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Sapeca 12

Misto de sapo e perereca

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<strong>Sapeca</strong><br />

Misto de sapo e perereca<br />

Nº <strong>12</strong> – Novembro/2017 – Editor: Tonico Soares<br />

_<br />

_<br />

MUSA DO SEMESTRE<br />

Nenhum motivo especial pra Marlene Dietrich figurar nesta seção, não<br />

fosse ela especialíssima. Famosa em 1930, a Paramount a contratou e se escafedeu<br />

pra Hollywood. Hitler bem que a quis de volta, mas ficou chupando dedo.<br />

Diziam que tinha rosto à prova de rugas e as mais belas pernas do século.<br />

Atriz de presença forte em cena e, cantora, gravou até Luar do sertão, cuja<br />

pronúncia em português é bem convincente (tem no Google), o que é raro entre<br />

cantores estrangeiros, embora seu carro-chefe seja Lili Marlene. Ouçam.


Vi um rei<br />

no Rio<br />

Desde moleque eu sabia que era Gruta da Imprensa, agora fiquei sabendo<br />

que o nome cravado na pedra é Viaducto Rei Alberto, cuja vinda ao Brasil,<br />

há quase um século, foi tipo o acontecimento mais badalado do ano. Aí garrei<br />

a pensar na presença belga no Brasil. Tinha a Belgo-Mineira, guerrilhas no<br />

Congo belga, o canário-belga e o lampião lá de casa, Made in Belgium. E o<br />

Copacabana Palace teve como hóspede número 1 o já citado rei Alberto.<br />

Além de grandes pintores (isto bastaria), a Bélgica produziu, segundo<br />

meus parcos conhecimentos, Georges Simenon (livros policiais), Tintin (quadrinhos),<br />

Jacques Brel (Ne me quitte pas), Audrey Hepburn (dispensa apresentação).<br />

Hoje tem Bélgica até nos supermercados de Cataguais, com a cerveja<br />

Stella Artois, sem falar do Vincent, fiel escudeiro de nossa amiga Jussara.<br />

A propósito, Jussara trabalhava numa papelaria, adonde eu às vezes tirava<br />

Xerox. E um dia tinha lá um desconhecido também a fim, só que ele portava<br />

um objeto de um luxo supremo: uma edição em inglês, ilustrada com<br />

iluminuras, dos Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer. Fiquei pensando:<br />

uma obra dessas, da qual só meia dúzia de cataguasenses deve saber que existe,<br />

quem será o feliz possuidor? Só podia ser o Vincent, que conheci depois.<br />

Li apenas um dos contos, não posso julgar, o filme de Pasolini, sim, ótimo.<br />

Pois bem. Num dia de 1965, na Avenida Rio Branco, cada poste exibia<br />

as bandeiras cruzadas do Brasil e da Bélgica. Tratava-se de outro rei belga,<br />

Balduíno, e sua rainha Fabíola. Gente desse nível chegava ao Galeão e, pra<br />

não ter que enfrentar o caos da Avenida Brasil e seu fedor característico, era<br />

levada por via marítima até o cais da Praça Mauá. Direto lá aportaram na<br />

época Elizabeth II e seu Philip, no iate real, que os aguardou em Recife,<br />

fazendo escalas em Salvador, Rio e Santos. Brasília, sem mar, foram de avião.<br />

Dali desfilavam de Rolls Royce sem capota até algum hotel de luxo. Era<br />

no tempo da ditadura, o que provocou um ‘sutil’ comentário de Queiroz, figuraça<br />

das noites cataguasenses: ‘Sorte ela não ter vindo no tempo do Juscelino,<br />

porque ele ia botá na bunda dela lá na ilha de Brocoió’. Explico: aquela ilha<br />

tem um palacete que nos antigamentes era destinado a hospedar visitantes<br />

ilustres. Depois desativado, acredito, por problemas de segurança e poluição.


Dias depois, naquele mesmo trecho da Rio Branco vi, também em carro<br />

aberto, recebido como um rei, ganhando aplausos do povaréu, o jogador Tostão,<br />

quando teve seu passe milionário comprado pelo Vasco da Gama, o que<br />

deixou muito cruzeirense de bola murcha, em mais de um sentido.<br />

Fabíola era espanhola, irmã do príncipe Don Jaime de Mora y Aragon,<br />

playboy que participou de alguns filmes e vi um deles, o anárquico O julgamento<br />

universal, de Vittorio de Sica (tem cópia restaurada à venda via internet<br />

ou nas boas casas do ramo). Como o título indica, era o dia do fim do mundo e<br />

todo mundo perdeu a compostura. No caso do príncipe, se bem me lembro, ele<br />

borrifava algo como cheirinho da loló num lenço e aplicava em Melina Mercouri,<br />

pra deixá-la mais calma, deixando-a ainda mais doidona.<br />

De Balduíno, vim a saber que abdicou em favor de um filho, pra não ser<br />

obrigado a assinar a lei que liberava o aborto, aprovada pelo Congresso, mas<br />

tinha um porém: ia de encontro às convicções católicas de sua majestade.<br />

Cabeças coroadas, foram as únicas que vi e, quase isso, o príncipe alemão<br />

Thurn und Taxis, que tinha o hábito de passar verões no Rio. Gostava de<br />

tomar chope em bares bem simples, embora também hospedado no Copa.<br />

Numa temporada, levou a um daqueles bares uma alemãzinha com quem veio<br />

a se casar, pra ter herdeiro, e teve. E, notícia no mundo todo, uma vez deu uma<br />

festa no seu palácio (maior que o da dita Elizabeth) à qual compareceu, do<br />

Brasil, o casal Carmen e Tony Mayrink Veiga. Uma das atrações foi um passeio<br />

de barco reproduzindo a Viagem de Siegfried pelo Reno, como na ópera<br />

de Wagner. O sobrenome Taxis deu origem à palavra táxi, posto que, lá pelo<br />

cu dos antigamentes, a família fazia carretos através dos Alpes.<br />

Presidente em exercício (imposto pela ditadura militar, vá lá), vi o Zé<br />

Ribamar Sarney e sua Marly, saindo do Teatro Municipal e entrando num<br />

frescão, condução que adotou pra fingir que era um homem simples, até seu<br />

veículo ser atingido por ‘um objeto perfurante’ (nas palavras do acadêmico,<br />

que Millôr Fernandes traduziu como ‘uma pedra portuguesa’), no mesmo Rio<br />

de Janeiro. Gostei mais de ver um ex, com aquele sorriso, saindo do carro e<br />

entrando no (seu) Banco Denasa, o já citado Juscelino, cuja filha Márcia vi<br />

num Mac Donalds com o famoso bailarino cubano Fernando Bujones. Em<br />

Florença, vi Sandro Pertini, presidente da Itália que, no Rio, quis tomar chope<br />

num bar bem simples, no Flamengo, depois de ter conhecido o Corcovado.


Um dia especial<br />

Dia em casa de campo em Sinimbu. Motivo: Ênio Mendes havia lido<br />

meu livro Pedra que não quebra, no qual é citado (página 187) e quis me conhecer,<br />

impressionado como as pessoas mais antigas (que nem que eu) são<br />

capazes de discorrer sobre os mais diversos assuntos. Contou que estudou música,<br />

dança, canto e alemão, em BH. Alemão, porque tinha chance de ir pra<br />

Zurique e não queria chegar com aquele ‘inglês de Praça Mauá’, como as<br />

quengas tupiniquins. E lá é cantor profissional, na companhia de ópera.<br />

Na época, usava um topete pra fazer show de Bossa Nova e ensaiava<br />

um papel em Guilherme Tell, ópera de Rossini, cujo personagem estava completando<br />

500 anos. Cantou um pedacinho com voz quase de criança, beleza.<br />

Falou que a Suíça é um país de agiotas, fabricantes de armas e medicamentos.<br />

Pobreza zero. O problema é que gerações mais novas, como a sua, são especializadas<br />

(até robotizadas) num assunto e ficam só naquilo, daí ter gostado da<br />

variedade das minhas crônicas. Quisera eu ser ‘robotizado’ nas coisas que ele<br />

faz, na cidade que deu Paul Klee, o dadaísmo, abrigou Lênin e James Joyce.<br />

Não me lembrei de Joyce, mas da célebre tirada de Orson Welles sobre<br />

a Suíça, no filme O terceiro homem. Disse ele que em setenta anos de ditadura,<br />

sob os Medici, Florença produziu o Renascimento; em sete séculos de democracia,<br />

a Suíça só produziu o relógio cuco. Um suíço abordou Orson pra<br />

dizer que não é invenção deles, mas alemã. ‘Então, nem isso’, foi a resposta.<br />

Bem, a casa ‘de campo’ fica dentro da ‘área urbana’, sendo Sinimbu um<br />

arraialzinho. E que casa. Nada de luxo novo-rico, ao contrário, utilizando material<br />

de demolição, o que demanda muita pesquisa, ladrilhos que não se fabricam<br />

mais, um espelhão bizeauté, geladeirão com alavanca na porta, móveis do<br />

século 19, assim como uma pia no banheiro que só vi igual numa casa de milionários<br />

e, em Vassouras, num hotel centenário. Não dá pra lembrar de tudo,<br />

ante tante belle cose que só gente de bom gosto é capaz de reunir.<br />

Ficamos na varanda dos fundos, comendo, bebendo e jogando conversa<br />

fora, a tarde caindo sem pressa. E sem pressa pousou um gavião numa árvore<br />

nem longe nem perto, o maior que já vi. Altaneiro e majestático feito um Luiz<br />

XIV interpretado por Clóvis Bornay nos desfiles de fantasias dos carnavais de<br />

outrora. Motivo de sua presença: uma cobra-cipó cuja cor se confundia com a<br />

folhagem de um bambuzal. Este não deveria ficar tão próximo, assim como<br />

uma moita de bananeiras, esconderijos de bicho peçonhento. Explica-se: o<br />

bambuzal pode ter sido a ‘latrina’ dos homens, e bananeiras, das mulheres, em<br />

tempos idos. Pra mim, seria um pesadelo dormir lá e ser enforcado pela cipó.<br />

Roceiro de nascença, vivo recusando convites pra me re-roceirizar.


Febre de mau caráter<br />

Deu no Estadão: Moradores dos jardins vivem 24 anos mais que população<br />

do Jardim Ângela. Na área dos jardins (Paulista, América, Europa), como<br />

se sabe, mora boa parcela da elite paulistana. Jardim Ângela, pelo contrário,<br />

é uma miséria só, com dezenas de igrejas evangélicas, vi no Google; nos<br />

jardins, só encontrei uma. E lembrei que num bar da Vila Domingos Lopes um<br />

cara me perguntou quem eram dois rapazes que passavam de bolsa a tiracolo,<br />

calça preta e camisa branca. Respondi que eram mórmons, uma seita americana,<br />

e pregam ‘a palavra de Deus’ em geral pras pessoas da periferia. Resposta<br />

do cara: ‘Eu moro na Humberto Mauro e nunca vi essa gente por lá’. Onde os<br />

moradores também devem viver mais, precisa nem estatística pra provar.<br />

Respeito o protestantismo, pelo fato de não existir país protestante pobre.<br />

Mas tem um porém: essa evangelização que se alastra no Brasil não corresponde<br />

à Reforma iniciada por Lutero, que gerou prosperidade. A América<br />

Latina é contemporânea da Contrarreforma, que deu a Inquisição, que virava<br />

as costas aos ideais apregoados pelo Iluminismo, que inspirou a Revolução<br />

Francesa (esta, entre outras, fez reforma agrária, acabando com os grandes latifúndios,<br />

em prática até hoje). Também ignorava a Revolução Industrial.<br />

Entretanto, a mais ferrenha contrarreformista, a Espanha, sentindo que<br />

perdia poder para as novas mentalidades, expulsou os jesuítas de seu território,<br />

o que não conseguiu no México, uma de suas colônias. E a latinidade americana<br />

deu nisso: países prenhes de recursos naturais, explorados pelo andar de<br />

cima do planeta. Todos católicos, em vias de ter maioria evangélica.<br />

Dia desses passou aqui um sobrinho, o Pascelli de Florianópolis, de volta<br />

da Austrália, aonde fora com a esposa acompanhar o parto da filha que mora<br />

lá. Hospital público, of course. Atendimento de primeiro mundo, num país<br />

300 anos mais novo, e menos endinheirado que o Brasil; lá, porém, as coisas<br />

funcionam. Eles adotaram um socialismo à europeia, pagando salários mais<br />

dignos e oferecendo serviços de qualidade, o que diminui o abismo entre as<br />

classes (Brizola queria fazer isso aqui, e começou pela Educação, sem sucesso).<br />

E respeitam as leis, basta dizer que dirigir alcoolizado na Austrália não<br />

tem fiança, mas seis meses de cadeia. Durante o papo, lembrei que na Califórnia,<br />

acusado pelo bafômetro, o maestro de uma orquestra não escapou de ser<br />

preso, mesmo tendo pais riquésimos: Sophia Loren e Carlo Ponti.<br />

E foi um país protestante que deu Charles Darwin, que pouco saía de<br />

casa, geralmente representado por seu discípulo Thomas Henry Huxley. E<br />

este brilhou no mais importante debate sobre Evolução, em 1860, na U-<br />

niversidade de Oxford, tendo como principal opositor o bispo anglicano


Samuel Wilberforce. No auge da discussão, o bispo perguntou se foi a-<br />

través da sua avó ou do seu avô que Huxley alegava a descendência de um<br />

macaco. ‘Se a questão é se eu preferiria ter um macaco miserável como<br />

avô, ou um homem altamente favorecido pela natureza que possui grande<br />

capacidade de influência, mas mesmo assim emprega essa capacidade e<br />

influência para o mero propósito de introduzir o ridículo em uma discussão<br />

científica séria, eu não hesitaria em afirmar a preferência pelo<br />

macaco’ – respondeu Huxley, ovacionado pelos mil espectadores.<br />

Lendo isso, lembrei o filme O vento será tua herança, de Stanley<br />

Kramer, visto por mim aos 15 anos. Numa cidade do interior americano,<br />

um professor prega o Evolucionismo, causando o maior auê. Simplificando:<br />

o professor vai a julgamento e no auge da contenda o advogado de<br />

acusação abre a Bíblia e lê a sentença que Deus teria dado à serpente:<br />

‘Sobre o teu ventre andarás...’. O da defesa, com a maior calma, espichando<br />

as alças elásticas do suspensório, pergunta: ‘E você tem ideia de como<br />

ela andava antes?’. Vitória do professor e infarto do acusador, que também<br />

era político, em período de campanha eleitoral, se bem me lembro.<br />

E li em Teilhard de Chardin (padre e espeleólogo) que na Etiópia existe<br />

uma espécie de macaco que atira pedras nos inimigos, entre eles, o bicho homem.<br />

É assim que começam as civilizações, vide o início do filme 200l – Uma<br />

odisseia no espaço. E o Pascelli lembrou que em breve o mundo terá um país<br />

protestante pobre. Entre aspas, pois é podre de rico, seu nome é Brasil. Até<br />

esse protestantismo que grassa por aí é entre aspas, como já falei.<br />

Sobre o ‘jeitinho brasileiro’ de negligenciar a saúde, Cataguases deu um<br />

exemplo, em fins do século 19, na questão das febres. Alguém intuiu que era<br />

‘um problema de engenharia, não de medicina’ e chamaram o engenheiro Paulo<br />

de Frontin, do Rio. Entre outras medidas, ele mandou secar os brejos, manter<br />

a cidade limpa e plantar árvores, que atraem pássaros, que comem insetos.<br />

E a febre acabou por três anos, voltando quando começaram a relaxar os serviços.<br />

Aí a oposição disse que nosso mal era a febre de mau caráter e chamaram<br />

de novo o Frontin, de novo as mesmas medidas, problema resolvido.


P H I L O S O P H I A<br />

De grão<br />

em grão, a<br />

galinha vira<br />

refeição.<br />

Sabedoria feminina<br />

Conheço muitas mulheres de Cataguases que moram no Rio e vou citar<br />

apenas três, por terem vivido situações dignas de registro.<br />

Há coisa de vinte anos, uma delas, loura de olhos verdes, viu no RJ TV<br />

a notícia de um bebê negro abandonado na linha do trem. No ato, ligou pra<br />

Globo e adotou a criança que hoje é um jovem ‘sarado’, faz faculdade e tem<br />

um futuro promissor. A mãe dela não pôde dar estudo aos filhos, mas montou<br />

uma empresa em que todos trabalham e vivem a contento. Uma noite, quando<br />

ainda era empregada num escritório, saindo só do trabalho, numa rua estreita<br />

e, àquela hora, vazia, um bandido apontou-lhe arma e rolou este diálogo:<br />

– Passa a bolsa e o relógio.<br />

– Pelo amor de Iansã, que é minha mãe e sua também, não faz isso comigo,<br />

porque sou uma mulher sozinha que trabalha pra criar quatro filhos.<br />

– A senhora é de santo, que terreiro a senhora frequenta?<br />

– O da vó fulana de tal, na Penha.<br />

Resultado: não houve assalto e marcaram encontro no tal terreiro.<br />

Outra é favelada e, em situação de assalto, deu o que tinha e ele queria<br />

mais. Resposta dela: ‘Só se eu te der o rabo’.


‘Essa capa é um dos meus orgulhos criativos… minha maior e mais duradoura<br />

criação. Produzida em 1973 é até hoje polêmica, considerada a segunda<br />

melhor capa do século XX pela Folha de São Paulo, e em 2011 fez parte<br />

da exposição das melhores 50 capas de discos de todos os tempos. Tem<br />

gente que jura que era uma boca, mas foi um cu mesmo. Na época eu era sócio<br />

do professor Décio Pignatari. Sempre relutei em mostrar as fotos originais que<br />

tenho até hoje guardadas, mas, como o post que publiquei sobre o assunto<br />

bombou, resolvi publicar uma das fotos. A moçoila que posou fazia ponto na<br />

rua e cobrou um “cachê artístico”, inclusive, assinando recibo e tudo mais,<br />

sabendo inclusive o destino da foto’. – Chico Andrade<br />

Foto de 1941, intervalos da filmagem<br />

de Aconteceu em Havana,<br />

quando la Miranda foi fotografada<br />

sem calçola, por César Romero. A<br />

foto só foi divulgada lá por 1970 e o<br />

Pasquim publicou. E, já que se trata<br />

de invasão de privacidade, <strong>Sapeca</strong><br />

também entrega: César Romero<br />

foi caso de Tyrone Power que naquele<br />

ano passou o carnaval no Rio<br />

com uma atriz francesa, contratada<br />

pelo estúdio, pra livrar a cara dele.<br />

O mesmo ocorreu décadas depois<br />

com Rock Hudson, pra quem contrataram<br />

a brasileira Ilka Soares.


●<br />

Dia de sol na Bahia<br />

Em 1711, veio a lume a Crônica do viver baiano seiscentista, de Gregório<br />

de Matos. “Com ela, se inaugura, em dia de sol, a poesia brasileira”,<br />

diz James Amado, no prefácio à edição de 1968, que acabou de compilar<br />

justo na noite em que morreu Sérgio Porto, acrescentando que Stanislaw<br />

Ponte Preta ‘era sobrinho de Serafim Ponte Grande, criatura de Oswald de<br />

Andrade, outro ramo da árvore de Gregório’. E mais: naqueles dias, o Boca<br />

do Inferno andou por São Paulo, na pele de Caetano Veloso:<br />

– O franzino mazombo parece irritar-se um pouco, pois é muito jovem,<br />

pergunta se o microfone tem som e atravessa a interminável assuada<br />

com sua singela advertência: ‘Vocês não estão entendendo nada’ (discurso<br />

enfezado de Caê, no Festival de Música da TV Record, 1968).<br />

Pois bem, Álvaro A. Antunes me deu um presentaço: aquela edição<br />

completa. Temi encarar os sete volumes, pelo que comprei uma antologia.<br />

Senti firmeza. Depois, li a completa, reli e re-releio agora, anotando o que<br />

mais me surpreende, no quesito ousadia. Gregório criticava o clero, os<br />

poderosos e os devassos, ‘o que, mutatis mutandis, é tudo a mesma coisa’<br />

(diria Odorico Paraguassu, outro gregoriano juramentado e praticante).<br />

Sua poesia sacra pode ter escrito até para escapar a castigos maiores, da<br />

parte da Igreja, embora atinja bons momentos, como neste soneto:


O todo sem a parte não é todo,<br />

a parte sem o todo não é parte,<br />

mas se a parte o faz todo, sendo parte,<br />

não se diga que é parte, sendo todo.<br />

Em todo o Sacramento está Deus todo,<br />

e todo assiste inteiro em qualquer parte,<br />

e feito em partes todo em toda a parte,<br />

em qualquer parte sempre fica o todo.<br />

O braço de Jesus não seja parte,<br />

pois que feito Jesus em partes todo,<br />

assiste cada parte em sua parte.<br />

Não se sabendo parte deste todo,<br />

um braço, que lhe acharam, sendo parte,<br />

nos disse as partes todas deste todo.<br />

Bom, mesmo, é quando, profano, solta os capetas, como a seguir:<br />

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:<br />

quem mais rico se faz, tem mais carepa:<br />

com sua língua ao nobre o vil decepa:<br />

o velhaco maior sempre tem capa.<br />

Mostra o patife da nobreza o mapa:<br />

quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa:<br />

quem mais falar pode, mais increpa:<br />

quem mais dinheiro tiver, pode ser papa.<br />

A flor baixa se inculca por Tulipa:<br />

bengala hoje na mão, ontem garlopa:<br />

mais isento se mostra, o que mais chupa.<br />

Para a tropa do trapo vazo a tripa<br />

e mais não digo, porque a Musa topa<br />

em apa, epa, ipa, opa e upa.<br />

É o caso de vazar a tripa para 99% da poesia que veio depois ...apa,<br />

epa, ipa, opa e upa remete a Jorge Ben Jor: zambá, zambé, zambi, zambô,<br />

zambu... E continuo com as roupas e as armas de Jorge. Leiam:


Ouçam, olhem,<br />

venham, venham, verão<br />

o Frisão, da Bahia,<br />

que está retratado<br />

às maravi, maravi, maravilhas.<br />

Há cousa mais tremenda e mais atró=,<br />

Que em terra, onde há tanta fartu=,<br />

E haja quem por um cu enjeite um có=?<br />

Jorge Ben Jor: Mó num pa tro pi abençoá por Dê e boni por naturê...<br />

Não por acaso, ele iniciou em 1995 um projeto inspirado em vigílias de literatura<br />

que virou o Corujão da Poesia, num bar do Leblon, estendendo-se a<br />

Niterói e São Gonçalo. E voltemos ao Greg:<br />

De dous ff se compõe<br />

esta cidade, a meu ver:<br />

um furtar, outro foder.<br />

O Rabo erguido entre cortesias mudas,<br />

como quem pelo cu tomasse ajudas.<br />

A Câmara não acode? . . . . . . . . . não pode.<br />

Pois não tem todo o poder? . . . . não quer.<br />

É que o governo a convence? . . . não vence.<br />

A nossa Sé da Bahia,<br />

com ser um mapa de festas,<br />

é um presépio de bestas,<br />

se não for estrebaria...<br />

... Quantas vezes, Frei Remendo,<br />

dará co meio do cu<br />

peido tão rasgado, e cru<br />

que lhe fique o rabo ardendo?<br />

...pois que sendo um Frei Jumento,<br />

é um jumento sem freio.<br />

É mau meteres o calvo


entre tanta pentelheira<br />

e sair co’a cabeleira<br />

encrespadinha?<br />

Dizem que o vosso cu, Cota,<br />

assopra sem zombaria,<br />

que parece artilharia,<br />

quando vem chegando a frota:<br />

parece que está de aposta<br />

este cu a peidos dar,<br />

porque jamais sem parar<br />

este grão-cu de enche-mão,<br />

sem pederneira ou murrão<br />

está sempre a disparar.<br />

De Cota o seu arcabuz<br />

apontando sempre está,<br />

que entre noite e dia dá<br />

mais de quinhentos truz-truz:<br />

não achareis muitos cus<br />

tão prontos em peidos dar,<br />

porque jamais sem parar<br />

faz tão grande bateria<br />

que de noite, nem de dia<br />

pode tal cu descansar.<br />

Cota, esse vosso arcabuz<br />

parece ser encantado,<br />

pois sempre está carregado<br />

disparando tantos truz:<br />

arrenego de tais cus,<br />

porque este foi o primeiro<br />

cu de Moça fuleiro,<br />

que tivesse tal saída<br />

para tocar toda a vida<br />

por fole de algum ferreiro.<br />

... vós dais ao rabo, e ao cu,<br />

eu dou ao cu, e ao rabo,<br />

vós com um Negro, um diabo,<br />

eu com uma Negrinha brava,


pois fique fava por fava,<br />

e quiabo por quiabo.<br />

Brás, pastor inda donzelo,<br />

querendo descabaçar-se,<br />

viu Betica a recrear-se<br />

vinda ao prado de amarelo.<br />

E tendo duro o pinguelo,<br />

foi lho metendo já nu,<br />

fossando como tatu:<br />

gritou Brites, inda bem,<br />

que tudo sofre quem tem<br />

rachadura junto ao cu.<br />

... Esse vaso encharcado, qual Danúbio<br />

dá a crer que és puta inda antes do dilúvio:<br />

tão velha puta és, que ser podias<br />

Eva das putas, mãe das putarias<br />

e por puta antiquíssima puderas<br />

dar idade às idades, e era às eras;<br />

e havendo feito putarias artas,<br />

inda hoje dás a crer que te não fartas.<br />

... Manas, depois que sou Freira,<br />

apoleguei mil caralhos<br />

e acho ter os barbicalhos<br />

qualquer de sua maneira:<br />

o do Casado é lazeira,<br />

com que me canso, e me encalmo,<br />

o do Frade é como um salmo...<br />

... só este membro vos emboca,<br />

creio, que a ambos nos fica<br />

por baixo crica com crica,<br />

por cima boca com boca.<br />

... O Amor é finalmente<br />

um embaraço de pernas,<br />

uma união de barrigas,<br />

um breve temor de artérias.


Uma confusão de bocas,<br />

uma batalha de veias,<br />

um reboliço de ancas,<br />

quem diz outra coisa, é besta.<br />

E menos palatável é o soneto seguinte, que não consegui digitar e<br />

colei do Google. A sílaba final pode ser lida no verso posterior e/ou anterior.<br />

Complicado, por demais ousado, e séculos antecipado.<br />

● Novembro finou-se e eu precisava de mais três páginas pra completar doze,<br />

o tamanho padrão de <strong>Sapeca</strong>. Cadê assunto? Aí lembrei deste texto que<br />

distribuí entre amigos em 2011 e foi bom, posto que este número engordou,<br />

atingindo dezesseis faces (pra não repetir a palavra página) de papel.


Gregório de Matos Guerra<br />

(1623-1696)<br />

Nasceu em família com poder financeiro alto, para os padrões da é-<br />

poca: empreiteiros e funcionários administrativos (seu pai era português).<br />

Legalmente, Gregório também era português, no Brasil Colônia. Estudou<br />

no Colégio dos Jesuítas, na Bahia, continuou os estudos em Lisboa e na<br />

Universidade de Coimbra, onde se formou em Cânones, em 1661. Nomeado<br />

juiz de fora de Alcácer do Sal, não sem antes atestar que era "puro<br />

de sangue", como determinavam as normas jurídicas de então.<br />

A partir de 1668 representou a Bahia nas cortes de Lisboa, foi procurador,<br />

destituído do cargo e nomeado pelo arcebispo Gaspar Barata de<br />

Mendonça para Desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia. Pedro<br />

II, rei de Portugal, o nomeou tesoureiro-mor da Sé, um ano depois de ter<br />

tomado ordens menores. Em 1683 voltou ao Brasil.<br />

O novo arcebispo, frei João da Madre de Deus (frei Jumento) cassou-lhe<br />

os cargos por não querer usar batina nem aceitar a imposição das<br />

ordens maiores, ficando inapto para as funções de que o tinham incumbido.<br />

Então, passou a satirizar os costumes de todas as classes sociais baianas<br />

e desenvolveu uma poesia corrosiva, erótica (mesmo pornográfica),<br />

apesar de ter trilhado caminhos mais líricos, também, sagrados.<br />

Em 1685, o promotor eclesiástico da Bahia denunciou seus costumes<br />

livres ao tribunal da Inquisição. Acusado, entre outras, de difamar Jesus<br />

Cristo e de não fazer reverência, recusando-se a tirar o barrete da cabeça<br />

quando passava uma procissão. A acusação não prosseguiu, entretanto, as<br />

inimizades cresciam em relação direta com os poemas que ia concebendo.<br />

Em 1694, acusado por vários lados (principalmente por parte do governador<br />

Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho), e correndo o<br />

risco de ser assassinado, foi deportado para Angola.<br />

Como recompensa por ter ajudado o governo local a combater uma<br />

conspiração militar, recebeu permissão de voltar ao Brasil, fora da Bahia.<br />

Morreu em Recife, com febre contraída na África. Porém, minutos antes<br />

de morrer, pediu que dois padres fossem à sua casa e ficassem cada um de<br />

um lado de seu corpo, para "morrer entre dois ladrões, tal como Cristo".<br />


Casa da família Silva, meus parentes de Laranjal – MG

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