com a casa. Está uma baderna!<br />

Cassiano percebe que a mãe, a todo instante, olha pela fresta da porta.<br />

Também está preocupada com a demora do pai. Que será que aconteceu?<br />

Nunca faz isso! Sabe que a família se sente desprotegida à noite, sem ele. Seu<br />

pai podia ser aventureiro, mas tinha muito cuidado com eles. Não fazia nada, é<br />

verdade, mas estava sempre presente. Não tinha vícios, ainda bem! Na<br />

situação em que estão agora, seria um caos ainda maior se ele não fosse<br />

comedido! Não bebia nunca. Admirável em meio a tantas decepções, o pai<br />

mantinha caráter firme feito rocha. Não buscava refúgio em vício algum, nem<br />

em seus sonhos se refugiava mais! Hoje tem os pés fincados no chão, os<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

devaneios se foram... Está sem saída! Se ao menos arrumasse dinheiro para<br />

voltarem para o mato! Mas, como?! Talvez até tenha meios para isso, mas o<br />

pior de tudo é que perdeu o ânimo! Tem medo agora... Não quer parecer<br />

aventureiro, e sofre terrivelmente. Cassiano torce por essa aventura. De<br />

voltar... Quer voltar. É tudo o que mais deseja! Que adianta? Nunca terá<br />

coragem de conversar isso com o pai. Imagina!<br />

As horas vão correndo. Já é noite alta, o morro está quase todo apagado. E,<br />

nada do pai. Que angústia!<br />

A mãe, andando de um lado pro outro, não para de rezar. Cassiano fica mais<br />

aflito diante da insegurança da mãe. Ela, adulta, desprotegida, e ele, como se<br />

sente?!<br />

A madrugada chega, junto com ela, Clarinha. Cara amarrotada. Entra falando<br />

alto, os cabelos num completo desalinho, agitada. É só o tempo de tirar a<br />

roupa, e cai na cama. Nem pergunta pelo pai. Pelo jeito nem tem tino para<br />

isso. Está esquisita!<br />

Cassiano, apesar de aflito, encolhido sob as cobertas, não resiste ao sono e<br />

dorme profundamente.<br />

Acorda sobressaltado com os gritos da mãe. É uma sensação horrorosa! O<br />

coração lhe bate na goela, nem sabe para que lado da cama descer as<br />

pernas... É terrivelmente assustador!<br />

Num instante está na porta do barraco. Os olhos, ofuscados pela claridade do<br />

dia, teimam em não parar abertos. A cabeça, ainda meio atordoada, fica lerda<br />

para perceber o que está acontecendo. Chega perto da escada e olha lá<br />

embaixo. Vê a mãe, debruçada. Há muitas pessoas por perto, mas percebe<br />

que tem alguém deitado no chão. De repente, lembra-se da noite anterior, da<br />

demora do pai... Desce as escadas feito um doido, aos trotes. Difícil abrir<br />

54


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

caminho por entre as pessoas... Antes não tivesse conseguido.<br />

No chão, estirado, pálido feito cera, olhos fixos e semiabertos, o pai. Cassiano<br />

compreende tudo... O pai, morto.<br />

A mãe, ajoelhada ao lado, está calada, perplexa, incrédula. Não chora, apenas<br />

olha. Está como que hipnotizada, sem movimentos.<br />

Cassiano sente o chão fugir, a cabeça rodar, não reconhece ninguém entre os<br />

curiosos. Todos estranhos... Tão estranhos quanto é aquela cidade, aquele<br />

morro, aquele barraco, aquela vida. Sente vontade de gritar, de correr, de<br />

entender. Por que tudo aquilo?! O que está acontecendo?!<br />

Quando cai em si, está sozinho. As pessoas se foram, o corpo do pai levado<br />

não sabe pra onde... Sua mãe... Sua irmã... Cassiano não sabe de nada...<br />

Agora está ali, sentado. Na mesma escada, no mesmo degrau, apenas com os<br />

seus pensamentos. Quem será que o matou? Por quê? O que a vida quis dele?<br />

Perguntas e mais perguntas fervilham em sua cabeça. Inutilmente. É apenas<br />

mais uma morte, como tantas outras. Sem explicação, sem fundamento. No<br />

morro é assim... Ou se é mais um, ou está morto. Ele não quis ser mais um...<br />

Foi só isso!<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

África Gomes<br />

Luanda - Angola<br />

Paixão Proibida<br />

Coração meu!<br />

Hoje decide ir visitar você naquele lugar escuro<br />

Que apagou o seu personagem no futuro<br />

Oh! Meu Deus do céu<br />

Passo dias e noites pensado como-tens indo<br />

Tento sempre procurar teu sorriso em cada canto<br />

E em cada lágrima de pranto<br />

Refugiar o inrefugiado.<br />

Hoje perto de você quero lhe confessar<br />

Que sinto tua falta<br />

Ao passar-me na mente a forma como me deita<br />

Cada toque teu na calada da noite fazia-me desetressar<br />

É triste saber que estas aqui<br />

Mais longe de mim.<br />

Vou partir<br />

Porque com o tempo as magoas já não consigo dividir<br />

Corre,corre,corre como se eu não estivesse aqui<br />

Esse tormento não favorece nosso amor<br />

Por favor!<br />

Vou partir, mais atenção<br />

Sempre estarás no meu coração.<br />

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5ª <strong>Edição</strong><br />

A Espera de Pantera - Daniela Genaro<br />

Aldravias* - Amélia Luz<br />

Antes do Voo - Charles Burck<br />

Atenção às Perguntas - Eduard Traste<br />

Estranho Na Madrugada - Letícia Ucha<br />

Não se Queixe, Cante, Dance, Escreva… - Isabel C S Vargas


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Daniela Genaro<br />

São Paulo/SP<br />

A Espera de Pantera<br />

Novelo de lã em nossas manhãs.<br />

Brincava a gata,<br />

brincavam juntas as duas meninas,<br />

desenrolando dias eternos.<br />

No fim do novelo, o fim daqueles dias<br />

e da brincadeira da gata com as meninas.<br />

Elas voltaram, a gata ficou,<br />

miando no silêncio, a saudade e a esperança.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Amélia Luz<br />

Pirapetinga/MG<br />

Aldravias*<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

*Nota: Aldravia, nova forma de fazer poesia. Seis versos<br />

univocabulares, emoção condensada com liberdade poética. Criada em<br />

Mariana/MG é a forma genuinamente brasileira de fazer poesia.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Charles Burck<br />

Rio de Janeiro<br />

Antes do Voo<br />

A morte parecia um arco-íris que se bandeou para os lados do<br />

firmamento, voou solta, bendizendo a vida<br />

Mas amor chega antes, quando mal o sabemos distinguir, quando mal o<br />

percebemos, é o voo antes do existir do céu<br />

Aprendi a fazer amor com a fusão dos astros,<br />

O cio das estrelas a fomentar o gato, o rabo ao redor do pescoço e o rato<br />

a cantar o Barbeiro de Sevilha<br />

O abismo resaltado ao lado do prumo, o vazio que se impõe, um anseio<br />

do pulo equilibrando a alma que foi antes do corpo<br />

O voo a enrolar os corpos com laços de seda, de sentir orvalhos ao rés<br />

da tarde quando ainda nem floresceram os olhos<br />

O medo em voo difícil a calibrar as asas quando nem desabrocharam as<br />

penas,<br />

O pássaro falou do medo, o amor de voar,<br />

O amor consome o medo, quando não, entala na garganta da alma<br />

A previsão do grito se desfaz no pó da secura do não ser<br />

A queda livre a ameaçar a quietude do ar, a rota intensa dentro do<br />

silêncio do sono<br />

Ao sono que chega, damos os sonhos<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

A compreensão do ato do amor não me traz alentos<br />

A bruxa do mal de amar forja o ato de amor a costurar a boca do sapo<br />

A lua nova que geme de vontade de ser cheia, os meus arrepios que<br />

correm noite adentro feito cavalos de fogos<br />

E eu sozinho no vazio dos argumentos, ao fim do abismo<br />

Assisto o mar de dentro a se quebrar do lado de fora.<br />

https://charlesburck.blogspot.com.br/<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Eduard Traste<br />

Florianópolis/SC<br />

Atenção às Perguntas<br />

- o que você faz? você<br />

não trabalha? não estuda?<br />

não toma banho? não se<br />

barbeia? não escova os dentes<br />

todo santo dia?<br />

e peida sempre alto? e<br />

arrota na mesa? e não vai<br />

à igreja? e não acredita em Deus?<br />

e bebe todo dia? e começa sempre<br />

de manhã? e só termina<br />

quando acaba<br />

contigo? – ela não se calava<br />

depois de ver de perto<br />

minhas cuecas<br />

sujas..<br />

“baby,<br />

sou no máximo<br />

um mínimo<br />

poeta, e olhe<br />

lá..”<br />

e quando ela olhou<br />

eu me fui, ainda em tempo<br />

desta vez..<br />

www.estrAbismo.net<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Letícia Ucha<br />

Estranho Na Madrugada<br />

Porto Alegre/RS<br />

Sábado à noite era o dia que os amigos encontravam-se no bar do posto antes<br />

de irem para a balada.<br />

—Pessoal, sabe aquele vizinho que se mudou para a casa em frente a minha?<br />

Pois, ele anda cada vez mais esquisito... – Disse Nicole<br />

—Lá vem de novo, você com essa história. Deixa para lá. Todo mundo tem<br />

suas esquisitices. – disse Camila dando de ombros, enquanto abria uma lata de<br />

refri.<br />

—Tenho estudado até tarde, e vejo pela janela que ele sai no meio da noite,<br />

sozinho com uma mochila laranja aparentemente sem volume e quando volta<br />

ela está bem cheia. Ai,meu Deus ela está vindo para cá. – disse Nicole<br />

apreensiva. Camila vira-se e vê somente Alberto e Enzo, os dois amigos que<br />

ambas aguardavam na lanchonete.<br />

—É aquele que está com a mochila laranja.<br />

—E aí, onde será a festa hoje? – pergunta Enzo em tom entusiasmado.<br />

—Hoje tem festa da Administração naquela danceteria perto de casa. – disse<br />

Camila<br />

Nicole observava atenta a todos os passos do homem. Este pega um café e vai<br />

sentar-se na mesa ao lado onde os quatro amigos estavam. De canto de olho,<br />

Nicole aproveita que o sujeito levanta para pegar uma revista e vê que de<br />

dentro de sua mochila está aparecendo um cabo de faca.<br />

O homem chega e pergunta porque ela está olhando tanto para suas coisas.<br />

Nicole responde:<br />

—Perdi minha lente de contato, estava procurando ... Ela saltou de repente,<br />

pode estar por aqui. –disse gaguejando.<br />

—Hum... Conheço você de vista, somos vizinhos. Meu nome é Ezequiel. Prazer.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

—Nicole, prazer. – respondeu com a voz trêmula.<br />

—Vamos pagando porque temos ainda que comprar os convites para entrarmos<br />

na festa. –disse Alberto.<br />

Nicole despediu-se e saiu. Enquanto abasteciam o carro, viram o homem<br />

saindo da lanchonete. Uma das repartições estava semi-aberta e ele deixou<br />

cair um saco plástico sem perceber.<br />

—Olha, o cara deixou cair algo. Temos que avisar, pode ser algo importante. Ei,<br />

espera – disse Camila.<br />

Ezequiel não percebe que era para ele o chamado e segue a pé seu caminho.<br />

Ao se aproximarem viram que o saco estava furado e pingando... gotas<br />

vermelhas.!<br />

—Credo, será sangue?. – disse Nicole enquanto via de longe a figura daquele<br />

homem estranho desaparecendo no meio da noite na penumbra da rua mal<br />

iluminada<br />

—Vamos abrir! – disse Camila.<br />

—Você não tem noção mesmo. Imagina , deixar nossas digitais.<br />

—Vamos parar com isso agora! Se for algo suspeito falamos com a polícia. –<br />

disse Alberto já abrindo totalmente o saco plástico.<br />

- São ossos! - gritou Nicole ao ver.<br />

—Quieta! O cara pode voltar e nos perseguir depois. Vamos, falar com o meu<br />

primo Augusto que é médico ele saberá dizer que tipo de ossos são.<br />

Enzo, ligou para o primo que estava de plantão naquela noite. Combinaram de<br />

encontrarem-se no hospital.<br />

Chegaram e contaram pessoalmente a história para Augusto. Ao olhar os<br />

ossos, Augusto franze a testa com ar sério e diz :<br />

—Vocês precisam saber de algo muito sério : esses ossos são.... de animais.<br />

Posso garantir que não são ossos humanos. Fiquem tranquilos disse Augusto<br />

com leve sorriso irônico e completou: -- que suspeita maluca de vocês.<br />

—Já que você tem certeza ficamos tranquilos. Desconfiamos porque afinal<br />

alguém andar armado com facão e saco pingando sangue é estranho. – disse<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Enzo.<br />

—Bem , eu vou ter que seguir no meu plantão. Despediram-se.<br />

—Gente agora a essa hora não terá mais convites para festa. Vamos ver um<br />

DVD em casa mesmo? O que acham?<br />

Todos resolveram ir para casa de Nicole que tinha uma enorme coleção de<br />

filmes.<br />

Ao chegarem lá , encontraram os pais de Nicole desesperados.<br />

—A Alice sumiu. Passamos pelo quarto dela, e está vazio. Já procuramos por<br />

toda casa.<br />

—Já viram se ela está no jardim. A última vez que ela teve sonambulismo foi<br />

encontrada próxima da piscina.<br />

—Sim, já procurei. Nem me lembre disso, depois deste susto a piscina está<br />

sempre com rede.<br />

Nicole virou-se para os amigos e falou:.<br />

—Meus pais ficam assustados mas ela sempre aparece. Vou ter que ajudá-los.<br />

—Estamos de carro podemos ir também.<br />

Foram todos à procura de Alice. Os faróis do carro iluminavam as ruas do<br />

bairro. Na praça avistaram um homem agachado. Roupas pretas, pouco cabelo<br />

, barba longa e ...<br />

—É ele. O homem da mochila está na praça. – grita Nicole<br />

Aumentam a luz dos faróis e veem que uma moça de cabelos longos e<br />

castanhos e pijama rosa estava deitada. Olharam melhor e vieram que era<br />

Alice quem estava deitada na grama da praça.<br />

Nicole saiu correndo desesperadamente em direção a Ezequiel. Seus três<br />

amigos a seguem.<br />

—Solte a minha irmã ! – disse aos berros.<br />

—Calma, eu estava passando por aqui e a reconheci. Estava tentando pegá-la<br />

no colo para levá-la até a casa de vocês. Não faria nada de mal. Falando<br />

assim, você até me ofende.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

—Você sai todas as noites com essa mochila cheia de ossos e você quer que eu<br />

pense o quê!? – disse Nicole em tom de acusação.<br />

—Não sei nada sobre o que você está falando. Eu apenas sou um homem que<br />

sofre de insônia e saio à noite para ajudar as pessoas. Embora não tenha que<br />

lhe dar satisfações, costumo dar ossos aos cães de rua que encontro. Apenas<br />

isso.<br />

Vire-se você mesma para tirar sua irmã daqui. – disse Ezequiel afastando-se e<br />

gesticulando muito.<br />

—Vamos avisar seus pais que encontramos sua irmã. – disse Alberto. Ligaram<br />

e levaram Alice para casa que continuou dormindo sem perceber nada do que<br />

havia acontecido.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Isabel C S Vargas<br />

Pelotas/RS<br />

Não se Queixe, Cante, Dance, Escreva…<br />

O Mundo atual é repleto de informações. São informações que, muitas<br />

vezes as pessoas não sabem lidar e se angustiam. O mundo é célere,<br />

não só pela velocidade das informações, mas pela competitividade.<br />

Conseguir um emprego se constitui em uma “via sacra ” para quem<br />

procura, pois, o número de candidatos é imenso e com candidatos cujo<br />

currículo é pequeno e outros que extrapolam nas habilidades requeridas.<br />

Então, quem tem pouco não é contratado e quem tem muito também<br />

não porque as empresas não querem pagar altos salários para quem é<br />

muito qualificado. As famílias fazem uma verdadeira ginástica para<br />

atender os filhos, a casa, os empregos. Se a mulher trabalha é difícil por<br />

ambos saírem, se só o marido sai é, igualmente difícil porque o<br />

orçamento não fecha na receita e despesa. Tudo gera estresse. Como<br />

minimizar isto, se não sobra para um programa fora, uma janta em<br />

família, um cinema, uma saída no final de semana. E, se há doença?<br />

Muitos tiveram de abandonar os planos de saúde, tem de enfrentar as<br />

filas nos atendimentos de saúde pública.<br />

Esta gama de citações acima, mais o trânsito caótico, a violência, a falta<br />

de segurança, o desemprego, o tráfico, a impunidade, os salários<br />

atrasados vão minando a saúde mental e física dos indivíduos. Isso é um<br />

panorama de norte a sul do nosso país. Quando o indivíduo percebe, isso<br />

se está em condições de sanidade para perceber, tornou-se uma pessoa<br />

angustiada, estressada, negativa e queixosa. É comum lidarmos com<br />

pessoas negativas, pesadas, de difícil convivência, porque só reclamam,<br />

só enxergam problemas. A realidade pessoal os tornou assim.<br />

Como fazer para mudar esse panorama que se apresenta tão difícil. Às<br />

vezes, não é necessário dinheiro, mas, ser uma pessoa resiliente, capaz<br />

de suportar a pressão e, se recompor, achar uma saída.<br />

Quando a pessoa se torna negativa em excesso, isso é sinal de doença e<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

adoece quem está na sua volta, familiares, amigos. Os que podem se<br />

afastam, porque é extremamente difícil suportar uma pessoa assim. É<br />

preciso orientar, tirar o foco negativo, sugerir atividades terapêuticas e<br />

gratuitas que assim as queixas cessam.<br />

A música é uma atividade maravilhosa. Se a pessoa tem som, rádio,<br />

televisão, celular onde possa escutar música, cantar, dançar isso se<br />

constitui em uma excelente terapia. Melhora ainda, procurar as<br />

comunidades de bairro onde é possível cantar em coral, ir a bailes, se<br />

divertir em atividade de grupo. É uma prática regular e indicada para os<br />

idosos que melhoram radicalmente, cessando a sensação de inutilidade,<br />

depressão, as queixas de dores, tudo pelo isolamento que muitos vivem.<br />

Outras atividades excelentes são a caminhada, que melhora as condições<br />

físicas e ajuda a pensar, elaborar os pensamentos, autoconhecimento e,<br />

a outra é colocar os sentimentos para fora. Escrever se constitui em um<br />

processo maravilhoso de catarse. Tudo melhora.<br />

Procurar um novo aprendizado é bom. Pintar, costurar, trabalhos<br />

manuais, estudar, seja um idioma ou fazer o que não conseguiu em<br />

outra época.<br />

O importante é a pessoa descobrir uma atividade que a faça interessarse<br />

por viver e não reclamar. Encontrar algo que dê prazer torna a pessoa<br />

mais feliz. A atividade física, o futebol, o cinema, a caminhada, são<br />

excelentes para os homens, assim como aprender um instrumento,<br />

enfim, empreender buscas para tapar o buraco emocional instalado.<br />

Terapias são recomendadas, como massagem terapêutica, aplicação de<br />

reiki, artes marciais e também buscar um pouco mais de espiritualidade,<br />

o que não é, necessariamente buscar uma religião específica, mas ser<br />

mais grato pelo que tem, em vez de se queixar pelo que não tem, ser<br />

solidário, saber colocar-se no lugar do outro, fazer caridade doando seu<br />

tempo a alguém que precise de um pouco de companhia ou necessite<br />

aprender algo que essa pessoa possa ensinar.<br />

Viver com amor e prazer é muito importante.<br />

http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?pag=5&id=24215<br />

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6ª edição:<br />

Contentores - Luís Amorim<br />

Cruzamentos - Sandra Modesto<br />

Facilitar a Vida? - Mickael Alves<br />

O Drama da Surdez - Rosimeire Leal da Motta Piredda<br />

O Quadro Dessa Gente - Edison Gil<br />

Um Abraço - Leandro Martins de Jesus


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Contentores<br />

Luís Amorim<br />

Oeiras - Portugal<br />

«Chegaram os contentores<br />

E há que conferir os valores<br />

Que lá dentro estão<br />

E se serão<br />

Adequados a esta editora<br />

Literária que mora<br />

Em zona urbana.»<br />

«Se não der para esta<br />

Dará para sua mana<br />

Para que continue a festa.»<br />

Os contentores são arrumados<br />

Para serem revelados<br />

Seus enigmáticos conteúdos<br />

De onde saem ruídos<br />

Que deixam confundidos<br />

Os que desconhecem<br />

As coisas que se encontram<br />

Nos interiores que abanam<br />

Talvez procurando saída<br />

Pois certamente querem<br />

Respirar outra vida.<br />

«Este contentor pesa mais<br />

Do que aquele ali.»<br />

«É porque têm demais<br />

Obra publicada<br />

Noutra temporada<br />

Conforme eu já li.»<br />

Os contentores são abertos<br />

E saem ainda despertos<br />

Todos os jornalistas<br />

Encomendados como artistas<br />

Para futura edição<br />

Não importando a imaginação<br />

Se a terão ou não<br />

Desde que produzam algo<br />

Que se possa ler<br />

Como: «Eu fiz algo<br />

Para vos dar a saber.»<br />

Os jornalistas são tantos<br />

Que ocupam todos os cantos<br />

Esperando sua vez<br />

Em grupos de três.<br />

«Vocês poderão não ter<br />

Talento que se possa perceber<br />

Mas isso não interessa<br />

Pois são conhecidos<br />

E toda a gente cai nessa<br />

De comprar livros<br />

71


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Dos jornalistas referidos<br />

E houve flores para todos<br />

Nos meios audiovisuais<br />

Os que ficaram em modos<br />

Como os certos sinais<br />

De interior criação<br />

Para bem sucedidas edições<br />

Para escrito como conceito<br />

Com lucros nas intenções<br />

De literária obra<br />

Nossas, sem confusões<br />

Em expectante recepção<br />

Em quaisquer apreciações.»<br />

Cheia de gente<br />

«Existem autores com criatividades A qual se dobra<br />

De grandes originalidades<br />

Vergada na decepção<br />

Com floridas inspirações<br />

Mesmo à frente<br />

Nas suas imaginações.»<br />

Dos jornalistas<br />

«É verdade<br />

Que apenas dão<br />

Mas são desconhecidos.<br />

Como visíveis pistas<br />

Dá flores de criatividade<br />

Uma certa imaginação<br />

A estes bem-vindos<br />

Que não será por aí além<br />

E vais ver como sairá<br />

Pois cada bem<br />

Prosa ou poesia<br />

Entregue em flor<br />

Que até espantará<br />

Murchou de imediato<br />

Quem não se adia<br />

Causando um rubor<br />

Como super-letrado<br />

De vergonha no acto<br />

Já antes identificado<br />

Ao futuro editor<br />

Em qualquer lado<br />

Que começa a balbuciar<br />

Por onde tenha passado.»<br />

Não sabendo explicar<br />

Assim foi feito<br />

O que se está a passar.<br />

https://www.facebook.com/luisamorimeditions<br />

72


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Cruzamentos<br />

Sandra Modesto<br />

Ituiutaba/MG<br />

Estava sozinha e usava jeans com chinelos. Subindo a pé naquela rua, notou<br />

que lavavam o carro na calçada de uma casa.<br />

Esfregavam e enxaguavam juntos; as rodas, pneus, partes do fusca. Branco.<br />

O portão estava bem aberto.<br />

Olhou cenas reais. Muitas pessoas em movimento.<br />

Uma mulher, várias crianças um cachorro, cadeiras, plantas, conversas, risos,<br />

tudo natural, não fosse à personagem principal. Uma senhora idosa, sentada<br />

em uma cadeira.<br />

Usava um vestido florido, os cabelos e a pele denotando a passagem<br />

transformadora do tempo. Gesticulava movimentos trêmulos, boca<br />

entreaberta, mas ao derredor, pessoas mais jovens consideravam a mais velha<br />

da casa, como parte de um todo. Escolheram não abandonar, não depositar no<br />

asilo, queriam, preferiram assim. A personagem à cadeira não entendia nada.<br />

Não sabia mais quem era quem, não sabia mais nem quem era ela. E daí?<br />

A mulher que caminhava sozinha e usava jeans, era eu.<br />

Enquanto andava fiquei me perguntando:<br />

Será que tenho medo da morte ou tenho medo de morrer?<br />

Vou morrer amanhã, domingo? Vou morrer...<br />

Veio-me á memória musical; Gilberto Gil.<br />

NÃO TENHO MEDO DA MORTE<br />

“Não tenho medo da morte<br />

Mas medo de morrer, sim.<br />

A morte e depois de mim<br />

Mas quem vai morrer sou eu<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

O derradeiro ato meu<br />

E eu terei de estar presente<br />

Assim como um presidente<br />

Dando posse ao sucessor<br />

Terei que morrer vivendo”.<br />

https://www.facebook.com/sandraluciamodesto.modesto<br />

74


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Mickael Alves<br />

Iguatu/CE<br />

Facilitar a Vida?<br />

Eu agi, ousei não pensar<br />

Na medida do fazer<br />

Sem razão, quis vontade<br />

Quis gritar coragem<br />

Além do ensino do coração<br />

O que é de mim mesmo<br />

Sem memorizar<br />

Ou moldar o ato.<br />

Sem titubear,<br />

Não pedi paz<br />

Pois a guerra me satisfaz<br />

Acendi a chama do fugaz<br />

Dei o caos onde eu for seguir<br />

Deixei a natureza do meu eu<br />

Me guiar<br />

Onde for caminho<br />

Onde for parada<br />

Vida, me livre;<br />

Dos imperativos,<br />

Dos julgos da sociedade,<br />

Da perfeição.<br />

Lírica dos dias atuais:<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Até o silêncio é punhal<br />

Todo contato é conflito<br />

Todo contar é insulto<br />

Todos sabem dos ritos<br />

Todos seguem o ritual<br />

Para garantir o cumprimento do dia<br />

Todos dispostos a honrar<br />

Vamos venerar a lida!<br />

Da vida dos moradores leais<br />

Mas fiz revolução<br />

Eu nunca mais os irei seguir<br />

Para salvar o meu jardim<br />

De agrados meus.<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

O Drama da Surdez<br />

Rosimeire Leal da Motta Piredda<br />

Villa Velha/ES<br />

O que há de comum entre mim e LUDWIG VAN BEETHOVEN (o maior e<br />

o mais influente compositor da música clássica universal)? A inspiração poética<br />

que vem do íntimo e é revelada em nossas criações e a SURDEZ. Os primeiros<br />

sinais de ensurdecimento surgiram antes que nós completássemos 30 anos,<br />

custamos a assumir e foi impossível esconder porque era óbvio.<br />

Minha mãe e minha irmã tinham este problema: é hereditário! Se eu tivesse<br />

filhos, alguns deles poderiam desenvolver esta deficiência. Gradativamente ia<br />

perdendo a minha capacidade de identificar o som e hoje se tornou grave, faço<br />

leitura labial. Assisto pouco à televisão (leio as legendas na tela mas, às vezes,<br />

são diálogos longos que não dá tempo para ver as cenas e cansa as vistas).<br />

Guardei minha coleção de CDs de músicas eruditas (só me resta fechar os<br />

olhos e resgatar em minha memória as maravilhosas sinfonias). Em casa<br />

escuto sons na rua e penso que é alguém gritando, entretanto ao abrir a janela<br />

vejo que são cachorros latindo. Ir a consultas médicas somente com<br />

acompanhante. Outros, sabendo que sou surda, quando me encontram<br />

preferem falar com a pessoa que está ao meu lado ou me evitam. E ainda há<br />

aqueles que torcem os lábios ou reviram os olhos para cima demonstrando seu<br />

desgosto ou os que perdem a paciência e encerram a conversa. Muitos não<br />

entendem que eu posso compreender ao olhar para os lábios e se atrevem a<br />

fazer comentários que jamais teriam coragem de dizer em minha presença, por<br />

exemplo: duas senhoras, uma falou para a outra: “Lá vem à surda!” Ah, agora<br />

fiquei invisível: sim, pois muita gente finge que não me vê e passa direto. O<br />

ato de ter que repetir palavras provoca um transtorno sobrenatural!<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Paciência é a virtude que consiste em suportar os males e incômodos<br />

sem reclamar, sem se revoltar.<br />

Uso um pequeno dispositivo dentro e atrás da orelha direita e esquerda:<br />

eles emitem sons mais altos para que eu possa ouvir, comunicar e participar<br />

plenamente das atividades diárias. O aparelho auditivo é um simples<br />

amplificador de som e com ele eu ouvia bem; infelizmente chegou um dia que<br />

não servia para mim.<br />

Notei a perda auditiva em 1998. Era secretária e sentia dificuldade para<br />

entender claramente e era necessário aumentar o volume dos fones do<br />

telefone. Deixei de atender telefone e falar pessoalmente com os clientes. O<br />

ar-condicionado ou o ventilador abafava o microfone do aparelho auditivo e<br />

dificultava a compreensão. Trabalhava nesta empresa há 26 anos (desde 1989)<br />

e em 2007 quando o problema se agravou, me senti ignorada, isolada,<br />

abandonada, quase sem serviço. Em minha profissão, dialogar com as pessoas<br />

é imprescindível e ergueram uma barreira diante de mim, quase ninguém tinha<br />

paciência para falar comigo, fugiam de mim. Fingia que havia entendido para<br />

não causar aborrecimentos. Estava começando a sentir dores de cabeça fortes<br />

contínuas e o médico me disse que era nervosismo. Fora do ambiente de<br />

trabalho, dos locais com ar-condicionado ou ventilador e olhando para quem<br />

fala, dá para “ouvir” satisfatoriamente. Porém, faço leitura labial de uma<br />

pessoa de cada vez e em grupo não percebo que há outros participando da<br />

conversa.<br />

Sim, já chorei de tristeza! Mas, tenho senso de humor e quando ocorrem<br />

incompreensões e entendimentos equivocados, digo que sou a velha surda do<br />

antigo programa da televisão “A Praça da Alegria” (20<strong>01</strong>).<br />

Alcancei o grau mais elevado da perda auditiva que é severa e profunda:<br />

de 100%, ouço 8%. Devido a isso, não há outro aparelho auditivo adequado<br />

para mim. Existem outros melhores do que este que eu uso, porém<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

muitíssimos caros e não auxiliam a ouvir perfeitamente: exercem a função de<br />

estimular os nervos da audição. Ouvir ruídos e vozes incompreensíveis com o<br />

aparelho que uso, é um consolo do que conviver com o silêncio total.<br />

O implante coclear ajuda a perceber os sons sem compreender a fala. A<br />

pessoa não voltaria a ouvir normalmente, então esta última opção está<br />

descartada para mim, pois é a minha atual realidade.<br />

Tentei aprender libras (língua de sinais), mas não consegui, pois sua<br />

gramática não se baseia na Língua Portuguesa.<br />

Há uma diferença entre o surdo tímido e o extrovertido. Quem sabe se<br />

exprimir com clareza, descobre uma maneira de expressar suas ideias e<br />

continuar fazendo parte do mundo dos que ouvem.<br />

As pessoas valem mais do que suas deficiências. Beethoven e eu<br />

tentamos lutar contra algo que era impossível mudar, mas a sensibilidade que<br />

habita em nós sobressaiu e não permitiu que nos deixássemos abater por uma<br />

situação que não havia como consertar: há muito mais em nós do que estes<br />

problemas inesperados.<br />

Discriminar também significa assassinar a alma de uma pessoa, pois é no<br />

coração que o efeito é mais destruidor.<br />

Quem deseja se sentir humilhado? Reflita sobre o que JESUS disse:<br />

“Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes<br />

façam...". (Mateus 7:12).<br />

https://www.rosimeiremotta.com.br/<br />

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<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Edison Gil<br />

Sorocaba/SP<br />

O Quadro Dessa Gente<br />

Pintaram de cinza<br />

o céu que era azul,<br />

com uma tinta de fumaça<br />

do norte até o sul,<br />

também o verde<br />

é uma cor que está ausente,<br />

chaminé e asfalto quente,<br />

é o quadro dessa gente!<br />

O rio virou piada,<br />

quem escuta não diz nada,<br />

transformaram nossa água<br />

no aposento da privada,<br />

na beirada peixe morto,<br />

num produto amarelo,<br />

e quem vivia pela pesca,<br />

hoje vive do martelo!<br />

O estradão que era terra,<br />

que foi rota de tropeiro,<br />

atualmente está pintado<br />

com a cor do desespero,<br />

tem carro e moto,<br />

carro de frete,<br />

caminhão, caminhonete,<br />

só não pode ter charrete!<br />

http://fb.com/siredisongil<br />

80


<strong>LiteraLivre</strong> <strong>Edição</strong> <strong>Especial</strong> nº 1<br />

Um Abraço<br />

Leandro Martins de Jesus<br />

Itapetinga/BA<br />

Dentro de um abraço<br />

Cabem amor e saudade<br />

Dentro de um abraço<br />

Cabem desejo e vontade<br />

Dentro de um abraço<br />

Cabem alegria e tristeza<br />

Dentro de um abraço<br />

Não cabem incertezas<br />

http://www.recantodasletras.com.br/autores/leandromj<br />

81


Queremos desejar a todos<br />

os nossos amigos<br />

Boas Festas e um Próspero Ano Novo!<br />

Em 2<strong>01</strong>8 tem mais!<br />

Continuem participando!<br />

Receberemos textos, imagens, desenhos e etc.,<br />

até o dia<br />

10/02/18


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