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Fides 20 N2 - Revista do Centro Presbiteriano Andrew Jumper

Revista Fides Reformata 20 N2 (2015)

Revista Fides Reformata 20 N2 (2015)

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INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE<br />

Diretor-Presidente Maurício Melo de Meneses<br />

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇãO ANDREW JUMPER<br />

Diretor Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister<br />

<strong>Fides</strong> reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora<br />

Mackenzie, 1996 –<br />

Semestral.<br />

ISSN 1517-5863<br />

1. Teologia 2. <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação<br />

<strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />

CDD 291.2<br />

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American<br />

Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16 th Flr., Chicago, IL 60606, USA,<br />

e-mail: atla@atla.com, www.atla.com.<br />

<strong>Fides</strong> Reformata também está incluída nas seguintes bases indexa<strong>do</strong>ras:<br />

CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx),<br />

Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory<br />

(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO<br />

(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).<br />

Editores Gerais<br />

Leandro Antonio de Lima<br />

Daniel Santos Júnior<br />

Editor de resenhas<br />

Filipe Costa Fontes<br />

Redator<br />

Alderi Souza de Matos<br />

Editoração<br />

Libro Comunicação<br />

Capa<br />

Rubens Lima


Edição <strong>20</strong> anoS<br />

igreja presbiteriana <strong>do</strong> brasil<br />

junta de educação teológica<br />

instituto presbiteriano mackenzie


Conselho Editorial<br />

Augustus Nicodemus Lopes<br />

Davi Charles Gomes<br />

Heber Carlos de Campos<br />

Heber Carlos de Campos Júnior<br />

Jedeías de Almeida Duarte<br />

João Alves <strong>do</strong>s Santos<br />

João Paulo Thomaz de Aquino<br />

Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister<br />

Valdeci da Silva Santos<br />

A revista <strong>Fides</strong> Reformata é uma publicação semestral <strong>do</strong><br />

<strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais <strong>do</strong>s autores, não<br />

representan<strong>do</strong> necessariamente a posição <strong>do</strong> Conselho Editorial. Os direitos de publicação<br />

desta revista são <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />

Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor.<br />

Pede-se permuta.<br />

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Se solicita canje. Si chiede lo scambio.<br />

Endereço para correspondência<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Fides</strong> Reformata<br />

Rua Maria Borba, 40/44 – Vila Buarque<br />

São Paulo – SP – 01221-040<br />

Tel.: (11) 2114-8644<br />

E-mail: pos.teo@mackenzie.com.br<br />

Endereço para permuta<br />

Instituto <strong>Presbiteriano</strong> Mackenzie<br />

Rua da Consolação, 896<br />

Prédio 2 – Biblioteca Central<br />

São Paulo – SP – 01302-907<br />

Tel.: (11) 2114-8302<br />

E-mail: biblio.per@mackenzie.com.br


Editorial<br />

Com gratidão a Deus, apresentamos o volume 2 da edição comemorativa<br />

<strong>do</strong>s <strong>20</strong> anos da revista <strong>Fides</strong> Reformata. Olhan<strong>do</strong> para trás, louvamos a Deus<br />

pela vida e dedicação de nossos professores, alunos e colabora<strong>do</strong>res externos<br />

que se esforçaram em alcançar o alvo de nossas publicações: artigos que unem<br />

profundidade teológica com aplicação prática para a vida <strong>do</strong> povo de Deus,<br />

dentro da variedade <strong>do</strong> campo teológico. Nesta edição, oferecemos um índice<br />

<strong>do</strong>s artigos publica<strong>do</strong>s nos anos <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15, os quais mostram que, de fato,<br />

esses foram os objetivos primordiais desta revista.<br />

Os artigos que compõem este segun<strong>do</strong> volume <strong>do</strong> ano <strong>20</strong>15, mais uma vez,<br />

cobrem áreas variadas. Começan<strong>do</strong> com exegese, o primeiro artigo, <strong>do</strong> Prof.<br />

Leandro Lima, trata <strong>do</strong> uso engenhoso e artístico <strong>do</strong> Antigo Testamento no texto<br />

de Apocalipse 12.1-6, o qual dá senti<strong>do</strong> e aplicação para a poderosa mensagem<br />

<strong>do</strong> texto. Em seguida, o autor Pierre Rosa aborda uma questão missiológica<br />

interessante, que é a aparente mudança <strong>do</strong> centro da fomentação missionária<br />

global <strong>do</strong> hemisfério norte para o sul, onde se encontra o Brasil, mostran<strong>do</strong><br />

qual pode ser o papel <strong>do</strong> nosso país nesse cenário missionário internacional.<br />

O movimento de revitalização e crescimento de igreja é contempla<strong>do</strong> com o<br />

artigo <strong>do</strong> Emilio Garofalo Neto, que avalia a validade da adaptação à cultura<br />

hodierna como uma ferramenta para o crescimento da igreja, trazen<strong>do</strong> uma<br />

importante análise das raízes e desenvolvimento atual da chamada “igreja<br />

emergente”. O professor Valdeci Santos volta a tratar de um <strong>do</strong>s temas mais<br />

difíceis da atualidade, ou seja, o movimento homossexual, mostran<strong>do</strong> a “evolução”<br />

social que esse conceito experimentou nos últimos anos, alcançan<strong>do</strong><br />

tanta visibilidade e apoio, bem como a dificuldade que a igreja tem ti<strong>do</strong> em<br />

tratar desse assunto, lançan<strong>do</strong> luz sobre como o cristianismo orto<strong>do</strong>xo deve lidar<br />

com o tema. Música e liturgia estão no centro da discussão que Silas Palermo<br />

promove em seu artigo a respeito da relação entre sacro e profano na música,<br />

trazen<strong>do</strong> importantes reflexões sobre esse que é, sem dúvida, um <strong>do</strong>s temas<br />

menos trabalha<strong>do</strong>s pelos teólogos conserva<strong>do</strong>res. Fechan<strong>do</strong> a edição de artigos,<br />

o teólogo alemão Thomas Schirrmacher compartilha sua vasta experiência no<br />

campo da ética e relações internacionais, abordan<strong>do</strong> o tema da glória de Deus<br />

como o verdadeiro fundamento da ética cristã.<br />

Oferecemos, como de costume, algumas resenhas de livros que trazem<br />

importantes contribuições para discussões teológicas da atualidade. Além<br />

disso, nesta edição Danillo A. Santos faz oportuna avaliação de um software<br />

conheci<strong>do</strong> de muitos pastores e intérpretes bíblicos, BibleWorks, mostran<strong>do</strong><br />

especialmente as vantagens da última versão, ajudan<strong>do</strong> a decidir se vale a pena<br />

ou não adquiri-la. Os livros resenha<strong>do</strong>s são os seguintes. A<strong>do</strong>ração Evangélica,<br />

<strong>do</strong> puritano Jeremiah Burroughs, resenhada por Breno Mace<strong>do</strong>, é uma reflexão


sobre o culto público, feita por meio de sermões que são caracteriza<strong>do</strong>s por<br />

sensibilidade pastoral e fundamentação bíblica. Pregan<strong>do</strong> toda a Bíblia como<br />

Escritura Cristã, de Graeme Goldsworthy, resenha<strong>do</strong> por Giuliano Letieri<br />

Coccaro, é leitura recomendada para to<strong>do</strong>s aqueles que possuem interesse<br />

na interface entre pregação e teologia bíblica, principalmente no conceito<br />

de pregação cristocêntrica. A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento de Deus, de John<br />

Frame, resenhada pelo Prof. Filipe Fontes, oferece uma discussão sobre um<br />

campo relativamente esqueci<strong>do</strong> nas discussões atuais, a epistemologia, e sua<br />

importância para o empreendimento teológico.<br />

Dr. Leandro Lima<br />

Editor Geral


Sumário<br />

Artigos<br />

O poder da arte literária no Apocalipse: um estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> Antigo<br />

Testamento em Apocalipse 12.1-6<br />

Leandro Lima................................................................................................................................. 9<br />

Uma força missionária no sul global<br />

Pierre Rosa.................................................................................................................................... 31<br />

Antes só <strong>do</strong> que mal acompanhada: o risco de casar-se com o espírito de seu<br />

tempo – uma análise das propostas de revitalização de igreja <strong>do</strong>s movimentos<br />

seeker-sensitive e emergente<br />

Emilio Garofalo Neto..................................................................................................................... 41<br />

Homossexualidade: da repressão à celebração<br />

Valdeci Santos................................................................................................................................ 71<br />

Da coerência entre sacro e profano em música<br />

Silas Palermo................................................................................................................................. 93<br />

The <strong>do</strong>xological dimension of ethics<br />

Thomas Schirrmacher.................................................................................................................... 109<br />

Resenhas<br />

BibleWorks 10<br />

Danillo A. Santos........................................................................................................................... 127<br />

A<strong>do</strong>ração evangélica (Jeremiah Burroughs)<br />

Breno Mace<strong>do</strong>................................................................................................................................ 135<br />

Pregan<strong>do</strong> toda a Bíblia como escritura cristã (Graeme Goldsworthy)<br />

Giuliano Letieri Coccaro............................................................................................................... 141<br />

A <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> conhecimento de Deus (John M. Frame)<br />

Filipe Costa Fontes........................................................................................................................ 145<br />

Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15.............................................................................. 153


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

O Poder da Arte Literária no Apocalipse:<br />

Um Estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Uso <strong>do</strong> Antigo Testamento<br />

em Apocalipse 12.1-6<br />

Leandro Lima *<br />

resumo<br />

O livro <strong>do</strong> Apocalipse é um <strong>do</strong>s mais li<strong>do</strong>s e pesquisa<strong>do</strong>s ao longo da<br />

história, tanto de uma perspectiva popular quanto acadêmica. Por seus simbolismos<br />

e descrições catastróficas, causou grande influência no mun<strong>do</strong> ocidental,<br />

deu nome a um gênero específico de literatura antiga (a literatura apocalíptica)<br />

e foi objeto de estu<strong>do</strong>s, ilustrações e temas de romances por quase <strong>do</strong>is mil<br />

anos. Apesar de toda essa “popularidade”, o livro foi pouco avalia<strong>do</strong> a partir<br />

de suas qualidades literárias e da arte de sua narrativa, a não ser por meio de<br />

estu<strong>do</strong>s críticos que estiveram mais preocupa<strong>do</strong>s em fragmentá-lo em fontes<br />

desconexas <strong>do</strong> que em entender a riqueza de sua confecção literária. Mesmo<br />

entre os estudiosos conserva<strong>do</strong>res, a preocupação tem esta<strong>do</strong> mais em encontrar<br />

subsídios para sistemas teológicos ou respostas para angústias <strong>do</strong>s tempos em<br />

que viveram seus intérpretes. Uma análise cuida<strong>do</strong>sa de seus recursos literários,<br />

contu<strong>do</strong>, revela a grandiosidade de seu estilo, o senso de seus propósitos e a<br />

unidade da obra. Em suas ricas relações intertextuais com o Antigo Testamento,<br />

especialmente o Gênesis, usan<strong>do</strong> poderosos recursos literários por meio de<br />

descrições fantásticas, o Apocalipse interpreta as Escrituras Hebraicas e transmite<br />

uma mensagem instigante ao povo de Deus, trazen<strong>do</strong> uma interpretação<br />

* Doutor em Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Mestre em Teologia pelo<br />

CPAJ. Pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, em São Paulo. Autor de diversos livros,<br />

entre eles Razão da Esperança – Teologia Para Hoje, O Futuro <strong>do</strong> Calvinismo: Os Desafios e Oportunidades<br />

da Pós-Modernidade para a Igreja Reformada e Brilhe a sua Luz: O Cristão e os Dilemas da<br />

Sociedade Atual, to<strong>do</strong>s pela Editora Cultura Cristã. Também autor de uma ficção intitulada Crônicas<br />

de Olam, trilogia baseada em uma cosmovisão bíblica que está sen<strong>do</strong> produzida pela Tolk Publicações<br />

(selo da Editora Fiel). Professor de Novo Testamento no CPAJ.<br />

9


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

<strong>do</strong> inimigo, o dragão que se lhe opõe, e explican<strong>do</strong> assim, espiritualmente, a<br />

para<strong>do</strong>xal realidade <strong>do</strong> cristianismo <strong>do</strong> primeiro século, que enfrentava a perseguição<br />

incipiente <strong>do</strong> Império Romano. Ao se considerar a arte da narrativa<br />

<strong>do</strong> texto <strong>do</strong> Apocalipse, não só o livro fica muito mais extraordinário para o<br />

leitor, como seus significa<strong>do</strong>s teológicos e morais se tornam mais acessíveis.<br />

palavras-chave<br />

Análise literária; Arte da narrativa; Uso <strong>do</strong> Antigo Testamento no Novo<br />

Testamento; Apocalipse; Apocalipse como literatura; Apocalipse 12.<br />

introdução<br />

Não é mistério para ninguém que o livro de Apocalipse é sui generis em<br />

seu estilo literário. Sua complexidade tem desafia<strong>do</strong> os estudiosos ao longo<br />

<strong>do</strong>s séculos. Alguém que o lesse pela primeira vez, por certo perceberia que<br />

há uma grande história nele. Alguns poderiam ver uma trama capaz de fazer<br />

empalidecer muitas das grandes obras literárias aclamadas no mun<strong>do</strong>, com<br />

cenas de batalhas e personagens fantásticos descritos de mo<strong>do</strong> a fazer sombra<br />

em superproduções. Porém, muitos leitores e estudiosos cristãos quan<strong>do</strong> o<br />

abordam, por vezes parecem ignorar completamente esses fatos. Talvez considerem<br />

profano pensar que há uma história com certos traços fictícios num<br />

livro inspira<strong>do</strong> e canônico. O fato é que a maioria <strong>do</strong>s leitores e também <strong>do</strong>s<br />

comentaristas apressa-se em tirar significa<strong>do</strong>s teológicos e morais das passagens<br />

sem prestar atenção ao “instrumento” por meio <strong>do</strong> qual esses conceitos são<br />

transmiti<strong>do</strong>s, que é justamente a literatura, no caso, a literatura apocalíptica.<br />

Uma análise <strong>do</strong>s principais estu<strong>do</strong>s sobre o Apocalipse revela que a<br />

identificação <strong>do</strong>s aspectos literários presentes no processo de construção <strong>do</strong><br />

texto narrativo não é a principal preocupação da maioria <strong>do</strong>s estudiosos. 1 Entre<br />

os comentários que trouxeram contribuições sobre aspectos literários está<br />

o sempre menciona<strong>do</strong> trabalho de Charles, 2 que, entretanto, frequentemente<br />

viu em alguns aspectos literários (como as repetições) marcas de redação ou<br />

1 Evidentemente que há exceções. Desde Vitorino de Pettovio, no século IV, algum tratamento<br />

literário tem si<strong>do</strong> da<strong>do</strong> ao livro, especialmente por parte daqueles que seguin<strong>do</strong> o beatus viram no livro<br />

uma história recapitulada. Porém, mais de quinze séculos depois, o trabalho é ainda muito incipiente.<br />

O méto<strong>do</strong> histórico-crítico, certamente o mais pratica<strong>do</strong> entre os exegetas bíblicos nos séculos 19 e <strong>20</strong>,<br />

entende que a análise literária focaliza a história das formas bíblicas, procuran<strong>do</strong> identificar as fontes ou<br />

as formas como os materiais oriun<strong>do</strong>s de várias tradições foram agrupa<strong>do</strong>s. O pressuposto dessa análise<br />

é que a compilação dessas formas foi realizada para atender demandas religiosas específicas de certas<br />

épocas, feita muitas vezes de forma abrupta, sem preocupações estéticas. Houve, sem dúvida, nesse tipo<br />

de análise, um menosprezo <strong>do</strong> texto bíblico como ele se apresenta. Alter generaliza esse tipo de estu<strong>do</strong><br />

como uma tentativa de fazer “escavações” onde o teólogo-arqueólogo usa a pá, e de certo mo<strong>do</strong>, destrói<br />

o próprio texto. ALTER, Robert. The Art of Biblical Narrative. Rev. ed. New York: Basic Books, <strong>20</strong>10.<br />

2 CHARLES, R. H. A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John. Edinburgh:<br />

T. & T. Clark, 19<strong>20</strong>.<br />

10


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

interpolação, 3 e deu pouca atenção à arte narrativa <strong>do</strong> livro. Do mesmo mo<strong>do</strong>,<br />

Ford admite que “a construção deste apocalipse é única; de fato, é o mais belo<br />

e artisticamente construí<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os apocalipses”. 4 E, no entanto, isso para<br />

a referida autora é a prova definitiva de que o texto como se encontra é obra<br />

de um editor. Adela Yarbro Collins, em sua aclamada tese na Universidade de<br />

Harvard, 5 procurou entender o uso <strong>do</strong> material mitológico no capítulo 12 <strong>do</strong><br />

Apocalipse de João a partir de fontes gregas, mas não teve o mesmo trabalho<br />

de pesquisar isso em relação ao Antigo Testamento. Bauckham abor<strong>do</strong>u algumas<br />

qualidades literárias <strong>do</strong> Apocalipse em textos isola<strong>do</strong>s, estu<strong>do</strong> que ele<br />

próprio avaliou como “pioneiro e preliminar”, 6 e, no entanto, é um <strong>do</strong>s bons<br />

trabalhos sobre o assunto. Aune 7 reserva bastante espaço em seus três volumes<br />

de comentário para a “análise literária”, mas isso, no comentário, significa<br />

identificar as origens judaicas e, principalmente, não judaicas, <strong>do</strong>s símbolos.<br />

O trabalho de Kovacs & Rowland, 8 que se preocuparam com a recepção <strong>do</strong><br />

livro, confirmou como a maioria <strong>do</strong>s leitores ao longo da história não esteve<br />

atenta ao gênero literário. Barr 9 é um <strong>do</strong>s poucos que buscam ler o Apocalipse<br />

3 Charles defende que João, o autor original <strong>do</strong> Apocalipse, morreu antes de terminar o livro:<br />

“João morreu quan<strong>do</strong> ele completou 1-<strong>20</strong>.3 de sua obra, e os materiais para sua realização, que estavam<br />

na maior parte prontos em uma série de <strong>do</strong>cumentos independentes, foram reuni<strong>do</strong>s por um discípulo<br />

fiel, mas ignorante, na ordem que pensou fosse correta”. Ibid., vol. 1, p. l. Charles chama esse discípulo de<br />

“ignorante” ou “pouco inteligente” porque entende que esse editor teve pouca habilidade em trabalhar o<br />

texto de Apocalipse <strong>20</strong>.4-22.21 para torná-lo harmonioso com a obra de João, embora fosse mais habili<strong>do</strong>so<br />

no uso <strong>do</strong> grego <strong>do</strong> que João. Ibid., vol. 1, p. l-liv. Esse editor foi responsável por pelo menos 43<br />

interpolações no texto de João, as quais podem ser identificadas, segun<strong>do</strong> Charles, porque se chocam com<br />

o contexto e modificam o estilo linguístico original <strong>do</strong> autor. Ibid., vol. 1, p. lvi-lviii. Charles insiste: “Mas<br />

apesar de ser um melhor estudioso <strong>do</strong> grego, o editor é muito ignorante. Ele fez um caos de <strong>20</strong>.4-22, e<br />

sempre que interveio introduziu confusão e tornou impossível, em muitos casos, para os estudantes que<br />

aceitam suas interpolações como parte <strong>do</strong> texto, conseguir entender o autor”. Ibid., vol. 1, p. li.<br />

4 FORD, J. Massyngberde. Revelation – The Anchor Bible. New York: Doubleday, 1975, p. 46.<br />

5 YARBRO COLLINS, Adela. The Combat Myth in the Book of Revelation. Missoula, Montana:<br />

Scholars Press (Harvard Theological Review), 1976.<br />

6 BAUCKHAM, Richard. The Climax of Prophecy: Studies on the Book of Revelation. Edinburgh:<br />

T. & T. Clark, 1993, p. 1.<br />

7 O texto <strong>do</strong> Apocalipse, segun<strong>do</strong> Aune, chegou à presente forma literária em <strong>do</strong>is estágios<br />

principais, que ele define como “Primeira Edição” e “Segunda Edição”. A primeira edição consiste<br />

em Ap 1.7-12 e 4.1-22.5. Seria uma composição com forte ênfase apocalíptica e poderia ter si<strong>do</strong> anônima<br />

ou pseudônima. A segunda edição acrescentou 1.1-3 e 22.6-21, além de diversas expansões e<br />

interpolações nas seções anteriores, e tem uma orientação fortemente profética. Segun<strong>do</strong> Aune, “Essas<br />

duas edições principais representam os <strong>do</strong>is estágios primários na composição <strong>do</strong> Apocalipse que são<br />

os mais fáceis de detectar. AUNE, David. Revelation 1-5. Word Biblical Commentary. Volume 52a.<br />

Dallas, Texas: Word Books, 1997, p. cxxi.<br />

8 KOVACS, Judith. ROWLAND, Christopher. Revelation: The Apocalypse of Jesus Christ. Malden:<br />

Blackwell, <strong>20</strong>04.<br />

9 BARR, David L. Tales of the End: A Narrative Commentary on the Book of Revelation. Santa<br />

Rosa: Polebridge Press, 1998.<br />

11


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

como narrativa, oferecen<strong>do</strong> recursos para entender a complexidade da trama;<br />

porém, o faz ainda de forma bastante introdutória.<br />

Uma das maiores contribuições para o entendimento global <strong>do</strong> livro foi<br />

dada por Beale, 10 que construiu um monumental trabalho de análise <strong>do</strong> uso<br />

<strong>do</strong> Antigo Testamento (e da literatura rabínica) no Apocalipse, descortinan<strong>do</strong><br />

muitos <strong>do</strong>s conceitos teológicos desenvolvi<strong>do</strong>s por João como uma forma de<br />

interpretar competentemente o Antigo Testamento. Entendemos que esse é o<br />

ponto central a ser considera<strong>do</strong> na interpretação <strong>do</strong> Apocalipse. Neste artigo,<br />

buscaremos ver como João de fato se utilizou <strong>do</strong> Antigo Testamento. Porém,<br />

procuraremos fazer isso prestan<strong>do</strong> atenção à arte literária que ele utilizou ao<br />

aplicar o Antigo Testamento, a fim de transmitir uma poderosa mensagem<br />

teológica, na passagem central <strong>do</strong> livro, que descreve o grande drama da<br />

Mulher, <strong>do</strong> Dragão e <strong>do</strong> Filho. Portanto, nossa hipótese de trabalho é que a<br />

narrativa de Apocalipse 12.1-6 faz uso de recursos literários extraordinários,<br />

e eles foram utiliza<strong>do</strong>s a partir da interpretação <strong>do</strong> Antigo Testamento, numa<br />

poderosa aplicação prática <strong>do</strong>s ensinamentos da<strong>do</strong>s ao povo judaico, os quais<br />

João aplicou aos seus leitores <strong>do</strong> final <strong>do</strong> primeiro século.<br />

Em termos de definição, os aspectos artísticos literários podem incluir os<br />

elementos internos constitutivos <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> de um texto, como “enre<strong>do</strong> (o relacionamento<br />

entre os incidentes de uma história), caracterização (a apresentação<br />

<strong>do</strong>s atores), ponto de vista (como a história é focalizada) e distorções temporais<br />

(como anacronismos, repetições, antecipações e duração)”. 11 E além disso, “o<br />

uso artístico da linguagem, o jogo de ideias, convenções, tom, som, imagens,<br />

sintaxe, ponto de vista narrativo, unidades composicionais” 12 . Evidentemente,<br />

nem sempre é possível analisar to<strong>do</strong>s esses aspectos num único texto, os quais<br />

de fato não serão o foco deste artigo. Porém, o estudioso de uma narrativa deve<br />

estar atento, o máximo possível, a to<strong>do</strong>s eles, e pelo menos não pode deixar<br />

passar em branco aqueles que são centrais, os quais o próprio texto destacará. 13<br />

No caso <strong>do</strong> Apocalipse, a arte literária da narrativa é o instrumento por<br />

meio <strong>do</strong> qual a teologia <strong>do</strong> livro é construída e transmitida. O Apocalipse é uma<br />

peça literária muito bem construída, com detalhes e recursos estilísticos que<br />

10 BEALE, G. K. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids:<br />

Eerdmans, 1999. 1245 p. (The New International Greek Testament Commentary). BEALE, G. K. e<br />

CARSON, D. A. (Orgs.). Commentary on the New Testament Use of the Old Testament. Grand Rapids:<br />

Baker Academic, <strong>20</strong>07.<br />

11 BARR, David L. The Apocalypse of John. In: AUNE, David E. (Org.). The Blackwell Companion<br />

to the New Testament. Chichester: Willey-Blackwell, <strong>20</strong>10, p. 647.<br />

12 ALTER, The Art of Biblical Narrative, p. 13.<br />

13 Em um artigo anterior em <strong>Fides</strong> Reformata, trabalhamos com o aspecto literário que envolve os<br />

números em Apocalipse. LIMA, Leandro. Os números em Apocalipse: a importância da análise literária<br />

para a interpretação <strong>do</strong> livro. <strong>Fides</strong> Reformata XVIII-1 (<strong>20</strong>13): 9-23. O artigo está disponível em: cpaj.<br />

mackenzie.br/fidesreformata/arquivos/edicao_33/artigos/230.pdf.<br />

12


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

reforçam seu senti<strong>do</strong> e teologia. Entendemos que reconhecer a genialidade da<br />

obra literária <strong>do</strong> Apocalipse não trabalha contra o conceito de inspiração <strong>do</strong> texto,<br />

pois, de acor<strong>do</strong> com a definição reformada, a inspiração divina não elimina as<br />

habilidades <strong>do</strong>s autores bíblicos. E, no caso específico <strong>do</strong> Apocalipse, pode ser<br />

dito que a genialidade é ainda mais divina, pois foi o próprio Deus quem revelou<br />

os símbolos, caben<strong>do</strong> a João registrá-los debaixo da supervisão <strong>do</strong> Espírito. 14<br />

O objetivo não é substituir a exegese tradicional; ao contrário, é reforçá-la.<br />

É o que nos esforçaremos por fazer neste artigo, restringin<strong>do</strong>-nos a uma cena<br />

<strong>do</strong> livro, a que está registrada em 12.1-6. 15 Primordialmente, tentaremos identificar<br />

sua relação com o Antigo Testamento e também os aspectos narrativos<br />

essenciais que tornam a visão tão esplen<strong>do</strong>rosa e significativa.<br />

1. aspectos contextuais introdutórios ao<br />

capítulo 12<br />

O soar da sétima trombeta, que havia si<strong>do</strong> tão espera<strong>do</strong>, acabou sen<strong>do</strong>,<br />

assim como o sétimo selo, uma espécie de anticlímax. Ao contrário de uma<br />

descrição detalhada a respeito da vitória de Cristo e de sua igreja sobre as forças<br />

<strong>do</strong> mal, há apenas uma descrição simplificada em forma de proclamação<br />

de que o mun<strong>do</strong> se tornou de Deus e o reino foi estabeleci<strong>do</strong> (Ap 11.15-18).<br />

Isso representou algum avanço em relação ao sétimo selo, que revelou apenas<br />

silêncio no céu por meia hora. 16 Porém, não houve detalhes sobre como as forças<br />

<strong>do</strong> mal foram destruídas; há apenas um relato de “vozes” no céu comemoran<strong>do</strong><br />

a vitória que já aconteceu. Por outro la<strong>do</strong>, a descrição não surpreende, pois<br />

mantém o mesmo padrão de recapitulação: ao mesmo tempo em que antecipa<br />

os eventos, retarda as descrições completas para criar um efeito de suspense<br />

e expectativa em relação ao desfecho, sempre adia<strong>do</strong>.<br />

14 Beale entende que o conceito da palavra “revelação” utilizada por João tem sua base em Daniel 2<br />

(BEALE, The Book of Revelation, p. 50ss, 181ss), quan<strong>do</strong> Nabuco<strong>do</strong>nosor teve o sonho e chamou os<br />

encanta<strong>do</strong>res para que o revelassem. Porém, Nabuco<strong>do</strong>nosor quis algo incomum. Ele desejou que tanto<br />

o sonho quanto seu significa<strong>do</strong> fossem esclareci<strong>do</strong>s pelos adivinha<strong>do</strong>res. Somente Daniel conseguiu<br />

isso: “Então, foi revela<strong>do</strong> o mistério a Daniel numa visão de noite” (Dn 2.19). Portanto, Daniel viu tanto<br />

os símbolos que faziam parte <strong>do</strong> sonho de Nabuco<strong>do</strong>nosor, quanto o significa<strong>do</strong> deles. Esta é uma boa<br />

definição para o que é o Apocalipse: por meio da visão espiritual, João viu os símbolos pictóricos através<br />

de uma visão e recebeu a interpretação deles.<br />

15 A cena de Ap 12.1-6 é um recorte da grande cena <strong>do</strong>s capítulos 12-13.<br />

16 Ainda assim, esse silêncio não significa vazio, antes evoca um conteú<strong>do</strong> muito significativo.<br />

Desde o Antigo Testamento, o silêncio pode ter um senti<strong>do</strong> que envolve tanto a destruição <strong>do</strong>s inimigos,<br />

quanto o descanso <strong>do</strong>s salvos (Sl 31.17; 115.17; Is 47.5; Ez 27.32). Perante o Senhor, toda a terra deve<br />

se calar (Hc 2.<strong>20</strong>; Zc 2.13). Por isso, em silêncio, o fiel deve esperar a libertação divina (Sl 62.1,5;<br />

Hc 3.16; Lm 3.26). Portanto, a abertura <strong>do</strong> sétimo selo traz consigo o silêncio da plenitude. A história da<br />

salvação se completou. Cristo triunfou sobre a morte, comprou e buscou to<strong>do</strong>s os seus escolhi<strong>do</strong>s entre<br />

as nações, selou-os, guar<strong>do</strong>u-os até o fim. Os ímpios foram destruí<strong>do</strong>s juntamente com a terra e o céu<br />

atuais, a nova criação foi visualizada, Deus fez seu tabernáculo com os homens. O fim chegou. Silêncio.<br />

Para mais conceitos relaciona<strong>do</strong>s a esse silêncio, ver BEALE, The Book of Revelation, p. 446-454.<br />

13


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

Ao anunciar o fim, sem descrevê-lo, João deixou o leitor ávi<strong>do</strong> por mais<br />

detalhes e informações, enquanto paulatinamente introduziu novos elementos.<br />

Esse aspecto de avanço e repetição é um <strong>do</strong>s principais recursos literários da obra,<br />

conforme se percebeu desde os dias de Vitorino, no final <strong>do</strong> terceiro século. 17<br />

O capítulo 12 inicia uma nova seção, a quarta, 18 que é a central no padrão<br />

de sete <strong>do</strong> livro como um to<strong>do</strong>. 19 Essa seção é decisiva em termos de conteú<strong>do</strong>,<br />

pois revela os detalhes sobre a grande batalha já anunciada na sétima trombeta e<br />

no sexto selo, enfatizan<strong>do</strong> o que realmente está por trás <strong>do</strong> conflito entre a igreja<br />

e o mun<strong>do</strong>. Ao estudarmos esta parte, “tu<strong>do</strong> nos convida a considerar Ap 12<br />

como uma retomada <strong>do</strong>s temas <strong>do</strong> capítulo precedente. Mas este paralelismo<br />

não deve ocultar a progressão <strong>do</strong> pensamento com base nos elementos novos”. <strong>20</strong><br />

O último verso <strong>do</strong> capítulo 11 descreve que, após o soar da sétima trombeta:<br />

“Abriu-se, então, o santuário de Deus, que se acha no céu, e foi vista a<br />

arca da Aliança no seu santuário, e sobrevieram relâmpagos, vozes, trovões,<br />

terremoto e grande saraivada” (11.19). Como em Ap 4.5; 8.5; 16.18, a declaração<br />

antecipa algo grande, no caso, a descrição central <strong>do</strong> livro <strong>do</strong> Apocalipse<br />

com os personagens principais da trama: a mulher, o filho e o dragão (e os <strong>do</strong>is<br />

alia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> dragão <strong>do</strong> capítulo 13).<br />

O que vem em seguida é uma transição abrupta, quan<strong>do</strong> a cena focaliza<br />

o céu e se vê uma mulher e um dragão. Segun<strong>do</strong> Bauckham, “nós precisamos<br />

aceitar que a transição abrupta é intencional. João fez isso de forma abrupta com<br />

o objetivo de criar a impressão de um recomeço”. 21 O capítulo 12 recapitula a<br />

história da redenção, porém não faz isso de forma repetitiva e monótona, e sim<br />

utilizan<strong>do</strong> uma linguagem simbólica, bélica, que revive os grandes temas <strong>do</strong><br />

Antigo Testamento, por meio da cena <strong>do</strong> enfrentamento entre a mulher grávida<br />

e o dragão, e as consequências dessa batalha no céu e na terra. Nos elementos<br />

utiliza<strong>do</strong>s por João, o Antigo Testamento como um to<strong>do</strong> (e também o Novo<br />

17 Até onde se sabe, Vitorino (morto no início <strong>do</strong> século IV, c. 304-305) foi o primeiro a perceber<br />

que o livro <strong>do</strong> Apocalipse recapitulava uma história: “Nós não precisamos prestar atenção para a ordem<br />

<strong>do</strong> que é dito, porque frequentemente o Espírito Santo, quan<strong>do</strong> Ele está viajan<strong>do</strong> até o fim <strong>do</strong>s tempos,<br />

retorna novamente aos mesmos tempos e completa o que ele deixou de dizer antes”. Commentary on<br />

the Apocalypse of the Blessed John. In: ROBERTS, Alexander; DONALDSON, James; COXE, A.<br />

Cleveland. Ante-Nicene Fathers. Buffallo, NY: The Christian Literature Company, 1885, vol. 7, p. 352.<br />

18 Seguin<strong>do</strong> aqui a ideia desde Vitorino de que o livro recapitula a mesma história e de Ticônio de<br />

que se divide em sete seções (segun<strong>do</strong> relato de Agostinho e Beda). A divisão sétupla também foi estabelecida<br />

pelo Venerável Beda (The Explanation of the Apocalypse. Trans. by the Rev. Edward Marshall.<br />

Oxford and Lon<strong>do</strong>n: James Parker, 1878, p. 3-4) e modernamente por vários autores, como William<br />

Hendriksen More than Conquerors: An Interpretation of the Book of Revelation. 5th ed. Grand Rapids:<br />

Baker Books, 1949.<br />

19 As sete seções provavelmente sejam: Ap 1-3; 4-7; 8-11; 12-14; 15-16; 17-19; <strong>20</strong>-22.<br />

<strong>20</strong> PRIGENT, Pierre. L’Apocalypse de Saint Jean. Lausanne, Paris: Delachaux & Niestlé, 1981,<br />

p. 176.<br />

21 BAUCKHAM, The Climax of Prophecy, p. 15.<br />

14


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

Testamento naquilo que cumpre o Antigo) estará diante <strong>do</strong>s olhos de seus<br />

leitores, e eles o verão de uma maneira nova e significativa, ao mesmo tempo<br />

em que perceberão como se aplica consistentemente à própria situação deles.<br />

2. o uso criativo de gênesis 3<br />

A tese de Yarbro Collins é que a batalha entre a mulher e o dragão é uma<br />

recriação cristã <strong>do</strong> mito de Píton-Leto-Apolo e <strong>do</strong> mito de Set-Ísis-Hórus. 22<br />

Com base no estu<strong>do</strong> de Fonterose, 23 Yarbro Collins demonstra que a versão<br />

grega <strong>do</strong> mito era bem conhecida nas regiões em que o Apocalipse circulou<br />

no final <strong>do</strong> primeiro século, e identifica os pontos em comum com o texto de<br />

Apocalipse 12 <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: 24<br />

I. O MITO DE PÍTON-LETO-APOLO<br />

1. Motivação para o ataque de Píton<br />

2. Leto grávida por Zeus<br />

3. Píton persegue Leto com intenção de matá-la<br />

4. Por ordem de Zeus, o vento norte resgata Leto; Posei<strong>do</strong>n ajuda Leto<br />

5. Nascimento de Apolo e Artemis<br />

6. Apolo derrota Píton<br />

8. Apolo estabelece os jogos<br />

II. O MITO DE SET-ÍSIS-HORUS<br />

1. Motivação <strong>do</strong> ataque de Set em Osíris (reina<strong>do</strong>)<br />

2. Isis grávida por Osíris<br />

5. Nascimento de Hórus<br />

3. Set persegue Isis e a criança para matar a criança<br />

4. Isis ajudada por Rá e Thoth<br />

6. Hórus derrota Set<br />

7. Reina<strong>do</strong> de Hórus<br />

III. APOCALIPSE 12<br />

2. Uma mulher dá à luz (v. 2)<br />

3. Um dragão tenta devorar seu filho (v. 4)<br />

5. Nascimento <strong>do</strong> filho (v. 5)<br />

7. Reina<strong>do</strong> <strong>do</strong> filho (v. 5)<br />

22 Embora a estudiosa de Harvard tenha fica<strong>do</strong> reconhecida pela teoria no início <strong>do</strong> século <strong>20</strong>, R. H.<br />

Charles já a menciona como ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> proferida pela primeira vez em 1794 por Dupuis. CHARLES,<br />

A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John, p. 312.<br />

23 FONTEROSE, Joseph. Python: A Study of Delphic Myth. Los Angeles: University of California<br />

Press, 1959, p. 262-264.<br />

24 YARBRO COLLINS, The Combat Myth in the Book of Revelation, p. 66. A numeração <strong>do</strong><br />

quadro segue o texto em inglês.<br />

15


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

4. A mulher é ajudada por Deus, pela grande águia e pela terra (v. 6,<br />

14, 16)<br />

6. Miguel derrota o dragão (v. 7-9)<br />

É possível que João tivesse conhecimento desse e de outros mitos 25 e os tenha<br />

utiliza<strong>do</strong> de algum mo<strong>do</strong> para seus propósitos, 26 talvez para estabelecer algum<br />

diálogo com os leitores gregos. Porém, estudiosos como Bauckham e Beale têm<br />

demonstra<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> mais consistente que as imagens apocalípticas descritas<br />

por João baseiam-se, sobretu<strong>do</strong>, nas imagens <strong>do</strong> Antigo Testamento. Bauckham<br />

notou que a narrativa da mulher e <strong>do</strong> dragão recorda a inimizade entre a mulher<br />

e a serpente (Gn 3.15) e retrata o povo de Deus (Israel) como mãe <strong>do</strong> Messias. 27<br />

E Beale também vê no texto “o começo <strong>do</strong> cumprimento de Gn 3.15-16”. 28 De<br />

fato, o capítulo 12 de Apocalipse reverbera, amplia e interpreta a antiga narrativa<br />

<strong>do</strong> capítulo 3 de Gênesis. O seguinte quadro nos ajuda a ver como os temas e<br />

personagens de Gênesis 3 aparecem amplia<strong>do</strong>s em Apocalipse 12:<br />

Gênesis 3.14-16 Apocalipse 12.1-4<br />

14 Então, o SENHOR Deus disse à<br />

serpente: Visto que isso fizeste, maldita<br />

és entre to<strong>do</strong>s os animais <strong>do</strong>mésticos e<br />

o és entre to<strong>do</strong>s os animais selváticos;<br />

rastejarás sobre o teu ventre e comerás<br />

pó to<strong>do</strong>s os dias da tua vida.<br />

15 Porei inimizade entre ti e a mulher,<br />

entre a tua descendência e o seu descendente.<br />

Este te ferirá a cabeça, e tu lhe<br />

ferirás o calcanhar.<br />

16 E à mulher disse: Multiplicarei sobremo<strong>do</strong><br />

os sofrimentos da tua gravidez;<br />

em meio de <strong>do</strong>res darás à luz filhos; o<br />

teu desejo será para o teu mari<strong>do</strong>, e ele<br />

te governará.<br />

1 Viu-se grande sinal no céu, a saber, uma mulher<br />

vestida <strong>do</strong> sol com a lua debaixo <strong>do</strong>s pés e uma<br />

coroa de <strong>do</strong>ze estrelas na cabeça,<br />

2 que, achan<strong>do</strong>-se grávida, grita com as <strong>do</strong>res de<br />

parto, sofren<strong>do</strong> tormentos para dar à luz.<br />

3 Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um<br />

dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez<br />

chifres e, nas cabeças, sete diademas.<br />

4 A sua cauda arrastava a terça parte das estrelas<br />

<strong>do</strong> céu, as quais lançou para a terra; e o dragão se<br />

deteve em frente da mulher que estava para dar à<br />

luz, a fim de lhe devorar o filho quan<strong>do</strong> nascesse.<br />

9 E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente,<br />

que se chama diabo e Satanás, o sedutor<br />

de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, sim, foi atira<strong>do</strong> para a terra.<br />

25 Outros mitos de combates lembra<strong>do</strong>s são: as fontes gnósticas <strong>do</strong> Apocalipse de Adão, o mito<br />

babilônico da criação acerca de Tiamat e o monstro de sete cabeças morto pelo deus Marduk, quan<strong>do</strong><br />

Tiamat arrastou um terço das estrelas <strong>do</strong> céu. KISTEMAKER, Simon. Exposição <strong>do</strong> Apocalipse. São<br />

Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>04, p. 448. Charles propôs há quase um século que parte <strong>do</strong> combate se baseava<br />

na religião Zend (persa), que destaca uma batalha entre anjos e demônios no céu, sen<strong>do</strong> que os demônios<br />

acabaram expulsos. CHARLES, A Critical and Exegetical Commentary on the Revelation of St. John,<br />

p. 308. Para outras propostas, ver: PRIGENT, L’Apocalypse de Saint Jean, p. 177-182.<br />

26 O mesmo João a quem é atribuí<strong>do</strong> o quarto evangelho também fez uso de termos conheci<strong>do</strong>s<br />

fora <strong>do</strong> judaísmo, como o conceito <strong>do</strong> Logos utiliza<strong>do</strong> na filosofia neoplatônica e aplica<strong>do</strong> a Jesus em<br />

João 1.1-2,14.<br />

27 BAUCKHAM, The Climax of Prophecy, p. 15.<br />

28 BEALE e CARSON, Commentary on the New Testament Use of the Old Testament, p. 1123.<br />

16


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

Os <strong>do</strong>is textos falam sobre uma mulher grávida que sofre as <strong>do</strong>res <strong>do</strong><br />

parto, sobre um filho (descendente) da mulher, mostram o inimigo (dragão-<br />

-serpente) e, principalmente, mencionam uma inimizade, além de estabelecerem<br />

um rebaixamento <strong>do</strong> inimigo. Até aqui as semelhanças ficam claras,<br />

mas não se pode deixar de notar a ampliação <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> da<strong>do</strong> pelo texto <strong>do</strong><br />

Apocalipse por meio de to<strong>do</strong> o seu simbolismo. A mulher (que estava nua em<br />

Gênesis, depois vestida com folhas e finalmente com roupas de peles) agora<br />

está vestida de sol, com a lua debaixo <strong>do</strong>s pés e uma coroa de <strong>do</strong>ze estrelas.<br />

Constata-se também a elevação <strong>do</strong> próprio dragão. Em Gênesis 3 ele é uma<br />

serpente engana<strong>do</strong>ra e ardilosa, que age pela astúcia, tentan<strong>do</strong> ludibriar com<br />

palavras, porém é rebaixa<strong>do</strong> para rastejar. Por sua vez em Apocalipse 12, o<br />

dragão arrasta um terço das estrelas <strong>do</strong> céu e direciona toda a sua fúria contra<br />

a mulher a fim de lhe devorar o filho, e, por fim, ele próprio é lança<strong>do</strong> <strong>do</strong> céu<br />

para a terra. Ou seja, Apocalipse está apontan<strong>do</strong> para um cumprimento muito<br />

mais eleva<strong>do</strong> e amplia<strong>do</strong> dessa passagem.<br />

A partir da analogia joanina de Gênesis, a correlação de temas e personagens<br />

pode ser vista na seguinte estruturação, que segue, pelo menos em termos<br />

de estilo, a proposta de Yarbro Collins, porém ten<strong>do</strong> como padrão comparativo<br />

o livro <strong>do</strong> Gênesis:<br />

GÊNESIS 3<br />

A. Serpente (v. 14a)<br />

B. Rebaixamento da serpente (v. 14b)<br />

C. A mulher (v. 15a)<br />

D. Inimizade da serpente com a mulher (v. 15a)<br />

E. Descendente da mulher (v. 15b)<br />

F. Inimizade entre a serpente e o descendente da mulher (v. 15c)<br />

G. O sofrimento de parto da mulher (v. 16a)<br />

APOCALIPSE 12<br />

C. A mulher (v. 1a)<br />

G. O sofrimento de parto da mulher (v. 2a)<br />

A. O dragão (vs. 2-3)<br />

E. O descendente da mulher (v. 5)<br />

D. Inimizade <strong>do</strong> dragão contra a mulher (v. 4b)<br />

F. Inimizade entre o dragão e o descendente da mulher (v. 4c)<br />

B. Expulsão (rebaixamento) <strong>do</strong> dragão (vs. 7-9)<br />

Nota-se, portanto, que a fonte com a qual se relaciona o capítulo 12 de<br />

Apocalipse é muito mais naturalmente encontrada em Gênesis 3 <strong>do</strong> que nos<br />

mitos gregos ou egípcios. Porém, Apocalipse reverbera, amplia e interpreta<br />

17


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

a narrativa de Gênesis, aplican<strong>do</strong> essa antiga história como um padrão para<br />

descrever o to<strong>do</strong> da história divina com seu povo.<br />

Assim, é perceptível que o Apocalipse faz uso de criativa intertextualidade.<br />

Como diz Barr: “Intertextualidade refere-se não apenas ao relacionamento<br />

entre um texto e outro, mas a sua mútua influência”. 29 Nota-se que Apocalipse<br />

12 interpreta a figura da serpente-dragão como o próprio Diabo, sen<strong>do</strong> essa<br />

interpretação explícita, a única nas Escrituras. Com uma leitura apenas de Gênesis<br />

3, não seria possível concluir com segurança que aquela serpente fosse,<br />

na verdade, um anjo decaí<strong>do</strong>. Mas João revela isso explicitamente (Ap 12.9),<br />

e, assim, modificou para sempre o mo<strong>do</strong> como seus leitores passariam a ler o<br />

texto de Gênesis 3.<br />

Segun<strong>do</strong> Barr, o leitor <strong>do</strong> Apocalipse precisa estar ciente <strong>do</strong>s muitos<br />

intercâmbios simbólicos, sen<strong>do</strong> que os símbolos permitem que os ouvintes<br />

reflitam novamente sobre o mun<strong>do</strong> cotidiano e que o compreendam de uma<br />

forma nova. 30 Portanto, a leitura <strong>do</strong> antigo texto <strong>do</strong> Gênesis ganhou novos<br />

significa<strong>do</strong>s a partir da leitura <strong>do</strong> Apocalipse, ao levar-se em consideração as<br />

relações intertextuais. Do mesmo mo<strong>do</strong>, os leitores de João se veem dentro<br />

da história bíblica, pois aquela mesma serpente que tentou a mulher no Éden<br />

continua em ação tentan<strong>do</strong> destruir a igreja no presente.<br />

3. análise <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> na narrativa de apocalipse 12.1-6<br />

A seguir abordaremos o enre<strong>do</strong> de Apocalipse 12.1-6, com o objetivo<br />

de analisar as escolhas de figuras e ações <strong>do</strong> texto que interpretam o Antigo<br />

Testamento. 31<br />

A narrativa, segun<strong>do</strong> To<strong>do</strong>rov, não se contenta apenas com ação ou com<br />

um esta<strong>do</strong>, mas “exige o desenvolvimento de uma ação, isto é, a mudança,<br />

a diferença”. 32 Os <strong>do</strong>is princípios que To<strong>do</strong>rov considera unidades essenciais<br />

das narrativas são: sucessão e transformação. 33 Ou seja, o equilíbrio original<br />

de uma narrativa, ao passar pelo esta<strong>do</strong> de desequilíbrio, não volta à situação<br />

anterior, mas transforma-se em um novo esta<strong>do</strong>, que é um novo equilíbrio.<br />

Yves Reuter resume essa ideia ao asseverar que “a narrativa se definiria como<br />

transformação de um esta<strong>do</strong> em um outro esta<strong>do</strong>”. 34 To<strong>do</strong> texto narrativo se<br />

29 BARR, The Apocalypse of John, p. 640.<br />

30 BARR, Tales of the End, p. 68.<br />

31 Uma análise mais completa <strong>do</strong>s outros recursos literários <strong>do</strong>s capítulos 12-13 de Apocalipse<br />

é feita em minha tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>: LIMA, L. A. Apocalipse como literatura: um estu<strong>do</strong> sobre a<br />

importância da análise da arte literária em Apocalipse 12-13. São Paulo: Universidade Presbiteriana<br />

Mackenzie, <strong>20</strong>12.<br />

32 TODOROV, T. Os gêneros <strong>do</strong> discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 62.<br />

33 Ibid., p. 64.<br />

34 REUTER, Yves. Introdução à análise <strong>do</strong> romance. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 49.<br />

18


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

constrói a partir da elaboração de fatores que dão senti<strong>do</strong> à narrativa. Entre<br />

esses fatores estão a construção de personagens, a definição <strong>do</strong> tempo da narrativa,<br />

a construção <strong>do</strong>s cenários ou a definição <strong>do</strong> espaço, e o próprio mo<strong>do</strong><br />

como o narra<strong>do</strong>r contará a história, conduzin<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> para o desenvolvimento<br />

<strong>do</strong> enre<strong>do</strong>. Por enre<strong>do</strong>, entendemos o que To<strong>do</strong>rov define:<br />

Pode-se apresentar a intriga mínima completa como a passagem de um equilíbrio<br />

a outro. (…) Os <strong>do</strong>is momentos de equilíbrio, semelhantes e diferentes,<br />

estão separa<strong>do</strong>s por um perío<strong>do</strong> de desequilíbrio que será constituí<strong>do</strong> de um<br />

processo de degradação e um processo de melhora. 35<br />

To<strong>do</strong>rov propõe essa definição como um padrão estrutural que pode ser<br />

encontra<strong>do</strong> na maioria das narrativas.<br />

A fim de entender a multiplicidade de ações de uma narrativa, muitos<br />

estudiosos literários têm insisti<strong>do</strong> na delimitação de “funções” que possam<br />

“se reduzir a um conjunto finito, comum a todas as histórias”. 36 Yves Reuter<br />

menciona o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> russo Vladimir Propp, que encontrou 31 “funções”<br />

que constituiriam a base comum de todas as narrativas, desenvolven<strong>do</strong>-se da<br />

situação inicial de abertura, na qual os personagens são apresenta<strong>do</strong>s, passan<strong>do</strong><br />

por diversas situações de afastamento, interdição, transgressão, interrogação,<br />

informação, reação, deslocamento, reparação, etc., até o desfecho, com a<br />

punição <strong>do</strong> falso herói e recompensa <strong>do</strong> verdadeiro. 37 A dificuldade com uma<br />

estrutura tão grande de “funções” é óbvia, pois não se pode transferir tantos<br />

movimentos para outras narrativas; por isso, buscou-se reagrupar essas funções<br />

em subconjuntos. Com base nisso, chegou-se ao chama<strong>do</strong> “esquema quinário”<br />

(devi<strong>do</strong> às suas cinco etapas) ou “esquema canônico da narrativa”. 38 As cinco<br />

etapas são as seguintes: Esta<strong>do</strong> inicial – Complicação (ou força perturba<strong>do</strong>ra) –<br />

Dinâmica – Resolução (ou força equilibra<strong>do</strong>ra) – Esta<strong>do</strong> final.<br />

Usaremos neste trabalho termos correlatos aos apresenta<strong>do</strong>s por Reuter.<br />

São eles: apresentação, complicação, desenvolvimento, clímax e desenlace.<br />

Entenden<strong>do</strong> que esse esquema deve ser utiliza<strong>do</strong> de forma flexível para não<br />

cair na generalização, procuraremos prestar atenção também aos personagens,<br />

ao tempo, espaço ou cenário, e ao estilo <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, porém de forma bastante<br />

resumida, pois nosso foco está no uso <strong>do</strong> Antigo Testamento aplica<strong>do</strong> simbolicamente<br />

e artisticamente como uma interpretação da história messiânica como<br />

um to<strong>do</strong>, à situação <strong>do</strong>s leitores de João.<br />

35 TODOROV, T. A estruturas narrativas. 5ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, <strong>20</strong>08, p. 88.<br />

36 REUTER, Introdução à análise <strong>do</strong> romance, p. 47.<br />

37 Ibid., p. 47-49.<br />

38 REUTER, Yves. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: Difel,<br />

<strong>20</strong>02, p. 35-36.<br />

19


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

3.1 Apresentação (v. 1-2)<br />

A cena começa com a apresentação, na qual é feita a descrição <strong>do</strong>s<br />

personagens principais em conflito numa guerra cósmica, e também <strong>do</strong> local<br />

<strong>do</strong> conflito.<br />

Toda a visão segun<strong>do</strong> João é “um grande sinal no céu”. Aune acredita que<br />

o “sinal” pode ser uma referência ao signo ou a uma constelação na astrologia<br />

greco-romana. 39 Porém, o Antigo Testamento revela os céus como o palco <strong>do</strong>s<br />

sinais de Deus para a terra (Gn 1.14-17). Além disso, a posteridade de Abraão<br />

é simbolizada nas estrelas <strong>do</strong> céu (Gn 15.5; 26.4). Sen<strong>do</strong> assim, o grande “sinal<br />

no céu” localiza o leitor dentro <strong>do</strong> grande palco <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r (Sl 19.1), por<br />

meio <strong>do</strong> qual ele revela sua benevolência e propósitos ao seu povo observa<strong>do</strong>r.<br />

A primeira personagem a aparecer no céu é “uma mulher”. Percebe-se<br />

que ela é uma narrativa em si mesma. Seu surgimento é revesti<strong>do</strong> de grandes<br />

significa<strong>do</strong>s para os leitores-ouvintes 40 de João. Alguns, talvez, pensassem em<br />

Maria, a mãe de Jesus; outros provavelmente a identificassem com a própria<br />

Igreja. 41<br />

As duas descrições dadas à personagem, que apontam para seu esta<strong>do</strong><br />

físico e psicológico, são fundamentais para o reconhecimento da mesma e da<br />

própria cena como um to<strong>do</strong>. Ela recebe uma descrição física de suas vestes<br />

e também de seu esta<strong>do</strong> de sofrimento por causa da gravidez, reforça<strong>do</strong> pelo<br />

tormento por causa da perseguição <strong>do</strong> dragão. Já vimos a comparação dessa<br />

passagem com Gênesis 3, porém há outra passagem no Antigo Testamento que<br />

acrescenta informações relevantes ao tema. Trata-se <strong>do</strong> sonho de José. O filho<br />

de Jacó relatou seu sonho a seu pai e irmãos <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: “Sonhei também<br />

que o sol, a lua e onze estrelas se inclinavam perante mim” (Gn 37.9). José<br />

estava se referin<strong>do</strong> ao seu pai, mãe e onze irmãos, sen<strong>do</strong> ele próprio o décimo-<br />

-segun<strong>do</strong>, ou a décima-segunda estrela, ou seja, o núcleo da família de Jacó<br />

39 AUNE, David. Revelation 6-16. Word Biblical Commentary. Volume 52b. Dallas, Texas: Word<br />

Books, 1998, p. 664.<br />

40 Nas sete igrejas, o livro devia ser li<strong>do</strong> por uma pessoa e “ouvi<strong>do</strong>” pelas demais (Ap 1.3).<br />

41 Na literatura bíblica e, principalmente, na literatura rabínica, a figura da mulher geralmente<br />

não está associada à virtude. O próprio texto de Eva é o grande exemplo disso. A mulher foi enganada<br />

pela serpente, conforme Paulo confirma, ao mesmo tempo em que destaca a honra de sua função de mãe<br />

(1Tm 2.12-15). Outras mulheres que tiveram deslizes na Bíblia foram Sara, a esposa de Abraão que o<br />

induziu a possuir a escrava Hagar a fim de gerar um filho, e Bate-Seba, que se envolveu com Davi em<br />

adultério. Prostitutas como Raabe, a mulher samaritana e Maria Madalena recebem acolhimento dentro<br />

<strong>do</strong> povo da Aliança, mas, em princípio, não são evidências de virtude. Em Apocalipse 12 há uma espécie<br />

de resgate da figura da mulher, descreven<strong>do</strong>-a como uma criação gloriosa de Deus, porém, fazen<strong>do</strong> eco<br />

com a passagem de Paulo acima citada, a glória da mulher se expressa pelo fato de ela estar grávida,<br />

desfrutan<strong>do</strong>, portanto, de seu esta<strong>do</strong> de maior bem-aventurança (conforme a tradição hebraica), e também<br />

de seu maior momento de fragilidade. Ela é uma protagonista, mas apesar de toda a sua glória, evoca as<br />

lembranças de alguém que precisa de socorro e proteção.<br />

<strong>20</strong>


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

com as <strong>do</strong>ze tribos de Israel 42 representadas por seus patriarcas. 43 Portanto, João<br />

está asseveran<strong>do</strong> que a mulher gloriosa é realmente o povo de Israel, 44 porém<br />

regredin<strong>do</strong> genealogicamente até Eva, que foi tentada pela serpente (dragão)<br />

em Gênesis 3. 45 Portanto, é toda a descendência prometida, de Eva até Maria.<br />

As <strong>do</strong>res de parto da mulher também são uma indicação importante da<br />

natureza dela. Foi a promessa divina embutida na maldição mitigada, pois Eva<br />

sofreria <strong>do</strong>res para conceber. A mulher a<strong>do</strong>rnada com os astros está “no céu”,<br />

mas ao mesmo tempo, sofren<strong>do</strong> <strong>do</strong>res bem terrenas. É preciso lembrar que, no<br />

Gênesis, Deus havia ameaça<strong>do</strong> o homem e a mulher com a morte em caso de<br />

desobediência (2.17). Por isso, quan<strong>do</strong> Deus assegurou que Eva continuaria<br />

a ter filhos, a <strong>do</strong>r e o sofrimento resultantes da concepção não poderiam ser<br />

considera<strong>do</strong>s uma plena maldição, antes uma maldição diminuída. O grande<br />

presente de Deus para a mulher é a concepção e o dar à luz. Isso garante a<br />

continuidade da vida. Diversas vezes, no Antigo Testamento, a nação de Israel<br />

é descrita como uma mulher, a esposa de Iavé, porém, uma esposa por vezes<br />

infiel, como Eva o foi (Jr 31.32; Ez 16.1ss; Os 3.1). 46 A nação de Israel também<br />

aparece, por vezes, como “grávida”, ou sentin<strong>do</strong> os tormentos da gravidez<br />

(Is 26.17-18; Jr 30.6). Portanto, embora a figura da mulher seja uma descrição<br />

de toda a “descendência” prometida, de Eva até Maria (Gl 4.4), ela se reveste<br />

singularmente das “roupas” de Israel, ou seja, o povo da antiga aliança, que é<br />

o povo redimi<strong>do</strong>, a igreja <strong>do</strong> Antigo Testamento.<br />

42 Vitorino escreveu: “A coroa de <strong>do</strong>ze estrelas significa o coral <strong>do</strong>s pais, de acor<strong>do</strong> com o<br />

nascimento carnal, de quem Cristo tomou a carne”. Commentary on the Apocalypse of the Blessed<br />

John, p. 355.<br />

43 BEALE e CARSON, Commentary on the New Testament Use of the Old Testament, p. 1123.<br />

44 O testamento de Naftali menciona o sol e a lua, no qual Levi é identifica<strong>do</strong> com o sol e Judá<br />

com a lua (5.1-4).<br />

45 Hipólito sustentava que, usan<strong>do</strong> a imagem da mulher, João pretendia “manifestar a Igreja, investida<br />

com a palavra <strong>do</strong> Pai, que brilha acima <strong>do</strong> sol”. Treatise on Christ and Antichrist. In: ROBERTS,<br />

Alexander; DONALDSON, James; COXE, A. Cleveland (Orgs.). Ante-Nicene Fathers. Buffallo, NY:<br />

The Christian Literature Company, 1885, vol. 61, p. 217. Ticônio e Metódio também sustentavam essa<br />

interpretação eclesiástica da mulher (KOVACS, Judith; ROWLAND, Christopher. Revelation: The<br />

Apocalypse of Jesus Christ. Malden: Blackwell, <strong>20</strong>04, p. 136), sen<strong>do</strong> que Metódio também a considerava<br />

uma espécie de “mãe das virgens” (The Banquet of The Ten Virgins. In: ROBERTS, Alexander;<br />

DONALDSON, James; COXE, A. Cleveland (Orgs.). Ante-Nicene Fathers. Buffallo, NY: The Christian<br />

Literature Company, 1885, vol. 6, p. 336). Vitorino via no símbolo a igreja <strong>do</strong> Antigo Testamento e também<br />

a igreja <strong>do</strong> Novo Testamento: “A mulher vestida com o sol, ten<strong>do</strong> a lua sob seus pés, usan<strong>do</strong> uma<br />

coroa de <strong>do</strong>ze estrelas sobre sua cabeça e sofren<strong>do</strong> <strong>do</strong>res, é a antiga Igreja <strong>do</strong>s pais, <strong>do</strong>s profetas e <strong>do</strong>s<br />

santos e apóstolos, que tem a <strong>do</strong>r e o tormento de sua longa espera até que Cristo, o fruto de sua pessoa<br />

segun<strong>do</strong> a carne, após a longa espera da promessa, se torne carne” (Commentary on the Apocalypse of<br />

the Blessed John, p. 355). Depois, ele a identificou diretamente com a igreja cristã (p. 355-356).<br />

46 Em contraste, no livro <strong>do</strong> Apocalipse fica claro que o povo de Deus, redimi<strong>do</strong> pelo Cordeiro,<br />

é uma esposa fiel <strong>do</strong> Cordeiro (Ap 19.7; 21.9).<br />

21


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

Portanto, os gritos da mulher gloriosa que ecoam <strong>do</strong> céu evocam a concepção<br />

de esperança e expectativa pelo nascimento de seu filho, o qual foi<br />

anuncia<strong>do</strong> ao longo de to<strong>do</strong> o Antigo Testamento. É o anúncio divino de que<br />

o Messias finalmente vai nascer e todas as promessas de libertação e paz vão<br />

se concretizar para a mulher (Israel). Pode ser considera<strong>do</strong> o estágio de equilíbrio<br />

original (To<strong>do</strong>rov), evocan<strong>do</strong> o próprio equilíbrio restaura<strong>do</strong> por Deus<br />

em Gênesis 3, após amaldiçoar a serpente. Porém, é mais <strong>do</strong> que isso, pois<br />

aponta para a expectativa de toda a Bíblia: o anseio pela vinda <strong>do</strong> Messias que<br />

trará a benevolência de Deus para o mun<strong>do</strong>.<br />

3.2 Complicação (v. 3-4a)<br />

Justamente nesse esta<strong>do</strong> de glória-fragilidade da mulher, aparece o outro<br />

grande sinal também no céu. Nesse ponto, João chama a atenção <strong>do</strong>s leitores.<br />

Ele diz “olhe” (um imperativo – καὶ ἰδοὺ 47 ), aí está um dragão, grande, vermelho,<br />

com sete cabeças, dez chifres e sete diademas! Assim, João faz a visão<br />

<strong>do</strong> leitor ser direcionada da beleza radiante da mulher grávida para o poder e<br />

repugnância <strong>do</strong> dragão. Estabelece-se um forte contraste, e também começa-se<br />

a criar uma apreensão pelo que vai acontecer. O antagonista entrou em cena.<br />

Mas agora os leitores compreenderão que ele sempre esteve lá, desde o começo.<br />

O dragão é uma figura comum da mitologia de muitos povos. O dicionário<br />

de símbolos de Chevalier caracteriza a figura <strong>do</strong> dragão como: “princípio ativo<br />

e demiúrgico; poder divino, sopro espiritual, símbolo celeste, potência e vida,<br />

aquele que fez parte <strong>do</strong> começo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sain<strong>do</strong> das águas primordiais”. 48<br />

No Antigo Testamento, o dragão é a imagem de um grande monstro marinho,<br />

que recebe diversos títulos, como tannin (Jó 7.12; Is 27.1), raabe (Sl 87.4;<br />

89.10) e leviathan (Jó 3.8; 41.1; Sl 74.14; 104.26; Is 27.1; Jr 51.34). Em alguns<br />

momentos, a figura simboliza as nações, o Egito ou Babilônia (Is 51.9;<br />

Jr 51.34; Ez 29.3; 32.2). Portanto, “não parece razoável recorrer à hipótese de<br />

um empréstimo da mitologia para capturar uma imagem que vem diretamente<br />

<strong>do</strong> AT e <strong>do</strong> judaísmo”. 49 Conclui-se que, ao longo de to<strong>do</strong> o texto bíblico,<br />

o dragão é o opositor, a grande ameaça ao povo de Deus, que se utiliza das<br />

nações para oprimir a mulher.<br />

Em Apocalipse, ele é identifica<strong>do</strong> explicitamente como Satanás, aquele<br />

que deseja enganar as nações (<strong>20</strong>.3). Seu poder, na narrativa <strong>do</strong> capítulo 12, é<br />

descrito com seis referências: 1) grande (μέγας), 2) vermelho (πυρρὸς), 3) com<br />

sete cabeças, 4) dez chifres, 5) nas cabeças, sete diademas (διαδήματα), 6) a<br />

sua cauda arrasta a terça parte das estrelas <strong>do</strong> céu, as quais lançou para a terra.<br />

47 KISTEMAKER, Simon. Exposição <strong>do</strong> Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>04, p. 452.<br />

48 CHEVALIER, Jean. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986, p. 429.<br />

49 PRIGENT, L’Apocalypse de Saint Jean, p. 187.<br />

22


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

Ele é enorme e vermelho como fogo. Uma descrição que aponta para a<br />

monstruosidade de seu tamanho e ferocidade pela cor. Sete cabeças com sete<br />

diademas e dez chifres soam um tanto quanto para<strong>do</strong>xais. Sete é o numero<br />

geralmente associa<strong>do</strong> com o próprio Deus em Apocalipse. Enquanto que dez<br />

é o número associa<strong>do</strong> com o mal (2.10; 9.16; 17.3, 16). Assim, as sete cabeças<br />

coroadas apontam para sua “pretensão” divina, que é no máximo uma paródia<br />

da realeza de Cristo, enquanto que os dez chifres revelam seu verdadeiro caráter<br />

e poder malignos, ou seja, ele não consegue disfarçar por muito tempo<br />

o que de fato é.<br />

A descrição da movimentação da cauda arrastan<strong>do</strong> e lançan<strong>do</strong> para a<br />

terra um terço das estrelas <strong>do</strong> céu, além de apontar para o tamanho colossal<br />

da criatura, provavelmente também transmita a ideia <strong>do</strong> número de anjos que<br />

ele liderou em sua rebelião, e que, por sua causa, acabaram lança<strong>do</strong>s à terra,<br />

como a sequência da narrativa demonstrará, quan<strong>do</strong> ele e seus anjos serão lança<strong>do</strong>s<br />

para a terra. 50 Em Apocalipse, e também no Antigo Testamento, estrelas<br />

algumas vezes simbolizam anjos. 51 A localização desse dragão no céu também<br />

aponta para algo para<strong>do</strong>xal. Ele não deveria estar lá, pois o céu é o lugar da<br />

presença de Deus. Ele é um usurpa<strong>do</strong>r.<br />

Assim, o quadro terrível está exposto, um suspense ameaça<strong>do</strong>r se estabeleceu.<br />

O que fará o dragão monstruoso em relação à gloriosa, porém frágil,<br />

mulher grávida?<br />

3.3 Desenvolvimento (v. 4b)<br />

As piores suspeitas <strong>do</strong> leitor se confirmam quan<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r diz que “o<br />

dragão se deteve em frente da Mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe<br />

devorar o filho quan<strong>do</strong> nascesse”.<br />

Deve-se notar que a cena destaca os movimentos <strong>do</strong> dragão. Eles mostram<br />

que ele está em ação. Sua cauda se moveu vigorosamente e derrubou um<br />

terço das estrelas. Então, ele se aproximou ferozmente da mulher e, no único<br />

momento em que parou (ἕστηκεν), toda a sua fúria se concentrou na mulher e<br />

no filho que está para nascer.<br />

50 Para uma teoria de que ele se refere aos santos de Deus, ver: BEALE, The Book of Revelation,<br />

p. 637. Há uma certa lógica, uma vez que as estrelas da coroa da mulher são identificadas com os filhos<br />

de Jacó. Sobre isso, Vitorino disse: “Pois muitos pensam que ele poderia ser capaz de seduzir a terça<br />

parte <strong>do</strong>s homens que creram. Porém, isto deveria ser mais verdadeiramente compreendi<strong>do</strong> como os<br />

anjos que foram sujeitos a ele”. Commentary on the Apocalypse of the Blessed John, p. 355.<br />

51 Existe na Bíblia uma associação entre “estrelas” e criaturas celestes, servos de Deus que cumprem<br />

suas ordens, ou seja, anjos. No livro de Jó, é dito que as estrelas estiveram presentes na criação<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> Deus assentou a pedra angular, “as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam,<br />

e rejubilavam to<strong>do</strong>s os filhos de Deus” (Jó 38.6-7). Em Daniel 8.10, na profecia <strong>do</strong> chifre pequeno,<br />

referência a um príncipe oriun<strong>do</strong> provavelmente da queda <strong>do</strong> império de Alexandre, é dito que “cresceu<br />

até atingir o exército <strong>do</strong>s céus; a alguns <strong>do</strong> exército e das estrelas lançou por terra e os pisou”. Em<br />

Apocalipse, especificamente, anjos são associa<strong>do</strong>s com estrelas (1.<strong>20</strong>; 12.4).<br />

23


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

As intenções <strong>do</strong> dragão são reveladas nesse momento de ampliação da<br />

tensão. A criatura gigante e terrível está diante da mulher com um propósito<br />

nefasto: devorar o filho. Ele quer devorar a criança que ela vai dar à luz, e<br />

assim frustrar todas as expectativas de vida e bênção prometidas ao povo de<br />

Deus, bem como anular a promessa-maldição divina contra ele mesmo.<br />

Assim o autor desenvolveu a grande tensão inicial da cena que depois<br />

se des<strong>do</strong>brará em vários segmentos ao longo <strong>do</strong> livro, mas que sempre será a<br />

realidade tensional última por detrás de to<strong>do</strong> o Apocalipse: o grande esforço<br />

<strong>do</strong> dragão para destruir o Filho de Deus e, por conseguinte, sua “mãe”. Olhan<strong>do</strong><br />

para trás (Antigo Testamento) ou visualizan<strong>do</strong> o futuro, esse sempre será o<br />

objetivo máximo <strong>do</strong> persegui<strong>do</strong>r, a razão de todas as suas ações, segun<strong>do</strong> a<br />

interpretação <strong>do</strong> Apocalipse a respeito da história de Cristo, 52 bem como da<br />

história <strong>do</strong> povo de Deus <strong>do</strong> Antigo e <strong>do</strong> Novo Testamento.<br />

Em Gênesis 3.15, Deus anunciou à serpente que um descendente da mulher<br />

iria lhe esmagar a cabeça. É possível, portanto, interpretar que a referência<br />

<strong>do</strong> Apocalipse ao momento em que o dragão “se detém diante da mulher”<br />

esperan<strong>do</strong> o nascimento <strong>do</strong> Filho para o devorar, tem relação com a própria<br />

promessa-maldição proferida por Deus para a serpente em Gênesis 3.15. É<br />

possível, por sua vez, visualizar na cena todas as vezes em que o Antigo Testamento<br />

revelou que a continuidade da “semente da mulher” esteve ameaçada.<br />

Exemplos disso são as passagens <strong>do</strong> Gênesis em que Caim assassinou seu<br />

irmão Abel ou em que o próprio Deus decidiu destruir o mun<strong>do</strong> no Dilúvio.<br />

A cada passo, no Antigo Testamento, narra-se que a descendência prometida<br />

da mulher está sob o risco de desaparecer, e sempre é resgatada por uma<br />

intervenção divina, como quan<strong>do</strong> Abraão devia ter um filho, porém Sara era<br />

estéril, ou quan<strong>do</strong> o próprio Deus man<strong>do</strong>u que Abraão sacrificasse Isaque,<br />

mas depois providenciou um cordeiro para morrer no lugar dele. Ao longo de<br />

to<strong>do</strong> o Antigo Testamento, a descendência real enfrenta riscos, extermínios,<br />

fugas e socorro divino por caminhos inusita<strong>do</strong>s (2Rs 11.1-2). 53 Aí está a razão<br />

<strong>do</strong>s “tormentos” (βασανιζομένη) que a mulher grávida sofre, os quais podem<br />

indicar que, além <strong>do</strong> simbolismo natural da <strong>do</strong>r física para dar à luz, a mulher<br />

também está sofren<strong>do</strong> um tipo ainda mais especial de <strong>do</strong>r. Beale assevera que<br />

o termo implica perseguição, pois “βασανίζω não é atesta<strong>do</strong> em lugar algum<br />

na literatura bíblica ou extrabíblica com referência a uma mulher sofren<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>res de parto”. 54<br />

52 Lenski acertadamente diz: “Então nós também não temos dificuldade com o intento de Satanás<br />

a respeito da criança, pois Satanás certamente manifestou isto desde o começo, com o esquema homicida<br />

de Herodes, na tentação de Cristo, e chegan<strong>do</strong> até a sua crucificação”. LENSKI, R. C. The Interpretation<br />

of St. John’s Revelation. Columbus, OH: Lutheran Book Concern, 1935, p. 367.<br />

53 Ver: HENDRIKSEN, William. Mais que vence<strong>do</strong>res. São Paulo: Cultura Cristã, 1987, p. 167-171.<br />

54 BEALE, The Book of Revelation, p. 630.<br />

24


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

Por fim, sem conseguir impedir que o filho da mulher nascesse, restou<br />

ao dragão tentar matá-lo ainda criança. A matança <strong>do</strong>s meninos com menos de<br />

<strong>do</strong>is anos em Belém, ordenada por Herodes, por certo fixou-se na mente <strong>do</strong>s<br />

leitores de João quan<strong>do</strong> leram essa descrição. 55 Nota-se, porém, que o filho<br />

fora arrebata<strong>do</strong>. O Evangelho de Mateus diz que José, saben<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong>s<br />

magos que Herodes pretendia fazer algum mal à criança, fugiu para o Egito<br />

(Mt 2.13-18). Mas aqui o arrebatamento <strong>do</strong> filho não será uma mera fuga<br />

de um país para outro, antes será o motivo <strong>do</strong> início da derrota definitiva <strong>do</strong><br />

grande dragão.<br />

3.4 Clímax (v. 5a)<br />

Na sequência da cena, surge o anúncio <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> filho. É descrito<br />

nos termos <strong>do</strong> nascimento de um grande rei e, assim, a cena alcança o ápice:<br />

“Nasceu-lhe, pois, um filho varão, que há de reger todas as nações com cetro<br />

de ferro” (Ap 12.5). A citação é retirada diretamente <strong>do</strong> Salmo 2, que contém<br />

a promessa ao Messias de governar as nações (2.7-9). Esse “filho”, portanto,<br />

está no centro de to<strong>do</strong> o conflito cósmico registra<strong>do</strong> na Bíblia. Note que não<br />

há apresentação de nome. Ele é simplesmente chama<strong>do</strong> de “filho” ou “filho<br />

varão”. É seu epíteto que o descreve: ele vai governar as nações com cetro de<br />

ferro. Para os leitores de João, não havia dúvidas sobre a quem o texto se<br />

referia. Trata-se <strong>do</strong> Messias Jesus, o grande protagonista <strong>do</strong> Novo Testamento<br />

e, portanto, também o protagonista <strong>do</strong> Antigo Testamento, revela<strong>do</strong> ainda mais<br />

plenamente na aplicação feita por meio <strong>do</strong>s símbolos <strong>do</strong> Apocalipse. Na cena<br />

<strong>do</strong> capítulo 12, ele é um bebê até certo ponto indefeso, mas já se diz que vai<br />

reger as nações com cetro de ferro. Assim, nesse personagem sempre estão<br />

entrelaçadas a fraqueza e a força, a humanidade e a divindade <strong>do</strong> cordeiro e<br />

<strong>do</strong> leão (Ap 5.5-6).<br />

O filho veio ao mun<strong>do</strong>. Ele é o espera<strong>do</strong>, aquele que foi profetiza<strong>do</strong><br />

desde a fundação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, é o verdadeiro rei <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O dragão sempre<br />

esteve lá, tentan<strong>do</strong> impedir isso, mas não conseguiu evitar seu nascimento,<br />

até porque isso parecia inevitável, uma vez que a promessa divina era de que<br />

“haveria uma semente da mulher”. Por isso, o dragão movimenta to<strong>do</strong> o seu<br />

poder a fim de destruí-lo. O ápice da tensão é alcança<strong>do</strong> desse mo<strong>do</strong>: o dragão<br />

alcançará seu intento de devorá-lo?<br />

3.5 Desenlace (v. 5b-6)<br />

O desfecho da narrativa é alcança<strong>do</strong> com a declaração de que o dragão<br />

fracassou em seu propósito nefasto: “E o seu filho foi arrebata<strong>do</strong> para Deus até<br />

55 Como Beda escreveu: “E uma figura desse engano foi demonstrada em Herodes, que, como um<br />

inimigo disfarça<strong>do</strong>, se faz passar por um a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Senhor, com o objetivo de matá-lo”. VENERABLE<br />

BEDE. The Explanation of the Apocalypse. Oxford: James Parker, 1878, p. 82.<br />

25


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

ao seu trono” (Ap 12.5). Aqui há uma abreviação temporal, uma elipse, pois<br />

toda a vida de Jesus é descrita num só ato de nascer e ser arrebata<strong>do</strong> para o<br />

trono de Deus. Segun<strong>do</strong> Beckwith, “as palavras são acrescentadas para enfatizar<br />

a inteireza da falha de Satanás; o Messias, longe de ser destruí<strong>do</strong>, é leva<strong>do</strong><br />

para compartilhar o trono de Deus”. 56 Esse arrebatamento é uma referência<br />

simbólica à ascensão de Jesus descrita em Atos 1.9. O efeito de abreviação<br />

temporal destaca <strong>do</strong>is elementos na obra redentiva de Jesus: seu nascimento e<br />

ascensão. É comum o Novo Testamento enfatizar a morte e a ressurreição de<br />

Cristo como fatores determinantes para a derrota de Satanás e seus alia<strong>do</strong>s<br />

(Cl 2.14-15), mas por meio da omissão desses eventos João consegue um<br />

efeito duplo: fazer o leitor lembrar-se deles, ao mesmo tempo em que pensa<br />

na importância <strong>do</strong> nascimento e da ascensão (Ef 1.<strong>20</strong>-22; 1Pe 3.22).<br />

A subida <strong>do</strong> filho até o trono de Deus é a descrição da vitória desse filho,<br />

a qual já foi celebrada no capítulo 5 <strong>do</strong> Apocalipse, quan<strong>do</strong> o cordeiro “tomou”<br />

o livro da mão direita de Deus e foi reconheci<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os habitantes <strong>do</strong><br />

céu. “No trono” ele está, ou seja, assumiu o poder e a autoridade de governar<br />

os céus e a terra (Mt 28.18-<strong>20</strong>).<br />

Enquanto o filho é arrebata<strong>do</strong> para o trono, a Mulher foge para o deserto,<br />

onde será ameaçada pelo dragão, porém protegida por Deus. 57 Há uma referência<br />

temporal explícita ao perío<strong>do</strong> em que ela será sustentada no deserto:<br />

mil duzentos e sessenta dias. Embora seja uma referência temporal, não é,<br />

contu<strong>do</strong>, uma referência literal. É um tempo específico, porém indefini<strong>do</strong>,<br />

em que Deus permitirá que seu povo seja testa<strong>do</strong> pelas forças <strong>do</strong> mal, ao mesmo<br />

tempo em que o protege e sustenta. 58 É importante notar que é a mesma<br />

quantidade de tempo em que a parte externa <strong>do</strong> templo deve ser pisada pelos<br />

gentios, e, paralelamente, também é a mesma quantidade de tempo em que as<br />

56 BECKWITH, Isbon T. The Apocalypse of John: Studies in Introduction with a Critical and<br />

Exegetical Commentary. New York: Macmillan, 1919, p. 624.<br />

57 Importante é notar que o “deserto” na Bíblia é o local da tentação e também o local da oportunidade<br />

de se encontrar com Deus. No deserto, Israel foi prova<strong>do</strong> durante os quarenta anos após a saída<br />

<strong>do</strong> Egito, mas também foi alimenta<strong>do</strong> por Deus por meio <strong>do</strong> maná. No deserto, Elias vagou e recuperou<br />

a fé após ser sustenta<strong>do</strong> miraculosamente por Deus que ordenou que os corvos lhe trouxessem pão e<br />

carne (1Rs 17.6). Provavelmente, a cena da Mulher sustentada no deserto tem seu maior eco nessa<br />

cena <strong>do</strong> Antigo Testamento. Beale observa que “lugar” (τόπος) no Novo Testamento é um sinônimo<br />

para “templo” e na Septuaginta é um sinônimo comum para “santuário” (The Book of Revelation, p. 649).<br />

Isso torna “deserto”, nessa passagem, algo associa<strong>do</strong> com o “santuário” separa<strong>do</strong> na medição <strong>do</strong> início<br />

<strong>do</strong> capítulo 11. Nas palavras de Wilbert Kreiis, “Israel estava no deserto, a noiva amada de Deus<br />

(Jeremias 2: 2). O deserto, onde Deus protege a mulher que acaba de dar à luz no Apocalipse se opõe à<br />

grande cidade, onde Jezabel reina, Babilônia, a grande prostituta que seduz seus amantes. Commentaire<br />

Sur L’Apocalypse de Jean. 2 édition: Avent, 1995 (Disponível em: http://www.egliselutherienne.org/<br />

bibliotheque/bible/apocalypse/Apoc_1.htm, Ap 12.4).<br />

58 Provavelmente, o perío<strong>do</strong> é uma “consistente referência aos três anos e meio finais das setenta<br />

semanas da profecia de Daniel 9”. PATTERSON, Paige. Revelation. In: Clendenen, E. Ray (Org.).<br />

The New American Commentary. Nashville, TN: B&H, <strong>20</strong>12, 39:266.<br />

26


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

duas testemunhas devem profetizar vestidas de pano de saco, que é o tempo<br />

“pós-pascal” 59 no qual a igreja (os demais descendentes da mulher) terá de<br />

testemunhar e, ao mesmo tempo, suportar a perseguição <strong>do</strong> dragão. Assim,<br />

... é uma lembrança de que a história <strong>do</strong> povo de Deus como João testemunha é<br />

a história <strong>do</strong> novo Êxo<strong>do</strong>. Embora o deserto seja frequentemente visto como<br />

um lugar de perigo e desolação, é também um lugar de preparação, onde Deus<br />

cuida de seu povo preparan<strong>do</strong>-o para entrar na terra prometida. 60<br />

As perguntas que permanecem ao final da cena são: O que fará o dragão<br />

agora? Ele, uma criatura tão terrível, tão feroz, tão gigantesca, não conseguiu<br />

devorar um pequeno bebê? Será que aceitará a derrota? Quem é seu alvo imediato,<br />

uma vez que o filho foi arrebata<strong>do</strong> para o céu? Em seguida, percebe-se que será<br />

a mulher mais uma vez. Porém, a mulher fugiu para o deserto. Subitamente, o<br />

dragão se vê sem qualquer possibilidade de alcançar suas presas. Além disso, a<br />

resolução provisória <strong>do</strong> conflito deixou outras perguntas teológicas por responder:<br />

O que vai acontecer com o dragão em seguida? Quão grande foi sua derrota?<br />

O que vai acontecer com a mulher? No deserto o dragão poderá persegui-la?<br />

Na próxima cena, após descrever a expulsão <strong>do</strong> dragão <strong>do</strong> céu como um<br />

efeito da subida <strong>do</strong> filho ao trono (12.7-17), João retornará a essa descrição<br />

sobre a perseguição da mulher após o nascimento <strong>do</strong> Messias, revelan<strong>do</strong> também<br />

que a expulsão <strong>do</strong> céu é um <strong>do</strong>s motivos da fúria <strong>do</strong> dragão contra ela.<br />

João, então, associará a perseguição <strong>do</strong> dragão à mulher com a perseguição aos<br />

“restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e<br />

têm o testemunho de Jesus” (Ap 12.17), ou seja, revelan<strong>do</strong> aos crentes das sete<br />

igrejas que eles são esses “descendentes” da mulher que continuam a existir no<br />

mun<strong>do</strong>, e que, portanto, continuam sob a fúria temporária <strong>do</strong> dragão. E esta é<br />

a razão concreta pela qual eles estão sofren<strong>do</strong> tantas perseguições.<br />

De qualquer mo<strong>do</strong>, o desenlace <strong>do</strong> texto no verso 6 abre possibilidades<br />

para contar a história mais uma vez, responden<strong>do</strong> as perguntas que ficaram<br />

sem resposta, enquanto outras ainda serão feitas, com novos e impressionantes<br />

símbolos construí<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> Antigo Testamento. 61<br />

conclusão<br />

Por meio de uma única cena na qual descreveu quadros celestes, João<br />

conseguiu contar uma história completa, envolven<strong>do</strong> seus leitores nessa<br />

59 PRIGENT, L’Apocalypse de Saint Jean, p. 176.<br />

60 BOXALL, Ian. The Revelation of Saint John. Black’s New Testament Commentary. Lon<strong>do</strong>n:<br />

Continuum, <strong>20</strong>06, p. 181.<br />

61 Como a batalha angélica na qual Miguel e seus anjos vão expulsar o dragão e seus anjos <strong>do</strong><br />

céu, a qual é construída sobre diversas passagens <strong>do</strong> Antigo Testamento, como em Jó, Isaías, Ezequiel<br />

e Salmos.<br />

27


Leandro Lima, O Poder da Arte Literária no Apocalipse<br />

trama de um mo<strong>do</strong> extraordinário. Em apenas seis versos, ele resumiu a grande<br />

história bíblica <strong>do</strong> Antigo e <strong>do</strong> Novo Testamento, substanciada na grande<br />

promessa da vinda <strong>do</strong> Messias, e de todas as perseguições a que o povo de Deus<br />

tem si<strong>do</strong> submeti<strong>do</strong> por causa disso, antes e depois <strong>do</strong> nascimento de Jesus.<br />

O poder literário dessa cena abrangente descortina perante os olhos <strong>do</strong>s leitores<br />

a grande batalha cósmica que se iniciou no Éden e se desenvolverá até o<br />

fim <strong>do</strong>s tempos. Os leitores de João se viram no meio dessa cena, não só por<br />

causa <strong>do</strong> entendimento <strong>do</strong> que ela representou no passa<strong>do</strong> da história bíblica,<br />

mas também no presente deles, debaixo <strong>do</strong>s tormentos impostos pelo dragão<br />

por meio <strong>do</strong> Império Romano. Ao mesmo tempo, a vitória da mulher, que<br />

através <strong>do</strong> sofrimento deu à luz ao Messias, e a própria vitória <strong>do</strong> Messias ao<br />

ser arrebata<strong>do</strong> das garras da dragão, subin<strong>do</strong> ao trono de Deus, permanecem<br />

como um testemunho aos leitores de que o caminho da vitória não é a fuga <strong>do</strong><br />

sofrimento através de instrumentos humanos, mas a plena confiança nos propósitos<br />

de Deus manifestada através da fidelidade às suas exigências, mesmo<br />

debaixo de sofrimento.<br />

Uma forte mensagem se estabelece: to<strong>do</strong> o poder que o dragão parece<br />

exercer no mun<strong>do</strong> é ilusório. Ele é um derrota<strong>do</strong>. Ele sofreu várias e sucessivas<br />

derrotas. Esta é a razão de sua fúria contra a igreja antes e depois da vinda<br />

de Jesus. Mas, ao mesmo tempo, a vitória de Cristo é a segurança da vitória<br />

definitiva dessa igreja protegida por Deus.<br />

A análise da passagem de Apocalipse 12.1-6 permite ver o mesmo padrão<br />

de narrativa <strong>do</strong> restante <strong>do</strong> livro. Cenas poderosas ancoradas no Antigo Testamento<br />

trazem profundas revelações da história bíblica, lançan<strong>do</strong> fortes luzes<br />

sobre o Antigo Testamento, e descortinan<strong>do</strong> diante <strong>do</strong>s leitores sua própria<br />

situação em meio ao abrangente plano de Deus. É contada uma história que<br />

segue um enre<strong>do</strong> vibrante, no qual, ao mesmo tempo em que se antecipam<br />

eventos, as descrições mais completas são retardadas a fim de aumentar o<br />

suspense e a expectativa <strong>do</strong>s leitores em relação ao desfecho. Por meio de um<br />

rico e inteligente uso da arte literária, João construiu uma cena capaz de contar<br />

a história bíblica como um to<strong>do</strong>, com ênfase no cumprimento das promessas<br />

de Deus, na perseguição <strong>do</strong> dragão, na vitória <strong>do</strong> filho e, consequentemente,<br />

na vitória da igreja apesar <strong>do</strong> sofrimento.<br />

João continuará a contar essa história no restante <strong>do</strong> capítulo. Por ora,<br />

não poderemos seguir com ele, pois nosso trabalho deve parar por aqui em<br />

razão da limitação de espaço e também pelos propósitos introdutórios <strong>do</strong> artigo.<br />

62 Mas esperamos ter deixa<strong>do</strong> claro como a arte narrativa foi utilizada em<br />

uma passagem a fim de contar a história a partir de grandes figuras <strong>do</strong> Antigo<br />

62 É possível ver essa mesma estrutura dramática e recapitulativa em Ap 12.7-16: Miguel, o dragão<br />

e a mulher; e também em Ap 12.17-13.10: o dragão, os descendentes e a besta.<br />

28


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 9-29<br />

Testamento. Foi nosso objetivo demonstrar o quanto esses elementos são úteis<br />

para compreender a mensagem <strong>do</strong> Apocalipse.<br />

Portanto, estudar o Apocalipse levan<strong>do</strong> em conta sua arte literária poderá<br />

ajudar a entender melhor o seu conteú<strong>do</strong> teológico e moral. Desconsiderar os<br />

instrumentos literários <strong>do</strong> texto, especialmente como eles são aplica<strong>do</strong>s no<br />

texto a partir das grandes cenas e temas teológicos <strong>do</strong> Antigo Testamento,<br />

empobrece a leitura e a análise <strong>do</strong> livro. Por outro la<strong>do</strong>, estudar esses aspectos<br />

não significa ignorar a pesquisa histórica, nem mesmo os conceitos teológicos<br />

aceitos pelas comunidades religiosas, mas é uma tentativa de dar atenção ao<br />

próprio texto, sua riqueza, seu conteú<strong>do</strong> e sua arte, e o mo<strong>do</strong> como foram<br />

utiliza<strong>do</strong>s a serviço da mensagem cristã.<br />

abstract<br />

The book of Revelation is one of the most read and researched throughout<br />

history, from both popular and academic perspectives. Its symbolisms and<br />

catastrophic descriptions greatly influenced the western world, gave name to<br />

a specific genre of ancient literature (apocalyptic literature), and have been the<br />

object of studies, illustrations, and romance themes for almost two thousand<br />

years. In spite of the book’s popularity, it was not seriously examined for its<br />

literary qualities and the art of its narrative, except by some critics who were<br />

more interested in fragmenting it in disconnected sources rather than understanding<br />

the richness of its literary production. Even among the scholars who<br />

detected the complex recapitulation theory of the book, the literary analyses<br />

did not get far, and were more focused on providing subsidies for theological<br />

systems or answers for the distresses of its interpreters’ times. A thorough<br />

analysis of its literary resources, however, reveals the greatness of its style,<br />

the sense of its purposes, and the unity of the book. There are rich intertextual<br />

relations with the Old Testament, especially with Genesis and Daniel, as there<br />

are common features such as repetition, numerology, and cross-references.<br />

The book of Revelation also develops a cyclic plot in which the idea of God<br />

as a cosmic sovereign who guides the world to the fulfillment of his purposes<br />

excels, as well as interpretations for the enemy, the Dragon that opposes him,<br />

thus explaining the para<strong>do</strong>xical reality of first century Christianity, which was<br />

under incipient persecution by the Roman Empire. By considering the art in<br />

the narrative text of Revelation not only <strong>do</strong>es the book become much more<br />

extraordinary for the reader, but its theological and moral meanings become<br />

more accessible.<br />

keywords<br />

Literary analysis; Art of narrative; Revelation; Use of the Old Testament<br />

in the New Testament; Revelation as literature; Apocalypse; Revelation 12.<br />

29


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 31-39<br />

Uma Força Missionária no Sul Global<br />

Pierre Rosa *<br />

Resumo<br />

A realidade de que a Europa e a América <strong>do</strong> Norte já não são mais os<br />

núcleos da fé cristã deu origem a um novo ramo da missiologia: Estu<strong>do</strong>s em<br />

Cristianismo Global. Os missiólogos têm observa<strong>do</strong> que hoje o “centro de<br />

gravidade” se localiza no Sul global (América Latina, África e Ásia, conforme<br />

a classificação da ONU). Países dessa região têm se transforma<strong>do</strong> rapidamente<br />

em agentes de retransmissão <strong>do</strong> evangelho, uma vez que antigos campos<br />

missionários se transformaram em potências evangelísticas. Uma das peculiaridades<br />

desse cristianismo sulista é o entusiasmo por missões e evangelismo,<br />

mas o movimento missionário geralmente ocorre de uma nação <strong>do</strong> Sul global<br />

para outra, o que representa um <strong>do</strong>s fenômenos mais impressionantes da missiologia<br />

moderna. Philip Jenkins constata que o tema merece mais atenção<br />

acadêmica. 1 A intenção deste artigo é, portanto, abordar brevemente o papel<br />

<strong>do</strong> Brasil nesse fenômeno. 2<br />

Palavras-chave<br />

Missiologia; Missões mundiais; Cristianismo global; Sul global; Brasil;<br />

Igrejas evangélicas; Igrejas pentecostais.<br />

* O autor tem o grau de M.Div. pelo Southern California Seminary (El Cajon, CA, <strong>20</strong>10), de<br />

D.Min. com ênfase em pregação expositiva pelo Southwestern Baptist Theological Seminary (Fort Worth,<br />

Texas, <strong>20</strong>14) e está cursan<strong>do</strong> o programa de Ph.D. em World Christian Studies no mesmo seminário.<br />

É pastor associa<strong>do</strong> da Sha<strong>do</strong>w Mountain Community Church (El Cajon, CA) e professor de Missões e<br />

Evangelismo no Southern California Seminary.<br />

1 JENKINS, Philip. The New Christen<strong>do</strong>m: The Coming of Global Christianity. 3 rd ed. New York:<br />

Oxford University Press, <strong>20</strong>11, p. 16.<br />

2 Este artigo foi escrito originalmente em inglês com o título “A South to South Mission Force”,<br />

como trabalho de pesquisa <strong>do</strong> primeiro ano <strong>do</strong> programa de Ph.D. em World Cristian Studies no<br />

Southwestern Baptist Theological Seminary.<br />

31


Pierre Rosa, Uma Força Missionária no Sul Global<br />

Introdução<br />

Nos últimos vinte anos o Brasil tem se estabeleci<strong>do</strong> como força missionária.<br />

Muitos observa<strong>do</strong>res preveem que o país exercerá papel fundamental<br />

no cenário missionário mundial ainda na primeira metade <strong>do</strong> século 21. 3 Entretanto,<br />

suas características precisas são incertas. O maior país católico <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> superará a Coreia <strong>do</strong> Sul como potência missionária no Sul global?<br />

Enviaremos mais missionários <strong>do</strong> que os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s? Se sim, quem liderará<br />

esse movimento: protestantes ou católicos? A busca dessas respostas<br />

pede um rastreamento da transformação <strong>do</strong> Brasil de campo missionário em<br />

líder missionário.<br />

Este autor propõe que, devi<strong>do</strong> à posição <strong>do</strong> Brasil como líder em missões<br />

a países <strong>do</strong> Sul global, o país certamente pode ser agente da reevangelização<br />

<strong>do</strong> Norte global, já que a secularização <strong>do</strong> hemisfério norte ocorre com velocidade<br />

alarmante. Se a premissa de que somos uma força missionária <strong>do</strong><br />

Sul for comprovada, pode-se tentar prever quais serão as denominações mais<br />

ativas no movimento missionário brasileiro nos próximos anos. Com isso, este<br />

artigo visa auxiliar líderes denominacionais e igrejas na tomada de decisões<br />

mais informadas quanto à distribuição de recursos financeiros e humanos no<br />

envio de obreiros a outras nações.<br />

1. Um resumo da história <strong>do</strong> movimento<br />

missionário brasileiro<br />

Elben M. Lenz César, autor presbiteriano, divide a história das missões<br />

no Brasil em três partes. A chegada <strong>do</strong>s primeiros jesuítas no século 16 faz<br />

parte da primeira etapa, que durou trezentos anos. Esse foi o perío<strong>do</strong> da pré-<br />

-evangelização. O século 19, conheci<strong>do</strong> como um perío<strong>do</strong> frutífero das missões<br />

protestantes, trouxe a fé protestante à nação, o que César classifica como a<br />

evangelização <strong>do</strong> Brasil. O século <strong>20</strong> testemunhou a pós-evangelização <strong>do</strong><br />

país, graças ao movimento pentecostal. 4<br />

1.1 Missões católicas<br />

A primeira missa católica, celebrada em 26 de abril de 1500 no solo<br />

que se tornaria brasileiro, incluiu mais de cento e cinquenta índios. Depois<br />

da chegada <strong>do</strong>s portugueses, Pero Vaz de Caminha escreveu a D. Manuel I,<br />

solicitan<strong>do</strong> o envio de missionários católicos à terra recém-descoberta. O objetivo<br />

era alcançar os nativos para a Igreja Católica. A solicitação foi atendida<br />

3 SMITHER, Edward L. The Impact of Evangelical Revivals on Global Mission: The Case of<br />

North American Evangelicals in Brazil in the Nineteenth and Twentieth Centuries. Verbum et Ecclesia 31,<br />

no. 1 (<strong>20</strong>10): 90-97, p. 95.<br />

4 CÉSAR, Elben M. Lenz. História da evangelização <strong>do</strong> Brasil: <strong>do</strong>s jesuítas aos neopentecostais.<br />

Viçosa, MG: Ultimato, <strong>20</strong>00, p. 15.<br />

32


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 31-39<br />

49 anos depois, quan<strong>do</strong> seis jesuítas, acompanha<strong>do</strong>s por Manuel da Nóbrega e<br />

Tomé de Souza – o primeiro governa<strong>do</strong>r da colônia –, aportaram. 5 Mais jesuítas<br />

seguiram os pioneiros nos anos seguintes. Dentre os mais notáveis estavam<br />

José de Anchieta, conheci<strong>do</strong> como o “apóstolo <strong>do</strong> Brasil”, e Antônio Vieira,<br />

prega<strong>do</strong>r eloquente. 6<br />

Os jesuítas que chegaram à Baía de To<strong>do</strong>s os Santos edificaram aldeias<br />

missionárias. A estratégia de evangelismo envolvia a reorganização forçada das<br />

tribos, justificada pela necessidade <strong>do</strong> término <strong>do</strong> canibalismo e da poligamia.<br />

Uma vez repatria<strong>do</strong>s, os índios viviam sob a supervisão <strong>do</strong>s missionários e<br />

ficavam sujeitos à lei portuguesa.<br />

As atividades <strong>do</strong>s jesuítas no Brasil recém-descoberto ganharam nova<br />

dinâmica com a chegada <strong>do</strong>s escravos africanos. Ao desembarcarem na costa<br />

brasileira, os cativos eram batiza<strong>do</strong>s (sem conversão genuína; o discipula<strong>do</strong>,<br />

quan<strong>do</strong> ocorria, sucedia o batismo) e registra<strong>do</strong>s com nomes portugueses, ten<strong>do</strong><br />

o lugar de origem por sobrenome. Eram comuns nomes como Manuel Congo,<br />

Maria Moçambique e Antônio Angola. 7 Colonialismo e evangelismo não se<br />

distinguiam, e assim o país absorveu a identidade sociorreligiosa europeia. Foi<br />

assim o projeto missionário católico, lidera<strong>do</strong> pela Sociedade de Jesus, que<br />

manteve o monopólio religioso no Brasil nos três séculos seguintes. 8<br />

1.2 Missões protestantes<br />

Huguenotes franceses chegaram ao Brasil em 10 de novembro de 1555,<br />

sob o coman<strong>do</strong> de Nicolau Durand de Villegaignon. 9 A expedição incluía três<br />

navios e 600 tripulantes e passageiros em busca da liberdade religiosa. O objetivo<br />

era estabelecer uma colônia protestante com o nome de França Antártica.<br />

O primeiro culto foi celebra<strong>do</strong> em 10 de março de 1557. Onze dias depois,<br />

foi fundada a primeira igreja reformada da América <strong>do</strong> Sul. Porém, a colônia<br />

huguenote teve vida curta. Em <strong>20</strong> de janeiro de 1567, Mem de Sá ordenou a<br />

expulsão <strong>do</strong>s franceses. 10<br />

Sessenta e três anos depois da tentativa falida <strong>do</strong>s franceses, foi a vez <strong>do</strong>s<br />

holandeses trazerem a fé reformada ao Brasil, durante a ocupação de 1630.<br />

5 METCALF, Alida C. The Society of Jesus and the First Aldeias of Brazil. In: LANGFUR, Hal<br />

(Org.). Native Brazil: Beyond the Convert and the Cannibal, 1500-1900. Albuquerque, NM: University<br />

of New Mexico Press, <strong>20</strong>14, p. 29.<br />

6 CÉSAR, História da evangelização <strong>do</strong> Brasil, p. 32.<br />

7 Ibid., p. 41.<br />

8 CAVALCANTI, H. B. The Right Faith at the Right Time? Determinants of Protestant Mission<br />

Success in the 19 th Century Brazilian Religious Market. Journal of the Scientific Study of Religion 41,<br />

no. 3 (Sep <strong>20</strong>02): 423-438, p. 424.<br />

9 DORIA, Pedro. 1565 – Enquanto o Brasil nascia: a aventura de portugueses, franceses, índios<br />

e negros na fundação <strong>do</strong> país. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, <strong>20</strong>12, p. 45.<br />

10 César, História da evangelização <strong>do</strong> Brasil, p. 39.<br />

33


Pierre Rosa, Uma Força Missionária no Sul Global<br />

A colônia holandesa foi estabelecida na capitania de Pernambuco, onde o experimento<br />

da Nova Holanda também foi breve. 11 Durante a ocupação foram<br />

criadas 22 igrejas e pelo menos um livro litúrgico trilíngue em tupi, português<br />

e holandês. 12 Nesse tempo, portugueses, holandeses, brasileiros, africanos e<br />

judeus viviam na região Nordeste. Essa diversidade étnica e religiosa contribuiu<br />

muito para o desenvolvimento de versões sincréticas <strong>do</strong> cristianismo brasileiro,<br />

comuns ainda nos dias atuais.<br />

Os americanos lideraram o movimento missionário protestante no Brasil<br />

no século 19. Vale notar que eles não foram os únicos: nessa época ingleses,<br />

alemães e suecos também estabeleceram igrejas protestantes no país. 13 Desde<br />

então, por ser uma nação católica, o Brasil não era visto como um campo missionário<br />

com grande potencial. Os avivamentos e os Grandes Despertamentos<br />

da América <strong>do</strong> Norte – que enfatizavam a conversão pessoal – contribuíram<br />

para a mudança dessa perspectiva, levan<strong>do</strong> vários missionários à América <strong>do</strong><br />

Sul. 14 Novos campos missionários se abriram e a fé protestante novamente foi<br />

trazida ao país, dessa vez de mo<strong>do</strong> permanente.<br />

Influencia<strong>do</strong> por Charles Hodge, <strong>do</strong> Seminário de Princeton, o presbiteriano<br />

Ashbel Green Simonton – considera<strong>do</strong> o pioneiro da denominação no<br />

Brasil – chegou em 12 de agosto de 1859 e fun<strong>do</strong>u a Igreja Presbiteriana no Rio<br />

de Janeiro. 15 Evangelismo pessoal e distribuição de Bíblias faziam parte da<br />

estratégia principal de Simonton. 16 O missionário presbiteriano morreu em São<br />

Paulo depois de oito anos de ministério.<br />

Metodistas americanos haviam envia<strong>do</strong> <strong>do</strong>is missionários ao Brasil em<br />

1836 e 1837. Justus Spaulding e Daniel Parish Kidder lideraram o movimento<br />

missionário da denominação no Brasil, que, devi<strong>do</strong> a conflitos internos na<br />

época, suspendeu as atividades no país pelos 25 anos seguintes. 17 A presença<br />

metodista no Brasil gerou a Union Church of Rio de Janeiro. A congregação<br />

de língua inglesa existe até os dias atuais.<br />

William Buck Bagby e sua esposa Anne Luther Bagby, junto com Zachary<br />

Taylor, foram os organiza<strong>do</strong>res da primeira Igreja Batista em território<br />

brasileiro, em 1871. A igreja, também de língua inglesa, foi fundada em Santa<br />

Bárbara d’Oeste. A cidade na Província de São Paulo abrigava uma comunidade<br />

11 Ibid., p. 50.<br />

12 Ibid., p. 54.<br />

13 Bebbington, David W. Baptists through the Centuries: A History of a Global People. Waco,<br />

Texas: Baylor University Press, <strong>20</strong>10, p. 235.<br />

14 Smither, The Impact of Evangelical Revivals on Global Mission, p. 91.<br />

15 César, História da evangelização <strong>do</strong> Brasil, p. 88.<br />

16 Ibid., p. 89.<br />

17 Ibid., p. 91.<br />

34


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 31-39<br />

de exila<strong>do</strong>s americanos da guerra civil daquele país. 18 Os Bagbys aprenderam<br />

português rapidamente e deram início à busca de uma localização adequada<br />

para o estabelecimento de uma igreja batista de língua portuguesa. Depois de<br />

viajarem pelo Brasil imperial, o casal concluiu que a cidade de Salva<strong>do</strong>r era a<br />

melhor opção. 19 Os Bagbys e os Taylors convidaram Antônio Teixeira de Albuquerque<br />

para pastorear a igreja de Salva<strong>do</strong>r, que foi fundada em 31 de agosto<br />

de 1882. Teixeira de Albuquerque era padre católico converti<strong>do</strong> ao metodismo,<br />

mas havia decidi<strong>do</strong> ser batiza<strong>do</strong> por imersão, por entender ser essa a forma<br />

adequada da ordenança. <strong>20</strong> Isso foi o suficiente para convencer os missionários<br />

quanto à qualificação <strong>do</strong> primeiro pastor batista brasileiro. Assim como os presbiterianos,<br />

o recém-estabeleci<strong>do</strong> trabalho batista no Brasil tinha o evangelismo<br />

pessoal (e a ênfase na conversão) como estratégia de crescimento da igreja.<br />

1.3 Missões pentecostais<br />

O ano de 1910 marca o início <strong>do</strong> século pentecostal no Brasil. Dois<br />

imigrantes suecos que moravam nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Daniel Berg e Gunnar<br />

Vingren, haviam se impressiona<strong>do</strong> com os eventos <strong>do</strong> avivamento da Rua<br />

Azusa, em Los Angeles, em 1906. Os <strong>do</strong>is passaram a frequentar as reuniões<br />

pentecostais promovidas pela First Swedish Baptist Church em Chicago e na<br />

North Avenue Mission. 21 Em um desses cultos, Olaf Uldin, membro da igreja,<br />

alegou ter instruções divinas especiais para Berg e Vingren. Eles seriam missionários<br />

no Pará. 22 A dupla chegou a Belém em 19 de novembro de 1910. 23 Ali<br />

uma igreja batista local recebeu os <strong>do</strong>is missionários, mas surgiram conflitos<br />

quan<strong>do</strong> as novas <strong>do</strong>utrinas e práticas (especificamente a da glossolalia) ganharam<br />

popularidade entre crentes brasileiros. Berg e Vingren foram excluí<strong>do</strong>s<br />

da igreja e, junto com dezoito novos segui<strong>do</strong>res, fundaram a Missão da Fé<br />

Apostólica. O novo grupo cresceu e se tornou a maior denominação protestante<br />

no Brasil, as Assembleias de Deus, atualmente com 23 milhões de membros. 24<br />

18 LANCASTER, Daniel Boyd. In the Land of the Southern Cross: The Life and Ministry of<br />

William Buck and Anne Luther Bagby. Dissertação de Ph.D., Southwestern Baptist Theological Seminary,<br />

1995, p. 46.<br />

19 Ibid., p. 59.<br />

<strong>20</strong> César, História da evangelização <strong>do</strong> Brasil, p. 98.<br />

21 MCGEE, Gary B. To the Regions Beyond: The Global Expansion of Pentecostalism. In: SYNAN,<br />

Vinson (Org.). The Century of the Holy Spirit: 100 Years of Pentecostal and Charismatic Renewal.<br />

Nashville, TN: Thomas Nelson, <strong>20</strong>01, p. 93.<br />

22 ESCOBAR, Samuel. Mission from the Margins to the Margins: Two Case Studies from Latin<br />

America. Missiology 26, no. 1 (Jan 1998): 87-95, p. 89.<br />

23 OLIVEIRA, José de. Breve história <strong>do</strong> movimento pentecostal: <strong>do</strong>s Atos <strong>do</strong>s Apóstolos aos dias<br />

de hoje. Rio de Janeiro: CPAD, <strong>20</strong>03, p. 65.<br />

24 JOHNSON, Todd M. Christianity in Its Global Context, 1970-<strong>20</strong><strong>20</strong>: Society, Religion, and Mission.<br />

South Hamilton, MA: Center for the Study of Global Christianity, Gor<strong>do</strong>n-Conwell Theological<br />

Seminary, <strong>20</strong>13, p. 54.<br />

35


Pierre Rosa, Uma Força Missionária no Sul Global<br />

2. De campo missionário a força missionária<br />

O movimento pentecostal brasileiro gerou igrejas totalmente independentes<br />

e brasileiras, isso é, sem a condição de filial de denominações estrangeiras.<br />

Algumas se tornaram grandes conglomera<strong>do</strong>s. São esses os casos da Igreja<br />

O Brasil para Cristo, fundada por Manoel de Mello em 1955; Deus é Amor,<br />

iniciada por David Miranda em 1962; e a Igreja Universal <strong>do</strong> Reino de Deus,<br />

a mais controversa e expansionista, fundada em 1977 por Edir Mace<strong>do</strong>.<br />

Zelo missionário acompanhou o crescimento explosivo <strong>do</strong> cristianismo no<br />

Brasil, alimenta<strong>do</strong> pelo pentecostalismo <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, que, desde então,<br />

tem propulsiona<strong>do</strong> o movimento missionário brasileiro. O país se tornou uma<br />

plataforma de lançamento para a missão da igreja. 25 O cristianismo carismático<br />

brasileiro tem expandi<strong>do</strong> seus excessos e bênçãos rapidamente pelo mun<strong>do</strong>. De<br />

1990 a 1997 o número de missionários brasileiros em outras terras se multiplicou.<br />

Quinhentos obreiros, de uma força missionária de 1700, foram envia<strong>do</strong>s pela<br />

IURD. 26 Países lusófonos da África (Moçambique e Angola em particular) são<br />

os destinos preferi<strong>do</strong>s de igrejas carismáticas brasileiras (católicas e protestantes).<br />

Essas parecem estar melhor capacitadas <strong>do</strong> que as igrejas <strong>do</strong> Norte global<br />

para lidar com os problemas sociais africanos. 27 Fatores determinantes para isso<br />

certamente incluem a língua e as raízes de religiões afro-brasileiras, como o<br />

can<strong>do</strong>mblé e a umbanda. Em <strong>20</strong>05, a IURD plantou mais de quatrocentas igrejas<br />

na região. 28 Livres da culpa pós-colonial que assombra as antigas metrópoles<br />

europeias, as igrejas brasileiras continuarão a estabelecer filiais no Sul global. 29<br />

O movimento missionário brasileiro já alcançou to<strong>do</strong>s os continentes,<br />

mas o hemisfério Sul tem produzi<strong>do</strong> muitos frutos, tanto para protestantes<br />

como para católicos (que ainda enviam mais missionários que os “rivais”).<br />

No ano <strong>20</strong>00, 72% <strong>do</strong>s missionários brasileiros trabalhavam em países da região,<br />

enquanto que o restante ministrava na Europa e na América <strong>do</strong> Norte. 30<br />

Em <strong>20</strong>10, no Brasil, o número de missionários envia<strong>do</strong>s superou o número de<br />

missionários recebi<strong>do</strong>s em quatorze mil. Esse da<strong>do</strong> colocou o país no segun<strong>do</strong><br />

25 WALLS, <strong>Andrew</strong> F. The Mission of the Global Church Today in the Light of Global History.<br />

Word & World <strong>20</strong>, no. 1 (Winter <strong>20</strong>00): 17-21, p. 18.<br />

26 FRESTON, Paul. Globalization, Religion, and Evangelical Christianity: A Sociological Meditation<br />

from the Third World. In: KALU, Ogbu U.; LOW, Alaine (Orgs.). Interpreting Contemporary<br />

Christianity: Global Processes and Local Identities. Grand Rapids, MI: Eerdmans, <strong>20</strong>08, p. 43.<br />

27 van de Kemp, Linda. South-South Transnational Spaces of Conquest: Afro-Brazilian<br />

Pentecostalism, Feitiçaria and the Reproductive Domain in Urban Mozambique. Exchange 42 no. 4<br />

(Jan <strong>20</strong>13): 343-365, p. 345.<br />

28 FRESTON, Paul. The Universal Church of the King<strong>do</strong>m of God: A Brazilian Church Finds<br />

Success in Southern Africa. Journal of Religion in Africa 35, no. 1 (Feb <strong>20</strong>05): 33-65, p. 33.<br />

29 FRESTON, Paul. Globalization, Southern Christianity and Proselytism. Review of Faith &<br />

International Affairs 7, no. 1 (March <strong>20</strong>09): 3-9, p. 7.<br />

30 Freston, Globalization, Religion, and Evangelical Christianity, p. 42.<br />

36


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 31-39<br />

lugar no índice mundial das nações mais missionárias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Perdemos<br />

apenas para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s 31 e em um futuro não tão distante seremos a<br />

nação mais missionária <strong>do</strong> planeta.<br />

3. Campos missionários no Norte global<br />

Os missiólogos já observaram um outro fenômeno no cristianismo global.<br />

O eixo imigratório Norte-Sul que levou coloniza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> século 16 ao Novo<br />

Mun<strong>do</strong> inverteu a sua direção. 32 A nova rota, Sul-Norte, junto com o entusiasmo<br />

missionário, é agente majoritário na transformação <strong>do</strong> Brasil de campo missionário<br />

em força missionária. 33 Os destinos preferi<strong>do</strong>s de imigrantes brasileiros são a<br />

Europa e a América no Norte. Essa diáspora brasileira criou um novo paradigma<br />

missionário: informal, não-oficial e alimenta<strong>do</strong> pela necessidade econômica <strong>do</strong>s<br />

imigrantes. Evangélicos brasileiros no Norte têm como objetivo prover uma<br />

vida melhor para as suas famílias, mas alguns acabam se tornan<strong>do</strong> planta<strong>do</strong>res<br />

de igrejas. 34 Muitos entram nos novos países de forma ilegal, o que torna difícil<br />

uma avaliação objetiva e detalhada de suas atividades, 35 mas sua forma vibrante<br />

de a<strong>do</strong>ração e evangelismo ao menos inspira os anfitriões. Pode-se dizer que<br />

eles estão, dessa forma, retribuin<strong>do</strong> o favor <strong>do</strong>s missionários protestantes <strong>do</strong><br />

século 19 e início <strong>do</strong> século <strong>20</strong>. Eles também trazem uma mão-de-obra barata e<br />

disposta, e ao fazerem-no apresentam o evangelho novamente a um Norte global<br />

pós-cristão. O renoma<strong>do</strong> missiólogo <strong>Andrew</strong> Walls descreve o triste esta<strong>do</strong> de<br />

secularização da Europa. Quanto à Escócia, sua terra natal, ele lamenta:<br />

Já é tarde demais para um avivamento; a necessidade imediata é de evangelização<br />

básica e transcultural, da mesma forma como missionários daqui uma vez<br />

fizeram em outros continentes. A velha cristandade foi substituída por uma<br />

cultura essencialmente não-cristã. Nosso deus, se temos um, é Mamon, e os<br />

altares de Mamon são tão abomináveis quanto os de Moloque. 36<br />

31 Johnson, Christianity in Its Global Context, 1970-<strong>20</strong><strong>20</strong>, p. 76. Em <strong>20</strong>10, o Brasil enviou<br />

34.000 missionários e recebeu <strong>20</strong>.000. Esses números não incluem missionários brasileiros em território<br />

nacional. A maior parte desses missionários são católicos também considera<strong>do</strong>s pentecostais.<br />

32 WALLS, <strong>Andrew</strong> F. Christian Mission in a Five-Hundred Year Context. In: WALLS, <strong>Andrew</strong>;<br />

ROSS, Cathy (Orgs.). Mission in the 21 st Century: Exploring the Five Marks of Global Mission. Maryknoll,<br />

NY: Orbis, <strong>20</strong>08, p. 194.<br />

33 HANCILES, Jehu J. Migration and Mission: The Religious Significance of the North-South<br />

Divide. In: WALLS, <strong>Andrew</strong>; ROSS, Cathy (Orgs.). Mission in the 21 st Century: Exploring the Five<br />

Marks of Global Mission. Maryknoll, NY: Orbis, <strong>20</strong>08, p. 129.<br />

34 PALOMINO, Miguel A. Latino Immigration in Europe: Challenge and Opportunity for Mission.<br />

International Bulletin of Missionary Research 28, no. 2 (April <strong>20</strong>04): 55-58, p. 57.<br />

35 KALU, Ogbu U. Changing Tides: Some Currents in World Christianity at the Opening of the<br />

Twenty-First Century. In: KALU, Ogbu U.; LOW, Alaine (Orgs.). Interpreting Contemporary Christianity:<br />

Global Processes and Local Identities. Grand Rapids, MI: Eerdmans, <strong>20</strong>08, p. 5.<br />

36 Walls, Christian Mission in a Five-Hundred Year Context, p. 199.<br />

37


Pierre Rosa, Uma Força Missionária no Sul Global<br />

Se as tendências imigratórias atuais continuarem, brasileiros na Europa<br />

e América <strong>do</strong> Norte atenderão ao apelo de Walls para essa reevangelização.<br />

Seremos vistos como uma ex-colônia pacífica e geopoliticamente neutra. 37<br />

Como resulta<strong>do</strong>, veremos o surgimento de mais igrejas pentecostais de língua<br />

portuguesa que não somente alcançarão outros imigrantes, mas contribuirão<br />

para a revitalização espiritual de igrejas locais. 38<br />

Deve-se destacar também a participação de igrejas não-pentecostais no<br />

movimento missionário brasileiro. 39 A Junta de Missões Mundiais da Convenção<br />

Batista Brasileira tem atuação notável no Sul global. A América <strong>do</strong> Sul<br />

abriga os missionários brasileiros <strong>do</strong> projeto Colômbia para Cristo e Peru Sem<br />

Fronteiras. Crianças entre cinco e <strong>do</strong>ze anos <strong>do</strong> Paraguai recebem missionários<br />

dentistas <strong>do</strong> POPE – Programa de O<strong>do</strong>ntologia Preventiva e Educativa. O sudeste<br />

Asiático também conta com missionários batistas brasileiros. O Projeto<br />

Vida Mais, por exemplo, opera no Timor Leste ten<strong>do</strong> em vista a evangelização<br />

da nação. Embora missionários batistas brasileiros ministrem também na<br />

Europa ocidental, o mapa de atuação da JMM mostra claramente uma ênfase<br />

no Sul global, confirman<strong>do</strong>, assim, a força <strong>do</strong> Brasil na região. 40<br />

A Agência Presbiteriana de Missões Transculturais, da Igreja Presbiteriana<br />

<strong>do</strong> Brasil, foi criada no ano <strong>20</strong>00 ten<strong>do</strong> como objetivo “a propagação<br />

da fé reformada em campos transculturais”. 41 A APMT a<strong>do</strong>tou como filosofia<br />

missionária o Pacto de Lausanne, cujo lema é “o Evangelho to<strong>do</strong>, para o homem<br />

to<strong>do</strong>”. Essa agência recruta missionários da própria denominação, os<br />

quais, quan<strong>do</strong> possível, atuam em parceria com igrejas presbiterianas locais.<br />

Missionários presbiterianos brasileiros ministram nos <strong>do</strong>is hemisférios, mas<br />

o campo sulista parece apresentar mais frutos. Atualmente são dezessete os<br />

países da região que recebem obreiros da APMT. São nove os países <strong>do</strong> Norte<br />

global com presença da denominação brasileira. 42<br />

Conclusão<br />

Alimenta<strong>do</strong> pelo zelo expansionista <strong>do</strong> movimento missionário brasileiro,<br />

o Brasil se tornou uma potência em missões de “Sul global a Sul global”. Desde<br />

a segunda metade <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, o país tem passa<strong>do</strong> por uma transição<br />

significativa, tornan<strong>do</strong>-se um agente de retransmissão <strong>do</strong> evangelho. Essa<br />

37 Freston, Globalization, Southern Christianity and Proselytism, p. 8.<br />

38 Palomino, Latino Immigration in Europe, p. 58.<br />

39 Não é a intenção deste autor avaliar a atuação de missionários brasileiros católicos neste artigo,<br />

embora o expansionismo da Renovação Carismática Católica seja notável. Tal estu<strong>do</strong> caberia num ensaio<br />

mais amplo sobre as origens e tendências <strong>do</strong> movimento missionário brasileiro.<br />

40 Disponível em: http://missoesmundiais.com.br/mapa-de-atuacao/. Acesso em: 10 out. <strong>20</strong>15.<br />

41 Disponível em: http://www.apmt.org.br/o-que-e-apmt. Acesso em: 10 out. <strong>20</strong>15.<br />

42 Disponível em: http://www.apmt.org.br/missionarios. Acesso em: 10 out. <strong>20</strong>15.<br />

38


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 31-39<br />

transformação ocorreu simultaneamente ao surgimento <strong>do</strong>s novos “centros<br />

de gravidade” da fé cristã. O movimento missionário brasileiro envia milhares de<br />

obreiros a nações <strong>do</strong> Sul global anualmente. Tanto a Junta de Missões Mundiais<br />

da Convenção Batista Brasileira quanto a Agência Presbiteriana de Missões<br />

Transculturais têm colhi<strong>do</strong> bons frutos na região. Verificou-se também neste<br />

artigo que a ala pentecostal de missões brasileiras exporta um cristianismo<br />

distinto, carismático e vibrante, mas por vezes teologicamente deficiente. O<br />

estabelecimento da IURD na África lusófona é evidência disso.<br />

O Brasil tende a se tornar um líder também nas missões de “Sul a Norte”,<br />

devi<strong>do</strong> à presença de imigrantes brasileiros na América <strong>do</strong> Norte e na Europa.<br />

É bem provável que em breve superemos os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s como a nação<br />

mais missionária <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O encontro entre crentes brasileiros e as culturas<br />

seculares <strong>do</strong> Norte merece uma observação mais atenciosa por parte de estudiosos.<br />

43 Este artigo sugere um ponto de partida.<br />

Abstract<br />

The reality that Europe and North America are no longer the main centers<br />

of the Christian faith has given birth to a new branch of missiology: Studies<br />

in Global Christianity. Missiologists have observed that today the “center of<br />

gravity” in missions is to be found in the global South (Latin America, Africa,<br />

and Asia, according to the United Nations nomenclature). Countries in that<br />

hemisphere are quickly becoming agents in the retransmission of the gospel,<br />

ever since old mission fields were transformed into evangelistic powers. One<br />

of the peculiarities of this southern Christianity is the enthusiasm for missions<br />

and evangelism, but the missionary movement usually occurs from one nation<br />

in the global South to another, which represents one of the most impressive<br />

phenomena in modern missiology. The aim of this article is to deal briefly with<br />

the role of Brazil in such developments.<br />

Keywords<br />

Missiology; World missions; Global Christianity; Global south; Brazil;<br />

Protestant churches; Pentecostal churches.<br />

43 SMITHER, The Impact of Evangelical Revivals on Global Mission, p. 95.<br />

39


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada: O Risco<br />

de Casar-se com o Espírito de seu Tempo –<br />

Uma Análise das Propostas de Revitalização de<br />

Igreja <strong>do</strong>s Movimentos Seeker-Sensitive e Emergente<br />

Emilio Garofalo Neto *<br />

resumo<br />

Este artigo aborda as características e limitações de <strong>do</strong>is movimentos<br />

eclesiásticos de origem norte-americana que têm pretendi<strong>do</strong> ser uma resposta<br />

às necessidades <strong>do</strong> complexo mun<strong>do</strong> atual. Um deles é o movimento “seeker-<br />

-sensitive” (sensível ao interessa<strong>do</strong>), tipifica<strong>do</strong> pelas megaigrejas existentes<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Brasil e outros países, que, raciocinan<strong>do</strong> em termos merca<strong>do</strong>lógicos,<br />

procura atrair adeptos atenden<strong>do</strong> a uma enorme gama de gostos,<br />

interesses e aspirações característicos da moderna sociedade consumista. Todavia,<br />

o autor dedica maior atenção ao chama<strong>do</strong> MIE (Movimento de Igreja<br />

Emergente), que, na ânsia de falar ao homem pós-moderno, acaba negan<strong>do</strong><br />

ou menosprezan<strong>do</strong> a tradição e a <strong>do</strong>utrina cristã, enfatizan<strong>do</strong>, em vez disso, o<br />

mistério, a comunidade e a experiência pessoal. Nesse esforço, o MIE privilegia<br />

o pluralismo e relativismo da pós-modernidade e abraça práticas medievais<br />

e antigas. O autor alerta para o perigo que corre toda igreja que procura se<br />

identificar acriticamente com o espírito da época, seja ela moderna ou pós-<br />

-moderna, porque isso pode ocorrer às expensas da fidelidade a Cristo e sua<br />

Palavra. Embora o artigo não tenha em mente sugerir propostas alternativas e<br />

detalhadas de revitalização da igreja, procura indicar alguns rumos com base na<br />

metanarrativa bíblica de criação-queda-redenção-consumação e nas <strong>do</strong>utrinas<br />

históricas da obra de Cristo, da justificação pela fé e da santificação.<br />

* O autor obteve seu Ph.D. no Reformed Theological Seminary em Jackson, Mississipi. Pastoreia<br />

a Igreja Presbiteriana Semear, em Brasília (DF). É professor de Teologia Sistemática no Seminário<br />

<strong>Presbiteriano</strong> de Brasília e professor visitante <strong>do</strong> CPAJ na área de Teologia Pastoral.<br />

41


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

palavras-chave<br />

Igrejas seeker-sensitive; Igrejas emergentes; Revitalização da igreja;<br />

Espírito da época; Modernidade; Pós-modernidade; Pluralismo; Relativismo;<br />

Racionalidade; Metanarrativa; Doutrina.<br />

introdução<br />

“Minha <strong>do</strong>r é perceber que, apesar de termos feito tu<strong>do</strong> o que fizemos,<br />

ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. Nossos í<strong>do</strong>los ainda são<br />

os mesmos e as aparências não enganam não”. Assim escreveu Belchior para<br />

que tantos cantassem em “Como nossos pais”. A ideia é de que o mun<strong>do</strong> vai<br />

mudan<strong>do</strong>, achamos que novos caminhos se abriram e que seremos inova<strong>do</strong>res<br />

e encontraremos novas formas de responder a este mun<strong>do</strong>. Mas no fun<strong>do</strong> não<br />

há tanta diferença assim, não há nada novo debaixo <strong>do</strong> sol, como disse outro<br />

poeta. Quan<strong>do</strong> começamos a pensar acerca de revitalização de igreja, uma<br />

ideia comum é de que deve haver uma fórmula secreta nunca antes explorada<br />

que finalmente fará tu<strong>do</strong> ficar bem. Nisto vivemos como nossos pais e, como<br />

eles, achamos que somos únicos e encontraremos a solução ímpar. Neste artigo<br />

refletiremos um pouco sobre tentativas recentes de lidar com o mun<strong>do</strong> e<br />

revitalizar a igreja, mas que vão longe demais e se vendem aos í<strong>do</strong>los de sua<br />

época, os quais continuam em geral sen<strong>do</strong> os mesmos de antes.<br />

Iremos nos deter em <strong>do</strong>is exemplos recentes de tentativas de revitalização:<br />

o movimento seeker-sensitive e o movimento de igreja emergente (MIE).<br />

Iremos mostrar como os <strong>do</strong>is tiveram por objetivo uma revitalização de igrejas<br />

supostamente moribundas, mas erraram e não atingiram seus objetivos. Ao<br />

cederem demasiadamente ao espírito de seu tempo, levam em última instância<br />

à viuvez e irrelevância. 1 Iremos sugerir, brevemente, direções para uma rota<br />

mais segura para a verdadeira revitalização bíblica.<br />

Como fora para os israelitas viven<strong>do</strong> em Babilônia, há inúmeros perigos<br />

e desafios para a igreja exilada no mun<strong>do</strong> urbano no século 21. As dificuldades<br />

envolvem ministrar a uma cultura que se porta como um camaleão, em meio<br />

a uma sociedade urbana fraturada e repleta de cosmovisões extremamente variadas.<br />

Isso tem leva<strong>do</strong> a igreja a buscar maneiras de se aproximar e alcançar a<br />

cultura ao seu re<strong>do</strong>r. É saudável que a igreja tenha percebi<strong>do</strong> a necessidade de<br />

pensar em formas específicas para se relacionar com a população das cidades e<br />

lidar com os diversos desafios urbanos. 2 Muitas vezes a igreja, sem perceber, já<br />

1 A frase vem de William Ralph Inge: “Aquele que se casa com o espírito de sua era acaba viúvo<br />

na próxima”.<br />

2 No mun<strong>do</strong> evangélico ocidental, alguns missiólogos foram especialmente importantes em<br />

buscar entender o contexto e desenvolver ferramentas para lidar com o público urbano. Exemplos são<br />

Harvie Conn, Manuel Ortiz, Ray Bakke e Roger Greenway. Mais recentemente, Tim Keller e outros<br />

vêm fazen<strong>do</strong> reflexões importantes acerca <strong>do</strong> ministério urbano. Vale consultar, por exemplo, o livro de<br />

Keller intitula<strong>do</strong> Igreja Centrada (Vida Nova, <strong>20</strong>14).<br />

42


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

está sen<strong>do</strong> influenciada pelo pensamento de seu tempo. O pastor presbiteriano<br />

Francis Schaeffer mostrou que as ideias geralmente percorrem um caminho<br />

interessante: da filosofia vão para outros ramos da academia; sain<strong>do</strong> da esfera<br />

acadêmica elas penetram no mun<strong>do</strong> das artes, passam pela cultura popular e<br />

eventualmente chegam à igreja! 3 No caso <strong>do</strong>s movimentos seeker-sensitive<br />

e emergente, ocorre algo semelhante. Estão reagin<strong>do</strong> e imitan<strong>do</strong> ideias que<br />

já se encontram na cultura popular há um bom tempo. Vamos aqui investigar<br />

como esses movimentos bebem, por vezes sem perceber, da fonte suja <strong>do</strong>s<br />

bebe<strong>do</strong>res modernos e pós-modernos, e como nossas igrejas locais têm si<strong>do</strong><br />

influenciadas por isto. A importância <strong>do</strong> tópico é muito mais <strong>do</strong> que saber se o<br />

que tais movimentos oferecem é bom, mau ou péssimo. Esta discussão se insere<br />

na questão maior acerca de como agir em termos de plantação e revitalização<br />

de igreja em centros urbanos. A grande alegação desses movimentos é de<br />

supostamente serem a melhor forma de alcançar sua geração. Trataremos primeiramente<br />

<strong>do</strong> movimento seeker-sensitive, mas gastaremos bem mais tempo<br />

com o movimento de igreja emergente, por ser menos explora<strong>do</strong> e mais recente.<br />

1. movimento seeker-sensitive 4<br />

Ao longo <strong>do</strong> século <strong>20</strong>, o desenvolvimento tecnológico, a crescente expansão<br />

<strong>do</strong>s meios de comunicação de massa e a revolução digital fizeram com que<br />

fôssemos conecta<strong>do</strong>s de maneiras nunca vistas antes (mesmo antes da internet,<br />

já com o telégrafo e o rádio!). Anteriormente, notícias <strong>do</strong> que se passava na<br />

Europa ou na Ásia levavam meses para chegar até a América. Hoje passamos<br />

a ter acesso às notícias em tempo real. Os meios de comunicação e reprodução<br />

técnica serviram para difundir com mais rapidez os produtos culturais como a<br />

música e os filmes. A maior produção de marcas e produtos alia<strong>do</strong>s ao boom<br />

<strong>do</strong> marketing trouxe-nos a difícil tarefa de decidir entre 17 tipos de pasta de<br />

dente e 35 opções de pão-de-queijo no merca<strong>do</strong>. Temos opções de consumo<br />

como nunca se viu antes na história.<br />

3 Ver o livro de SCHAEFFER, Francis. O Deus que intervém. São Paulo: Cultura Cristã, 1998.<br />

Geralmente quan<strong>do</strong> essas ideias chegam à igreja, o mun<strong>do</strong> acadêmico já as está aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> em busca<br />

de algo novo. A igreja busca ser “relevante” para o tempo atual e na verdade está segui<strong>do</strong> moda que já<br />

saiu de moda. O melhor mesmo é simplesmente evitar modas e ser contracultural. Veremos no final <strong>do</strong><br />

artigo um pouco sobre como fazer isso.<br />

4 Pode ser literalmente traduzida como “sensível ao que está buscan<strong>do</strong>”, um conjunto não-uniforme<br />

de meto<strong>do</strong>logias de crescimento de igrejas. Outro nome seria o de market-driven church – igreja direcionada<br />

pelo merca<strong>do</strong>. Ou ainda seeker-friendly: amistosa para com os que buscam. Algumas das maiores<br />

são a Willow Creek Community Church, em Chicago, cujo líder é o imensamente popular Bill Hybels,<br />

e a Saddleback Church, em Lake Forest, na Califórnia, liderada por Rick Warren. Mais recentemente<br />

apareceu Joel Osteen e sua gigantesca Lakewood Church, em Houston. Enquanto Warren ainda mantém<br />

uma teologia em geral evangélica, outros como Joel Osteen aban<strong>do</strong>nam o evangelho em troca de<br />

promessas de melhoria pessoal e prosperidade. Vale notar que vários <strong>do</strong>s defensores dessa abordagem<br />

vêm repensan<strong>do</strong> estratégias e objetivos. Mas a influência internacional <strong>do</strong> movimento permanece firme.<br />

43


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

Isto ajuda a entender o clima com que a igreja se deparou nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s na segunda metade <strong>do</strong> século <strong>20</strong>. Por um la<strong>do</strong>, a enorme oferta de bens<br />

e serviços, conhecimento acerca de novas ideias e produtos, uma cultura de<br />

marketing que vive dizen<strong>do</strong> que você é especial e merece tu<strong>do</strong> de bom. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, as igrejas vinham aos poucos perden<strong>do</strong> seus membros, desinteressa<strong>do</strong>s<br />

em participar de comunidades nas quais o evangelho não aparecia<br />

nem no púlpito nem na prática. 5 O que saiu desse caldeirão? A igreja seeker-<br />

-sensitive. Esse movimento está liga<strong>do</strong> ao evangelicalismo contemporâneo nos<br />

Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, que, diferentemente das igrejas históricas, busca se definir<br />

pelo mínimo denomina<strong>do</strong>r comum, deixan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> distintivos teológicos<br />

e <strong>do</strong>utrinas potencialmente divisivas. A ideia é a seguinte: temen<strong>do</strong> que o<br />

evangelho estivesse se tornan<strong>do</strong> irrelevante neste mun<strong>do</strong> moderno, decidiram<br />

oferecer uma igreja em que o visitante fosse trata<strong>do</strong> como um consumi<strong>do</strong>r de<br />

produtos ou um expecta<strong>do</strong>r de grandes produções midiáticas. Trata<strong>do</strong> como<br />

um cliente que sempre tem razão. Afinal, ele está acostuma<strong>do</strong> a ser paparica<strong>do</strong><br />

nos supermerca<strong>do</strong>s, a ser bem trata<strong>do</strong> nos teatros, a ter um enorme cardápio de<br />

opções em toda esfera da vida. Que tal criar uma igreja onde se apresente um<br />

ambiente não-ameaça<strong>do</strong>r, onde o visitante/membro sinta-se livre de pressões,<br />

no controle da situação, <strong>do</strong>no de suas escolhas e tu<strong>do</strong> seja feito para agradá-lo?<br />

Bem-vin<strong>do</strong> à megaigreja, onde os a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res são como consumi<strong>do</strong>res num<br />

shopping center ou num grande festival de música.<br />

Como isso se mostra na prática? Para começar, um diferente tipo de pastor<br />

passa a ser busca<strong>do</strong>. Não importa mais tanto conhecer as línguas originais, não<br />

se busca alguém que conheça <strong>do</strong>utrina profundamente, que seja bom no cuida<strong>do</strong><br />

das ovelhas e tenha vida marcada pela maturidade cristã, mas alguém com boa<br />

capacidade de gerenciamento e mais semelhante a um bom empresário, carismático<br />

e vigoroso. O maior investimento da igreja não é mais em discipula<strong>do</strong><br />

e teologia, mas em aparência, em comunicação, em equipamentos multimídias.<br />

Quais são as estratégias para seduzir os clientes? Há to<strong>do</strong> tipo de peripécia<br />

e artimanha debaixo <strong>do</strong> sol. Em listar todas há canseira e enfa<strong>do</strong>, então<br />

vejamos apenas algumas linhas gerais. Várias igrejas começaram a erigir instalações<br />

megalomaníacas e oferecer a oportunidade de a<strong>do</strong>rar junto a milhares de<br />

pessoas e ainda apresentar amenidades para seus clientes: quadras de basquete<br />

com arquibancadas e vestiários, serviço de troca de óleo para seu carro durante o<br />

culto, boliche, saunas, salões de beleza, Starbucks, McDonald’s, tu<strong>do</strong> isto em<br />

nome de atrair descrentes para o evangelho. A princípio isto é atraente e novo,<br />

mas logo vira lugar comum. Além disto, as inovações não podem estagnar,<br />

5 Neste momento histórico, boa parte das igrejas norte-americanas estava contaminada pelo liberalismo<br />

moralista que mata a esperança e desestimula a santidade. Outra parte havia fugi<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

real em exageros de isolamento cultural e legalismo, tolhen<strong>do</strong> a liberdade cristã. Havia pouca coisa<br />

disponível em termos de igreja realmente saudável. Gerações em to<strong>do</strong> o país não conheceram igrejas<br />

verdadeiramente vibrantes e saudáveis.<br />

44


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

ou o produto fica velho. Toda sorte de ideia espetacular vem sen<strong>do</strong> tentada<br />

e amplificada. Utilize camelos entran<strong>do</strong> no “palco” na época <strong>do</strong> Natal. Faça<br />

com que os pastores desçam no palco em cordas de rapel na hora de pregar.<br />

Utilize o que for preciso para tornar o momento de música mais adequa<strong>do</strong>. Se<br />

for necessário, use louvor com lasers, simulação de milagres, o que for! Faça<br />

simulações, jogo de cena, luta-livre, traga humoristas, dançarinos de tango,<br />

teatros... A criatividade não tem fim! Trate seu visitante como um cliente e faça<br />

de tu<strong>do</strong> para agradá-lo e para não sentir como se estivesse, bem, numa igreja.<br />

Por isto, prega<strong>do</strong>res, muito cuida<strong>do</strong>: nada de falar de temas difíceis (inferno,<br />

divórcio...), nada de usar palavras complicadas (expiação, imputação), nada<br />

de muita <strong>do</strong>utrina, mas apenas dicas práticas para a vida e muitas histórias<br />

para divertir o povo, com uma pitada de autoajuda para ficar com um ar de<br />

espiritualidade. Aliás, a pregação é quem mais sofre na igreja seeker-sensitive.<br />

Seu tempo é diminuí<strong>do</strong> a fim de não ser desconfortável. O púlpito é toma<strong>do</strong><br />

por palestras práticas sobre o cotidiano e pela sabe<strong>do</strong>ria vigente da época. 6<br />

A fim de servir melhor o cliente, era necessário mudar a forma tradicional<br />

de fazer música e de pregar. Na parte da música observa-se um crescente<br />

movimento de trocar o cântico congregacional (onde to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> canta) por<br />

cantores profissionais que se apresentam em produções de alto nível técnico;<br />

o povo assiste ao invés de fazer. Ampliou-se o tempo dedica<strong>do</strong> à música,<br />

diminuin<strong>do</strong> o de pregação. Esses são apenas alguns elementos que marcam a<br />

megaigreja, repleta de superproduções e geralmente desprovida das marcas<br />

de uma igreja saudável.<br />

Resulta<strong>do</strong>: a megaigreja ganhou terreno nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e em outras<br />

partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Por aqui, em terrenos sul-americanos, ela não se firmou da<br />

mesma forma que lá, mas diversos elementos aparecem nas mais variadas<br />

denominações brasileiras. Uma igreja pode ser histórica e conserva<strong>do</strong>ra em<br />

certos elementos ao mesmo tempo em que a<strong>do</strong>ta práticas e ideias seeker-sensitive.<br />

É cada vez mais comum pastores bem-intenciona<strong>do</strong>s não perceberem<br />

o que estão crian<strong>do</strong> ao se deixarem levar por modelo assim: acham que estão<br />

adaptan<strong>do</strong> seu modelo aos tempos quan<strong>do</strong> na verdade estão capitulan<strong>do</strong> a um<br />

modelo antibíblico. Muitas vezes as igrejas absorvem apenas elementos, princípios<br />

e ideias de um movimento, sem necessariamente comprar o pacote to<strong>do</strong>.<br />

Assim muitas igrejas presbiterianas, batistas e metodistas começaram a fazer<br />

concessões específicas em certas áreas a fim de se tornarem mais palatáveis<br />

ao gosto <strong>do</strong> freguês. Passa a haver uma grande mistura de elementos tradicionais<br />

e inovações. Por exemplo, igrejas presbiterianas acabam por rejeitar<br />

sua própria teologia de culto e pregação por buscar um caminho supostamente<br />

mais alinha<strong>do</strong> com o tempo. O problema maior não é que se considere a<br />

6 Ver: GOMES, Wadislau Martins. Psicologização <strong>do</strong> púlpito e relevância na pregação. <strong>Fides</strong><br />

Reformata X-1 (<strong>20</strong>05): 11-29.<br />

45


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

possibilidade de modernizar ou rever algumas coisas. O verdadeiro problema<br />

reside no fato de que muitos líderes simplesmente compraram a ideia de que<br />

o povo de hoje em dia não aceita mais as velhas formas, e o único caminho <strong>do</strong><br />

sucesso (medi<strong>do</strong> por parâmetros não-bíblicos) é mudar e tornar o pacote mais<br />

agradável ao consumi<strong>do</strong>r.<br />

Mas será que funciona? Parece que sim, pois afinal essas igrejas têm dezenas<br />

de milhares de membros, não é mesmo? O primeiro problema é que este<br />

tipo de comunidade e ministério da palavra gera em sua enorme maioria cristãos<br />

rasos com uma mentalidade consumista. Estes eventualmente irão buscar<br />

algo mais sóli<strong>do</strong> em outro lugar ou aban<strong>do</strong>nam a igreja de vez. Curiosamente,<br />

vem fican<strong>do</strong> mais claro que a grande maioria <strong>do</strong>s membros das megaigrejas<br />

não é composta de descrentes que vieram ao evangelho por meio delas, mas<br />

de crentes que migraram para ali vin<strong>do</strong> de igrejas menores e menos, digamos,<br />

animadas. Além disso, a medida puramente numérica não é o critério bíblico<br />

de fidelidade ao Senhor, mas os frutos de santidade, semelhança com Cristo,<br />

ser sal e luz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A mensagem <strong>do</strong> evangelho é frequentemente modificada<br />

de boas novas de salvação para peca<strong>do</strong>res em algo açucara<strong>do</strong>, palatável<br />

e, infelizmente, nada nutritivo. Levaram anos receben<strong>do</strong> leitinho espiritual e<br />

agora passaram não para uma comida sólida, mas para algodão-<strong>do</strong>ce espiritual. 7<br />

A modernidade, na qual a igreja seeker-sensitive se sustenta, já nasceu<br />

fadada à derrota, como qualquer projeto de autonomia humana. Embora boa<br />

parte da igreja tenha se enamora<strong>do</strong> dele, o pensamento moderno nunca foi um<br />

bom parti<strong>do</strong> para casar. Muitos pensa<strong>do</strong>res eventualmente perceberam que a<br />

maneira de pensar moderna não satisfazia os seus próprios critérios de racionalidade.<br />

De forma semelhante, começou-se a perceber que a própria moralidade<br />

moderna não fazia muito senti<strong>do</strong> (para que ser bom se tu<strong>do</strong> vem <strong>do</strong> acaso?).<br />

A pós-modernidade foi o resulta<strong>do</strong>. 8 E como a igreja reagiu? Divorciou-se de<br />

seu moribun<strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e casou-se com o novo espírito de seu tempo; sem nem<br />

mesmo esperar o cadáver esfriar.<br />

2. o movimento de igreja emergente (mie) 9<br />

Esse movimento pode ser visto principalmente no Reino Uni<strong>do</strong> e<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, embora seus ecos possam ser ouvi<strong>do</strong>s e percebi<strong>do</strong>s no<br />

7 Devo essa comparação a meu caro amigo Josaías Car<strong>do</strong>so Ribeiro Júnior.<br />

8 Claro, não temos tempo de ficar falan<strong>do</strong> sobre o que é a pós-modernidade. Basta dizer que esta<br />

é no fun<strong>do</strong> a modernidade levada às suas últimas consequências éticas, epistemológicas, estéticas, etc.<br />

Para o iniciante no assunto, sugiro ler o capítulo de James Sire sobre pós-modernismo em O Universo ao<br />

La<strong>do</strong> (United Press, <strong>20</strong>09), a fim de conhecer melhor essas pontes entre modernidade e pós-modernidade.<br />

9 Nem todas as igrejas (ou comunidades ou seja o que for) que estão debaixo desse guarda-chuva<br />

pensam de igual mo<strong>do</strong>, mas há elementos suficientes em comum para podemos falar em um movimento.<br />

Como veremos mais adiante, quan<strong>do</strong> elementos <strong>do</strong> MIE chegam ao Brasil, eles muitas vezes vêm em<br />

partes. Igrejas tradicionais a<strong>do</strong>tam uma ou outra prática mesmo sem comprar toda a ideia emergente.<br />

46


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

Brasil 10 e em outros países. Este é um fenômeno ou um movimento primariamente<br />

ocidental e urbano, em sua maioria composto de jovens brancos da chamada<br />

Geração X (ou mesmo da Y). O MIE tende a ser pre<strong>do</strong>minantemente branco e<br />

jovem. 11 Meister lista as características básicas <strong>do</strong> MIE: pluralismo, protesto<br />

contra formas e até mesmo conteú<strong>do</strong>s modernos, alcance missional 12 como<br />

objetivo maior e experimentos no culto e na vida comunitária. 13<br />

O MIE é algo muito flui<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> difícil incluir to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> debaixo<br />

de um mesmo guarda-chuva. Há grande variedade teológica, litúrgica e no<br />

entendimento de questões como envolvimento cultural e político. Pode-se,<br />

entretanto, fazer algumas generalizações, identifican<strong>do</strong> tendências e elementos<br />

comuns. 14 Há, é claro, diferenças entre seus subgrupos. Alguns desejam<br />

10 Mauro Meister escreveu acerca <strong>do</strong> ramo brasileiro <strong>do</strong> movimento em seu artigo: “Igreja emergente,<br />

a igreja <strong>do</strong> pós-modernismo? Uma avaliação provisória”. <strong>Fides</strong> Reformata, XI-1 (<strong>20</strong>06), p. 95-112.<br />

Quase uma década após Meister publicar seu artigo, há vários outros grupos que buscam seguir e/ou<br />

adaptar formas emergentes em sua eclesiologia. Geralmente igrejas históricas acabam a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> certos<br />

elementos <strong>do</strong> MIE sem analisar a carga emergente ou mesmo pagã. Um exemplo é a lectio divina. Trataremos<br />

destas questões mais adiante. Vale notar ainda o crescente número de publicações em português<br />

de autores importantes <strong>do</strong> MIE como Brian McLaren e Rob Bell.<br />

11 Isso levanta a importante questão da diversidade de idade dentro da igreja. Uma congregação<br />

realmente diversificada deveria ter crianças e i<strong>do</strong>sos, jovens e maduros, demonstran<strong>do</strong> o alcance <strong>do</strong><br />

evangelho vivi<strong>do</strong> em diferentes gerações. Infelizmente, muitas das igrejas não podem seguir as instruções<br />

de Paulo a Tito sobre mulheres mais velhas ajudarem as mais novas e os homens mais velhos poderem<br />

ajudar os mais novos. Em geral não há homens e mulheres mais velhos, haven<strong>do</strong> enorme similaridade<br />

etária entre os membros e apenas (talvez) o pastor sen<strong>do</strong> mais velho.<br />

12 Vale notar que o termo “missional” vem sen<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> por grupos diversos e em senti<strong>do</strong>s diversos.<br />

Não suponha que to<strong>do</strong>s os que falam a respeito de a igreja ser missional estão dizen<strong>do</strong> a mesma coisa.<br />

13 MEISTER, Igreja emergente, p. 105-111.<br />

14 Normalmente se consideram quatro grandes subdivisões dentro <strong>do</strong> MIE: 1) aqueles que meramente<br />

tentam contextualizar a mensagem cristã para a cultura pós-moderna; 2) aqueles que buscam<br />

reestruturar a igreja enquanto mantêm, em menor ou maior grau, uma visão orto<strong>do</strong>xa da Bíblia; 3) aqueles<br />

que vão além desses <strong>do</strong>is grupos e buscam rever <strong>do</strong>utrinas como a expiação e a inerrância e, finalmente,<br />

4) um grupo que é emergente em elementos meto<strong>do</strong>lógicos enquanto distintamente reforma<strong>do</strong> em sua<br />

teologia (JOHNSON, Philip. Joyriding on the <strong>do</strong>wngrade at breakneck speed: the dark side of diversity.<br />

In: JOHNSON, Gary L. W.; GLEASON, Ronald N. (Orgs.). Reforming or Conforming? Post-Conservative<br />

Evangelicals and the Emerging Church. Wheaton, IL: Crossway Books, <strong>20</strong>08, p. 212). Este último grupo<br />

é, na mente de muitos, confundi<strong>do</strong> com o movimento neocalvinista ou Young, Restless and Reformed<br />

(jovens, irrequietos e reforma<strong>do</strong>s). Este é um movimento de orientação calvinista em sua soteriologia,<br />

mas não necessariamente em diversos aspectos eclesiológicos como governo de igreja, culto e sacramentos.<br />

Ver: HANSEN, Collin. Young, Restless, Reformed: A journalist’s journey with the new Calvinists.<br />

Wheaton, IL: Crossway, <strong>20</strong>08. Os emergentes normalmente reagem fortemente a serem chama<strong>do</strong>s de<br />

movimento, preferin<strong>do</strong> o termo “conversa”. Alguns líderes emergentes como Brian McLaren pararam<br />

inclusive de utilizar o termo “emergente” por ser um termo confuso e opaco. Entretanto, o objetivo <strong>do</strong><br />

próprio grupo tem si<strong>do</strong> essa falta de clareza e definição. Não conseguir ser claro acerca <strong>do</strong> que a Bíblia<br />

ensina não parece incomodá-los, mas ficam profundamente incomoda<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> os de fora não são claros<br />

a respeito deles. Curiosamente, os proponentes de outro movimento teológico contemporâneo, a Federal<br />

Vision (Visão Federal), também resistem à classificação e dizem que seus críticos fazem generalizações<br />

a seu respeito que não são verdadeiras. As reclamações comuns <strong>do</strong>s membros tanto da FV quan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

47


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

apenas fazer mudanças cosméticas no formato de igreja e sua apresentação, ao<br />

mesmo tempo que mantêm a teologia tradicional e o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> evangelho.<br />

Boa parte <strong>do</strong> MIE, entretanto, afirma abertamente que seu objetivo é muito<br />

maior <strong>do</strong> que simplesmente ajustar o formato de igreja: seu projeto é rever<br />

crenças acerca de Deus, Jesus, a salvação, as Escrituras e a igreja. Rob Bell,<br />

por exemplo, em seu livro Love Wins (O amor vence) tem ensina<strong>do</strong> uma forma<br />

de universalismo (a ideia de que, no final das contas, to<strong>do</strong>s os seres humanos<br />

serão salvos). 15 Steve Chalke chama a <strong>do</strong>utrina da morte substitutiva de Cristo<br />

de “abuso infantil cósmico”. 16 Brian McLaren não somente en<strong>do</strong>ssa o livro de<br />

Chalke como tem sua própria enorme gama de erros teológicos acerca de salvação,<br />

inferno, identidade cristã, escrituras, peca<strong>do</strong>... A lista é gigantesca e<br />

desanima<strong>do</strong>ra. McLaren é vendi<strong>do</strong> no Brasil como se fosse um novo mestre da<br />

espiritualidade sincera e generosa. Ao mesmo tempo em que afirmam categoricamente<br />

hetero<strong>do</strong>xias diversas, insistem que não podem ser critica<strong>do</strong>s, pois<br />

ainda estão investigan<strong>do</strong> e crescen<strong>do</strong> na jornada.<br />

Alguns <strong>do</strong>s nomes mais relevantes no movimento são Dan Kimball, Doug<br />

Pagitt, Rob Bell, Peter Rollins, Spencer Burke e Brian McLaren. Alguns <strong>do</strong>s<br />

teólogos mais robustos que tentam legitimar esse uso <strong>do</strong> pós-modernismo são<br />

Stanley Grenz, John Franke 17 e N. T. Wright. Como esse movimento começou?<br />

2.1 De seeker-sensitive para emergente<br />

O mun<strong>do</strong> ocidental eventualmente começou a se desiludir com o modernismo.<br />

A ideia de que nossa racionalidade, ciência e progresso acabariam<br />

com os problemas <strong>do</strong> planeta mostrou-se um projeto incapaz de cumprir suas<br />

promessas. 18 Além disso, começou-se a perceber que as bases filosóficas da<br />

MIE são de que, muitas vezes, os críticos pintam um quadro muito amplo acerca de seus movimentos,<br />

sem as devidas nuances, e de que se generalizam para o grupo as características <strong>do</strong>s indivíduos. Essas<br />

reclamações têm um elemento de verdade, mas apenas porque isso seria o caso para qualquer movimento<br />

que seja descrito. Um artigo de 15 páginas ou mesmo um livro de <strong>20</strong>0 não são capazes de descrever com<br />

detalhes e interagir com cada faceta singular de um grupo qualquer. Generalizações são necessárias.<br />

Vale notar que as análises que o MIE faz <strong>do</strong> cristianismo moderno e <strong>do</strong> cristianismo reforma<strong>do</strong> também<br />

estão cheias de generalizações e de atribuições equivocadas, geralmente muito mal informadas.<br />

15 BELL, Rob. Love Wins: A book about heaven, hell, and the fate of every person who ever<br />

lived. New York: HarperOne, <strong>20</strong>11. Para uma boa crítica desse livro, ver a longa e cuida<strong>do</strong>sa resenha<br />

de DEYOUNG, Kevin. God is still holy and what you learned in Sunday School is still true: A review<br />

of “Love Wins”. Disponível em: http://thegospelcoalition.org/blogs/kevindeyoung/<strong>20</strong>11/03/14/rob-bell-<br />

-love-wins-review/.<br />

16 CHALKE, Steve. The Lost Message of Jesus. Grand Rapids, MI: Zondervan, <strong>20</strong>04, p. 182.<br />

17 Para uma boa análise de Franke e seu relacionamento com o MIE, ver o artigo de HELM, Paul.<br />

No easy task: John R. Franke and the character of theology. In: JOHNSON e GLEASON, Reforming or<br />

Conforming?, p. 93-111.<br />

18 Alguns <strong>do</strong>s trágicos frutos da pretensa autonomia humana: duas guerras mundiais, massacres<br />

totalitários em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, mullets e o sertanejo universitário.<br />

48


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

modernidade eram tão resistentes quanto uma escultura de papel machê diante<br />

<strong>do</strong> furacão Katrina. 19<br />

Phil Johnson <strong>20</strong> apresenta a história <strong>do</strong> MIE como um desejo de redefinir<br />

categorias e oferecer respostas para uma geração pós-moderna que estava<br />

infeliz com a igreja evangélica merca<strong>do</strong>lógica (seeker-sensitive) no final <strong>do</strong><br />

século <strong>20</strong>. Acompanhan<strong>do</strong> a sociedade, parte da igreja decepcionou-se com<br />

os rumos da modernidade e buscou seguir o novo rumo filosófico-cultural<br />

crian<strong>do</strong> uma igreja mais adaptada a essa nova fase <strong>do</strong> Ocidente. Ven<strong>do</strong> a morte<br />

<strong>do</strong> espírito de seu tempo, resolveu tentar a sorte com um novo mari<strong>do</strong>. Tim<br />

Keller explica essa nova direção:<br />

A igreja emergente rejeita fortemente as megaigrejas lideradas pela geração<br />

boomer como sen<strong>do</strong> dirigida pelo merca<strong>do</strong>, “enlatada” e “consumista”. Eles<br />

criticaram especialmente a face individualista desses ministérios e (ao menos<br />

nos anos 70 e 80) a relativa falta de envolvimento no cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pobres e na<br />

luta por justiça na sociedade. Ainda assim, suas críticas têm si<strong>do</strong> baseadas mais<br />

em análise cultural <strong>do</strong> que em exegese bíblica e teológica. Ou seja, o maior<br />

princípio operacional da igreja emergente é sua escolha de se adaptar à mudança<br />

para a pós-modernidade ao invés de confrontá-la. 21<br />

Ao invés de irem ad fontes e se voltarem para modelos eclesiásticos<br />

reforma<strong>do</strong>s ou mesmo classicamente protestantes, muitos preferiram abraçar<br />

a pós-modernidade e buscar definir modelos de igreja que se alinhem a esta<br />

forma de pensar. Ao invés de retornarem aos trilhos antigos, decidiram andar<br />

pelas veredas pós-modernas como se estas fossem a saída para o fim da falta<br />

de significa<strong>do</strong>, individualidade e relacionamento. A solução foi adequada?<br />

Veremos logo adiante que a busca por autonomia pós-moderna é tão perniciosa<br />

quanto os rumos modernos.<br />

2.2 O MIE tentan<strong>do</strong> responder aos desafios de seu tempo – uma<br />

geração visualmente orientada<br />

É inegável que, em muitos senti<strong>do</strong>s, o mun<strong>do</strong> é um lugar diferente <strong>do</strong> que<br />

era há 100 ou até mesmo 10 anos atrás. O último século marcou uma virada<br />

histórica, na qual a maioria da população <strong>do</strong> planeta passou a viver nas cidades.<br />

22 Desenvolvimentos na comunicação, nos transportes e em outras áreas<br />

19 Para essa questão das bases epistemológicas <strong>do</strong> pensamento moderno e sua fragilidade, sugiro<br />

o excelente artigo de GOMES, Davi Charles. A suposta morte da epistemologia e o colapso <strong>do</strong> fundacionalismo<br />

clássico. <strong>Fides</strong> Reformata V-2 (<strong>20</strong>00): 115-142.<br />

<strong>20</strong> JOHNSON, Joyriding on the Downgrade at Breakneck Speed: The dark side of diversity. In:<br />

JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?, p. 211-223.<br />

21 KELLER, Tim. Igreja centrada. São Paulo: Vida Nova, <strong>20</strong>14, p. <strong>20</strong>3.<br />

22 CLARK, David. Urban World/Global City. Londres: Routledge, 1996, p. 1.<br />

49


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

tecnológicas mudaram profundamente a sociedade em to<strong>do</strong> o planeta. O mun<strong>do</strong><br />

atual é amplamente influencia<strong>do</strong> pela comunicação visual e simbólica. As<br />

gerações atuais, sen<strong>do</strong> visualmente orientadas pela cultura popular e cada vez<br />

mais educadas por méto<strong>do</strong>s visuais, desejam mais elementos visuais na vida<br />

da igreja, particularmente no culto. O MIE busca se adaptar a essa realidade e<br />

suprir essa demanda com elementos misteriosos na a<strong>do</strong>ração, auxílios visuais<br />

e símbolos.<br />

Robert Webber demonstra que grandes mudanças das tecnologias de comunicação<br />

normalmente são acompanhadas por grandes mudanças na cultura.<br />

Ele diz que o interesse <strong>do</strong> MIE na igreja primitiva e medieval está diretamente<br />

relaciona<strong>do</strong> à mudança cultural e tecnológica de volta para formas mais<br />

visuais e orais de manifestações religiosas. 23 O MIE é altamente influencia<strong>do</strong><br />

pela tecnologia de sua era e to<strong>do</strong> o movimento parece ser propulsiona<strong>do</strong> pela<br />

internet e suas novas possibilidades. 24 De fato, a internet como uma metáfora 25<br />

para a sociedade tem se torna<strong>do</strong>, conscientemente ou não, uma metáfora para<br />

esta visão da igreja: é descentralizada, é relacional, é experimental, tem a ver<br />

com navegar, sem um fim aparente; é democrática em suas informações, no<br />

senti<strong>do</strong> de que to<strong>do</strong>s são capazes de produzir e receber todas as informações;<br />

rejeita qualquer forma de controle e busca se basear mais na conectividade <strong>do</strong><br />

que nos objetivos.<br />

Enquanto tu<strong>do</strong> isso é, em grande parte, verdade acerca desta geração, não<br />

procede afirmar que a igreja deva necessariamente mudar sua forma de culto<br />

e se tornar mais visual se deseja alcançar a geração atual. 26 Vale notar que a<br />

23 WEBBER, Robert E. The Younger Evangelicals: Facing the Challenges of the New World.<br />

Grand Rapids, MI: Baker, <strong>20</strong>02, p. 61-69.<br />

24 Uma grande parte da conversa ocorre em fóruns de discussão online, blogs, websites e via<br />

e-mail. A internet proporciona a conectividade e a velocidade necessária para o desenvolvimento <strong>do</strong><br />

MIE e é provavelmente uma condição necessária para o seu sucesso. É muito difícil mensurar quão<br />

amplo e infiltra<strong>do</strong> o MIE realmente é, pois as ideias são disseminadas em larga escala por meios que<br />

nunca são publica<strong>do</strong>s em livros ou resenha<strong>do</strong>s em publicações, porém, apesar disso, são acessa<strong>do</strong>s por<br />

milhares diariamente.<br />

25 Essa ideia foi desenvolvida após uma palestra <strong>do</strong> crítico cultural Kenneth Myers sobre como<br />

as tecnologias moldam a cultura e servem como uma metáfora que dita paradigmas (“Transformed by<br />

our tools: an examination of the impact of technology on culture”, Veritas Forum, Jackson, MS, 29 de<br />

janeiro de <strong>20</strong>09). Ele mostra como as pessoas comparam a mente humana a um computa<strong>do</strong>r, enquanto<br />

isso nunca ocorreu com a máquina de datilografar. O livro de Tom Siegfried (O bit e o pêndulo: a nova<br />

física da informação. Rio de Janeiro: Campus, <strong>20</strong>00) também é muito útil para compreender como o<br />

principal paradigma metafórico de certa era pode ditar a ciência e a sociedade.<br />

26 Deve ser observa<strong>do</strong> que Deus já nos deu sinais sensíveis nos sacramentos e que a pregação tem<br />

um aspecto visual tanto quanto vocal-auditivo. Na carta de Paulo aos Gálatas, o apóstolo menciona que<br />

Cristo foi exposto como crucifica<strong>do</strong> perante eles (Gl 3.1). Obviamente os gálatas não estavam presentes<br />

na crucificação e Paulo não estava falan<strong>do</strong> de imagens. A pregação da Palavra teve a qualidade de estimular<br />

a mente e os senti<strong>do</strong>s. Por meio da pregação <strong>do</strong> evangelho Cristo foi exposto como crucifica<strong>do</strong>,<br />

mesmo sem o uso de imagens.<br />

50


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

população europeia <strong>do</strong> século 16 também era visualmente orientada em seu<br />

culto, estan<strong>do</strong> acostumada à missa e imagens romanas. Isto não impediu os<br />

reforma<strong>do</strong>res de fazerem uma ruptura radical com o status quo neste aspecto,<br />

privilegian<strong>do</strong> o culto espiritual sem imagens no qual a palavra pregada era<br />

central. Agiu contraculturalmente por crer nos ensinos da Escritura. A desculpa<br />

de que a geração atual precisa de elementos mais místicos e visuais não serve.<br />

O evangelho sempre envolveu retirar pessoas de formas pagãs altamente sensualizadas<br />

e místicas e trazê-las a uma a<strong>do</strong>ração em Espírito e em verdade na<br />

simplicidade <strong>do</strong> culto cristão. Ceder à suposta necessidade da a<strong>do</strong>ração visual<br />

é somente mais uma forma de capitular ao espírito da época, como ocorreu<br />

no movimento das megaigrejas, tão influencia<strong>do</strong> pelo conceito de merca<strong>do</strong>.<br />

2.3 Uma geração menos racionalista<br />

Webber 27 observa corretamente como a transição da modernidade para<br />

a pós-modernidade resultou em uma sociedade ocidental mais predisposta à<br />

religiosidade sobrenatural, em oposição a um tempo de religiosidade naturalista<br />

em que a ciência era, para muitos, a salva<strong>do</strong>ra da humanidade. O MIE<br />

diz que está buscan<strong>do</strong> alcançar uma geração que não busca necessariamente a<br />

“certeza laboratorial” das provas racionalistas, mas está mais aberta às questões<br />

espirituais. Essa geração supostamente quer ser engajada, ser ativa e não<br />

apenas passiva, aprender experimentalmente pelas histórias e participação. A<br />

igreja precisaria então lutar por um estilo de culto que privilegie as histórias<br />

que tragam significa<strong>do</strong> ao coração das pessoas, paran<strong>do</strong> de insistir em aprendiza<strong>do</strong><br />

por meio de um conjunto de proposições lógicas. 28 A ideia é que a ênfase<br />

moderna em proposições, fatos e verdade não serve mais para esta geração<br />

pós-moderna. A forma de alcançar as pessoas contemporâneas seria então por<br />

meio de cultos que celebram a incerteza, a humildade (definida como recusa<br />

de assumir posições firmes) e a subjetividade.<br />

Por certo temos de entender que inserir a história <strong>do</strong> indivíduo numa<br />

meta-história de criação-queda-redenção com características experimentais<br />

é uma função <strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r bíblico. Mas isso pode ser leva<strong>do</strong> longe demais se<br />

rejeitarmos a validade e a necessidade da verdade proposicional. Além disto,<br />

seria correto fazer tal generalização acerca da geração atual? Não, isto está<br />

longe de ser uma generalização verdadeira, mesmo para aqueles que fazem<br />

parte <strong>do</strong> grupo étnico e geracional típico <strong>do</strong> MIE. Esse é um <strong>do</strong>s problemas da<br />

caracterização <strong>do</strong>s jovens feita pelo movimento: pressupõem que as pessoas<br />

de um determina<strong>do</strong> grupo étnico-social necessariamente vão compartilhar <strong>do</strong><br />

que eles consideram serem os interesses, desilusões e inquietudes da geração.<br />

27 WEBBER, The Younger Evangelicals, p. 44-48.<br />

28 Reconheço, é claro, que a pregação é muito mais <strong>do</strong> que mero transmitir de proposições lógicas.<br />

O problema <strong>do</strong> MIE é dizer que essas proposições não têm lugar na homilética.<br />

51


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

A verdade é muito mais complexa. Há muitas pessoas na mesma posição desses<br />

autores que estão bem ajustadas e ativas em ambientes eclesiásticos mais<br />

tradicionais. O MIE generaliza demasiadamente a juventude urbana, como<br />

se to<strong>do</strong>s fossem pós-modernos cansa<strong>do</strong>s das certezas cartesianas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

ocidental. Esse movimento despreza as generalizações feitas a seu respeito,<br />

mas parecem supor que as pessoas de hoje necessariamente são como eles.<br />

Se um jovem de fato parece apreciar e gostar de méto<strong>do</strong>s mais tradicionais<br />

na igreja, esse jovem é culpa<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>s maiores peca<strong>do</strong>s de acor<strong>do</strong> com o<br />

MIE: a falta de autenticidade.<br />

O MIE, em geral, busca voltar a um cristianismo supostamente menos<br />

racionalista, mais autêntico, mais verdadeiro. A ideia é ir contra o racionalismo<br />

e mercantilismo da igreja seeker, na qual o que importa é o sucesso medi<strong>do</strong><br />

por números e valores. Nada mais de megaigrejas; mudemos para pequenos<br />

grupos. Chega de grandes líderes e figuras de grande autoridade; mudemos para<br />

líderes como nós que falam nossa língua e se vestem de maneira cool como nós<br />

(sem chamar de cool). Nada mais de grandes produções, artistas caros, shows<br />

de luzes; vamos nos reunir à luz de velas, compartilhar o que entendemos de<br />

espiritualidade, buscar algo pessoal. Nada mais de grandes planos, projetos ou<br />

eventos; vamos agir localmente em nossa comunidade. Nada mais de certezas e<br />

propostas pré-moldadas para a vida; celebremos a dúvida e a jornada. O MIE<br />

afirma que a igreja e a sociedade modernas são demasiadamente preocupadas<br />

com o pensamento linear e a palavra escrita. O pensamento não linear supostamente<br />

irá evitar os jogos de poder que as pessoas usam para <strong>do</strong>minação por<br />

meio <strong>do</strong> discurso da verdade. 29 “Para os cristãos emergentes, a jornada da<br />

vida cristã tem menos a ver com nossa peregrinação por este mun<strong>do</strong> decaí<strong>do</strong><br />

que não é nosso lar, e mais a ver com a aventura selvagem e sem censura <strong>do</strong><br />

mistério e <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo”. 30<br />

Assim, afirma-se que o mun<strong>do</strong> ocidental está passan<strong>do</strong> por uma importante<br />

mudança de paradigma da modernidade para a pós-modernidade,<br />

e que a igreja não deveria resistir a esta mudança, mas abraçá-la, pois essa<br />

seria a única opção contra o racionalismo. Entretanto, como R. Scott Clark<br />

demonstra, Brian McLaren e o cerne <strong>do</strong> MIE apresentam a velha falácia de<br />

uma falsa alternativa entre a modernidade racionalista e o mo<strong>do</strong> de pensar<br />

pós-moderno. 31 Deve-se lembrar que, historicamente, o cristianismo nega o<br />

caminho autônomo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> moderno enquanto afirma que há conhecimento<br />

29 GIBBS, Eddie; BOLGER, Ryan K. Emerging Churches: Creating Christian community in<br />

postmodern cultures. Grand Rapids, MI: Zondervan, <strong>20</strong>05, p. <strong>20</strong>, 68.<br />

30 DEYOUNG, Kevin; KLUCK, Ted. Não quero um pastor bacana e outras razões para não<br />

aderir à igreja emergente. São Paulo: Mun<strong>do</strong> Cristão, <strong>20</strong>11, p. 37.<br />

31 CLARK, R. Scott. Whosoever Will Be Saved: Emerging church, meet Christian <strong>do</strong>gma. In:<br />

JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?, p. 123.<br />

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FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

verdadeiro na revelação de Deus (tanto especial quanto geral) para os seres<br />

humanos equipa<strong>do</strong>s desde a Criação para receber e interpretar a realidade. 32<br />

E este conhecimento não é apenas proposicional, mas também experimental.<br />

Historicamente, o cristianismo tem lança<strong>do</strong> mão de uma terceira via epistemológica<br />

que busca se submeter à revelação de Deus e usá-la como a chave para<br />

interpretar a realidade conforme os desígnios de Deus, levan<strong>do</strong> cativos to<strong>do</strong>s<br />

os pensamentos à obediência de Cristo. Um conhecimento que é análogo ao de<br />

Deus, enquanto diferente em quantidade e qualidade, é verdadeiro e possível<br />

porque Deus criou o homem à sua imagem.<br />

Devemos, sim, reagir contra a superficialidade e artificialidade da igreja<br />

seeker, mas voltan<strong>do</strong> aos caminhos bíblicos. Nesse desejo de jogar fora os<br />

erros da modernidade, o MIE tem se desvencilha<strong>do</strong> também de coisas bíblicas<br />

e corretas que precederam a modernidade. No seu afã de se reencontrar com<br />

uma espiritualidade que supostamente precede o tal racionalismo da igreja<br />

moderna, o MIE tem se volta<strong>do</strong> para algumas ideias e formas medievais indevidas.<br />

No objetivo de evitar os erros da modernidade autônoma, caíram no<br />

laço da pós-modernidade autônoma com pitadas de misticismo medieval. Veja<br />

a situação: por um la<strong>do</strong>, o MIE volta demais no tempo, in<strong>do</strong> até a Idade Média<br />

em busca de autenticidade quan<strong>do</strong> deveria era ter volta<strong>do</strong> à Reforma. Por outro<br />

la<strong>do</strong>, eles não voltam o suficiente, pois não retornam às fontes da Escritura, e<br />

sim às interpretações místicas e por vezes pagãs feitas em certos perío<strong>do</strong>s da<br />

história. Um exemplo vai ilustrar bem essa dicotomia. Brian McLaren escreve<br />

com uma fantasia de piedade humilde:<br />

Eu não acho que entendemos direito o evangelho. O que quer dizer ser salvo?<br />

Quan<strong>do</strong> leio a Bíblia não a vejo dizen<strong>do</strong> que eu vou para o céu quan<strong>do</strong> morrer.<br />

Antes <strong>do</strong> evangelicalismo moderno ninguém aceitava Jesus Cristo como<br />

seu salva<strong>do</strong>r pessoal ou andava pelo corre<strong>do</strong>r num apelo ou dizia a oração <strong>do</strong><br />

peca<strong>do</strong>r. Eu não acho que os liberais entenderam corretamente [o evangelho].<br />

Mas eu também não acho que nós entendemos certo. Nenhum de nós chegou<br />

à orto<strong>do</strong>xia. 33<br />

32 Uma distinção muito importante que ilumina essa discussão é o entendimento histórico reforma<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> conhecimento arquetípico e o conhecimento ectípico. Conhecimento arquetípico é o que Deus possui;<br />

como Cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> universo, seu conhecimento é infinito e quantitativamente e qualitativamente superior ao<br />

conhecimento humano. Conhecimento ectípico é o que os humanos possuem; é análogo ao conhecimento<br />

de Deus e, mesmo não sen<strong>do</strong> infinito, é verdadeiro da mesma forma, pois está embasa<strong>do</strong> no aparato epistemológico<br />

com o qual foi cria<strong>do</strong> e na propositadamente compreensível revelação de Deus. Para conhecer<br />

mais sobre esse importante assunto, ver: VAN ASSELT, Willem J. The fundamental meaning of theology:<br />

archetypal and ectypal theology in seventeenth-century Reformed thought. Westminster Theological<br />

Journal 64 (<strong>20</strong>02): 319-335; WADDINGTON, Jeffrey C. Cornelius Van Til: “principled” theologian or<br />

foundationalist? In: JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?, p. 161); GOMES, A suposta<br />

morte da epistemologia e o colapso <strong>do</strong> fundacionalismo clássico, e a obra de Cornelius Van Til.<br />

33 Brian McLaren, entrevista no artigo de: CROUCH, Andy. The Emergent Mystique. Christianity<br />

Today (nov. <strong>20</strong>04). Disponível em: http://www.christianitytoday.com/ct/<strong>20</strong>04/november/12.36.html.<br />

53


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

Ao mesmo tempo em que rejeita algumas ênfases <strong>do</strong> evangelicalismo<br />

moderno, ele não percebe que essas práticas (como o sistema finneyano de<br />

apelo) já foram deturpações. McLaren reage ao desvio de caminho, mas para<br />

isso aban<strong>do</strong>na o caminho. A igreja seeker aban<strong>do</strong>nou a autoridade bíblica<br />

como base para padrões e objetivos, méto<strong>do</strong>s e conteú<strong>do</strong>, e com isso criou<br />

um vácuo de espiritualidade. Ao investigarem a história da igreja, McLaren e<br />

seus companheiros são estranhamente seletivos: criticam o que lhes interessa<br />

criticar e deixam de observar pontos e movimentos que já há muito tempo<br />

resolveram os problemas que eles buscam resolver. Assim na suposta solução<br />

o MIE acaba in<strong>do</strong> longe demais e negan<strong>do</strong> coisas que nunca deviam ter si<strong>do</strong><br />

negadas, preenchen<strong>do</strong> o vácuo com elementos perigosos que veremos a seguir.<br />

2.4 Espiritualidade medieval<br />

Com o advento <strong>do</strong> pós-modernismo, em todas as esferas da sociedade<br />

antigos racionalistas começaram a se interessar por formas diversas de espiritualidade.<br />

Por algumas décadas era inimaginável que nos centros de pesquisa<br />

acadêmica pudessem ser vistas coisas como cristais energéticos, mapas astrais<br />

ou manuais de rituais Wicca. Estas coisas, entretanto, se tornaram comuns nas<br />

últimas décadas, uma vez que o racionalismo ruiu e não cumpriu suas promessas.<br />

A igreja pós-moderna também se volta para coisas semelhantes, mas desde<br />

que estas tenham aparência de espiritualidade bíblica. Seguin<strong>do</strong> a maneira de<br />

pensar de seu tempo, o MIE identifica o problema como sen<strong>do</strong> a racionalidade,<br />

sem perceber que o problema foi na verdade o racionalismo. 34 O MIE acha<br />

que o erro foi ser extremamente racional e que a culpa é da Reforma e de seu<br />

pensamento monolítico. Assim, propõe-se voltar a tempos supostamente mais<br />

puros e menos individualistas, ao mesmo tempo em que se seguem padrões<br />

de irracionalidade pós-moderna. A ideia é aprender com os grandes mestres<br />

da espiritualidade medieval, adaptan<strong>do</strong>-os à realidade plural contemporânea.<br />

Eles querem olhar para o passa<strong>do</strong>, para antes da modernidade, para um tempo<br />

em que as coisas supostamente não eram racionalistas. Sua ânsia por espiritualidade<br />

e mistério experimentais levou muitos a usarem práticas medievais<br />

romanas e anglicanas, como o labirinto de oração, 35 orações contemplativas,<br />

34 Racionalidade é uma característica <strong>do</strong>s seres humanos cria<strong>do</strong>s à imagem de Deus, onde usamos<br />

nossa razão para examinar e reagir ao mun<strong>do</strong> e à revelação de Deus. Racionalismo, por outro la<strong>do</strong>, é a<br />

crença na autonomia da razão humana, em que podemos supostamente nos orientar neste mun<strong>do</strong> sem o<br />

auxílio da revelação divina. O racionalismo surgiu no jardim com a velha serpente.<br />

35 O labirinto é uma experiência mística altamente individualista. Advin<strong>do</strong> de rituais pagãos foi<br />

adapta<strong>do</strong> pela Igreja Romana medieval e está ressurgin<strong>do</strong> agora no meio emergente. A pessoa anda por<br />

certo caminho enquanto ora e medita. A versão <strong>do</strong> MIE, entretanto, é geralmente atualizada com elementos<br />

tecnológicos. Labirintos são mais antigos que o cristianismo e normalmente estavam liga<strong>do</strong>s a<br />

divindades pagãs e rituais de fertilidade. Em algumas igrejas antigas medievais como Chartres havia (e<br />

ainda há) labirintos desenha<strong>do</strong>s no chão. Essa prática sugeria que a pessoa poderia começar a caminhar<br />

54


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

lectio divina, 36 velas, peregrinações e muitas outras coisas. Claro, junto a tu<strong>do</strong><br />

isso vem uma rejeição de formas tradicionais como a pregação normativa e<br />

expositiva <strong>do</strong> texto bíblico. 37<br />

pelo labirinto à medida que orava. Ao chegar ao centro <strong>do</strong> labirinto ela encontraria algo especial em<br />

termos espirituais. Várias comunidades emergentes têm construí<strong>do</strong> seus labirintos, seja com paredes ou<br />

simplesmente pinta<strong>do</strong>s no chão. Aqui vai uma descrição resumida de um labirinto de oração segun<strong>do</strong> o<br />

destaca<strong>do</strong> líder emergente Dan Kimball: “Minha esposa e eu entramos num salão ilumina<strong>do</strong> apenas por<br />

velas e um candelabro. O local estava silencioso. Quan<strong>do</strong> nossos olhos se ajustaram, vimos diversas<br />

pessoas ajoelhadas em oração... os evangélicos de hoje estão acostuma<strong>do</strong>s com cultos bem coreografa<strong>do</strong>s<br />

em que cada minuto está repleto de música, vídeo e pregação. As gerações pós-modernas têm fome de<br />

algo menos apressa<strong>do</strong>, cheio de mistério... o labirinto de oração oferece um banquete para saciar essa<br />

fome... O caminho era forma<strong>do</strong> por linhas negras desenhadas... cada um de nós recebeu um CD-player<br />

com fones para guiar nossa jornada através das 11 estações <strong>do</strong> caminho. Ao começarmos nossa jornada<br />

interior rumo ao centro, uma gentil voz feminina com sotaque britânico lia uma parte de João 1... Na<br />

primeira estação olhamos uma tela de televisão cheia de formas eletrônicas ondulantes e complexas<br />

que se moviam. Em outra estação jogamos pequenas pedras na água, cada pedra representan<strong>do</strong> uma<br />

preocupação que estávamos deixan<strong>do</strong> com Deus. Mais tarde desenhamos em papel símbolos de nossas<br />

<strong>do</strong>res, oramos e os jogamos numa lata de lixo. Após trinta minutos chegamos ao centro <strong>do</strong> labirinto,<br />

onde, senta<strong>do</strong>s em almofadas, nos foram ofereci<strong>do</strong>s os elementos da Santa Ceia… a jornada de saída<br />

focava em como podemos ser usa<strong>do</strong>s por Deus na vida <strong>do</strong>s outros. Em uma estação, fizemos impressões<br />

de nossos pés e mãos numa caixa de areia, lembran<strong>do</strong>-nos de que deixamos impressões na vida <strong>do</strong>s que<br />

tocamos... oração meditativa como a que experimentamos no labirinto ressoa nos corações das gerações<br />

emergentes”. Ver o artigo completo: KIMBALL, Dan. A-maze-ing prayer. Disponível em: http://www.<br />

christianitytoday.com/le/<strong>20</strong>01/fall/ 4.38.html. O que Kimball não percebe, ou pior, talvez perceba, é que<br />

essas onze estações, esses símbolos e rituais, não são coisas inocentes, mas ideias vindas da Cabala e de<br />

toda sorte de coisa estranha e sincrética. O MIE, tão crítico acerca da teologia e prática <strong>do</strong>s reforma<strong>do</strong>res,<br />

não apresenta o mesmo nível de análise crítica acerca dessas práticas.<br />

36 Lectio divina (ou leitura orante) – essa prática antiga na Igreja Romana remete aos mosteiros<br />

beneditinos. A ideia é basicamente ler e reler uma porção da Bíblia e ficar meditan<strong>do</strong> nela até entrar num<br />

estágio de contemplação em que Deus “fala com a pessoa” de maneira não lógica. É uma espécie de<br />

escada de oração em que diversos degraus levam a pessoa a uma união mística com Deus. Os problemas<br />

são vários. Primeiro, é que não vemos nenhum personagem bíblico fazen<strong>do</strong> isso nem temos instrução<br />

bíblica neste senti<strong>do</strong>; a reflexão bíblica é sempre meditação de mente cheia, nunca de mente vazia. Outro<br />

problema é que se trata de um sincretismo com formas pagãs de espiritualidade semimonista que veem<br />

o perder-se em Deus como o objetivo espiritual. É claro, a lectio divina moderna é adaptada à geração<br />

coca-zero; ninguém quer fazê-la no chão frio, nem sem comida boa depois da reunião da juventude.<br />

Queremos a ideia sem o sacrifício. Vale notar ainda que tem si<strong>do</strong> introduzida no contexto brasileiro uma<br />

versão light da lectio divina, que não vai tão longe quanto o original, mas tem a mesma base teológica.<br />

Para um exemplo de como realizar o ritual medieval da lectio divina, adapta<strong>do</strong> ao MIE, ver WEBBER,<br />

The Younger Evangelicals, p. 184.<br />

37 Vale a pena ler a reflexão de Tim Keller sobre o que Martyn Lloyd-Jones afirma acerca da<br />

pregação e sua centralidade. Na mais nova edição em inglês <strong>do</strong> clássico Pregação e Prega<strong>do</strong>res, de<br />

Lloyd-Jones, há diversos ensaios breves escritos por prega<strong>do</strong>res contemporâneos que foram grandemente<br />

influencia<strong>do</strong>s por ele. Keller aproveita para en<strong>do</strong>ssar a posição de Lloyd-Jones de que a velha pregação<br />

com autoridade feita pelo arauto de Deus continua sen<strong>do</strong> a forma principal de alcançar peca<strong>do</strong>res em<br />

nosso tempo. Ele diz, falan<strong>do</strong> acerca <strong>do</strong>s que se opunham ao sermão no tempo de MLJ: “A perda da<br />

crença da cultura na autoridade foi outro fator; em uma sociedade pós-cristã como podemos pensar em<br />

efetivamente trazer pessoas para ouvir um monólogo? Ao invés disso, os objetores proporão usar novas<br />

mídias (rádio e televisão) ou dar mais ênfase à liturgia ou à arte, ou tornar a igreja em algo como um<br />

55


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

O objetivo é trazer de volta à igreja a beleza e o mistério da igreja medieval,<br />

basean<strong>do</strong>-se no que supostamente é a igreja autêntica, reutilizan<strong>do</strong> vitrais,<br />

mantras, escuridão, incenso, etc. 38 Porém, qual o problema de voltar a formas<br />

medievais? O problema é duplo: por um la<strong>do</strong> esses elementos eram basea<strong>do</strong>s<br />

em entendimentos errôneos da <strong>do</strong>utrina da Escritura, da salvação e da vida<br />

cristã. O outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> problema é que esses modelos de espiritualidade eram<br />

frequentemente fruto de sincretismo com o paganismo. 39 O MIE, em sua busca<br />

de um cristianismo mais místico e visual, está se voltan<strong>do</strong> para Roma em<br />

busca de inspiração tanto na forma quanto no conteú<strong>do</strong>, e está ignoran<strong>do</strong> os<br />

sérios alertas de que quan<strong>do</strong> alguém vai a Roma, se torna como ela.<br />

As críticas acerbas que o MIE faz à igreja moderna estão ausentes quan<strong>do</strong><br />

se trata de avaliar e criticar as práticas e crenças moralistas e, em muitos aspectos,<br />

apóstatas, da igreja medieval. Eles buscam colocar como parte principal<br />

<strong>do</strong> culto o elemento que Roma considera mais importante: a Eucaristia. Ao<br />

enfatizar o místico, o sensível, o simbólico, eles acabam tiran<strong>do</strong> a Bíblia <strong>do</strong><br />

centro. Práticas como a lectio divina já estão aparecen<strong>do</strong> em diversas igrejas<br />

locais no Brasil, e não apenas em igrejas que se caracterizariam com parte <strong>do</strong><br />

MIE. Diversas igrejas históricas têm acolhi<strong>do</strong> aspectos específicos <strong>do</strong> MIE,<br />

iludidas com a promessa de que agora se encontrou algo importante que estava<br />

perdi<strong>do</strong> e escondi<strong>do</strong> debaixo <strong>do</strong> entulho <strong>do</strong> suposto racionalismo confessional<br />

protestante. Vários pastores bem intenciona<strong>do</strong>s têm aderi<strong>do</strong> à prática<br />

sem entenderem seu background e perigo. Supostamente a lectio divina parece<br />

serviço social ou uma agência de aconselhamento. Alguns sugeriram aban<strong>do</strong>nar completamente essa<br />

forma. Os cristãos, diziam eles, deveriam se dispersar, se lançar por aí lidan<strong>do</strong> com as necessidades<br />

pessoais e os problemas sociais no mun<strong>do</strong>. Então, quan<strong>do</strong> houvesse reuniões, estas deveriam ser informais,<br />

pequenas, caracterizadas por diálogo e discussão. É surpreendente como isso soa semelhante às<br />

propostas que vem sen<strong>do</strong> feitas nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s mais recentemente pelos que se chamam ‘igreja<br />

emergente’. Lloyd-Jones responde a essas objeções de forma contundente ainda hoje... ele argumenta<br />

que as pessoas percebem poder e experiência num sermão de maneira muito mais distinta pessoalmente,<br />

numa assembleia reunida, <strong>do</strong> que por meio de mídia. Ousadamente, ele ataca a maior objeção – ‘as pessoas<br />

não virão’. Ele responde: ‘Onde existe verdadeira pregação, as pessoas virão e ouvirão’. Falan<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> coração de uma Manhattan secular, pluralista e moderna, este prega<strong>do</strong>r concorda completamente com<br />

ele”. KELLER, Tim. A tract for the times. In: LLOYD-JONES, Martyn. Preachers and Preaching. 40th<br />

Anniversary Edition. Grand Rapids: Zondervan, <strong>20</strong>11, p. 92. Minha tradução.<br />

38 GLEASON, Ronald. Church and community or community and church? In: JOHNSON e<br />

GLEASON, Reforming or Conforming?, p. 169. Ver ainda GILLEY, Gary. The Emergent Church. In:<br />

JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?, p. 276; GIBBS e BOLGER, Emerging Churches,<br />

p. 225. DeYoung e Kluck mostram como, às vezes, essas novas formas de a<strong>do</strong>ração são vazias. Muitas<br />

vezes se leva para casa como amuletos objetos <strong>do</strong> que foi aprendi<strong>do</strong> em certo dia. Eles falam sobre<br />

certa vez em que, após a reunião, cada um levou um CD a<strong>do</strong>rna<strong>do</strong> com uma frase <strong>do</strong> teólogo místico<br />

Meister Eckart. O CD não continha nada além de silêncio por 45 minutos. Para mais exemplos, alguns<br />

tolos e inofensivos, outros mais perigosos, ver o livro Não quero um pastor bacana, p. <strong>20</strong>0.<br />

39 Não é novidade para ninguém que, em seus esforços missionários, a Igreja Católica Romana<br />

sempre deu espaço ao sincretismo. Poderíamos exemplificar ad nauseam, mas basta lembrar o exemplo<br />

<strong>do</strong>s santos, frequentemente identifica<strong>do</strong>s com divindades pagãs locais.<br />

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FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

oferecer uma oportunidade para que a palavra de Deus seja amada e apreendida<br />

pelo povo, pois teoricamente a pregação tradicional da Palavra não o faz ou pelo<br />

menos deixa espaço para essa forma se inserir. Mas o que não se percebe é que<br />

a pregação da Palavra não vinha alcançan<strong>do</strong> e transforman<strong>do</strong> corações, pois há<br />

muito tempo a verdadeira exposição <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> bíblico já havia si<strong>do</strong> trocada por<br />

psicologia secular, lições de autoajuda e alegorias moralistas sobre como viver.<br />

Em uma análise sobre esta geração anti-história, Carl Trueman aponta<br />

para algo bastante esclarece<strong>do</strong>r. Ele diz que o interesse atual na espiritualidade<br />

medieval e pré-medieval celta (vinda de cristãos ou não) não é realmente um<br />

interesse na história per se, mas uma tentativa de dar uma autenticidade histórica<br />

para suas práticas. Eles trazem elementos de volta, seletivamente, para parecerem<br />

revesti<strong>do</strong>s de história, enquanto recusam qualquer coisa que seja muito<br />

trabalhosa, como as práticas ascéticas celtas de autoflagelo: “É uma apropriação<br />

eclética e nostálgica de uma pseu<strong>do</strong>-história que fornece à igreja uma autenticidade<br />

histórica especial”. 40 Esse veredito também é verdadeiro em relação ao<br />

MIE, quan<strong>do</strong> diz que eles buscam dar uma legitimidade histórica a suas práticas<br />

ao afirmarem que estão voltan<strong>do</strong> a um perío<strong>do</strong> de mais pureza, enquanto nunca,<br />

de fato, enfrentam as pressuposições e problemas de tal perío<strong>do</strong>, mas apenas se<br />

aproveitam <strong>do</strong>s benefícios de aparentarem ser mais bíblicos e mais históricos.<br />

2.5 Contracultural?<br />

Uma das críticas mais importantes que podemos fazer aos proponentes<br />

<strong>do</strong> MIE é que eles não são tão contraculturais quanto gostariam de acreditar.<br />

Ao mesmo tempo em que dizem estar seguin<strong>do</strong> os novos caminhos da<br />

pós-modernidade, gostam de posar como rebeldes que se levantam contra a<br />

cultura <strong>do</strong>minante e ainda prevalecente da modernidade. De fato, eles caem<br />

na mesma armadilha da geração anterior, de se acomodar à descrença padrão<br />

rebelde e autônoma de sua geração. Enquanto os baby-boomers adaptaram<br />

sua fé e prática à modernidade pragmática, a geração X e a geração Y estão se<br />

acomodan<strong>do</strong> à rebelião <strong>do</strong> pós-modernismo. David Wells diz que:<br />

… atacar a ideia da verdade como arrogante, rejeitar a ideia da substituição penal,<br />

que estaria ligada ao mun<strong>do</strong> moral objetivo como barbárie e abuso infantil e<br />

celebrar a crença de que a salvação é encontrada em outros lugares e em outras<br />

religiões. Isso também, não menos que o discurso de Bill Hybels, é um caso de<br />

capitulação cultural, e o resulta<strong>do</strong> não será menos desastroso. 41<br />

40 Ele diz ainda: “O cristianismo celta está mais próximo <strong>do</strong> Movimento da Nova Era em termos de<br />

sua rejeição <strong>do</strong> literário em favor <strong>do</strong> visual, da obsessão por questões ecológicas e <strong>do</strong> desejo de rejeitar<br />

alguns aspectos (mas de forma alguma to<strong>do</strong>s) da cultura ocidental”. TRUEMAN, Carl. The Wages of<br />

Spin: critical writings on historic & contemporary evangelicalism. Escócia: Christian Focus, <strong>20</strong>04, p. 26.<br />

41 WELLS, David. Foreword [Prefácio]. In: JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?,<br />

p. 12.<br />

57


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

Infelizmente, em sua tentativa de ministrar e alcançar a geração pós-<br />

-moderna, eles falham, pois não questionam os próprios elementos dessa<br />

geração que precisam ser desafia<strong>do</strong>s com a Palavra de Deus. Como Phil<br />

Johnson coloca: “O movimento emergente tem um extraordinário viés de<br />

se adaptar e abraçar os próprios aspectos da cultura pós-moderna que mais<br />

precisam ser confronta<strong>do</strong>s com a verdade <strong>do</strong> evangelho”. 42 Eles são, nesse<br />

senti<strong>do</strong>, tão condiciona<strong>do</strong>s quanto a geração anterior. Ironicamente, diz Don<br />

Carson, o MIE parece apaixona<strong>do</strong> pelo pós-modernismo precisamente quan<strong>do</strong><br />

o pós-modernismo perde credibilidade no meio acadêmico. 43 Assim como o<br />

pós-modernismo não é a resposta bíblica ao modernismo, o MIE não resolve<br />

os problemas <strong>do</strong> modelo seeker-sensitive.<br />

Outro aspecto a ser considera<strong>do</strong> no século 21 é a realidade sempre crescente<br />

<strong>do</strong> multiculturalismo das cidades. Os grandes centros urbanos abrigam<br />

dezenas de grupos culturais e étnicos. O grande número de imigrantes trouxe<br />

enorme diversidade ao mun<strong>do</strong> que desorienta e confunde, abre fronteiras<br />

e desafia cosmovisões, tornan<strong>do</strong> acessíveis infinitos níveis de interação e<br />

confrontação cultural. O MIE afirma ser a resposta para toda uma geração,<br />

mas será mesmo que seus méto<strong>do</strong>s prevalecem diante <strong>do</strong> multiculturalismo<br />

contemporâneo? Iria o modelo <strong>do</strong> MIE funcionar na revitalização de igrejas de<br />

imigrantes hispânicos ilegais no Alabama? Haitianos em Manaus? Embora ame<br />

falar em diversidade, o MIE não é tão diverso quanto muitos de seus membros<br />

gostam de retratá-lo. E o pensamento pós-moderno está longe de ser algo que<br />

de fato se mostra em toda sorte de grupos urbanos. Nem to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> está interessa<strong>do</strong><br />

em pensamento não linear, a<strong>do</strong>ração visual, hermenêutica pós-moderna<br />

e experiências religiosas misteriosas. Ainda que esse modelo fosse atraente<br />

para uma geração como a deles, o MIE seria necessariamente inadequa<strong>do</strong> para<br />

qualquer grupo étnico ou social que não compartilhasse pelo menos parte de<br />

sua cosmovisão condicionante. A questão é: Seria o caminho emergente uma<br />

boa solução tanto para uma comunidade carente afro-americana nos centros<br />

decadentes de cidades <strong>do</strong> Mississipi, quanto para imigrantes brasileiros na<br />

Flórida, ou japoneses de uma segunda geração de imigrantes em São Paulo? 44<br />

42 JOHNSON, Joyriding on the <strong>do</strong>wngrade at breakneck speed, p. 217.<br />

43 “Entretanto, é de se temer, ainda que apenas um pouco, que, mais uma vez, um movimento que<br />

estava na crista <strong>do</strong> comportamento intelectual há meio século, era popular na Europa quatro décadas atrás<br />

e se tornou popular nas universidades daqui vinte cinco anos atrás, está agora se tornan<strong>do</strong> o queridinho<br />

<strong>do</strong>s escritores evangélicos populares que tentam soar proféticos”. CARSON, D. A. Becoming Conversant<br />

with the Emerging Church. Grand Rapids, MI: Zondervan, <strong>20</strong>05, p. 82.<br />

44 Por alguns anos trabalhei com imigrantes hispânicos no esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mississipi. Gente que pela<br />

faixa etária e condição econômica supostamente se encaixaria em grande parte <strong>do</strong> contexto <strong>do</strong> MIE.<br />

É cristalino para mim que um modelo emergente não atrai tal grupo. Eles já possuem muita incerteza<br />

a respeito das jornadas de suas vidas. Eles estão, de fato, buscan<strong>do</strong> estabilidade, verdades universais,<br />

respostas bíblicas para temas que estão perturban<strong>do</strong> profundamente seus corações. Um exemplo é a<br />

58


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

Eles afirmam ministrar ao espírito de sua era. Tal espírito, entretanto, não é<br />

global nem eterno. Pelas suas pressuposições, eles deveriam aceitar que a sua<br />

solução é, no máximo, local, não universal. 45<br />

2.6 Ignorância histórica e influências teológicas<br />

Muitas das reclamações <strong>do</strong> MIE acerca da igreja protestante são, entretanto,<br />

baseadas em uma falta de conhecimento histórico. Parecem ignorar que<br />

a situação era diferente antes ou que outros já apontaram os erros (e fizeram<br />

um trabalho melhor nisto). 46 O MIE por vezes reage contra certa prática da<br />

igreja seeker-sensitive e supõe que o erro vem desde os reforma<strong>do</strong>res, quan<strong>do</strong><br />

tal prática na verdade foi uma distorção recente da teologia protestante. Um<br />

exemplo é a questão da participação no culto: o MIE deseja que seus membros<br />

participem integralmente da a<strong>do</strong>ração ao invés de serem meros expecta<strong>do</strong>res<br />

como acontece em muitas igrejas evangélicas contemporâneas. Mas essa crítica,<br />

embora correta, é na verdade baseada em um problema que nem sempre existiu.<br />

O culto tradicionalmente foi participativo e comunitário na história da igreja<br />

(algo restaura<strong>do</strong> na Reforma Protestante), toda a congregação sen<strong>do</strong> chamada<br />

a cantar, a orar, a participar <strong>do</strong>s sacramentos, a ouvir a palavra pregada. O MIE<br />

percebe a necessidade de uma igreja mais voltada para a comunidade, ao invés<br />

de uma igreja voltada para o consumi<strong>do</strong>r. Nisto está se alinhan<strong>do</strong> sem perceber<br />

questão <strong>do</strong> homossexualismo. Enquanto McLaren deseja suspender o julgamento histórico da questão<br />

visan<strong>do</strong> aceitar os homossexuais como são, em certa ocasião fui questiona<strong>do</strong> por uma peruana imigrante<br />

de primeira geração acerca da posição da nossa denominação sobre o assunto. Ela estava muito preocupada<br />

com o crescente ensino acerca da normalidade <strong>do</strong> homossexualismo e, movida pela preocupação<br />

com seus filhos, questionou sobre limites, definições, certeza. Seu coração ansiava pela verdade direta,<br />

não por uma integração comunicativa obscura.<br />

45 Em uma amostra de seu relativismo, McLaren diz que enquanto seja correto que essa geração<br />

a<strong>do</strong>te as pressuposições pós-modernas, talvez não seja bom para to<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong> disso uma questão de<br />

acomodação pragmática a um da<strong>do</strong> espaço ou tempo. É pragmático fazê-lo porque aponta para uma<br />

audiência que determina como a igreja deveria viver, novamente cain<strong>do</strong> na mesma armadilha da igreja<br />

voltada para o merca<strong>do</strong>. Queren<strong>do</strong> emergir <strong>do</strong>s seeker-sensitives, eles acabam simplesmente sen<strong>do</strong> adequa<strong>do</strong>s<br />

para um novo merca<strong>do</strong>. Ver DOWNES, Martin. Entrapment: The Emerging church conversation<br />

and the cultural captivity of the Gospel. In: JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?, p. 243.<br />

46 Por exemplo, Paul Helm afirma que, enquanto o MIE está correto ao dizer que as afirmações<br />

teológicas humanas estão sujeitas a revisões, essa sempre foi a posição da igreja protestante; não há<br />

nada de novo ou de revolucionário nessas afirmações (No Easy Task, p. 98). Vale notar que a Confissão<br />

de Fé de Westminster, por exemplo, afirma que só a Bíblia é inspirada e que os conselhos humanos<br />

erraram no passa<strong>do</strong> e ainda erram (CFW I.X). Outro elemento supostamente novo é a afirmação de<br />

que o conhecimento sobre a Trindade não deveria ser seco ou vazio de amor. MCLAREN, Brian. A<br />

Generous Ortho<strong>do</strong>xy: Why I am missional + evangelical, post/protestant, liberal/conservative, mystical/<br />

poetic, biblical, charismatic/contemplative, fundamentalist/Calvinist, Anabaptist/Anglican, Methodist,<br />

Catholic, green, incarnational, depressed yet hopeful, emergent, unfinished, Christian. Grand Rapids,<br />

MI: Zondervan, <strong>20</strong>04, p. 31. McLaren afirma isto e parece estar se achan<strong>do</strong> original e radical, mas isso<br />

é o que o cristianismo orto<strong>do</strong>xo tem dito nos últimos <strong>do</strong>is mil anos, embora, certamente, muitos não<br />

tenham segui<strong>do</strong> tal ensinamento.<br />

59


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

com algo que tem si<strong>do</strong> busca<strong>do</strong> muitas vezes na história da igreja. Não há nada<br />

de novo no desejo de ser uma comunidade de amor.<br />

Outro exemplo de ignorância histórica é a afirmação comum de que a<br />

igreja deveria parar de falar da teologia em temos de proposições sistemáticas<br />

e compreendê-la como uma história, uma narrativa. Essa posição demonstra<br />

uma falta de compreensão histórica sobre o fato de que a teologia protestante<br />

está profundamente atenta ao desenvolvimento histórico da salvação, em termos<br />

de uma teologia bíblica e de uma aplicação experimental da salvação à vida<br />

<strong>do</strong>s crentes. 47 O MIE mais uma vez apresenta uma falsa alternativa, a saber,<br />

ou a teologia sistemática ou a teologia bíblica, 48 sen<strong>do</strong> que a igreja precisa de<br />

ambas. 49 De fato, frequentemente os defensores <strong>do</strong> MIE têm uma compreensão<br />

ingênua de toda a história da igreja, focan<strong>do</strong> suas suspeitas na Reforma e na<br />

igreja contemporânea. 50 Muitas vezes a crítica à igreja na história é fortemente<br />

afetada por caricaturas, tal como a afirmação absurda de McLaren de que o<br />

calvinismo é um produto <strong>do</strong> determinismo teológico de Calvino e Beza uni<strong>do</strong><br />

ao racionalismo de Descartes e o determinismo de Newton. 51<br />

De certa forma, os grupos emergentes creem que estão rompen<strong>do</strong> com<br />

as instituições rígidas e os ensinos proposicionais <strong>do</strong>s “teólogos irrelevantes<br />

47 WATERS, Guy P. It’s “Wright,” but is it right? In: JOHNSON e GLEASON, Reforming or<br />

Conforming?, p. <strong>20</strong>8.<br />

48 “A dificuldade está nas frequentes dicotomias, tanto de McLaren quanto de Wright, entre as<br />

formulações sistemáticas e narrativas. A narrativa é mostrada como a única alternativa puramente bíblica<br />

à chamada formulação sistemática abstrata. Aquelas que nunca foram rivais agora são mostradas como<br />

alternativas mutuamente excludentes”. WATERS, It’s “Wright,” but is it right?, p. <strong>20</strong>9. Enquanto negam<br />

a teologia sistemática, eles apresentam suas ideias em pontos e formas um tanto quanto organiza<strong>do</strong>s e<br />

sistemáticos.<br />

49 Eles também caem no antigo engano de atribuir aos teólogos reforma<strong>do</strong>s o erro de permitir que<br />

uma teologia natural racionalista se infiltrasse nas teologias sistemáticas. Essa visão tem si<strong>do</strong> satisfatoriamente<br />

refutada em obras como as de MULLER, Richard. Post-Reformation Reformed Dogmatics.<br />

Grand Rapids: Baker Academic, <strong>20</strong>03; e de TRUEMAN, Carl; CLARK, R. Scott (Orgs.). Protestant<br />

Scholasticism – essays in reassessment. Milton Keynes, Inglaterra: Paternoster, 1999. O fato é que os<br />

<strong>do</strong>gmáticos de Roma, tais como Alberto Magno e Tomás de Aquino, é que foram culpa<strong>do</strong>s de fazê-lo,<br />

enquanto os teólogos reforma<strong>do</strong>s demonstram se basear na primazia da revelação. Outro exemplo de<br />

engano histórico é a afirmação de Pagitt acerca da controvérsia entre agostinismo e pelagianismo. Ele<br />

trata a questão apenas como uma disputa política, dizen<strong>do</strong> que a linha antropológica agostiniana se tornou<br />

a norma na Igreja Romana, enquanto que a visão de Pelágio se manteve viva no cristianismo celta, uma<br />

simplificação errônea. Para Pagitt, ambas as visões parecem ser igualmente válidas. PAGITT, Doug.<br />

The emerging church and embodied theology. In: WEBBER, Robert (Org.). Listening to the Beliefs of<br />

Emerging Churches. Grand Rapids: Zondervan, <strong>20</strong>07, p. 128.<br />

50 Um exemplo é a exaltação de Inácio de Loyola por McLaren (Generous Ortho<strong>do</strong>xy, p. 77) como<br />

se fosse um homem pie<strong>do</strong>so e contemplativo que via Deus em toda a criação. McLaren não menciona<br />

que Loyola, o pai <strong>do</strong>s jesuítas, foi um líder da perseguição aos protestantes. Loyola provavelmente<br />

perseguiria McLaren, apesar de tal admiração.<br />

51 MCLAREN, Generous Ortho<strong>do</strong>xy, p. 187.<br />

60


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

que já morreram”. 52 O que poucos deles reconhecem é que, para fazê-lo, eles<br />

estão se basean<strong>do</strong> profundamente em outros teólogos que já morreram, especialmente<br />

os das correntes da neo-orto<strong>do</strong>xia e <strong>do</strong> catolicismo romano. 53 De<br />

fato, grande parte <strong>do</strong> que eles consideram ser novo não é nada mais que formas<br />

recicladas de pietismo, 54 pentecostalismo, 55 liberalismo 56 ou neo-orto<strong>do</strong>xia. 57<br />

Enquanto afirmam ser pós-modernos, estão, na verdade, usan<strong>do</strong> a teologia<br />

de homens bastante modernos que foram tanto moldes como molda<strong>do</strong>s por sua<br />

época. 58 O problema pós-moderno de escolher convenientemente quan<strong>do</strong> o texto<br />

tem um senti<strong>do</strong> claro e quan<strong>do</strong> não tem é onipresente no MIE. Peter Rollins,<br />

por exemplo, nega a existência de um significa<strong>do</strong> claro <strong>do</strong> texto bíblico, mas<br />

afirma veementemente que a Bíblia prega amor e justiça social. 59 Muitos autores<br />

52 Curiosamente, os elementos básicos da experiência, da comunidade e <strong>do</strong> contexto <strong>do</strong> MIE<br />

podem ser atribuí<strong>do</strong>s ao teólogo liberal <strong>do</strong> século 19 Friedrich Schleiermacher (JOHNSON, Gary. Introduction.<br />

In: JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?, p. 16). As escolhas <strong>do</strong> MIE sobre o<br />

que é relevante hoje parecem, às vezes, guiadas mais por conveniência <strong>do</strong> que por um cuida<strong>do</strong>so exame<br />

histórico e teológico. Eles rejeitam a teologia reformada histórica ao mesmo tempo em que usam Karl<br />

Barth, Jurgen Moltmann e N. T. Wright em conjunto com filósofos pós-modernos. GLEASON, Church<br />

and Community, p. 180.<br />

53 Em Orto<strong>do</strong>xia Generosa, McLaren cita e recomenda vários teólogos e filósofos, na maior<br />

parte católicos (Josef Pieper, Aquino, Guardini) ou o neo-orto<strong>do</strong>xo Karl Barth. Vale observar que o<br />

catolicismo romano pós-Vaticano II tem uma afinidade próxima com o universalismo incipiente da<br />

neo-orto<strong>do</strong>xia.<br />

54 Observe a ênfase na experiência pessoal como guia e alvo para a vida cristã, em conjunto com<br />

uma moralidade muito individualista na qual a pessoa é a única que está em posição de julgar o próprio<br />

comportamento. CLARK, Whosoever will be saved, p. 117.<br />

55 Grande ênfase na experiência, certo desdém por aqueles que criticam o movimento sem fazer<br />

parte dele e negação da suficiência das Escrituras. Sobre o relacionamento <strong>do</strong> MIE com o pentecostalismo<br />

da terceira onda e John Wimber (da Igreja Vineyard), ver GIBBS e BOLGER, Emerging Churches, p. 219.<br />

56 Phil Johnson (Joyriding on the <strong>do</strong>wngrade, p. 222) alerta para similaridades entre o liberalismo<br />

e o MIE: a rejeição da expiação penal substitutiva como sen<strong>do</strong> muito violenta, o clamor por tolerância<br />

como sen<strong>do</strong> o valor supremo, o relaxamento na <strong>do</strong>utrina da inerrância e outros elementos.<br />

57 A dependência da neo-orto<strong>do</strong>xia pode ser exemplificada em sua visão da Bíblia e compreensão<br />

sobre Deus. Sua negação da possibilidade de expressar verdades proposicionais sobre Deus vem de uma<br />

visão enganosa sobre a questão da autorrevelação de Deus. Sua confusão sobre a revelação e a inerrância<br />

das Escrituras também é em grande parte causada por sua dependência de Karl Barth. Em harmonia com<br />

Barth, eles afirmam que Deus é completamente outro e está além <strong>do</strong> alcance humano. Eles seguem o<br />

caminho de, por um la<strong>do</strong>, negar a compreensibilidade de Deus, e de outro, afirmar inconsistentemente<br />

várias coisas sobre ele. Ver DEYOUNG e KLUCK, Não quero um pastor bacana, p. 91-95.<br />

58 DeYoung e Kluck também observam isso e dizem: “A maior ironia em relação à igreja emergente<br />

pode ser exatamente esta: ao punirem severamente tu<strong>do</strong> o que é moderno, eles são, em muitos aspectos,<br />

totalmente modernos. Muitos <strong>do</strong>s principais livros mostram uma combinação familiar de liberalismo <strong>do</strong><br />

evangelho social, uma visão neo-orto<strong>do</strong>xa das Escrituras e um desprezo pós-iluminista por coisas como<br />

inferno, ira de Deus, revelação proposicional, propiciação e tu<strong>do</strong> aquilo que vá além de um cristianismo<br />

vagamente moralista, afetuoso e sem <strong>do</strong>utrinas”. Não quero um pastor bacana, p. 184.<br />

59 Ibid., p. 144-147.<br />

61


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

<strong>do</strong> MIE afirmam que a Bíblia não é clara na questão <strong>do</strong> homossexualismo, 60<br />

da expiação, da inerrância, etc., mas ao mesmo tempo afirmam que a Bíblia<br />

é clara nas questões de amor, justiça, comunidade e experiência. “Assim, o<br />

fascínio e a ambiguidade são bons quan<strong>do</strong> as ideias em questão forem aquelas<br />

com as quais os líderes emergentes particularmente não se preocupam ou não<br />

apreciam, mas quan<strong>do</strong> a questão é fazer suas declarações, então a clareza é<br />

fundamental”. 61 Enquanto eles argumentam que não se pode exaurir o conhecimento<br />

de Deus e extrair verdades proposicionais da Bíblia, frequentemente<br />

buscam fazer exatamente isso. De um la<strong>do</strong> eles afirmam que não é importante<br />

se o nascimento virginal ocorreu ou não; 62 de outro, eles têm certeza <strong>do</strong> fato<br />

de que Jesus se levantou contra os opressores de sua época. 63<br />

2.7 Dinâmica de irracionalismo/racionalismo<br />

As afirmações <strong>do</strong> MIE de que Deus é o grande ser misterioso que desafia<br />

a explicação humana é categórica. Enquanto uma sã epistemologia bíblica<br />

afirmará a grandeza de Deus e a necessidade de sua revelação para que o homem<br />

possa compreendê-lo, é necessário afirmar biblicamente que Deus fez<br />

o homem à sua imagem e capaz de adquirir conhecimento verdadeiro sobre<br />

Deus, sua criação e sua providência. O MIE segue a afirmação pós-moderna<br />

de que, com a morte <strong>do</strong> fundacionalismo clássico, não se pode mais crer na<br />

possibilidade de uma verdade absoluta. 64 Entretanto, o ponto importante muitas<br />

vezes ignora<strong>do</strong> é que uma teoria cristã <strong>do</strong> conhecimento não depende <strong>do</strong><br />

fundacionalismo clássico.<br />

Cornelius Van Til demonstrou que qualquer sistema humano de teologia<br />

ou filosofia que não começa com o Deus Trino das Escrituras é tanto racionalista<br />

60 Eles não estão dispostos a dizer que a Bíblia é contra o homossexualismo, e parece que essa<br />

dúvida é, na verdade, um consentimento cala<strong>do</strong>. De fato, a falta de definição em questões importantes<br />

como essa abrem caminho para to<strong>do</strong> tipo de problemas. Há um grupo cada vez maior chama<strong>do</strong> gaymergente,<br />

uma comunidade online de homossexuais que professam o cristianismo <strong>do</strong> MIE. De acor<strong>do</strong><br />

com suas pressuposições, o MIE não deveria repudiar tal coisa. Recentemente Brian McLaren celebrou<br />

a união homossexual de seu filho.<br />

61 DEYOUNG e KLUCK, Não quero um pastor bacana, p. 49. McLaren faz a corajosa afirmação<br />

de que ele sabe que os carismáticos e os contemplativos estão, de fato, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo tipo de<br />

experiência (Generous Ortho<strong>do</strong>xy, p. 179). Novamente, quan<strong>do</strong> é conveniente os proponentes <strong>do</strong> MIE<br />

se esquecem da dificuldade hermenêutica.<br />

62 BELL, Rob. Velvet Elvis. Grand Rapids: Zondervan, <strong>20</strong>05, p. 92.<br />

63 Na questão da importância da historicidade da fé, isso não é nada mais <strong>do</strong> que as antigas afirmações<br />

<strong>do</strong> liberalismo de que, mesmo se os fatos da Bíblia não puderem ser verifica<strong>do</strong>s, a mensagem<br />

permanece. Paulo claramente se oporia a essas questões, pois ele afirmava que se a ressurreição não<br />

tivesse ocorri<strong>do</strong> na história, os cristãos seriam os mais infelizes <strong>do</strong>s homens (1Co 15.12-19).<br />

64 Novamente, é a possibilidade real de conhecimento análogo ao conhecimento de Deus, basea<strong>do</strong><br />

no Deus trino como o ponto transcendente de referência para to<strong>do</strong> o conhecimento. Ver GOMES, A<br />

suposta morte da epistemologia.<br />

62


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

(tentan<strong>do</strong> usar a mente humana como a autoridade autônoma suprema, o ponto<br />

de referência final) quanto irracional (negan<strong>do</strong> a possibilidade e necessidade de<br />

conhecimento verdadeiro <strong>do</strong> Deus bíblico e seu mun<strong>do</strong>). 65 O MIE segue o<br />

irracionalismo autônomo <strong>do</strong> pós-modernismo e nega a possibilidade de obter<br />

verdade objetiva normativa de textos. Sua inconsistência é vista no fato de<br />

que eles mesmos apresentam suas ideias como se pessoas racionais fossem<br />

capazes de entendê-los len<strong>do</strong> os textos que eles publicam. Seu racionalismo<br />

é demonstra<strong>do</strong> em sua tentativa de serem os árbitros finais, decidin<strong>do</strong> o que<br />

pode ou não ser conheci<strong>do</strong>. Na armadilha de viver consistentemente com suas<br />

crenças professadas, o pós-modernismo falha como qualquer outra filosofia<br />

que se levanta contra o conhecimento de Cristo. A suposta humildade <strong>do</strong> MIE<br />

de negar a possibilidade de conhecer Deus verdadeiramente, acaba rouban<strong>do</strong> de<br />

Deus a sua glória, pois minimiza e nega seus desígnios na criação:<br />

O agnosticismo emergente em relação a verdadeiramente saber e entender<br />

qualquer coisa sobre Deus aparenta ser uma humildade pie<strong>do</strong>sa. Parece honrar<br />

a infinidade de Deus, mas na verdade menospreza seu poder soberano. Os<br />

pós-modernos abrigam tamanha desconfiança da linguagem e descrença na<br />

capacidade de Deus de comunicar a verdade à mente humana que, de fato, se<br />

envolvem naquilo que Carson chama de “amordaçamento de Deus”. 66<br />

Eles negam a necessidade, até mesmo a possibilidade, de estabelecer<br />

cre<strong>do</strong>s, pois a teologia estará sempre em mutação. Estranhamente, entretanto,<br />

McLaren e outros tentam afirmar o Cre<strong>do</strong> Apostólico e o Cre<strong>do</strong> Niceno como<br />

absolutos e universais. 67 Parece que suas razões têm a ver com a antiguidade<br />

e o ecumenismo desses cre<strong>do</strong>s. Kimball também diz que o que vai além de<br />

Nicéia é misterioso e incerto. 68 Mas por que parar em Niceia? Os membros<br />

de tal concílio também não estariam condiciona<strong>do</strong>s por seu mun<strong>do</strong> e suas<br />

pressuposições? O Concílio de Niceia estava livre de qualquer viés? Por que<br />

não incluir Calcedônia em suas fórmulas, que também era ecumênico e tem<br />

tantas questões importantes sobre Jesus? 69<br />

65 Para mais material sobre isso, ver: VAN TIL, Cornelius. A Christian Theory of Knowledge.<br />

Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1969, p. 50. Ao refletir sobre esse assunto, Bahnsen diz<br />

que essas filosofias são caracterizadas por “uma mistura instável de arrogância e humildade”, palavras que<br />

poderiam certamente descrever o MIE. BAHNSEN, Gregg. Van Til’s Apologetic. Phillipsburg, NJ:<br />

Presbyterian and Reformed, 1998, p. 316.<br />

66 DEYOUNG e KLUCK, Não quero um pastor bacana, p. 42.<br />

67 MCLAREN, Generous Ortho<strong>do</strong>xy, p. 28.<br />

68 KIMBALL, Dan. The emerging church and missional theology. In: WEBBER, Listening to the<br />

Beliefs of Emerging Churches, p. 93.<br />

69 Talvez a escolha de Niceia como o ponto final de concordância tenha a ver com a pressuposição<br />

de que to<strong>do</strong>s os tipos de cristianismo o afirmam. Entretanto, os arianos foram derrota<strong>do</strong>s nesse concílio. Por<br />

que não considerar os arianos também como cristãos, de uma forma compassiva, generosa e emergente?<br />

63


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

2.8 Tolerância, inclusivismo e limites<br />

Em seu discurso, o MIE dá muito valor à tolerância ou à generosidade.<br />

A tolerância é, em sua visão, uma das mais importantes marcas <strong>do</strong> que Jesus<br />

deseja. Eles temem qualquer tipo de imposição de aspectos culturais sobre<br />

outros grupos. 70 Eles querem ser tão inclusivos quanto possível, ser abertos a<br />

to<strong>do</strong> tipo de pessoa. 71 Essa ânsia por tolerância como um valor supremo está<br />

bem alinhada com a Igreja Romana pós-Vaticano II, que tem uma inclinação<br />

mais universalista, disposta a conversar com irmãos outrora afasta<strong>do</strong>s e até<br />

mesmo deixar a porta aberta para a salvação fora <strong>do</strong> cristianismo. Isso ecoa bem<br />

com o MIE, sua ênfase em fazer parte da comunidade e seu interesse em N. T.<br />

Wright, Paul Tillich e Karl Barth. 72 Essa ênfase na tolerância e na receptividade<br />

é parte de uma grande mudança em movimentos teológicos recentes, tais como<br />

a Nova Perspectiva sobre Paulo e a Visão Federal. 73 Seguin<strong>do</strong> o romanismo<br />

e o anglicanismo, a ênfase vem passan<strong>do</strong> da soteriologia para a eclesiologia.<br />

As questões mais importantes não são mais sobre como ser justo perante Deus<br />

(relacionadas à justificação e expiação), mas como fazer parte da comunidade<br />

<strong>do</strong> pacto. 74 Eles compartilham da opinião, seguin<strong>do</strong> Wright, de que a obra de<br />

70 Enquanto a opressão cultural deve ser evitada, Paul Helm observa que o apóstolo Paulo não<br />

evitou denunciar os erros de outras culturas e da igreja em diferentes culturas, quan<strong>do</strong> percebia que<br />

estavam in<strong>do</strong> para longe <strong>do</strong>s padrões bíblicos objetivos. HELM, No Easy Task, p. 106.<br />

71 No fim das contas, entretanto, o evangelho sempre será uma pedra de tropeço, um escândalo<br />

para aqueles que não creem. Um exemplo interessante é o artigo <strong>do</strong> New York Times que contém uma<br />

análise de Mark Driscoll e sua igreja à época. WORTHEN, Molly. Who would Jesus smack? The New<br />

York Times, 11 jan. <strong>20</strong>09. Ao fim <strong>do</strong> artigo, nota-se que a articulista não está confortável com a abordagem<br />

<strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r, mas talvez ela se sinta mais desconfortável com o calvinismo dele. Se a igreja deseja seguir<br />

Jesus, isso significa ser missiológico e redentivo, mas também significa, muitas vezes, ser zomba<strong>do</strong> e<br />

apedreja<strong>do</strong>, odia<strong>do</strong> e mal-entendi<strong>do</strong>; ser contracultural.<br />

72 WEBBER, The Younger Evangelicals, p. 110.<br />

73 GLEASON, Church and community, p. 174.<br />

74 O principal teólogo da Nova Perspectiva sobre Paulo é o ex-arcebispo anglicano de Durham N.<br />

T. Wright. Ele é uma grande influência na Federal Vision e no MIE. Suas obras são amplamente aceitas<br />

entre os principais proponentes <strong>do</strong> MIE, tais como Brian McLaren, que o cita frequentemente (Generous<br />

Ortho<strong>do</strong>xy, p. 18) e afirma seguir sua hermenêutica de amor. Wright fala muitas vezes em conferências<br />

<strong>do</strong> MIE. Ele oferece um elemento de respeitabilidade acadêmica perante as correntes evangélicas mais<br />

amplas. Sua negação da expiação como sen<strong>do</strong> algo central para o cristianismo, sua redefinição da justiça<br />

de Deus e sua recusa em aceitar a <strong>do</strong>utrina da imputação dupla ecoam profundamente o desejo <strong>do</strong><br />

MIE de se livrar da expiação. Wright apela à autoridade da história como sen<strong>do</strong> mais importante que<br />

a compreensão tradicional da inerrância. Sua ênfase no reino presente com obras de justiça e retidão<br />

soa agradável ao grupo <strong>do</strong> MIE. Para excelentes introduções às ideias da Nova Perspectiva sobre Paulo<br />

e da Visão Federal, ver os livros de WATERS, Guy. Justification and the New Perspectives on Paul:<br />

A Review and Response. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, <strong>20</strong>04; The Federal Vision and<br />

Covenant Theology: A Comparative Analysis. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, <strong>20</strong>06. Para<br />

uma ótima análise sobre a influência e a semelhança entre N. T. Wright e o MIE, ver WATERS, It’s<br />

“Wright,” but is it right? Devo muito ao meu antigo colega de seminário, Rev. Gabriel Fluhrer, por me<br />

ajudar a compreender essas conexões.<br />

64


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

Jesus trata principalmente <strong>do</strong> estabelecimento de um reino de amor e justiça<br />

na Terra: “As boas novas não são de que Jesus morreria na cruz para per<strong>do</strong>ar<br />

peca<strong>do</strong>s, mas que Deus retornou e que to<strong>do</strong>s foram convida<strong>do</strong>s para participar<br />

com ele desse novo mo<strong>do</strong> de viver...”. 75 Acompanhada dessa inclinação quase<br />

universalista <strong>do</strong> MIE está uma negação aberta da <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> inferno como<br />

entendida tradicionalmente pela igreja cristã. 76<br />

Esse chama<strong>do</strong> à tolerância pode alcançar limites perigosos. É perturba<strong>do</strong>r<br />

ver McLaren afirman<strong>do</strong> que é possível ser um hindu e um segui<strong>do</strong>r de Cristo,<br />

apontan<strong>do</strong> para um entendimento de que se trata mais de como viver <strong>do</strong> que de<br />

uma salvação pela graça. 77 Isso é muito semelhante ao antigo liberalismo que<br />

afirma que é mais importante como se vive <strong>do</strong> que se identificar com Cristo<br />

ao receber sua justiça, ao ser a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, ao ser uni<strong>do</strong> com ele, ao ser santifica<strong>do</strong><br />

diariamente e um dia ser glorifica<strong>do</strong>. 78 O que na verdade deveria ser uma<br />

forma de libertar as pessoas é uma forma de aprisioná-las, pois faz com que<br />

precisem merecer sua salvação viven<strong>do</strong> fielmente, ao invés de se basearem na<br />

justiça imputada de Cristo.<br />

Recentemente, à medida que se avolumam as críticas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> evangélico,<br />

alguns grupos começaram a se fechar e a assumir uma atitude de vítimas<br />

de perseguição. Carson alerta quanto ao fato de que movimentos que começam<br />

com uma negação radical da igreja estabelecida muitas vezes caem no erro<br />

sectário de crer que são o único remanescente, e que ou se está com eles ou se<br />

está contra o evangelho verdadeiro. 79 McLaren muitas vezes assume uma pose<br />

humilde de estar ainda caminhan<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong>, enquanto afirma estar advogan<strong>do</strong><br />

uma orto<strong>do</strong>xia que ninguém mais segue, algo tão novo e revolucionário<br />

que irá mudar a igreja para sempre. Em grande parte de suas conversas não<br />

há muito espaço para discordância, e as pessoas que destoam frequentemente<br />

são deixadas de la<strong>do</strong>.<br />

75 GIBBS e BOLGER, Emerging Churches, p. 54.<br />

76 Para uma boa avaliação da questão <strong>do</strong> MIE e a <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> inferno, ver: GILBERT, Greg D.<br />

Saved from the wrath of God: An Examination of Brian McLaren’s approach to the <strong>do</strong>ctrine of Hell. In:<br />

JOHNSON e GLEASON, Reforming or Conforming?<br />

77 MCLAREN, Generous Ortho<strong>do</strong>xy, p. 264; GILLEY, The Emergent Church, p. 287. Carson corretamente<br />

critica o MIE por não demonstrar para com a igreja histórica a mesma tolerância e equilíbrio<br />

que afirma deveriam ser ofereci<strong>do</strong>s a outras religiões. Becoming Conversant, p. 66.<br />

78 Igualmente perturba<strong>do</strong>ra é a afirmação de McLaren de que é bem possível seguir a Jesus sem<br />

se identificar como um cristão, já que esse nome parece trazer uma reputação negativa atualmente.<br />

Generous Ortho<strong>do</strong>xy, p. 16.<br />

79 CARSON, Becoming Conversant, p. 155. Carson respondeu ao chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> MIE para discutir e<br />

dialogar, para analisar extensivamente o movimento, mas foi recebi<strong>do</strong> friamente por eles, pois o produto<br />

final era principalmente crítico. É fácil pregar tolerância e abertura para o diálogo apenas quan<strong>do</strong> se<br />

dialoga com quem já concorda.<br />

65


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

O MIE mostra-se bastante crítico acerca <strong>do</strong> protestantismo. Porém, como<br />

mostramos, várias de suas críticas são infundadas ou fortemente distorcidas<br />

pelo viés pós-moderno. Em suma, vemos que “aquilo que eles criticam é muito<br />

mais antigo <strong>do</strong> que pensam e o que afirmam raramente é tão novo quanto<br />

imaginam”. 80 O MIE decidiu se casar com o espírito de seu tempo, mas o espírito<br />

pós-moderno não é fiel a ninguém, e vai deixar a igreja de coração parti<strong>do</strong>.<br />

conclusão<br />

O mun<strong>do</strong> urbano <strong>do</strong> século 21 é verdadeiramente um lugar complexo e<br />

tem seus desafios específicos. Infelizmente, muitas vezes e de muitas maneiras<br />

a igreja tem se casa<strong>do</strong> com o espírito de seu tempo. A viuvez se renova a cada<br />

geração e a igreja insiste em dizer que na próxima vez irá durar. Neste artigo<br />

investigamos <strong>do</strong>is movimentos recentes que buscam se adequar a seu tempo,<br />

mas para fazer isto deixam muito da fidelidade e das coisas que os distinguem<br />

como noiva de Cristo. Revitalização não é por esses caminhos.<br />

O MIE bem como o movimento seeker-sensitive percebem corretamente<br />

muitas características de sua própria geração. 81 Eles entendem bem, até certo<br />

ponto, como pensa a atual geração. Entretanto, parece que falta nos proponentes<br />

o desejo de negarem a si mesmos, de submeterem seu mo<strong>do</strong> de viver e<br />

de pensar e a forma de ser igreja às Escrituras. Assim como a igreja moderna<br />

voltada para o merca<strong>do</strong> não negou a si mesmo seus desejos consumistas, o<br />

MIE não está sen<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>so o suficiente ao controlar seus apetites pluralistas<br />

e relativistas. Suas soluções para os problemas que percebe na igreja e<br />

na sociedade têm uma dupla abordagem: abraçar o pós-modernismo e tentar<br />

reativar as práticas medievais e antigas. Ele o faz, entretanto, sem uma crítica<br />

adequada, tanto <strong>do</strong>s elementos pós-modernos quanto <strong>do</strong>s medievais, deixan<strong>do</strong><br />

de ser contracultural em relação ao pós-modernismo e não avalian<strong>do</strong> os aspectos<br />

condiciona<strong>do</strong>s à cultura <strong>do</strong>s elementos da pré-modernidade.<br />

Além disto, o MIE falha em lidar adequadamente com a imensa diversidade<br />

de contextos culturais no cosmopolita século 21. O diálogo emergente não<br />

apela a todas as tribos e povos. O movimento, enquanto inova<strong>do</strong>r em vários<br />

aspectos, não é tão novo quan<strong>do</strong> gostaria de ser. Eles seguem uma linha histórica<br />

de negação e desdém da tradição e <strong>do</strong>utrina cristãs e decidem enfatizar o<br />

mistério, a comunidade e a experiência pessoal ao custo da verdade. 82 O MIE<br />

falha em seu desejo de agir de forma diferente <strong>do</strong> que foi cria<strong>do</strong> para fazer. O<br />

80 DEYOUNG e KLUCK, Não quero um pastor bacana, p. 190.<br />

81 Carson corretamente relembra a seus leitores que as boas coisas que o MIE alcançou não são<br />

exclusivamente deles (Becoming Conversant, p. 56). Ele aponta para a igreja de Tim Keller, em New<br />

York, como um exemplo de como manter uma <strong>do</strong>utrina evangélica sadia e contextualizar com sucesso<br />

para uma geração descomprometida com o evangelho.<br />

82 GLEASON, Church and Community, p. 178.<br />

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FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

homem, cria<strong>do</strong> à imagem de Deus, é capaz de pensar linear e racionalmente,<br />

pode alcançar verdades absolutas e pensar os pensamentos de Deus após ele.<br />

Os adeptos <strong>do</strong> MIE, seguin<strong>do</strong> o pós-modernismo, buscam negar to<strong>do</strong>s esses<br />

elementos. Mas eles o fazem usan<strong>do</strong> os próprios elementos que buscam denunciar.<br />

Suas ideias são lineares, eles esperam ser entendi<strong>do</strong>s racionalmente<br />

e suas conversas enxergam o mun<strong>do</strong> em termos absolutos quan<strong>do</strong> convém. 83<br />

Em sua busca por diversidade, acabam se parecen<strong>do</strong> muito uns com os outros.<br />

Talvez a verdadeira diversidade requeira que se congregue com pessoas que<br />

não estão na moda, que não sabem muito sobre cultura pop, gente tipicamente<br />

urbana junto com aqueles que vêm de um ambiente rural. Muitos indivíduos da<br />

geração atual buscam esse tipo de diversidade. Esse tipo de igreja pode verdadeiramente<br />

tratar menos <strong>do</strong> indivíduo e seus sentimentos, suas experiências e<br />

sua individualidade, e mais sobre ser parte de um grupo diverso em que pessoas<br />

muito diferentes são unidas em Cristo.<br />

Vale notar que, ao tentar se livrar de generalizações e elementos <strong>do</strong>gmáticos<br />

(supostamente autoritários), o MIE não é capaz de eliminar completamente<br />

tais coisas. Cria<strong>do</strong> à imagem de Deus, o homem foi feito para habitar<br />

e funcionar no mun<strong>do</strong> de Deus, onde há absolutos e é possível sistematizar o<br />

conhecimento revela<strong>do</strong> de Deus e da criação. Assim como os filósofos pós-<br />

-modernos vivem como se houvesse verdades absolutas (inconsistentes com sua<br />

filosofia), o MIE tem seus próprios <strong>do</strong>gmas e sistemas. Por exemplo, afirma a<br />

existência de Deus, seu amor, sua graça e sua generosidade; afirma a <strong>do</strong>utrina<br />

da Trindade, a vida histórica de Cristo, a ressurreição, etc. Afirma que há padrões<br />

morais de comportamento, mesmo que geralmente sejam mais frouxos<br />

<strong>do</strong> que o cristianismo histórico admitiria. Os emergentes não estão, entretanto,<br />

livres de limites, pois o ser humano não é capaz, na prática, de viver sem tais<br />

coisas. Parece que não é realmente uma questão de se livrar <strong>do</strong>s <strong>do</strong>gmas, mas<br />

de se livrar de <strong>do</strong>gmas que, por qualquer razão, eles não apreciam.<br />

Na cultura ocidental atual, a maior parte <strong>do</strong>s movimentos que começam<br />

como subculturas revolucionárias rapidamente são assimila<strong>do</strong>s e se tornam<br />

comuns. Uma rápida visita à livraria cristã mais próxima mostra que autores<br />

<strong>do</strong> MIE como Rob Bell e Brian McLaren estão la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com evangélicos<br />

famosos como Max Luca<strong>do</strong> e Rick Warren e com a biografia de Sarah Palin.<br />

Sua rebelião agora é moda; suas ideias novas e ameaça<strong>do</strong>ras agora foram<br />

<strong>do</strong>mesticadas.<br />

Certamente há muitos no MIE que verdadeiramente amam Jesus Cristo e<br />

querem ser verdadeiros discípulos. Infelizmente, o movimento não é adequa<strong>do</strong><br />

para lidar com sua própria geração, pois falha em confrontar os erros de sua<br />

época. De fato, por um la<strong>do</strong> eles se entregam às afirmativas pós-modernas e,<br />

por outro, aban<strong>do</strong>nam a solução histórica para tal erro.<br />

83 CARSON, Becoming Conversant, p. 84.<br />

67


Emilio Garofalo Neto, Antes Só <strong>do</strong> que Mal Acompanhada<br />

Este artigo não se dedica a sugerir muito em termos de caminhos para<br />

a revitalização, mas não iremos nos furtar a, pelo menos, indicar direções.<br />

Quan<strong>do</strong> se trata de lidar com o espírito de nosso tempo, Tim Keller sugere um<br />

caminho melhor, fortemente calca<strong>do</strong> na teologia reformada. 84 Um caminho que<br />

mostra que o que precisamos não é seguir a última moda, seja esta moderna,<br />

pós ou pré-moderna. Precisamos seguir o que a Bíblia em seu ensino nos<br />

mostra acerca de viver e fazer discípulos, e fazer isto confrontan<strong>do</strong> o espírito<br />

de nosso tempo de maneira contracultural. Precisamos parar de assumir a<br />

neutralidade <strong>do</strong> racionalismo empírico, mas a saída não é o relativismo, e sim<br />

fazer como Cornelius Van Til (seguin<strong>do</strong> Paulo) e checar os pressupostos e as<br />

bases <strong>do</strong> pensamento rebelde, saben<strong>do</strong> que toda sorte de pensamento autônomo<br />

se levanta contra o conhecimento de Deus. Temos de cessar de tratar a Bíblia<br />

como apenas um conjunto de formulações <strong>do</strong>gmáticas, mas a solução não é<br />

nos livrar de metanarrativas e criar cada um o seu senti<strong>do</strong>. A solução é observar<br />

a metanarrativa de criação-queda-redenção-consumação, que é de onde<br />

surgem eternas formulações <strong>do</strong>gmáticas, e homens como Geerhardus Vos nos<br />

ajudarão tremendamente nesse projeto. Para combater a impessoalidade e falta<br />

de conexão da igreja o melhor não é criar igrejas sem liderança, sem regras<br />

ou sem limites, mas viver e conhecer a teologia profundamente experiencial<br />

<strong>do</strong>s puritanos, que remetem a Edwards, Calvino, Agostinho e aos apóstolos.<br />

Para combater o moralismo de tão grande parte da igreja evangélica, o que<br />

precisamos não é aban<strong>do</strong>nar padrões de comportamento num vale-tu<strong>do</strong>-desde-<br />

-que-ninguém-se-machuque emergente, mas de uma teologia de justificação<br />

pela fé que resulte sempre em santificação. Nós já temos em nossa história<br />

uma teologia que consiste num robusto mix de uma teologia não-racionalista<br />

mas revelacional, um cristianismo experiencial, uma metanarrativa teológica e<br />

uma moralidade não hipócrita.<br />

A igreja se perdeu na floresta da modernidade e acha que a saída é o<br />

pântano pós-moderno, mas a verdadeira solução é um caminho estreito e que<br />

tem sinalização dada pelo próprio Deus. Ele corta pelo meio <strong>do</strong>s perigos e<br />

distrações da floresta e o mau-cheiro <strong>do</strong>s gases pantanosos. A igreja tem um<br />

caminho, e já o tem há séculos: ele envolve cruz e glória, sofrimento e também<br />

gozo, contracultura e sabe<strong>do</strong>ria, justificação e santificação. O caminho<br />

se chama Emanuel. A revitalização da igreja envolve voltar ao primeiro amor,<br />

e não conseguir um substituto advin<strong>do</strong> da cultura vigente.<br />

A solução é recusar-se a casar com o espírito da época. A solução é<br />

manter-se fiel em preparação para o casamento com o Senhor Jesus. Antes só<br />

84 Ver o texto Post-everythings (<strong>20</strong>05), disponível em: http://www.scribd.com/<strong>do</strong>c/<strong>20</strong>635/Post-<br />

Everythings-by-Tim-Keller. Em seu livro Preaching: Communicating Faith in an Age of Skeptcism<br />

(New York: Viking, <strong>20</strong>15), Keller sugere diversas formas úteis de comunicar a verdade <strong>do</strong> evangelho<br />

ao mun<strong>do</strong> atual sem perder a verdade bíblica.<br />

68


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 41-69<br />

<strong>do</strong> que mal acompanhada – a igreja deveria ouvir o velho conselho de nossas<br />

avós. O espírito <strong>do</strong> tempo pode parecer elegante e bonitão, mas é um farsante.<br />

E, claro, nisso tu<strong>do</strong> lembrar-se que na verdade não está só, está se preparan<strong>do</strong><br />

para o único noivo que é digno dela. A jornada é importante sim, mas a festa<br />

de casamento é que irá longe...<br />

abstract<br />

The article addresses the chief traits and limitations of two ecclesiastical<br />

movements of North-American extraction that intend to be an answer to the needs<br />

of the complex world of today. One is the seeker-sensitive, seeker-friendly,<br />

or market-driven church movement, exemplified by the mega-churches that<br />

can be seen in the United States, Brazil, and other countries. Reasoning in<br />

terms of marketing, they seek to attract adherents by catering to a vast array<br />

of preferences and interests that are typical of modern consumer society. The<br />

author pays greater attention, however, to the so-called Emerging Church<br />

Movement (ECM), which, in its desire to speak to post-modern society, ends<br />

up denying or <strong>do</strong>wnplaying Christian tradition and <strong>do</strong>ctrine, emphasizing<br />

instead mystery, community, and personal experience. In this endeavor, ECM<br />

prioritizes post-modern pluralism and relativism and embraces medieval and<br />

older practices. The author cautions against the dangers faced by every church<br />

that seeks to identify uncritically with the spirit of the times, modern or post-<br />

-modern, since this can take place at the expense of faithfulness to Christ and<br />

his Word. Although the article <strong>do</strong>es not have the purpose to suggest alternative,<br />

detailed proposals for church revitalization, it advances some guidelines based<br />

on the biblical metanarrative of creation-fall-redemption-consummation and<br />

the historical <strong>do</strong>ctrines of Christ’ work, justification by faith, and sanctification.<br />

keywords<br />

Seeker-sensitive churches; Emerging/emergent churches; Church revitalization;<br />

Spirit of the times; Modernity; Post-modernity; Pluralism; Relativism;<br />

Rationality; Metanarrative; Doctrine.<br />

69


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

Valdeci Santos *<br />

resumo<br />

Homossexualidade é uma questão extremamente polêmica na sociedade<br />

contemporânea e um <strong>do</strong>s principais assuntos a dividir a opinião cristã. Nos<br />

últimos anos, indivíduos, instituições, corporações e especialmente igrejas são<br />

julgadas por suas crenças sobre a homossexualidade. Todavia, nem sempre foi<br />

assim. Como tu<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u? A resposta a essa pergunta exige um estu<strong>do</strong> diacrônico<br />

<strong>do</strong>s últimos acontecimentos na sociedade e na igreja, bem como algumas<br />

considerações preliminares sobre a revolução moral presente. Atender a essa<br />

necessidade é a proposta deste artigo.<br />

palavras-chave<br />

Homossexualidade; Mudança e revolução moral; Teologia gay; Religiosidade;<br />

Cristianismo e cultura; Verdade e compaixão.<br />

introdução<br />

Em mais uma de suas crônicas geniais, Luiz Fernan<strong>do</strong> Veríssimo descreve<br />

o diálogo fictício e confuso entre um filho e sua mãe sobre a versão contemporânea<br />

<strong>do</strong> casamento. A alegria da mãe diante <strong>do</strong> anúncio de que o filho<br />

pretendia se casar é logo substituída pela surpresa com o nome da “noiva”,<br />

ou seja, Murilo. Tentan<strong>do</strong> não parecer retrógrada nem preconceituosa, a mãe<br />

ainda recebe a notícia de que sua filha também está namoran<strong>do</strong>, mas nesse caso,<br />

com uma jovem chamada Veruska. Os elementos complica<strong>do</strong>res aumentam<br />

* Obteve os graus de mestra<strong>do</strong> (Th.M.) em Teologia Sistemática e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> (Ph.D.) em Estu<strong>do</strong>s<br />

Interculturais no Reformed Theological Seminary, Jackson, Mississipi. É ministro presbiteriano, pastor<br />

da Igreja Cristã Reformada <strong>do</strong> Campo Belo (São Paulo), vice-diretor e professor de teologia pastoral<br />

e sistemática no CPAJ e coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> programa de Doutora<strong>do</strong> em Ministério (D.Min.) <strong>do</strong> CPAJ/<br />

Reformed Theological Seminary.<br />

71


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

quan<strong>do</strong> a mãe toma conhecimento de que ambos os casais já haviam combina<strong>do</strong><br />

um esquema amigável para ter filhos. Em determina<strong>do</strong> momento, eles<br />

compartilhariam espermatozoides e óvulos e uma das “garotas” contribuiria<br />

com a barriga de aluguel. Diante da confusão toda, a mãe perde a paciência e<br />

afirma que tu<strong>do</strong> não passa de um projeto de swing moderno com a agravante<br />

<strong>do</strong> relacionamento incestuoso, pois afinal seu filho planejava gerar uma criança<br />

com a ajuda da própria irmã. A conclusão é que a tradicional árvore genealógica<br />

daqui para a frente já foi cortada! 1<br />

A crônica de Veríssimo é apenas uma brincadeira, mas sua mensagem<br />

é realmente séria. O fato é que as mudanças sociais trazem consequências<br />

imprevisíveis, bem como ramificações mais complexas <strong>do</strong> que aparentam.<br />

Isso é claramente aborda<strong>do</strong> na obra O Dossel Sagra<strong>do</strong>, <strong>do</strong> sociólogo Peter<br />

Berger, que defende que o construto social (o homem constrói a sociedade e<br />

a sociedade constrói o homem) necessita de valores-pilares que mantenham a<br />

estrutura da realidade construída. Uma vez removi<strong>do</strong>s esses valores, a sociedade<br />

experimenta o que ele chama de desencantamento, cujos resulta<strong>do</strong>s são<br />

imprevisíveis. 2<br />

Inquestionavelmente, as últimas décadas <strong>do</strong> século <strong>20</strong> e as primeiras<br />

<strong>do</strong> século 21 testemunharam uma série de mudanças sociais de proporções<br />

globais cujos resulta<strong>do</strong>s são desconheci<strong>do</strong>s. As contribuições tecnológicas,<br />

industriais e políticas são notórias no processo de globalização, mediante o qual<br />

o estreitamento de tempo e <strong>do</strong> espaço produz a realidade da aldeia global. 3 No<br />

entanto, uma das transições sociais mais marcantes neste contexto diz respeito<br />

à revolução sexual, especialmente as mudanças da perspectiva social acerca da<br />

homossexualidade. De alvo de preconceitos e repressões, a homossexualidade<br />

passou a ser vista como uma mera opção individual que deve ser normalmente<br />

aceita, respeitada e, em alguns casos, até mesmo celebrada. Levan<strong>do</strong> avante o<br />

lema “o mun<strong>do</strong> é gay”, os ativistas homossexuais e integrantes de movimentos<br />

GLBT (iniciais de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais) obtiveram conquistas<br />

notáveis em vários segmentos da sociedade. Basta observar os eventos ao<br />

re<strong>do</strong>r para perceber que “nossa cultura está inundada – tanto em publicações<br />

como em vídeos – com a ideia de que a homossexualidade é uma expressão<br />

amorosa normal, própria e saudável entre duas pessoas”. 4 As conquistas obtidas<br />

pelos militantes da homossexualidade justificam a opinião <strong>do</strong> escritor Rubem<br />

1 VERÍSSIMO, Luiz Fernan<strong>do</strong>. Fim da árvore genealógica. Disponível em: http://www.brasilwiki.<br />

com.br/noticia. php?id_noticia=42610. Acesso em: 27 maio <strong>20</strong>05.<br />

2 BERGER, Peter Ludwig. O <strong>do</strong>ssel sagra<strong>do</strong>: elementos para uma teoria sociológica da religião.<br />

São Paulo: Paulinas, 1985.<br />

3 WATERS, Malcom. Globalização. Oeiras, Portugal: Celta, 1995, p. 3, 35.<br />

4 WHITE, James; NIELL, Jeffrey. The Same Sex Controversy. Grand Rapids: Bethany House,<br />

<strong>20</strong>02, p. 9.<br />

72


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

Amorese: “Para<strong>do</strong>xalmente, restou, em nossa sociedade, um <strong>do</strong>gma intocável<br />

e indiscutível: aquele que afirma que o homossexualismo é belo e saudável”. 5<br />

Em um estu<strong>do</strong> sobre esse assunto Albert Mohler lembra que “nossa cultura<br />

tem si<strong>do</strong> bombardeada com imagens designadas a retratar o homossexualismo<br />

como um estilo de vida normal. Os temas homoeróticos se encontram infiltra<strong>do</strong>s<br />

na mídia de tal forma que os cidadãos perderam a capacidade de se<br />

chocar com isso”. 6 Nesse contexto, qualquer pessoa que se oponha ou rejeite<br />

o comportamento homossexual é taxada de homofóbica, preconceituosa ou<br />

tacanha. Porém, como essa mudança social não ocorreu instantaneamente, é<br />

necessário considerar alguns aspectos da trajetória desse processo.<br />

Em virtude de tu<strong>do</strong> isso, este estu<strong>do</strong> possui uma natureza exploratória<br />

diacrônica com o objetivo de analisar alguns aspectos históricos das mudanças<br />

culturais e religiosas em relação à homossexualidade. Ao final, serão feitas<br />

algumas considerações teológicas e práticas para a igreja cristã contemporânea.<br />

1. a legitimação social<br />

Nos estu<strong>do</strong>s acadêmicos, qualquer explicação para a mudança fenomenológica<br />

em relação à percepção social da homossexualidade deve levar em<br />

consideração a “revolução sexual” <strong>do</strong>s anos 60, especialmente as contribuições<br />

<strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r americano Alfred C. Kinsey (1894-1956), cujo trabalho foi<br />

consagra<strong>do</strong> até por produções de Hollywood. 7 Por vários anos Kinsey aplicou<br />

seus conhecimentos em zoologia ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> comportamento sexual humano.<br />

A partir da classificação e estu<strong>do</strong>s sobre vespas ele estabeleceu um laboratório<br />

humano no qual passou a investigar as preferências e práticas sexuais <strong>do</strong>s<br />

participantes. Os resulta<strong>do</strong>s de seus estu<strong>do</strong>s foram publica<strong>do</strong>s na famosa obra<br />

Sexual Behavior in the Human Male (O comportamento sexual masculino,<br />

1948), posteriormente seguida por Sexual Behavior in the Human Female (O<br />

comportamento sexual feminino, 1953). Posteriormente seus esforços resultaram<br />

no estabelecimento <strong>do</strong> Instituto Kinsey, na Universidade de Indiana. 8<br />

As conclusões <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r americano foram de que a “pansexualidade”,<br />

ou seja, a perspectiva de que nenhuma expressão sexual é anormal, deve<br />

vigorar como a norma <strong>do</strong> comportamento sexual humano. 9 Ao que tu<strong>do</strong> indica,<br />

5 Apud NAVES, Ana Paula; FERNANDES, Carlos; STEFANO, Marcos. O arco-íris e a cruz.<br />

Eclésia 68 (<strong>20</strong>01), p. 36.<br />

6 MOHLER, Albert. Homosexuality and the Bible. Louisville, KY: The Southern Baptist Theological<br />

Seminary, s.d., p. 6.<br />

7 Filme no estilo drama biográfico sob o título “Kinsey: Vamos Falar de Sexo”.<br />

8 Cf. The Kinsey Institute for Research in Sex, Gender and Reproduction, mais conheci<strong>do</strong> como<br />

The Kinsey Institute. Site disponível em: www.http://www.indiana.edu/~kinsey. Acesso em: <strong>20</strong> out. <strong>20</strong>15.<br />

9 GATHORNE-HARDY, Jonathan. Sex, the Measure of All Things: A life of Alfred Kinsey.<br />

Bloomington, IN: Indiana University Press, <strong>20</strong>00.<br />

73


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

porém, as pesquisas de Kinsey não foram guiadas pela necessária objetividade<br />

científica, pois seu comportamento homossexual, bem como sua determinação<br />

em liberar a concepção sexual das restrições religiosas de sua época, parecem<br />

ter influencia<strong>do</strong> suas pesquisas e conclusões. 10 Há que se admitir, porém, que<br />

o esforço <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r americano contribuiu para a destruição <strong>do</strong> conceito<br />

de “sexo normal” na sociedade, pois “antes de Kinsey, as pessoas chamavam o<br />

amor sexual de ‘o ato conjugal’. Depois de Kinsey, os limites para a expressão<br />

sexual foram perdi<strong>do</strong>s”. 11<br />

Ao considerar, recentemente, as implicações sociais das publicações de<br />

Kinsey, um sociólogo americano afirmou que “o ideal de uma família nuclear<br />

morreu durante as décadas de 1960 e 1970”. 12 Peter Jones, outro estudioso <strong>do</strong><br />

assunto, ainda comenta que “em anos recentes, a promoção da homossexualidade<br />

e da bissexualidade – que agora são protegidas e até mesmo promovidas<br />

pelo Esta<strong>do</strong> – vem destruin<strong>do</strong> a heterossexualidade normal”. 13 O fato é que<br />

atualmente não apenas os livros acadêmicos, mas jornais e revistas de circulação<br />

sistemática e popular defendem e noticiam a aceitação cada vez mais<br />

crescente <strong>do</strong> comportamento homossexual na sociedade.<br />

Se no campo intelectual e acadêmico os estu<strong>do</strong>s de Kinsey foram determinantes<br />

para a popularização da homossexualidade, os ativistas sociais lançaram<br />

mão de outros canais de massificação. No Brasil, a influência da mídia<br />

televisiva, das manifestações populares, das pressões econômicas e, por fim,<br />

das atuações nos círculos políticos parecem ter si<strong>do</strong> decisivas para converter<br />

a resistência em tolerância, a restrição em celebração.<br />

Com relação à mídia televisiva é significativo considerar que em 1998, a<br />

novela Torre de Babel incluiu na trama o romance lésbico de Rafaela e Leila.<br />

No entanto, protestos de telespecta<strong>do</strong>res foram tão acentua<strong>do</strong>s que Sílvio de<br />

Abreu, o autor <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, precisou incluir uma cena de explosão em um centro<br />

de compras causan<strong>do</strong> assim a morte de uma das personagens antes mesmo da<br />

novela atingir metade de seus capítulos. Porém, em <strong>20</strong>03, a novela Mulheres<br />

Apaixonadas também retratou um casal lésbico que contou com a aceitação<br />

<strong>do</strong> público, desde que não tivesse nenhuma cena de beijo entre elas. Porém,<br />

a mudança maior ocorreu em <strong>20</strong>05, quan<strong>do</strong> houve reclamação por parte <strong>do</strong><br />

público e considerável polêmica pelo fato de a novela América não ter divulga<strong>do</strong><br />

o beijo homossexual envolven<strong>do</strong> Júnior e Zeca. Finalmente em <strong>20</strong>11, a<br />

telenovela Amor & Revolução, transmitida pelo SBT, expôs na tela o beijo na<br />

10 REISMAN, Judith A. Kinsey: Crimes and consequences. Crestwood, KY: The Institute for<br />

Media Education, 1998, p. 226, 245-246.<br />

11 JONES, Peter. O deus <strong>do</strong> sexo: como a espiritualidade define a sua sexualidade. São Paulo:<br />

Cultura Cristã, <strong>20</strong>07, p. 18.<br />

12 POPENOE, P. Life Without Fathers. New York: The Free Press, 1996, p. 135.<br />

13 JONES, O deus <strong>do</strong> sexo, p. 23.<br />

74


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

boca das lésbicas Marcela e Marina, e tu<strong>do</strong> isso em horário nobre da televisão<br />

brasileira. 14 Como a opinião social mu<strong>do</strong>u tão rapidamente em apenas sete<br />

anos? O que ocorreu para que a reprovação fosse substituída tão prontamente<br />

pela aceitação?<br />

A resposta a esta pergunta exige uma reflexão de como a temática<br />

homossexual tem si<strong>do</strong> explorada pela mídia televisiva. Nesse senti<strong>do</strong>, o observa<strong>do</strong>r<br />

deve distinguir desde a presença de homossexuais como jura<strong>do</strong>s de<br />

programas de auditório até as aparições jocosas nos programas humorísticos,<br />

os personagens caricatura<strong>do</strong>s e os romances dramatiza<strong>do</strong>s nas telenovelas.<br />

Como relação aos programas humorísticos, devem ser lembradas as aparições<br />

de Chacrinha vesti<strong>do</strong> de bailarina em sua Discoteca, assim como os tiques<br />

femininos de Zacarias de Os Trapalhões, o personagem Capitão Gay, de Jô<br />

Soares, que se tornou popular na década de 1980 e o Painho, representa<strong>do</strong> por<br />

Chico Anísio em Chico City. O objetivo desses programas poderia ser apenas<br />

extrair risos <strong>do</strong> público, mas ao mesmo tempo preparava o caminho para<br />

outras interações com representantes <strong>do</strong> universo homossexual. Com relação<br />

às caricaturas homossexuais encontradas nas telenovelas e seria<strong>do</strong>s, também<br />

não se dava a devida atenção, mas o fato foi que elas geravam familiaridade<br />

entre os telespecta<strong>do</strong>res e o universo homossexual. Naqueles programas, os<br />

homossexuais foram retrata<strong>do</strong>s de diversas maneiras, receben<strong>do</strong> caricaturas de<br />

violentos em Rebu, ou apenas de efemina<strong>do</strong>s diverti<strong>do</strong>s nas novelas Dancin’<br />

Days, Bebê a Bor<strong>do</strong>, Pacto de Sangue, Tieta, etc. 15 A mensagem em cada uma<br />

daquelas participações era que o homossexual, no geral, é alguém sempre<br />

diverti<strong>do</strong>, leal a suas amizades, mas extremamente passional.<br />

Nos últimos anos, porém, a novelas parecem mais interessadas em retratar<br />

os casos de romances homoafetivos. Taynara Magarotto observa que “a TV<br />

brasileira resolveu abordar a temática homossexual com mais força”. 16 Esses<br />

dramas têm se revela<strong>do</strong> eficientes em despertar a simpatia <strong>do</strong>s telespecta<strong>do</strong>res<br />

para com as lutas e dificuldades <strong>do</strong>s homossexuais. Há vários estu<strong>do</strong>s retratan<strong>do</strong><br />

o trabalho sistemático e persistente de diferentes emissoras nesse senti<strong>do</strong>,<br />

mas as novelas “globais” merecem destaque, pois estu<strong>do</strong>s revelam que essas<br />

programações acabam ten<strong>do</strong> influência maior sobre a família brasileira. 17<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, as novelas Da Cor <strong>do</strong> Peca<strong>do</strong>, Senhora <strong>do</strong> Destino e Páginas<br />

14 MAGAROTTO, Taynara. Gays em novelas: Censura ao público imaturo para discussão? Disponível<br />

em: http://www.jornal<strong>do</strong>povoparana.com/<strong>20</strong>11/07/gays-em-novelas-censura-ou-publico.html.<br />

Acesso em: 21 jul. <strong>20</strong>11.<br />

15 TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à<br />

atualidade. Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, <strong>20</strong>04, p. 586.<br />

16 MAGAROTTO, Gays em novelas.<br />

17 CHONG, Alberto; FERRARA, Eliana. Television and Divorce: Evidence from Brazilian Novelas.<br />

Washington: Inter-American Development Bank, <strong>20</strong>09.<br />

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Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

da Vida, por exemplo, retrataram casais homossexuais livres de estereótipos<br />

que ansiavam pelo reconhecimento social de seus relacionamentos, inclusive<br />

a possibilidade de se casar e criar filhos. Em sua análise sobre o homoerotismo<br />

nas novelas e na cultura, o <strong>do</strong>utor em comunicação e cultura Leandro<br />

Colling ressalta a característica marcante desses personagens homossexuais,<br />

ou seja, “o fato de to<strong>do</strong>s serem bonitos, bem-sucedi<strong>do</strong>s financeiramente e,<br />

na maioria das vezes, sabem se vestir muito bem e apreciam a arte”. 18 Dessa<br />

forma, a apresentação <strong>do</strong> padrão homossexual nas novelas atuais recebe um<br />

destaque mais positivo <strong>do</strong> que nas programações antigas. Esses teledramas<br />

tanto refletem a aceitação social <strong>do</strong> comportamento como acabam por influenciar<br />

o estilo de vida em diferentes segmentos da sociedade, principalmente<br />

os a<strong>do</strong>lescentes e jovens.<br />

Além das novelas e programas humorísticos, o processo de aceitação<br />

social da homossexualidade contou ainda com a contribuição <strong>do</strong>s seria<strong>do</strong>s<br />

americanos apresenta<strong>do</strong>s na mídia televisiva brasileira. 19 A popularidade de<br />

programas como The L World (O Mun<strong>do</strong> L) retratan<strong>do</strong> o relacionamento lésbico,<br />

Queer as Folk (Os Assumi<strong>do</strong>s), descreven<strong>do</strong> o cotidiano homossexual, Modern<br />

Family (Família Moderna), focalizan<strong>do</strong> as novidades no relacionamento<br />

familiar contemporâneo, e outras minisséries, acabaram estabelecen<strong>do</strong> familiaridade<br />

<strong>do</strong> público com uma seleção de aspectos <strong>do</strong> cotidiano homossexual.<br />

Mais uma vez o resulta<strong>do</strong> foi positivo em prol da normalização e aceitação<br />

social da homossexualidade como estilo de vida.<br />

Também, qualquer análise da crescente tolerância social brasileira à homossexualidade<br />

seria incompleta sem a consideração <strong>do</strong> impacto das passeatas<br />

<strong>do</strong> Orgulho Gay (popularmente chamadas Passeatas ou Paradas Gays). Em um<br />

artigo sobre as conquistas <strong>do</strong> movimento homossexual, Camila Antunes registra<br />

que “em 1997, a primeira passeata reuniu apenas <strong>20</strong>00 gatos pinga<strong>do</strong>s”. <strong>20</strong><br />

O que ela não podia prever na ocasião é que a 15ª edição da Parada Gay em<br />

<strong>20</strong>11, na cidade de São Paulo, agrupou o número recorde de mais de 4 milhões<br />

de pessoas. Esse evento foi considera<strong>do</strong> a maior concentração <strong>do</strong> gênero em<br />

to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. As paradas geralmente acontecem na Avenida Paulista, o maior<br />

centro econômico da América Latina, e conseguem atrair pessoas de outros<br />

esta<strong>do</strong>s brasileiros, bem como de diferentes países. O objetivo principal dessas<br />

18 COLLING, Leandro. Homoerotismo nas telenovelas da Rede Globo e a cultura. Trabalho apresenta<strong>do</strong><br />

no III ENECULT – Encontro de Estu<strong>do</strong>s Multidisciplinares em Cultura, de 23 a 25 de maio de<br />

<strong>20</strong>07, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, em Salva<strong>do</strong>r, p. 16.<br />

19 REIS, Ramon Pereira <strong>do</strong>s; CANCELA, Cristina Donza. Conjugalidades homossexuais na mídia<br />

televisiva: o discurso midiático pautan<strong>do</strong> as relações homoconjugais expostas no seria<strong>do</strong> Queer as Folk.<br />

Trabalho apresenta<strong>do</strong> no II Seminário Sociologia & Política, Universidade Federal <strong>do</strong> Paraná, Curitiba,<br />

15-17 de setembro de <strong>20</strong>10.<br />

<strong>20</strong> ANTUNES, Camila. A força <strong>do</strong> arco-íris. Veja, 25 de setembro de <strong>20</strong>03, p. 74.<br />

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FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

passeatas é celebrar o estilo de vida homossexual como algo desejável, digno<br />

<strong>do</strong> orgulho de seus participantes e, por que não dizer, até mesmo superior aos<br />

demais, pois quem já ouviu falar de uma “passeata <strong>do</strong> orgulho heterossexual”?<br />

As “paradas” têm revela<strong>do</strong> imenso potencial não só para celebrar as conquistas<br />

homossexuais, como também para gerar polêmicas e servir de impressionante<br />

fonte de lucro para o empresaria<strong>do</strong> local. Por exemplo, a 15ª edição<br />

da Parada <strong>do</strong> Orgulho Gay foi altamente polêmica ao a<strong>do</strong>tar o tema “Amai-vos<br />

uns aos outros”, uma expressão bíblica aplicada a um contexto totalmente<br />

diferente <strong>do</strong> relacionamento homossexual. Além <strong>do</strong> mais, os organiza<strong>do</strong>res<br />

ainda incentivaram a exposição de fotos erotizadas de modelos masculinos<br />

caracterizadas de santos representantes <strong>do</strong> cristianismo. Mais recentemente,<br />

o ápice da polêmica foi atingi<strong>do</strong> com a “crucificação” de uma atriz transexual<br />

durante a 19ª Parada Gay, encenan<strong>do</strong> o sofrimento de Jesus para representar<br />

as agressões sofridas pelos homossexuais. O estranho é que para um grupo<br />

que geralmente defende o inclusivismo e cujo discurso é marca<strong>do</strong> pelo clamor<br />

pela tolerância, a atitude <strong>do</strong>s ativistas homossexuais foi, no mínimo, ofensiva e<br />

desrespeitosa em relação àqueles cujos valores morais e crenças são diferentes.<br />

Deve se considerar ainda que, como fonte lucrativa, “tamanha é a força<br />

das paradas que elas passaram a atrair políticos e artistas, to<strong>do</strong>s de olho no<br />

poder eleitoral e de consumo da comunidade gay, estimada em cerca de 10%<br />

da população mundial segun<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s demográficos”. 21 Por<br />

essa razão, o comércio foi ágil em explorar o fato de que, devi<strong>do</strong> à ausência<br />

de despesas com filhos, por exemplo, o segmento homossexual da sociedade<br />

possui melhores condições de investir em lazer, instrução, moda e outros<br />

serviços mais caros e de melhor qualidade. Logo, as “paradas” se tornaram<br />

um grande negócio e uma boa oportunidade para autoexposição <strong>do</strong> comércio<br />

local. No geral, o faturamento comercial com o universo homossexual é tão<br />

significativo que ele também se estende a outros estabelecimentos sem conexão<br />

direta com o movimento. Segun<strong>do</strong> Camila, “no shopping center, na academia<br />

de ginástica, no bar, no restaurante, na fila <strong>do</strong> cinema, na galeria de arte, na<br />

livraria, na danceteria, os gays parecem estar em toda parte”. 22 Certamente as<br />

manifestações populares e as investidas econômicas contribuíram para maior<br />

aceitação <strong>do</strong> comportamento homossexual na sociedade brasileira.<br />

Finalmente, o processo de normalização social da homossexualidade se<br />

utilizou também <strong>do</strong>s caminhos da política nacional. Aliás, Douglas Borges e<br />

Wilson H. Silva remontam a origem <strong>do</strong> movimento homossexual à atuação<br />

<strong>do</strong>s militantes políticos cria<strong>do</strong>res da Facção Homossexual da Convergência<br />

Socialista, que foi aliada ao Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res (PT) e posteriormente<br />

21 Ibid.<br />

22 Ibid.<br />

77


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

ao Parti<strong>do</strong> Socialista <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res Unifica<strong>do</strong>s (PSTU). Borges e Silva<br />

lamentam que o movimento atual tenha se distancia<strong>do</strong> das agremiações políticas<br />

e se vincula<strong>do</strong> a organizações não governamentais. 23 Porém, esse distanciamento<br />

não significa que os ativistas homossexuais aban<strong>do</strong>naram os círculos<br />

políticos. A estratégia de atuação atual <strong>do</strong>s defensores da homossexualidade<br />

apenas revela que eles optaram pela liberdade de ação sem o comprometimento<br />

com uma única ideologia partidária. Nesse senti<strong>do</strong>, a versão contemporânea<br />

<strong>do</strong>s militantes homossexuais se organizou em pequenos grupos e atingiu a<br />

estrutura de uma organização nacional. Por exemplo, o Grupo Gay da Bahia<br />

(GGB), por meio das participações de seu presidente Luiz Mott, certamente tem<br />

si<strong>do</strong> a entidade mais influente em prol da popularização das reinvindicações<br />

homossexuais no Brasil. Mas a militância homossexual somente obteve força<br />

nacional por meio da Associação Brasileira de Gays, Bissexuais, Lésbicas e<br />

Travestis (ABGLT), uma rede nacional de 308 organizações afiliadas (até o<br />

presente). 24<br />

A descrição <strong>do</strong>s objetivos dessas organizações revela uma agenda comprometida<br />

não apenas com reivindicações <strong>do</strong>s direitos homossexuais, mas<br />

inclui também a propagação de sua ideologia. Nesse senti<strong>do</strong>, Peter Jones<br />

parece acertar quan<strong>do</strong> sugere que a meta <strong>do</strong> movimento homossexual não é<br />

tanto a inclusão na sociedade, mas a redefinição profunda da sociedade. 25 O<br />

cronograma estabeleci<strong>do</strong> por essas associações em relação à homossexualidade<br />

é tão audacioso que não seria exagero inferir que ele inclui sua aceitação pública,<br />

seu reconhecimento legal, sua normalização social e a percepção cultural<br />

de sua necessidade.<br />

As conquistas políticas <strong>do</strong>s homossexuais no Brasil continuam em processo<br />

acelera<strong>do</strong> nos últimos anos. Em <strong>20</strong>03, Camila Antunes ressaltava que mesmo<br />

a legislação brasileira não sen<strong>do</strong> das mais “avançadas”, os homossexuais<br />

podiam se alegrar com algumas vitórias obtidas. Naquela ocasião ela fazia<br />

referência ao direito de pensão a viúvos e viúvas de homossexuais, bem como a<br />

concessão da guarda de crianças a casais homossexuais. 26 Atualmente, o quadro<br />

de privilégios legais <strong>do</strong>s homossexuais é bem mais significativo. Por exemplo,<br />

a despeito de o Código Civil afirmar que a família consiste tão somente da<br />

união de “homem” e “mulher”, o Supremo Tribunal Federal decidiu reconhecer<br />

legalmente a união civil homoafetiva em <strong>20</strong>11. A partir dessa decisão o casal<br />

homossexual pode pedir o reconhecimento da união civil em cartório, ou juridicamente<br />

comprovar a união estável a fim de usufruir <strong>do</strong>s direitos comuns a<br />

23 BORGES, Douglas; SILVA, Wilson H. Apresentação. In: OKITA, Hiro. Homossexualidade: da<br />

opressão à libertação. São Paulo: Sundermann, <strong>20</strong>07, p. 7-13.<br />

24 Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/index.php. Acesso em: 27 out. <strong>20</strong>15.<br />

25 JONES, O deus <strong>do</strong> sexo, p. 50.<br />

26 ANTUNES, A força <strong>do</strong> arco-íris, p. 78.<br />

78


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

casais heterossexuais, contan<strong>do</strong>, inclusive, com o direito à a<strong>do</strong>ção de crianças.<br />

Por semelhante mo<strong>do</strong>, o Ministério da Educação promoveu, em <strong>20</strong>06, diversos<br />

cursos para professores <strong>do</strong> ensino fundamental destina<strong>do</strong>s a disseminar que<br />

“ser gay é ok”. Dessa maneira, a divulgação da agenda homossexual passava<br />

a ter o selo da aprovação e a contribuição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O problema é que o Esta<strong>do</strong><br />

opera a partir da contribuição e impostos de to<strong>do</strong>s os segmentos sociais,<br />

inclusive aqueles que discordam da superproteção aos homossexuais.<br />

A maior polêmica em relação aos avanços políticos obti<strong>do</strong>s pelos homossexuais<br />

na sociedade brasileira ainda é o Projeto de Lei 5003/<strong>20</strong>01, que<br />

mais tarde veio se tornar o Projeto de Lei da Câmara 122/<strong>20</strong>06, popularmente<br />

conheci<strong>do</strong> como PL 122. Produzi<strong>do</strong> a partir das contribuições da ABGLT e de<br />

autoria da deputada Iara Bernardi, o PL 122 objetiva proteger os homossexuais<br />

contra manifestações violentas e criminosas, bem como resguardar os seus direitos<br />

de cidadania. Dessa forma, o projeto parece merece<strong>do</strong>r da compreensão<br />

e respeito de to<strong>do</strong>s. Porém, por meio de uma manobra desastrosa o projeto<br />

incorpora e altera a redação da lei brasileira antidiscriminaçao (Lei n o 7.716,<br />

de 5 de janeiro de 1989). Dessa forma, o PL 122 torna crime qualquer discriminação<br />

por “orientação sexual” e “identidade de gênero”, equiparan<strong>do</strong> essa<br />

atitude à discriminação de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexo<br />

e gênero, fican<strong>do</strong> o autor <strong>do</strong> crime sujeito a pena, reclusão e multa. 27 A associação<br />

entre o PL 122 e a lei antidiscriminação é o que causa o maior desastre,<br />

pois com isso o projeto acaba conceden<strong>do</strong> à homossexualidade o status de raça,<br />

estabelecen<strong>do</strong> uma nova etnia (a etnia homossexual). Em sua atual redação, o<br />

PL 122, que representa um esforço daqueles que lutam contra a discriminação,<br />

passa a incriminar to<strong>do</strong>s que discordarem da homossexualidade tornan<strong>do</strong>-os<br />

homofóbicos e passíveis de <strong>do</strong>is a cinco anos de reclusão. O irônico é observar<br />

que outros estatutos legais de proteção a minorias (i<strong>do</strong>sos, crianças, indígenas,<br />

deficientes, etc.) não concedem semelhantes privilégios aos seus protegi<strong>do</strong>s.<br />

Por essa razão, o PL 122 tem si<strong>do</strong> popularmente critica<strong>do</strong> como um “projeto<br />

heterofóbico” e um <strong>do</strong>cumento que busca não somente a igualdade de direitos,<br />

mas o estabelecimento de direitos exclusivos para os homossexuais, ou seja,<br />

direitos que nenhum outro cidadão brasileiro possui. Caso aprova<strong>do</strong> com a<br />

redação presente, o PL 122 tornaria os homossexuais a minoria mais “superprotegida”<br />

em solo brasileiro. Qualquer observa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> cenário de debates em<br />

relação ao PL 122 não pode deixar de questionar algumas motivações políticas<br />

em prol de sua aprovação, pois os homossexuais no Brasil representam não<br />

apenas lucro para o comércio, mas também votos!<br />

Os efeitos imediatos <strong>do</strong>s esforços em prol da aceitação social da homossexualidade<br />

no Brasil podem ser vistos a partir <strong>do</strong> artigo de Silvia Rogar e<br />

27 Informações disponíveis em: http://www.plc122.com.br/entenda-plc122/pl-122-lei-homofobia/<br />

#axzz1T8krYlXx. Acesso em: 25 jul. <strong>20</strong>11.<br />

79


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

Marcelo Bortoloti sobre os a<strong>do</strong>lescentes, ou seja, “a geração tolerância”. De<br />

acor<strong>do</strong> com os articulistas, para os a<strong>do</strong>lescentes “a homossexualidade está<br />

longe de ter a conotação negativa de tantos outros perío<strong>do</strong>s da história”. 28 O<br />

fato é que os jovens se arriscam a optar por um comportamento homossexual<br />

cada vez mais precocemente. O pastor luterano Emil A. Sobottka corretamente<br />

lembra que os movimentos homossexuais<br />

tentam envolver gradativamente as pessoas ao seu re<strong>do</strong>r. Nem sempre têm o<br />

objetivo claro de fazer as pessoas aderirem ativamente a uma nova forma de<br />

hábitos sexuais, mas pretendem mudar o saber quotidiano de sua sociedade sobre<br />

a sexualidade. E para isso atuam nos diversos meios que alimentam o saber<br />

das pessoas: nos fóruns políticos e acadêmicos, nas várias áreas de expressão<br />

cultural, nos veículos influentes da opinião pública. 29<br />

Como resulta<strong>do</strong> dessa atuação, o que antes era rejeita<strong>do</strong> na sociedade<br />

brasileira é hoje celebra<strong>do</strong> por muitos.<br />

2. confusão religiosa<br />

No Ocidente, uma das instituições que ainda se mostram relutantes em<br />

reconhecer a legitimidade <strong>do</strong> comportamento homossexual é a igreja cristã. Por<br />

acreditarem que o homossexualismo é incompatível com o ensinamento das<br />

Escrituras, católicos e evangélicos geralmente se recusam a aprovar essa opção<br />

sexual. Contu<strong>do</strong>, já não se pode mais afirmar que os cristãos são unânimes a esse<br />

respeito. Os últimos anos têm si<strong>do</strong> marca<strong>do</strong>s por intensos esforços em prol da<br />

desconstrução da interpretação cristã tradicional <strong>do</strong>s textos bíblicos que condenam<br />

a prática homossexual, bem como <strong>do</strong> estabelecimento de novas formulações<br />

teológicas que sancionam esse comportamento. Consequentemente, o cenário<br />

religioso ocidental se encontra marca<strong>do</strong> por movimentos de reacomodação<br />

das crenças e posicionamentos cristãos históricos, bem como pelo surgimento<br />

de diferentes igrejas inclusivas voltadas para o público homossexual e seus<br />

simpatizantes. Essas comunidades geralmente celebram a homossexualidade<br />

como <strong>do</strong>m divino e não veem qualquer contradição entre a prática homossexual<br />

e a fé cristã. 30<br />

Uma breve análise temática da atitude cristã em relação ao homossexualismo<br />

ao longo da história pode ser categorizada em três subtópicos<br />

principais: aversão, omissão e compaixão. Não seria correto identificar cada<br />

28 ROGAR, Silvia; BORTOLOTI, Marcelo. A geração tolerância. Veja, 12 de maio de <strong>20</strong>10. Disponível<br />

em: http://veja.abril.com.br/1<strong>20</strong>510/geracao-tolerancia-p-106.shtml. Acesso em: 25 jul. <strong>20</strong>11.<br />

29 SOBOTTKA, Emil A. A lógica <strong>do</strong>s movimentos homossexuais e a igreja. In: WEINGAERTNER,<br />

Martin (Org.). Igreja e homossexualismo. Curitiba, PR: Encontro Publicações, <strong>20</strong>00, p. 41.<br />

30 Maiores informações podem ser encontradas na obra de Joe Dallas, um ex-ativista e praticante<br />

homossexual. Cf. DALLAS, Joe. A operação <strong>do</strong> erro: o movimento gay cristão. São Paulo: Cultura<br />

Cristã, 1998.<br />

80


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

uma dessas atitudes com um perío<strong>do</strong> específico da história da igreja, pois elas<br />

foram concomitantemente exercidas em diferentes épocas e varia<strong>do</strong>s contextos<br />

geográficos. Por outro la<strong>do</strong>, é verdade que em alguns momentos uma ou outra<br />

dessas condutas se tornou mais evidente.<br />

A aversão de alguns cristãos, os erros preconceituosos e até violentos em<br />

relação aos homossexuais são naturalmente explora<strong>do</strong>s pelos defensores da<br />

homoafetividade. 31 As pesquisa<strong>do</strong>ras Maria D. Campos Macha<strong>do</strong> e Fernanda D.<br />

Piccolo lembram que essa atitude, inclusive, foi retratada em uma das novelas<br />

brasileiras na qual um personagem evangélico “demonstrava grande intolerância<br />

com os homossexuais e chegou a agredir fisicamente um casal de gays em um<br />

<strong>do</strong>s capítulos”. 32 O posicionamento de repulsa por parte de alguns cristãos ao<br />

comportamento homoafetivo é também denunciada por Ival<strong>do</strong> Gitirana, que se<br />

apresenta como o pastor presidente da Comunidade Família Cristã Athos, uma<br />

igreja inclusiva, ao afirmar conhecer muitos que foram oprimi<strong>do</strong>s e execra<strong>do</strong>s<br />

em igrejas cristãs. 33 O próprio Joe Dallas, conquanto reprove o movimento<br />

homossexual nos círculos evangélicos, condena a atitude de muitos líderes<br />

cristãos que preferem atacar o caráter <strong>do</strong>s homossexuais e criar uma caricatura<br />

extremista deles ao invés de lhes apresentar a mensagem real <strong>do</strong> evangelho. 34<br />

O fato é que alguns cristãos, movi<strong>do</strong>s por zelo desprovi<strong>do</strong> de entendimento<br />

e compaixão, acabaram elegen<strong>do</strong> a prática homossexual como o “peca<strong>do</strong><br />

imper<strong>do</strong>ável”. No entanto, as Escrituras deixam claro que o “peca<strong>do</strong> imper<strong>do</strong>ável”<br />

é a blasfêmia contra o Espírito Santo (cf. Mc 3.28-29). Além <strong>do</strong> mais,<br />

o apóstolo Paulo faz referência a alguns membros da igreja de Corinto que<br />

antes da conversão haviam si<strong>do</strong> efemina<strong>do</strong>s e so<strong>do</strong>mitas, mas foram lava<strong>do</strong>s,<br />

santifica<strong>do</strong>s e justifica<strong>do</strong>s em o nome <strong>do</strong> Senhor Jesus (cf. 1Co 6.9-11). Logo,<br />

a odiosidade ao homossexual acaba sen<strong>do</strong> fruto de uma leitura defeituosa <strong>do</strong>s<br />

ensinamentos bíblicos.<br />

Com respeito à omissão cristã em relação à homossexualidade, ela ocorre<br />

por meio de <strong>do</strong>is fatores antagônicos: a passividade na acomodação cultural<br />

e a falta de participação em projetos que visam o auxílio, a conversão e a<br />

31 Cf. MOTT, Luiz. O sexo proibi<strong>do</strong>: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição. Campinas:<br />

Papirus, 1988; também, Nefan<strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s: a perseguição aos homossexuais mostrada em processos<br />

movi<strong>do</strong>s pela Inquisição e o culto ao machismo são comuns no Brasil desde os tempos da colônia. Nossa<br />

História 8 (junho <strong>20</strong>04): 28-32.<br />

32 A referência é a um personagem da telenovela Duas Caras, transmitida no primeiro semestre<br />

de <strong>20</strong>08 em horário nobre na Globo. Cf. MACHADO, Maria das Dores Campos et al. Introdução. In:<br />

MACHADO, Maria D. C.; PICCOLO, Fernanda D. (Orgs.). Religiões e homossexualidade. Rio de<br />

Janeiro: Editora FGV, <strong>20</strong>10, p. 25.<br />

33 GITIRANA, Ival<strong>do</strong>. Prefácio. In: FEITOSA, Alexandre. Bíblia e homossexualidade: verdades<br />

e mitos. Rio de Janeiro: Metanoia, <strong>20</strong>10, p. 7.<br />

34 DALLAS, Joe. A operação <strong>do</strong> erro: o movimento gay cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 1998,<br />

p. 227-232.<br />

81


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

restauração de homossexuais. Joe Dallas faz referência a alguns líderes que se<br />

recusam até mesmo a discutir a questão homossexual por acreditar que esse<br />

assunto logo cairá no esquecimento. No entanto, ele lembra que se a influência<br />

da igreja como sal da terra e luz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> fica enfraquecida, tanto a igreja como<br />

a cultura na qual ela se encontra sofrem as consequências. 35 Talvez seja por<br />

essa razão que em um perío<strong>do</strong> tão curto de tempo a homossexualidade, antes<br />

praticamente concebida como peca<strong>do</strong> ou desvio moral, recebe hoje o status de<br />

opção sexual normal, merece<strong>do</strong>ra de proteção legal e divulgação pública. Em<br />

uma de suas reflexões sobre o assunto, o pastor cristão José Rude Walzburger<br />

admite: “Como pastor, muitas vezes me pergunto se não ‘passo ao largo’, como<br />

o fizeram o sacer<strong>do</strong>te e o levita na parábola <strong>do</strong> bom samaritano”. 36<br />

Há que se observar ainda a omissão expressa na falta de auxílio àqueles<br />

que dedicam tempo e talento no auxílio e evangelização de homossexuais.<br />

Uma das reclamações comuns <strong>do</strong>s grupos cristãos que atuam nesse ministério<br />

é exatamente a indiferença de grande parte da liderança eclesiástica em relação<br />

a esse trabalho. João L. Santolin, coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> MOSES – Movimento pela<br />

Sexualidade Sadia –, afirma que “a discriminação e rejeição de alguns líderes<br />

fecharam a porta a qualquer possibilidade de diálogo com homossexuais que<br />

buscam ajuda”. 37 Além <strong>do</strong> mais, há até algumas críticas veladas no meio cristão<br />

àqueles que se dedicam ao ministério de evangelização de homossexuais.<br />

Certamente essa atitude também possui raízes no desconhecimento <strong>do</strong>s princípios<br />

bíblicos.<br />

Mais recentemente, o cristianismo mundial, e a igreja evangélica brasileira<br />

em particular, manifesta alguns sinais de mudança no seu comportamento em<br />

relação aos homossexuais. Pode-se afirmar que, em alguns casos mais recentes,<br />

a característica cristã marcante em relação a eles é de compaixão. Exemplos a<br />

esse respeito podem ser encontra<strong>do</strong>s no trabalho de instituições cristãs como<br />

Exodus Brasil, Abraceh, MOSES, Ministério Hesed e outros. Pode-se dizer<br />

que ainda há um longo caminho a ser percorri<strong>do</strong>, mas alguns passos firmes já<br />

estão sen<strong>do</strong> toma<strong>do</strong>s nessa direção.<br />

Se a atitude <strong>do</strong>s cristãos em relação aos homossexuais expressa sinais de<br />

mudanças que vão da aversão à compaixão, o posicionamento e atitude <strong>do</strong>s<br />

homossexuais em relação aos cristãos também mu<strong>do</strong>u. De forma mais óbvia,<br />

os homossexuais mudaram de persegui<strong>do</strong>s a praticamente persegui<strong>do</strong>res, visto<br />

que a pressão por eles imposta sobre a igreja cristã pode ser tão intensa que<br />

35 Ibid., p. 34 e 43.<br />

36 WALZBURGER, José Rude. Experiências no aconselhamento pastoral. In: WEINGAERTNER,<br />

Martin (Org.). Igreja e homossexualismo. Curitiba, PR: Encontro Publicações, <strong>20</strong>00, p. 49.<br />

37 SANTOLIN, João L. A igreja e os homossexuais: da omissão à compaixão. <strong>Revista</strong> Cristã 16<br />

(junho <strong>20</strong>03), s.p., e JUSTINO, Rozangela Alves. Os movimentos pró-gay e neonazista. Ultimato (set.-out.<br />

<strong>20</strong>03): 32-34.<br />

82


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

mais parece uma perseguição. Os cristãos são frequentemente acusa<strong>do</strong>s de<br />

homofobia – sentimento de repugnância ao homossexualismo. Os militantes<br />

pró-gays insistem em que a intolerância anti-homossexual tem suas raízes<br />

alicerçadas quase que somente na tradição judaico-cristã. 38 Além <strong>do</strong> mais, a<br />

igreja é denunciada como a principal responsável por obrigar os homossexuais<br />

a viver na clandestinidade. 39 Há, inclusive, vários casos de indiciamento de<br />

algumas pessoas físicas e jurídicas de convicção cristã que trabalham com a<br />

evangelização <strong>do</strong>s homossexuais. 40<br />

A atitude <strong>do</strong>s homossexuais para com os cristãos não consiste apenas<br />

nas estratégias de pressão social e política, mas também inclui a confrontação<br />

filosófica e teológica. Sob a premissa de que se pode fazer uma síntese de<br />

homossexualismo e cristianismo, ativistas homossexuais e alguns religiosos<br />

se agruparam, organizaram denominações e desenvolveram uma teologia: a<br />

“teologia gay”. 41 Diante <strong>do</strong>s argumentos religiosos pró-homossexuais, alguns<br />

cristãos, em um esforço de se apresentarem compreensivos, tolerantes, amorosos<br />

e livres de preconceitos, passaram a reconhecer e até defender a homossexualidade<br />

como uma opção individual. Observan<strong>do</strong> essa nova inclinação<br />

da igreja, Joe Dallas adverte: “Há uma tendência estranha infiltran<strong>do</strong>-se na<br />

igreja: a ‘simpatia’ está ten<strong>do</strong> precedência sobre a verdade”. 42 Nem mesmo o<br />

pentecostalismo, considera<strong>do</strong> um ramo conserva<strong>do</strong>r <strong>do</strong> cristianismo protestante,<br />

deixou de ser influencia<strong>do</strong> por essa propensão. 43 O pre<strong>do</strong>mínio da teologia gay<br />

nos círculos cristãos é suficiente para justificar um estu<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong><br />

sobre esse assunto no futuro.<br />

A teologia gay tornou-se uma força propulsora na confrontação religiosa<br />

<strong>do</strong>s homossexuais ao cristianismo. Ela apresenta algumas variantes, mas parece<br />

estar sistematizada ao re<strong>do</strong>r de três argumentos principais: o hermenêutico, o<br />

teológico e o ético. Dentre os seus representantes mais influentes se encontram<br />

John Boswell, 44 Robin Scoogs, 45 John J. McNeill, 46 Jeff Miner e John Tyler<br />

38 Cf. MOTT, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988.<br />

39 MOTT, Nefan<strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s, p. 30.<br />

40 Cf. FAGGION, Parada dura, p. 42-49.<br />

41 DALLAS, A operação <strong>do</strong> erro, p. 84-113.<br />

42 Ibid., p. 161.<br />

43 Cf. NATIVIDADE, Marcelo. Carreiras homossexuais no contexto <strong>do</strong> pentecostalismo: dilemas<br />

e soluções. Religião e Sociedade 23 (julho <strong>20</strong>03): 132-152.<br />

44 BOSWELL, John. Christianity, Social Tolerance and Homosexuality. Chicago: University of<br />

Chicago Press, 1980.<br />

45 SCOOGS, Robin. The New Testament and Homosexuality. Filadélfia: Fortress Press, 1983.<br />

46 McNEILL, John J. The Church and the Homosexual. Boston: Beacon Press, 1988, e Taking a<br />

Chance on God: Liberating theology for gays, lesbians, and their lovers, families, and friends. Boston:<br />

Beacon Press, 1996.<br />

83


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

Cannoley, 47 Daniel A. Helminiak 48 e outros. No Brasil, alguns postula<strong>do</strong>s da<br />

teologia gay são especialmente propaga<strong>do</strong>s pelo antropólogo Luiz Mott. 49 No<br />

que diz respeito à importância dessa teologia para o movimento pró-homossexual,<br />

tem-se afirma<strong>do</strong> que ela representa para este o mesmo que os cre<strong>do</strong>s<br />

de Atanásio e Nicéia representam para as principais confissões protestantes. 50<br />

A compreensão <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s da teologia gay implica na atenção à<br />

premissa básica de cada um deles. Com respeito ao argumento hermenêutico,<br />

a principal tese defendida pelos teólogos <strong>do</strong> homossexualismo é que a Bíblia,<br />

quan<strong>do</strong> corretamente traduzida e interpretada, não condena a homossexualidade,<br />

mas apenas os abusos ocorri<strong>do</strong>s nessa área. 51 Assim como ocorre com<br />

outros desvios <strong>do</strong>utrinários, essa abordagem está relacionada com a autoridade<br />

e a interpretação das Escrituras. Como um estu<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong> demonstra,<br />

ao invés de as pressuposições teológicas emanarem de uma interpretação<br />

sólida, a leitura da Bíblia é moldada pelos pressupostos <strong>do</strong>s defensores dessa<br />

teologia. A questão, portanto, é fundamentalmente hermenêutica. Isso leva<br />

alguns oponentes dessa teologia a lamentarem o fato de que “os homossexuais<br />

e seus defensores têm cometi<strong>do</strong> uma tremenda injustiça contra alguns personagens<br />

bíblicos... Eles mancham o nome e o caráter de alguns <strong>do</strong>s mais notáveis<br />

vultos da história bíblica, ora com maliciosas sugestões ora com declarações<br />

absurdas”. 52 Dessa forma, a acomodação cristã <strong>do</strong> homossexualismo exige a<br />

relativização das verdades bíblicas e, por fim, o aban<strong>do</strong>no da crença na inspiração<br />

e autoridade da Escritura.<br />

Além da proposta de uma releitura hermenêutica da Bíblia, os teólogos<br />

pró-homossexualidade ainda apresentam um argumento religioso fundamentalmente<br />

alicerça<strong>do</strong> na teoria da causalidade inata. De acor<strong>do</strong> com essa perspectiva,<br />

o próprio Deus teria cria<strong>do</strong> as pessoas com inclinações e interesses<br />

homossexuais e, portanto, o homossexualismo é um <strong>do</strong>m divino que deve ser<br />

celebra<strong>do</strong>. O escritor e pastor homossexual Mel White, por exemplo, descreveu<br />

47 MINER, Jeff; CANNOLEY, John Tyler. The Children Are Free: reexamining the biblical evidence<br />

on same-sex relations. Indiana: Jesus Metropolitan Community Church, <strong>20</strong>02.<br />

48 HELMINIAK, Daniel A. What the Bible Really Says About Homosexuality. San Francisco:<br />

Alamo Square Press, 1994.<br />

49 Apud SANTOLIN, João L.; VIULA, Sérgio; SEVERO, Marcos. Teologia gay. Defesa da Fé<br />

(maio <strong>20</strong>00): 47-57, p. 47; Romual<strong>do</strong>, F. Deus, Bíblia e homossexualidade. Disponível em: http://<br />

sites.uol.com.br/homossexualide. Acesso em: 12 fev. <strong>20</strong>04.<br />

50 DALLAS, A operação <strong>do</strong> erro, p. 106.<br />

51 PERRY, Troy. Don’t Be Afraid Anymore. Nova York: St. Martin’s Press, 1990, p. 39; WHITE,<br />

Mel. Stranger at the Gate. Nova York: Simon and Schuster, 1994; SCOOGS, Robin. The New Testament<br />

and Homosexuality. Filadélfia: Fortress Press, 1983; KIRK, Marshall; MADSEN, Hunter. After the Ball:<br />

How America will conquer its fear of gays in the 90s. Nova York: Doubleday, 1989.<br />

52 CÉSAR, Elben M. Lenz. A Bíblia não é um “closet vazio” a respeito da homossexualidade.<br />

Ultimato n o 284 (set.-out. <strong>20</strong>03), p. 25.<br />

84


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

sua primeira experiência homossexual como uma dádiva de Deus. 53 Assim, o<br />

homossexualismo não é interpreta<strong>do</strong> como uma opção comportamental, mas<br />

como uma imposição biológica, uma característica fundamental à humanidade<br />

de algumas pessoas. A expressão homossexual, portanto, deve ser vista<br />

como algo totalmente coerente com a natureza dessas pessoas. No esforço<br />

de comprovar essa tese, os defensores da teologia homossexual recorrem ao<br />

cientificismo e a diversas teorias da existência <strong>do</strong> gene gay.<br />

No que diz respeito ao argumento ético, os teólogos homossexuais afirmam<br />

que o amor homoerótico monogâmico é poderoso o bastante para legitimar<br />

a prática homossexual. A força desse argumento pode ser exemplificada na<br />

observação <strong>do</strong> jornalista Sérgio Gwercman: “Se você entende o casamento<br />

como a união de <strong>do</strong>is pombinhos que <strong>do</strong>rmem na mesma cama todas as noites,<br />

se amam, dividem as contas, são fiéis, moram sob o mesmo teto, brigam com<br />

certa regularidade para depois fazerem as pazes, então o casamento gay já<br />

existe”. 54 Por meio de um estu<strong>do</strong> de caso envolven<strong>do</strong> o homossexualismo e a<br />

religiosidade, Marcelo Natividade concluiu que, para alguns religiosos, o maior<br />

problema da homossexualidade é “a dificuldade de encontrar um parceiro<br />

sincero e fiel”. 55 Isso ilustra o fato de que para muitos, inclusive em círculos<br />

cristãos, um relacionamento estável é considera<strong>do</strong> como uma evidência da<br />

bênção de Deus. Assim, a teologia gay interpreta o amor homoerótico como<br />

um fator de legitimação da prática homossexual.<br />

Há que se notar ainda que, devi<strong>do</strong> à sua frágil realidade teológica, a<br />

igreja evangélica brasileira é, frequentemente, vítima de várias incursões de<br />

modismos em seu meio. Como no caso de outros povos latino-americanos, o<br />

brasileiro gravita ao re<strong>do</strong>r da cultura norte-americana e facilmente importa as<br />

novas ondas culturais e religiosas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Além <strong>do</strong> mais, o avanço<br />

da globalização e a influência da mídia reduziram o mun<strong>do</strong> a uma aldeia e as<br />

novas correntes teológicas são facilmente incorporadas à agenda de discussões<br />

religiosas <strong>do</strong> brasileiro. Dessa forma, não é de se estranhar que os argumentos<br />

de vários defensores da aprovação social <strong>do</strong> homossexualismo no Brasil reflitam<br />

os pressupostos da teologia pró-homossexual especialmente sistematizada por<br />

teólogos de outros países.<br />

Também, o fato de grande parte da argumentação teológica pró-homossexual<br />

vigente no Brasil ainda ser produto de importação não impede o crescente<br />

interesse e abertura a esses postula<strong>do</strong>s, inclusive por parte de alguns representantes<br />

<strong>do</strong> protestantismo histórico. Um claro exemplo disso ocorreu durante as<br />

palestras da teóloga Marcella Althaus-Reid a convite da Universidade Metodista<br />

53 White, Stranger at the Gate, p. 132-133.<br />

54 Gwercman, Sérgio. Casamento gay. Super Interessante <strong>20</strong>2 (julho <strong>20</strong>04), p. 49.<br />

55 NATIVIDADE, Carreiras homossexuais, p. 133.<br />

85


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

de São Paulo. Naquela ocasião, a palestrante expôs a tese de seu livro Indecent<br />

Theology (Teologia indecente), 56 no qual ela contesta a teologia heterossexual<br />

da Bíblia. Além <strong>do</strong> mais, ao refletirem sobre os avanços da teologia gay no<br />

Brasil, João Luiz Santolin e Sergio Viula demonstram como até os escritos de<br />

militantes gays não-cristãos refletem os argumentos teológicos encontra<strong>do</strong>s<br />

nas obras de John Boswell, John McNeill e Daniel A. Helminiak. 57<br />

Não bastasse a confusão gerada pela apresentação de seus argumentos nem<br />

os ataques à fé cristã histórica, os defensores da teologia gay ainda podem tirar<br />

proveito da contribuição involuntária da igreja evangélica contemporânea. Em<br />

alguns círculos evangélicos, o homossexualismo é simplesmente “percebi<strong>do</strong><br />

como uma intervenção <strong>do</strong> maligno sobre a vida <strong>do</strong> indivíduo”. 58 Nesses casos,<br />

a única ação terapêutica a ser tomada é o exorcismo nos cultos específicos<br />

de libertação. Outros exemplos de equívocos como esses poderiam ser multiplica<strong>do</strong>s,<br />

mas o fato é que a igreja brasileira, em várias ocasiões, se revela<br />

despreparada para lidar com os assuntos relaciona<strong>do</strong>s à prática homossexual.<br />

Sempre que a igreja confessa crer na possibilidade <strong>do</strong> perdão para qualquer<br />

peca<strong>do</strong>, mas demonstra, na prática, desacreditar da possibilidade da restauração<br />

<strong>do</strong>s homossexuais, ela oferece uma grande contribuição aos teólogos e ativistas<br />

gays. Os membros de igrejas que lutam contra tendências homossexuais são<br />

prontamente arrebanha<strong>do</strong>s pelo movimento gay cristão mediante a apresentação<br />

de suas supostas bases bíblicas para a prática homoafetiva. 59 Em consequência,<br />

aumenta o número de denominações com princípios homossexuais e a pressão<br />

por mudanças nas constituições eclesiásticas ou princípios <strong>do</strong>utrinários das<br />

igrejas protestantes históricas é intensificada.<br />

Certamente, o tema homossexualidade continua a desafiar a igreja evangélica<br />

a elucidar sua posição teológico-ética sobre o assunto, bem como a aperfeiçoar<br />

sua prática pastoral e missiológica. A reação <strong>do</strong>s apologetas da posição<br />

tradicional cristã quanto ao assunto tem si<strong>do</strong> diversificada e, em alguns casos,<br />

até confusa. 60 Por exemplo, em um ensaio sobre igrejas e homossexualidade,<br />

56 ALTHAUS-REID, Marcella. Indecent Theology: Theological perversions in sex, gender and<br />

politics. Lon<strong>do</strong>n/New York: Routledge, <strong>20</strong>00.<br />

57 SANTOLIN, VIULA e SEVERO, Teologia gay, p. 47-57.<br />

58 NATIVIDADE, Carreiras homossexuais, p. 133.<br />

59 Um exemplo claro a esse respeito pode ser encontra<strong>do</strong> no relato biográfico <strong>do</strong> conferencista<br />

Joe Dallas em seu livro A Operação <strong>do</strong> Erro.<br />

60 DALLAS, A operação <strong>do</strong> erro; Pinto, Carlos Oswal<strong>do</strong>; Sayão, Luiz Alberto T. A questão<br />

<strong>do</strong> homossexualismo. Vox Scripturae (março 1995): 43-70; Drakeford, John W. A Christian View of<br />

Homosexuality. Nashville, TN: Baptist Sunday School Board, 1977; Bergler, Edmund. Homosexuality:<br />

disease or way of life? Nova York: Hill and Wang, 1956; Comiskey, <strong>Andrew</strong>. Pursuing Sexual Wholeness.<br />

Lake Mary, FL: Creation House, 1989; Castilho, Lísias N. Homossexualidade. São Paulo: ABU,<br />

1989; Stott, John R. W. Grandes questões sobre sexo. Niterói: Vinde, 1993, e Naves, Fernandes<br />

e Stefano, O arco-íris e a cruz.<br />

86


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

o teólogo luterano Gottfried Brakemeir propõe-se a fazer uma análise “balanceada”,<br />

mas conclui o seu trabalho defenden<strong>do</strong> a homossexualidade como<br />

uma orientação válida até mesmo para pessoas ordenadas ao ministério da<br />

Palavra. 61 Há que se notar também que a literatura conclaman<strong>do</strong> a igreja à sua<br />

responsabilidade evangelística em relação aos homossexuais é relativamente<br />

pequena. 62<br />

Em resumo, o panorama religioso com respeito à temática da homossexualidade<br />

continua revelan<strong>do</strong> confusão e desorientação. Certamente por<br />

isso, o debate social, acadêmico, político e religioso continuará fermentan<strong>do</strong><br />

reflexões futuras. 63<br />

3. ponderações preliminares para o cristianismo<br />

conserva<strong>do</strong>r<br />

De fato, uma análise diacrônica das últimas conquistas <strong>do</strong> movimento<br />

homoerótico evidencia que esse “fato social” (evocan<strong>do</strong> Durkheim) representa o<br />

vigor de uma revolução em atividade no mun<strong>do</strong> contemporâneo, especialmente<br />

no Ocidente. Em outras palavras, o que ocorre nesse contexto não é apenas uma<br />

“mudança”, mas uma intensa “revolução moral”. A diferença entre esses <strong>do</strong>is<br />

fenômenos é cuida<strong>do</strong>samente explicada por Albert Mohler da seguinte maneira:<br />

Mudança moral geralmente ocorre durante um longo perío<strong>do</strong> de tempo, de uma<br />

maneira consistente com os pilares morais estabeleci<strong>do</strong>s na cultura que a abriga.<br />

Todavia, a revolução moral apresenta o oposto exato desse padrão. Logo, o que<br />

experimentamos no momento não é o desenvolvimento lógico da influência <strong>do</strong><br />

cristianismo cultural sobre a sexualidade humana, mas o total repúdio desses<br />

princípios que estruturam a sociedade ocidental. 64<br />

Dessa maneira, qualquer instituição, crença ou indivíduos que representam<br />

obstáculos a esse movimento revolucionário é visto como um obstáculo a ser<br />

derrota<strong>do</strong>, removi<strong>do</strong> e oblitera<strong>do</strong>. O cristianismo conserva<strong>do</strong>r e bíblico é interpreta<strong>do</strong><br />

por esse movimento como um <strong>do</strong>s principais obstáculos a ser ataca<strong>do</strong>.<br />

61 BRAKEMEIR, Gottfried. Igrejas e homossexualidade: ensaio de um balanço. Disponível em:<br />

http://www.swbrazil. anglican.org/brakemeir.htm. Acesso em: 10 fev. <strong>20</strong>04.<br />

62 Dallas, Joe. Desires in Conflict. Eugene, OR: Harvest House, 1991; Howard, Jeanette.<br />

Out of Egypt. Tunbridge Wells, Inglaterra: Monarch, 1991; DAVIS, Bob; RENTZEL, Lori. Deixan<strong>do</strong> o<br />

homossexualismo. São Paulo: Mun<strong>do</strong> Cristão, 1993.<br />

63 Cf. PEREIRA, Fabiano. Religião e homossexualidade: O desafio da bênção religiosa sobre<br />

a união homoafetiva entre casais homossexuais que se declaram evangélicos. Trabalho de conclusão<br />

<strong>do</strong> curso de teologia, Universidade Metodista de São Paulo, novembro de <strong>20</strong>13; ALLBERRY, Sam. Is<br />

God Anti-Gay? And other questions about homosexuality, the Bible, and same-sex attraction. United<br />

King<strong>do</strong>m: The Good Book Company, <strong>20</strong>13.<br />

64 MOHLER, Albert. We Cannot Be Silent: speaking truth in a culture redefining sex, marriage,<br />

and the very meaning of right and wrong. Nashville, TN: Thomas Nelson, <strong>20</strong>15, p. 7.<br />

87


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

O esforço de refletir sobre as oscilações culturais relacionadas à homossexualidade<br />

pode ser um exercício alarmante e até desanima<strong>do</strong>r para o<br />

cristianismo conserva<strong>do</strong>r. Isso se deve principalmente ao fato de que a Bíblia,<br />

a revelação de Deus para o cristão, é hoje desprezada como fonte legítima de<br />

qualquer assunto, principalmente aqueles que dizem respeito às escolhas morais<br />

das pessoas. Todavia, algumas ponderações precisam ser feitas a fim de se<br />

recobrar os ânimos, exercer firmeza e compaixão, e ainda representar corretamente<br />

Aquele de quem o cristão é um embaixa<strong>do</strong>r no mun<strong>do</strong> atual (2Co 5.<strong>20</strong>).<br />

Primeiramente, é necessário lembrar que o cristianismo surgiu e floresceu<br />

em um ambiente antagônico aos seus pressupostos. Alguns cristãos parecem<br />

crer que o sucesso e continuidade <strong>do</strong> cristianismo depende de sua aceitação<br />

social e cultural. Todavia, isso nunca ocorreu. Desde o início da era cristã “a<br />

luz veio ao mun<strong>do</strong>, e os homens amaram mais as trevas <strong>do</strong> que a luz; porque<br />

as suas obras eram más” (Jo 3.19). Lembrar essa verdade é importante para<br />

prevenir o desânimo e o alarme diante de uma cultura que parece celebrar<br />

valores contrários àqueles ensina<strong>do</strong>s pelo cristianismo através <strong>do</strong>s séculos.<br />

Na verdade, o sucesso e avanço da fé cristã no mun<strong>do</strong> sempre foi e será um<br />

milagre divino.<br />

Dessa maneira, os avanços <strong>do</strong> movimento pró-gay não deveriam alarmar,<br />

assustar e nem desencorajar os cristãos a continuarem expressan<strong>do</strong> o posicionamento<br />

bíblico sobre o assunto. Certamente é necessário aprimorar a forma<br />

de se apresentar a verdade, ou seja, com amor (Ef 4.15), mas nunca se furtar de<br />

manter a verdade por causa <strong>do</strong> me<strong>do</strong> ou <strong>do</strong> temor da rejeição.<br />

Em segun<strong>do</strong> lugar, no debate cultural entre fé cristã e homossexualidade<br />

é preciso distinguir diferentes tipos de envolvimento pessoal com esse<br />

comportamento. Há aqueles que são ativistas políticos <strong>do</strong> movimento GLBT.<br />

Esses são dinâmicos em prol da “imposição” <strong>do</strong>s direitos da minoria a toda a<br />

sociedade, agin<strong>do</strong> ao ponto de desrespeitar quaisquer direitos daqueles que não<br />

concordam com eles. Os ativistas organizam passeatas, manipulam a influência<br />

midiática, atuam como lobistas em ambientes partidários e são criativos em<br />

recrutar a opinião social para sua causa. Esses defensores da comunidade gay<br />

geralmente são intolerantes em relação ao contraditório.<br />

Porém, nem to<strong>do</strong> homossexual é ativista. Há aqueles que praticam a homossexualidade<br />

sem levantar a “bandeira de um movimento”. Muitos desses<br />

se sentem seguros na comunidade homossexual porque é a única comunidade<br />

acolhe<strong>do</strong>ra que conhecem. Além <strong>do</strong> mais, há aqueles que se identificam<br />

como homossexuais por causa de suas raízes e laços relacionais com outros<br />

homossexuais. Nesse senti<strong>do</strong>, Rosaria C. Butterfield, uma ex-militante lésbica,<br />

convertida à fé cristã, relata o seu diálogo com alguém identifica<strong>do</strong> como “B”,<br />

que protestava pela mudança ocorrida na vida de sua amiga. Naquele momento,<br />

Rosária perguntou a “B” como ele sabia que era gay, ao que “B” respondeu:<br />

“Rosaria, eu sou gay porque a comunidade GLBT é o único lar seguro que<br />

88


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

tenho, um lar que você tornou seguro. Como você pode não saber disso?”. 65<br />

Dessa forma, nem to<strong>do</strong> praticante é um militante convicto.<br />

Além <strong>do</strong> mais, há aqueles que sofrem com os impulsos homossexuais,<br />

mas não se entregaram às suas práticas. Assim como um heterossexual pode<br />

ter impulsos sexuais pecaminosos que nunca serão atendi<strong>do</strong>s (adultério, fornicação,<br />

etc.), também é possível que muitos que sofrem com suas tendências<br />

homossexuais nunca cedam a elas. Essas pessoas devem ser alvos da compaixão<br />

cristã, antes que de condenação. Por outro la<strong>do</strong>, muitos podem ceder à prática<br />

não por convicções íntimas e refletidas, mas pelo próprio modismo que as<br />

circunda. O slogan “o mun<strong>do</strong> é gay” acaba influencian<strong>do</strong> alguns a pensarem<br />

e agirem como se o comportamento homossexual fosse não apenas aceitável,<br />

mas desejável. Nesse panorama, alguns jovens são incentiva<strong>do</strong>s a pensar que a<br />

experiência homossexual é a “moda <strong>do</strong> momento” e sem refletir profundamente<br />

sobre a veracidade dessa “onda”, acabam assumin<strong>do</strong> uma identidade em busca<br />

de aceitação. Por essa razão, alguns estu<strong>do</strong>s recentes focalizam especialmente<br />

na questão da “política de identidade” homossexual. 66<br />

Por fim, há aqueles que sofrem e se entristecem com o seu relacionamento<br />

familiar e afetivo com alguém na prática da homossexualidade. Pais e mães<br />

são especialmente afeta<strong>do</strong>s não apenas pelo comportamento de seus filhos,<br />

mas pelas acusações e depreciação aos seus filhos. O testemunho cristão a essas<br />

pessoas implica na encarnação da misericórdia de Cristo para com o que sofre<br />

e se angustia por alguém que ama.<br />

Em terceiro lugar, é mister considerar que o pior peca<strong>do</strong> <strong>do</strong> homossexual, assim<br />

como o <strong>do</strong> heterossexual, não é a imoralidade, mas a incredulidade. Qualquer<br />

pessoa se compromete com a imoralidade por causa de sua impiedade, ou seja, a<br />

incredulidade e rejeição aos padrões <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r. Quanto a isso é importante que<br />

os cristãos se recordem da história bíblica <strong>do</strong> profeta Jonas. Ao receber a ordem<br />

de Deus de ir e pregar à grande cidade de Nínive, o profeta se recusou e tentou<br />

fugir de Deus toman<strong>do</strong> um caminho oposto àquele que lhe fora ordena<strong>do</strong> (Jn 1).<br />

Aparentemente a recusa de Jonas se deveu ao fato de ele julgar os ninivitas<br />

imorais e violentos (Jn 4). O que o profeta não considerou foi que a imoralidade<br />

daquele povo era causada por sua incredulidade e não vice-versa. Assim, todas as<br />

vezes que tentamos impor ou defender normas morais divinas sem considerar a<br />

necessidade de conversão ou comunhão com Deus por parte daquele que haverá<br />

de obedecer tais normas, contrariamos os próprios desígnios divinos.<br />

Ainda a esse respeito, a história de Rosária é profundamente ilustrativa.<br />

Mesmo em seu comprometimento com o lesbianismo, inclusive compartilhan<strong>do</strong><br />

65 BUTTERFIELD, Rosária C. Pensamentos secretos de uma convertida improvável. Brasília:<br />

Editora Monergismo, <strong>20</strong>13, p. 87.<br />

66 BULK, Denny; LAMBERT, Heath. Transforming Homosexuality. Phillipsburg, NJ: P&R<br />

Publishing, <strong>20</strong>15.<br />

89


Valdeci Santos, Homossexualidade: da Repressão à Celebração<br />

a vida com uma parceira, Rosária não se via como cometen<strong>do</strong> qualquer<br />

ato imoral. Em sua perspectiva, ser moral era ser honesta e ela estava sen<strong>do</strong><br />

coerente com suas crenças e práticas. 67 Somente quan<strong>do</strong> compreendeu que o<br />

seu problema principal era a incredulidade e rebeldia foi que Rosaria viu sua<br />

necessidade de arrependimento, ou seja, a mudança <strong>do</strong> seu habitus, o estilo<br />

de vida, hábitos da mente, <strong>do</strong> coração e <strong>do</strong> espírito. 68 To<strong>do</strong> cristão verdadeiro<br />

deve se lembrar de que há uma diferença entre compartilhar o evangelho com<br />

os perdi<strong>do</strong>s e procurar impor um padrão moral bíblico sobre inconversos.<br />

Em quarto lugar, aqueles cristãos que são tenta<strong>do</strong>s a ceder às pressões<br />

culturais, muitas vezes imaginan<strong>do</strong> ser essa uma luta inglória ou até mesmo<br />

que a normalização equivale à aceitação, devem considerar que a rendição <strong>do</strong><br />

cristianismo à cultura nunca foi a solução. Alguns parecem conforma<strong>do</strong>s com<br />

um tipo de “cristianismo cultural” a fim de manter sua relevância na sociedade<br />

contemporânea, esquecen<strong>do</strong>-se de que a mensagem cristã sempre foi contracultural.<br />

Além <strong>do</strong> mais, Albert Mohler corretamente afirma que “o problema<br />

<strong>do</strong> ‘cristianismo cultural’ está no fato de que a cultura sempre pre<strong>do</strong>mina sobre<br />

a firmeza cristã”. 69 Assim, a condescendência de algumas denominações<br />

com o movimento inclusivista não produz solução, mas apenas intensifica a<br />

confusão nesse assunto.<br />

Finalmente, os cristãos carecem de honestidade e coragem para admitir<br />

que suas fraquezas e falhas no testemunho cristão acabam contribuin<strong>do</strong> para<br />

a deterioração da sociedade contemporânea. Por exemplo, Albert Mohler defende<br />

que não foram os homossexuais que originalmente promoveram a falta<br />

de credibilidade em relação ao casamento. Ao contrário,<br />

... a abdicação evangélica da responsabilidade sobre o divórcio armou o palco<br />

para a perda da credibilidade em questões relacionadas à sexualidade e ao casamento.<br />

Na verdade, a igreja contemporânea possui enorme responsabilidade<br />

por sua falta de credibilidade em tópicos relaciona<strong>do</strong>s ao “ensinamento claro<br />

da Bíblia” sobre o casamento. 70<br />

Além <strong>do</strong> mais,<br />

heterossexuais fizeram um excelente “desserviço” em menosprezar o casamento<br />

antes mesmo de as forças culturais começarem a pressionar em prol da<br />

normatização <strong>do</strong>s relacionamentos homossexuais e <strong>do</strong> casamento entre pessoas<br />

<strong>do</strong> mesmo sexo. 71<br />

67 BUTTERFIELD, Pensamentos, p. 25.<br />

68 Ibid., p. 51, 58, 69.<br />

69 MOHLER, We Cannot Be Silent, p. 25.<br />

70 Ibid.<br />

71 Ibid., p. 31.<br />

90


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 71-91<br />

Infelizmente, quan<strong>do</strong> os cristãos se esquecem de “ornarem a <strong>do</strong>utrina”<br />

(Tt 2.10) pela prática diária e comum, a sociedade se recusa a dar ouvi<strong>do</strong>s à<br />

sua pregação, por mais eloquente que ela possa parecer.<br />

Certamente seria possível listar outras ponderações com respeito a esse<br />

assunto. No futuro, será necessário considerar a maneira, às vezes desastrosa,<br />

como os cristãos apresentam a mensagem <strong>do</strong> evangelho aos homossexuais.<br />

Todavia, as limitações de espaço e tempo impedem que o mesmo seja feito<br />

neste artigo.<br />

conclusão<br />

O propósito deste artigo foi contribuir para uma melhor compreensão<br />

<strong>do</strong>s avanços <strong>do</strong> movimento em defesa da homossexualidade na sociedade<br />

contemporânea, bem como as etapas e méto<strong>do</strong>s aplica<strong>do</strong>s nessa revolução.<br />

Para tanto, o artigo se propôs a realizar uma análise diacrônica <strong>do</strong> movimento<br />

e ao final apontou algumas ponderações relevantes à prática cristã conserva<strong>do</strong>ra.<br />

No futuro, outros estu<strong>do</strong>s deverão ser realiza<strong>do</strong>s sobre essa questão que<br />

certamente ocupa o centro <strong>do</strong> palco nos debates sociais.<br />

abstract<br />

Homosexuality is a fiercely debated issue in contemporary society, being<br />

among the main subjects that polarize Christian opinion. In recent years, individuals,<br />

institutions, corporations, and specially the churches are being judged<br />

according to their beliefs about homosexuality. However, this was not always<br />

the case. How this change came about? The answer to this question requires<br />

a diachronic study of recent developments in society and church, as well as<br />

some preliminary considerations on the current moral revolution. The aim of<br />

this article is to meet such need.<br />

keywords<br />

Homosexuality; Moral change and revolution; Gay theology; Religiosity;<br />

Christianity and culture; Truth and compassion.<br />

91


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 93-107<br />

Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

Silas Palermo *<br />

resumo<br />

O objetivo deste artigo é explanar e discutir a dicotomia sacro-profano<br />

aplicada à música. Será que é possível, a partir dela como objeto, evidenciar<br />

traços que definem com exatidão os limites entre uma e outra forma? Como<br />

ciência a música está ligada a uma forma 1 e como expressão de um conteú<strong>do</strong>.<br />

Entretanto, especificamente em música, o conteú<strong>do</strong> tende a mudar a forma<br />

dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> propósito <strong>do</strong> autor. Analisaremos a veracidade da dicotomia<br />

sacro-profano por meio <strong>do</strong> pensamento musical e da história de forma comparada.<br />

Além disso, os pressupostos bíblicos reforma<strong>do</strong>s norteiam o presente<br />

artigo e suas conclusões.<br />

palavras-chave<br />

Música Sacra; A<strong>do</strong>ração; Dicotomia; Sagra<strong>do</strong>; Profano; Estética.<br />

introdução<br />

Santo e profano, distinção evidente e necessária. A<strong>do</strong>rar a um Deus santo<br />

é privilégio <strong>do</strong>s seus eleitos que foram separa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comum para o<br />

louvor da sua glória. A música tem si<strong>do</strong> há séculos um meio de expressar a fé<br />

e propagar a glória de Deus ao mun<strong>do</strong> e pelo mun<strong>do</strong> afora.<br />

Pelo menos metade <strong>do</strong> culto cristão é preenchida com música, em muitos<br />

casos até mais que isso. Parece que a música tem um papel importantíssimo,<br />

* O autor é bacharel em Música, licencia<strong>do</strong> em Artes e pós-gradua<strong>do</strong> em Filosofia da Estética<br />

(Unesp) e Improvisação (USP). É bacharel em teologia pelo Seminário <strong>Presbiteriano</strong> Rev. José Manoel<br />

da Conceição (JMC) e mestran<strong>do</strong> em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana<br />

Mackenzie. É pastor presbiteriano em Santos (SP) e professor titular da Escola Técnica de Música<br />

da Prefeitura de Cubatão.<br />

1 O termo forma em música não se refere propriamente a um estilo, mas à estruturação da composição<br />

de maneira lógica quanto aos elementos técnico-musicais emprega<strong>do</strong>s.<br />

93


Silas Palermo, Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

ainda que muitos não saibam ou não a valorizem, seja por descaso ou por<br />

ignorância. Mas o preço dessa má atitude tem se revela<strong>do</strong> na atualidade. Por<br />

um la<strong>do</strong>, vemos uma igreja que tem superestima<strong>do</strong> os í<strong>do</strong>los musicais ou a arte<br />

em lugar <strong>do</strong> Senhor e da sua Palavra. Por outro la<strong>do</strong>, vê-se a errônea dicotomia<br />

sacro-profano com base na forma ou conteú<strong>do</strong> minimizan<strong>do</strong> a vida cristã com<br />

seu pressuposto de santidade.<br />

A edificação da igreja é a função primordial da música cristã, mas somente<br />

em Cristo, como parte <strong>do</strong> corpo vivo, ten<strong>do</strong> o coração regenera<strong>do</strong> pela Palavra,<br />

viven<strong>do</strong> em santidade e no exercício <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ns é que de fato edificamos e não<br />

destruímos.<br />

Por que há esta dicotomia entre sacro e profano na música? Existe uma<br />

música distintivamente sacra e outra profana? A música, arte temporal que é<br />

criada e executada por seres temporais, pode a partir de si mesma ser autônoma?<br />

Até que ponto isto é real, lógico, bíblico? Existe de fato essa diferença e ela<br />

está no objeto ou no sujeito? Podemos apontar uma solução apenas subjetiva<br />

ou temos referenciais objetivos e absolutos sobre o assunto? O que a Escritura<br />

Sagrada tem a nos dizer sobre isto?<br />

Visto que o assunto é por demais complexo, amplo e motivo de discussões<br />

entre acadêmicos na esfera teológica, musicológica e outras mais, não pretendemos<br />

esgotá-lo neste presente trabalho, mas apontar uma direção que elucide<br />

e traga discernimento principalmente aos líderes das igrejas, que infelizmente<br />

não têm si<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>s para este assunto tão presente na vida da igreja.<br />

1. arte funcional<br />

Primeiramente importa entender que música sacra é uma arte funcional.<br />

Tem objetivo defini<strong>do</strong> – a<strong>do</strong>rar a Deus e comunicar as verdades divinas das<br />

Escrituras Sagradas por meio <strong>do</strong> canto. Ela também atende à igreja no que<br />

tange aos aspectos de comunhão, ou seja, identificação da fé mútua. Assim<br />

entende Costa, ao afirmar: “O canto tem também uma relação direta com a<br />

nossa experiência religiosa, não estan<strong>do</strong> relaciona<strong>do</strong> simplesmente a momentos<br />

de lazer e entretenimento [...] reflete a nossa fé”. Segue dizen<strong>do</strong> que a “fé<br />

que se expressa em cântico se fortalece <strong>do</strong> seu próprio conteú<strong>do</strong> proveniente<br />

da Palavra de Deus”. 2<br />

A música sacra cumpre então funções e propósitos, seja na liturgia, seja<br />

na vida cristã <strong>do</strong> indivíduo ou da comunidade <strong>do</strong>s fiéis, ao passo que a música<br />

pela música, uma concepção musical oposta e um fenômeno de sofisticação<br />

ocidental, é o pensamento de que a música artística é desfrutada em si mesma,<br />

arte pela arte, ten<strong>do</strong> propósito em si mesma e que não pretende expressar nada<br />

além de si. A música, sen<strong>do</strong> abstrata, pode descrever ideias apenas e não<br />

2 COSTA, Herminsten M. P. Princípios bíblicos de a<strong>do</strong>ração cristã. São Paulo: Cultura Cristã,<br />

<strong>20</strong>09, p. 176.<br />

94


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 93-107<br />

sentimentos precisos; estes fazem parte da fantasia e impressão <strong>do</strong> homem.<br />

Pode expressar adjetivos, nunca o substantivo (amor, por exemplo). “Do que<br />

a música instrumental não consegue jamais se pode dizer que a música o consegue;<br />

pois só ela é a arte <strong>do</strong>s sons pura, absoluta”. 3<br />

Ao passo que toda música sacra tem algum nível de arte, obviamente,<br />

mas o propósito final que a orienta não está circunscrito em si mesma. Ela tem<br />

um alvo – a<strong>do</strong>ração ao Senhor.<br />

Donald Hustad define que a “arte funcional é julgada pela maneira como<br />

cumpre a sua função”, argumentan<strong>do</strong> contra comparações desnecessárias entre<br />

os vários tipos de música quanto à forma. 4 Hinos ou simples “corinhos” em<br />

relação a uma ópera de Mozart, por exemplo.<br />

O importante e aclama<strong>do</strong> Händel contribuiu para que a música fosse<br />

gradativamente perden<strong>do</strong> seu papel de serviço nos cultos e se tornasse cada<br />

vez mais entoada nos teatros. As mesmas peças de igreja, os oratórios, eram<br />

encena<strong>do</strong>s para um público pagante. “Isto apontou para a emancipação da<br />

música, que deixou de ser funcional”, diz Blanning. 5<br />

Isto posto, temos uma longa discussão filosófica e musicológica de séculos<br />

sobre se a música deve ou não ter uma função. Para uns, sim; já para outros<br />

ela deve ser apreciada em si mesma como arte absoluta. Contu<strong>do</strong> este é um<br />

assunto amplo no qual não vamos nos deter. Basta a diferenciação.<br />

2. o problema estético<br />

As Escrituras Sagradas respondem qual é a estética musical correta, a<br />

ideal? Não. Aqui é que reside um <strong>do</strong>s problemas. Se fôssemos seguir estritamente<br />

a estética <strong>do</strong>s tempos bíblicos provavelmente nos serviríamos de coros<br />

de vozes em uníssono, certos instrumentos, linguagem musical distante. O<br />

uso da moderna harmonia seria impensável; nem mesmo regentes havia como<br />

hoje concebemos. Alguém pode objetar dizen<strong>do</strong> que os Salmos, por exemplo,<br />

fornecem elementos estéticos sim. Contu<strong>do</strong>, devemos diferenciar as coisas.<br />

Os Salmos e outras porções bíblicas fornecem elementos de ordem poética e<br />

teológica, não estritamente da estética musical. Este é um erro comum de analisar<br />

música e letra conjuntamente. São elementos distintos, ainda que exista<br />

uma interdependência. Porém, e se no caso a música for apenas instrumental?<br />

Por outro la<strong>do</strong>, não é o puro julgamento estético que determina a sacralidade<br />

ou não da música. Contu<strong>do</strong>, a estética inegavelmente faz parte da<br />

música – somos seres estéticos. A questão é, qual seria a estética ideal? Ela<br />

3 HANSLICK, Eduard. Do belo musical: um contributo para a revisão da estética da arte <strong>do</strong>s<br />

sons [1854]. Trad. Artur Mourão. Covilhã, Portugal: LusoSofia Press, <strong>20</strong>11, p. 27.<br />

4 HUSTAD, Donald P. Jubilate! A música na igreja. São Paulo: Vida Nova, 1991, p. 32.<br />

5 BLANNING, Tim. O triunfo da música: a ascensão <strong>do</strong>s compositores, <strong>do</strong>s músicos e de sua<br />

arte. São Paulo: Companhia das Letras, <strong>20</strong>11, p. 99.<br />

95


Silas Palermo, Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

é única em todas as culturas e épocas? Obviamente, não. Não há um padrão<br />

estético único e ideal, por isso não há como julgar a música sacra ou profana<br />

simplesmente pelo juízo estético. Juízo estético é atribuir ou negar um conceito<br />

a algo (sujeito), predican<strong>do</strong>-o. Temos, a saber, juízos de gosto, de valor, de<br />

existência e de ética. Quan<strong>do</strong> dizemos que uma canção nos agrada muito (poderia<br />

ser o inverso), estabelecemos um juízo de gosto, algo subjetivo; quan<strong>do</strong><br />

dizemos que uma canção é uma obra prima, estabelecemos um juízo de valor;<br />

quan<strong>do</strong> dizemos que uma canção possui uma coerência entre melodia-letra,<br />

tem correta teologia ou outras análises aprofundadas, estabelecemos um juízo<br />

de existência; por fim, quan<strong>do</strong> ouvimos e dizemos da canção algo <strong>do</strong> tipo:<br />

“Assim é que se deve compor”, estabelecemos um juízo ético ao afirmar como<br />

deve-ser a música.<br />

A música na a<strong>do</strong>ração tem, portanto, valor estético intrínseco e também<br />

é uma arte funcional. Apesar de não nos determos em tal matéria, nesta introdução,<br />

a fim de clarear e delimitar a análise proposta aqui, não podemos desconsiderar<br />

esses elementos estéticos e funcionais. Fazemos isso em contraste<br />

com o que pensa Peter Masters, quan<strong>do</strong> escreve que o “primeiro grande desvio<br />

é o apoio ao louvor estético em lugar <strong>do</strong> requisito <strong>do</strong> Senhor, de que o louvor<br />

seja exclusivamente em espírito e em verdade”. Ele ainda segue afirman<strong>do</strong><br />

que “a ideia de que coisas belas, artísticas ou habilmente executadas devem<br />

ser oferecidas ao Senhor como expressão de louvor” 6 é um desvio. Masters<br />

argumenta que esta conduta pressupõe que Deus é um esteticista.<br />

Afirmar que os “a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res estéticos” são os que querem agradar a Deus<br />

por meio da performance com arranjos e talentos brilhantes ao invés <strong>do</strong> simples<br />

uníssono, e mais, contrapor isto com o ensino <strong>do</strong> Senhor Jesus sobre a a<strong>do</strong>ração<br />

em espírito e em verdade (Jo 4.23-24), é confundir as questões! Primeiramente,<br />

como exposto, somos seres estéticos, herdamos <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r nosso Deus essa<br />

estrutura estética. 7 Basta ver toda a criação com sua multiplicidade, beleza e<br />

ordem (elementos da estética). Até mesmo o cantar em uníssono é uma forma<br />

estética. Em segun<strong>do</strong> lugar, a<strong>do</strong>ração é muito mais <strong>do</strong> que música, pois a antecede.<br />

A música é somente um meio e como to<strong>do</strong> meio comunicativo se vale<br />

da linguagem e de seus símbolos. Podemos ter a<strong>do</strong>ração ou i<strong>do</strong>latria usan<strong>do</strong><br />

músicas de qualquer espécie e estilo: em uníssono (como os corais luteranos,<br />

o canto gregoriano ou os antigos “trouba<strong>do</strong>urs”) ou com vozes a capella (sem o<br />

uso de órgão ou instrumentos, como os madrigais profanos ou os salmos metrifica<strong>do</strong>s).<br />

Nenhuma estética, antiga ou nova, determina o valor da a<strong>do</strong>ração.<br />

Juízo estético não deve ser confundi<strong>do</strong> com juízo da a<strong>do</strong>ração. A estética,<br />

além de ser parte <strong>do</strong> ser cria<strong>do</strong>, o homem, é necessária para a devida identi-<br />

6 MASTER, Peter. Louvor em crise. São José <strong>do</strong>s Campos, SP: Fiel, <strong>20</strong>07, p. 15.<br />

7 DOOYEWEERD, Herman. A New Critique of Theoretical Thought: The Necessary Presuppositions<br />

of Philosophy. Vol.1. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1969.<br />

96


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 93-107<br />

ficação e comunicação na cultura. Pensemos que ela, a estética, muda com o<br />

desenrolar da história e também se adapta a cada geração e cultura. O que não<br />

deve ser mutável são os princípios das Escrituras. A Palavra de Cristo é una,<br />

eterna e nortea<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> culto, porém a expressão humana, o fazer cultural, é<br />

uma atividade dinâmica, mutável. Imaginemos se a arquitetura não evoluísse<br />

ao longo <strong>do</strong>s tempos: viveríamos em construções <strong>do</strong> primeiro século ou da<br />

época renascentista? O mesmo para a agricultura e a demanda moderna por<br />

alimento. O princípio da semeadura é imutável, porém as técnicas utilizadas<br />

pelo homem mudaram. O que dizer da linguagem: acaso não tem sua dinâmica<br />

por motivos óbvios?<br />

“Muito da música cristã nos dá a impressão de que a letra e a composição<br />

musical não têm grande importância em comparação com o entusiasmo religioso<br />

ou a exortação moral”, replica Horton. 8 Essa triste constatação é justamente<br />

fruto de um desprezo da música enquanto forma-conteú<strong>do</strong> e de sua estética<br />

equilibrada. O desequilíbrio afirma<strong>do</strong> aqui advém <strong>do</strong> atual emocionalismo e<br />

misticismo que adentraram na música cristã de forma geral. Fervor espiritual<br />

não é sinônimo de qualidade musical. Igualmente, boa poética não implica<br />

em boa música, e vice-versa. São esferas diferentes: música, letra, piedade.<br />

É possível ser medíocre ou excelente em qualquer uma das esferas citadas.<br />

Uma coisa é certa, não se deve suplantar a a<strong>do</strong>ração com a performance,<br />

nem entender que a estética é o que agrada ao Senhor, e sim um coração<br />

transforma<strong>do</strong> por ele. A estética com sua forma e ordem serve para os homens,<br />

para a devida comunicação e empatia, mas também é reflexo da imagem de<br />

Deus e sua glória na criação.<br />

3. a tensão cultural<br />

A acusação é que a música para a a<strong>do</strong>ração, ao tomar empresta<strong>do</strong>s elementos<br />

da cultura, torna-se profana. Ao identificar-se artisticamente com esta<br />

cultura, o sacro é profana<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> defendem os mais críticos ao movimento<br />

contemporâneo de música cristã. Textos como “Não ameis o mun<strong>do</strong> nem as<br />

coisas que há no mun<strong>do</strong>” (1Jo 2.15) ou ainda “Infiéis, não compreendeis que a<br />

amizade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> é inimiga de Deus?” (Tg 4.4a) são alguns <strong>do</strong>s comumente<br />

usa<strong>do</strong>s na argumentação. No entanto, Jesus oran<strong>do</strong> disse: “Não peço que os<br />

tires <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e sim que os guardes <strong>do</strong> mal... Santifica-os na verdade; a tua<br />

palavra é a verdade” (Jo 17.15, 17). Jesus nos enviou ao mun<strong>do</strong> para sermos<br />

sal e luz, influenciar a cultura, assim como os reforma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> na<br />

educação, arte, sociedade e economia.<br />

Pensemos por um instante: “tomar por empréstimo” elementos da cultura<br />

é necessariamente profanar algo, no caso a música? Acaso não fazemos uso<br />

8 HORTON, Michael S. O cristão e a cultura. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>06, p. 76.<br />

97


Silas Palermo, Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

da cultura para haver inteligibilidade na língua escrita ou falada, por exemplo?<br />

Algo pode ser feito supraculturalmente? O relacionamento com a cultura<br />

vigente é necessário, e é impraticável ausentar-se dela, a menos que se viva<br />

com o princípio monástico e na clausura. Entretanto entendemos que um <strong>do</strong>s<br />

propósitos da Reforma Protestante foi alcançar a cultura e redimi-la sem se<br />

confundir com ela e nem se afastar totalmente dela. Viver no mun<strong>do</strong> sem ser<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Outra problemática é a alegação de profanação que recai continuamente<br />

sobre a cultura popular. Acaso a alta cultura não pode ser igualmente profana?<br />

Cremos que sim. O que há de sacro numa Nona Sinfonia de Beethoven e no<br />

seu conheci<strong>do</strong> quarto e último movimento onde ouvimos a famosa melodia<br />

“Ode à alegria”, com texto de Schiller (An die Freude), um poeta romântico<br />

venera<strong>do</strong> por Beethoven, cren<strong>do</strong> que “só a arte e a erudição nos dão indícios e<br />

esperanças de uma vida superior”? 9 Nada de sacro ou dedica<strong>do</strong> ao culto divino<br />

nesta inegável obra-prima. No entanto, ela tem si<strong>do</strong> cantada com novos arranjos<br />

pela igreja afora! 10 A diferenciação entre o que vem a ser ou não profano não<br />

deve ser defini<strong>do</strong> pela alta ou baixa cultura. Será possível definir o que é alta<br />

ou baixa cultura, erudita ou popular? Não seria o popular uma categoria ou<br />

uma reinterpretação <strong>do</strong> erudito?<br />

A apropriação forma uma cultura com base na identificação e esta se dá por<br />

fazer senti<strong>do</strong> a um grupo social. Pensan<strong>do</strong> além, ou seja, nas consequências<br />

naturais e temporais, podemos compreender ou aceitar que certas manifestações<br />

culturais são admitidas como parte integrante <strong>do</strong> grupo, reinterpretadas ou até<br />

desqualificadas; um processo de aquisição ou subtração de valores compartilha<strong>do</strong>s<br />

que transforma a sociedade e é transformada por ela ao longo <strong>do</strong> tempo. Fato<br />

que torna a categorização purista difícil. “A condição humana de criar senti<strong>do</strong><br />

precede mesmo num mun<strong>do</strong> de crescente consumismo e <strong>do</strong>mínio das coisas”,<br />

diz Janice A. Radway em seu estu<strong>do</strong> sobre apropriação. 11<br />

A cultura em si mesma não é sagrada: não vivemos numa teocracia<br />

nacional como o antigo povo de Israel. Necessário é distinguir a esferas da<br />

redenção e da criação. Horton afirma que “o cristão deve participar da cultura<br />

de mo<strong>do</strong> a reconhecer a criação”. 12 Ela também glorifica a Deus, manifesta sua<br />

graça comum e a sua providência. “Já que fomos cria<strong>do</strong>s dentro deste mun<strong>do</strong>,<br />

chama<strong>do</strong>s para este mun<strong>do</strong> e redimi<strong>do</strong>s neste mun<strong>do</strong>, não deveríamos deixar<br />

9 BLANNING, O triunfo da música, p. 113.<br />

10 Como, por exemplo, o hino “Coroação”, n o 28 <strong>do</strong> Hinário Novo Cântico.<br />

11 CHARTIER, R. Cultura popular, revisitan<strong>do</strong> um conceito historiográfico. Trad. Aone-Marie<br />

M. Oliveira. Estu<strong>do</strong>s Históricos. Rio de Janeiro: vol. 8, n o 16, 1995, p. 186.<br />

12 HORTON, O cristão e a cultura, p. 86.<br />

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FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 93-107<br />

a nossa fé pendurada no armário”. 13 Contu<strong>do</strong>, como redimi<strong>do</strong>s pelo Senhor<br />

devemos distinguir a igreja <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, santo de profano, sem estarmos aliena<strong>do</strong>s<br />

da cultura. Infelizmente, uma maneira paliativa de tentar resolver este dilema<br />

na música é usar uma linguagem cultural distante ou diferente da nossa, como<br />

se pode ver nos repertórios musicais.<br />

Não há erro na arte musical em apelar para os sentimentos e emoções, ou<br />

para a razão, nem mesmo ser de entretenimento ou de apreciação puramente<br />

estética. Essa é muitas vezes a função dela como arte em si. O problema consiste<br />

em confundir as esferas de atuação. Todavia, quan<strong>do</strong> o propósito da música é<br />

o seu uso na a<strong>do</strong>ração, nós devemos ser criteriosos, pois ela não serve para<br />

entreter ou para apreciação passiva <strong>do</strong> cristão. Neste quesito, tanto um coral<br />

erudito com música de alta cultura, quanto uma banda de música contemporânea<br />

jovem, um ou outro podem incorrer neste erro: entreter ou servir de pura<br />

apreciação estética sem prestar devi<strong>do</strong> culto.<br />

O cristão regenera<strong>do</strong>, ciente da providência e soberania de Deus, age<br />

em conformidade com isso, cren<strong>do</strong> e entenden<strong>do</strong> a sua vocação dentro de<br />

um mun<strong>do</strong> corrompi<strong>do</strong> sem se corromper. Nesse senti<strong>do</strong>, a Reforma atuou<br />

imensamente na educação. “Lutero insistiu com as autoridades públicas no<br />

senti<strong>do</strong> de se criarem escolas com vistas à educação secular e eclesiástica”. 14<br />

Lembremo-nos também da Academia de Genebra, em que era dada formação<br />

intelectual e espiritual, e <strong>do</strong> “Pai da Didática Moderna”, o morávio J. A. Comenius<br />

(1592-1670), que entendia a instrução como o pleno conhecimento<br />

das artes e das línguas. Notemos que não foram cria<strong>do</strong>s modelos de “escolas<br />

cristãs” alienadas da sociedade, nos moldes monásticos. A Reforma atuou também<br />

na concepção <strong>do</strong> trabalho como bênção de Deus, como “responsabilidade<br />

<strong>do</strong> homem de cumprir a sua vocação”. 15<br />

Entendemos, portanto, que a alienação é uma opção escapista e soberba<br />

<strong>do</strong> cristão que não entende com clareza a sua vocação diante de Deus e <strong>do</strong>s<br />

homens. Por outro la<strong>do</strong>, misturar-se com a mun<strong>do</strong> indistintamente é secularismo,<br />

que, de igual forma, não glorifica a Deus diante <strong>do</strong>s homens.<br />

4. (in)veracidade da dicotomia<br />

Afirmar que música sacra é aquela, para aquele grupo sociocultural, diferente<br />

da secular e a sacra é a diferente da que, naquele momento, é secular, 16<br />

revela a importância já citada da cultura no fazer e compreender a linguagem<br />

musical, além de selecionar o que deve ser ideal para essa cultura ou povo. Outra<br />

13 Ibid., p. 86.<br />

14 COSTA, Hermisten Maia P. Raízes da teologia reformada. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>04, p. 85.<br />

15 Ibid., p. 119.<br />

16 MÓDOLO, Parcival. Música tripartida: herança <strong>do</strong> século dezenove. <strong>Fides</strong> Reformata I-2 (1996),<br />

p. 106.<br />

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Silas Palermo, Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

questão é se isto é realmente verdadeiro, se realmente há uma diferenciação<br />

estética e formal no fazer música sacra contra a profana ao longo <strong>do</strong>s séculos.<br />

Afirmar que os compositores usavam de modelos e estilos diferentes para<br />

cada ambiente é parcialmente verdadeiro. Claramente se pode afirmar que o<br />

propósito último da música e o seu texto sempre foram diferencia<strong>do</strong>s. Todavia,<br />

afirmar que a música em si difere totalmente da cultura vigente é incoerente,<br />

pois isto tornaria a música e o seu texto incompreensível ao ouvinte, além de que<br />

to<strong>do</strong> indivíduo, inclusive o autor e compositor, está imerso na cultura vigente e<br />

se utiliza das técnicas musicais e da estética que foram fixadas até o momento.<br />

Não estamos afirman<strong>do</strong> que a música sacra é ou deva ser uma imitação<br />

da secular. A pretensão é ir de encontro a essa dicotomia tão preconizada. O<br />

fato é que ao longo <strong>do</strong>s séculos os compositores cristãos <strong>do</strong>minaram o fazer<br />

artístico ditan<strong>do</strong> a sua estética e propon<strong>do</strong> evoluções técnicas. Com a mudança<br />

filosófica cada vez mais humanista, e sobretu<strong>do</strong> com a advento <strong>do</strong> Iluminismo,<br />

os compositores foram se “libertan<strong>do</strong>” da tutela eclesiástica, dirigin<strong>do</strong>-se<br />

para o público. Houve uma espécie de romaria <strong>do</strong> templo para o teatro, o que<br />

afetou em muito a qualidade da música cristã com o passar <strong>do</strong>s anos. Temos<br />

hoje lamentavelmente uma decorrência disso.<br />

O professor Tim Blanning, da Universidade de Cambridge, em sua tese<br />

sobre o triunfo da música e <strong>do</strong> músico sobre o mecenato, ou seja, o <strong>do</strong>mínio<br />

tanto da igreja quanto da nobreza sobre sua obra, e o que deveria ou não ser<br />

composto e executa<strong>do</strong>, estabelece:<br />

De fato, o sucesso de Händel durante o meio século que passou em Londres<br />

(1710-59) foi uma demonstração pioneira de como um músico podia ficar rico<br />

e famoso através da esfera pública. Foi o primeiro compositor e empresário<br />

musical a fazer fortuna com base num público pagante. Ao morrer, em 1759,<br />

Händel deixou um patrimônio avalia<strong>do</strong> em cerca de <strong>20</strong> mil libras, o que o transformava<br />

em milionário nos padrões atuais... Quan<strong>do</strong> chegou a Londres, Händel<br />

era chama<strong>do</strong> de “servente <strong>do</strong> príncipe eleitor de Hannover”, mas na época de<br />

sua morte era festeja<strong>do</strong> pelo rei, pela aristocracia e pelo país. Sem nunca ter si<strong>do</strong><br />

dependente deles, beneficiou-se material e socialmente <strong>do</strong>s três. 17<br />

Essa verificação histórica demonstra que um compositor protestante como<br />

Händel atuava tanto no âmbito da igreja como no teatro, e com características<br />

musicais idênticas quanto à forma. Assim já pomos em “xeque” a dicotomia<br />

e a alegação de diferença entre música sacra e secular numa mesma cultura e<br />

época. O exemplo de Händel é pertinente por ser ele um compositor protestante<br />

internacionalmente reconheci<strong>do</strong>, aclama<strong>do</strong> e ama<strong>do</strong> tanto em salas de<br />

concerto como em igrejas. Tanto no Neale’s New Music Hall como na Abadia<br />

de Westminster, Händel foi efetivo e bem-sucedi<strong>do</strong>.<br />

17 BLANNING, O triunfo da música, p. 38.<br />

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FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 93-107<br />

“A música e os músicos podiam florescer no mun<strong>do</strong> das cortes, mas sempre<br />

como atividade subordinada e duvi<strong>do</strong>sa. O mesmo se podia dizer de outro<br />

tipo igualmente importante de representação: a música religiosa”, comenta o<br />

professor Blanning. 18<br />

Além de ser um mestre na música coral e sem dúvida um <strong>do</strong>s mais conheci<strong>do</strong>s<br />

pela igreja, Händel foi um mestre internacional, sain<strong>do</strong> da provinciana<br />

Alemanha para a cosmopolita Londres, na Inglaterra. Assim, sua música tem<br />

características multiculturais: melodia italiana; polifonia alemã; barroco protestante<br />

inglês. Sem adentrar em detalhes exaustivos para leigos, a influência<br />

cosmopolita da Europa de então estava presente nele e em sua obra, mais um<br />

argumento a favor da cultura e da música vigente influencian<strong>do</strong>-se mutuamente.<br />

A famosa música coral “Largo de Händel” (nome fictício que denota<br />

música pura ou absoluta), celebrada em muitas igrejas protestantes como<br />

grande exemplo e padrão de música sacra, na verdade é uma música que foi<br />

composta por Händel em sua ópera profana “Xerxes” (1738), na qual se narra<br />

a história <strong>do</strong> tirano e déspota rei da Pérsia. Essa ópera não obteve sucesso na<br />

época, porém a ária inicial <strong>do</strong> primeiro ato, com o título original Ombra mai fu,<br />

cujo primeiro verso diz: “Ombra mai fu di vegetabile caro ed amabile” (Nunca<br />

a sombra de uma planta foi tão digna de amor e estima), cantada em solo pelo<br />

personagem principal, Xerxes, que admira a sombra da árvore, tornou-se a<br />

célebre música “sacra”, adaptada de diversos mo<strong>do</strong>s, inclusive com arranjo<br />

para coro, obviamente não original.<br />

Nos séculos 17 e 18, a era <strong>do</strong> barroco na música, a grande “invenção”<br />

musical foi a Ópera, o drama per música, com identidade próxima aos Oratórios,<br />

em que ambos contam com um enre<strong>do</strong> musica<strong>do</strong> e com a mesma estrutura<br />

formal, apenas para fins diferentes, teatro ou igreja, narrativa <strong>do</strong> cotidiano ou<br />

narrativa bíblica.<br />

O que dizer das “Cantatas”, gênero musical para ser canta<strong>do</strong> com acompanhamento<br />

instrumental, amplamente difundi<strong>do</strong> no mesmo perío<strong>do</strong> menciona<strong>do</strong><br />

acima, e que podia ser tanto de caráter profano como sacro, dependen<strong>do</strong> da<br />

narrativa, porém com estrutura formal da peça e uso de coro e instrumentos<br />

idênticos! Os mesmos compositores transitavam de um campo para o outro,<br />

claro que dependen<strong>do</strong> da conveniência ou da imposição, já que eram subordina<strong>do</strong>s<br />

até então. Não existiam <strong>do</strong>is estilos barrocos, um para o templo e outro<br />

para a corte ou a sala de concerto.<br />

Em Corelli, o estilo “sacro” e o estilo “de câmara” ainda são essencialmente<br />

idênticos. A separação é apenas formal. Antonio Vivaldi (1678-1741), embora<br />

sacer<strong>do</strong>te, dá o passo definitivo para a música instrumental profana, enveredan<strong>do</strong><br />

por um caminho que levará diretamente à arte de Bach. 19<br />

18 Ibid., p. 96.<br />

19 CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música. Rio de Janeiro: Ediouro, 1958, p. 50.<br />

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Silas Palermo, Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

Corelli influenciou Händel em parte de suas obras, em sua música instrumental<br />

profana como as suítes francesas (danças francesas), especialmente<br />

o concerto em sol menor Fatto per la notte di Natale, opus 6, número 8, com<br />

movimento pastorale em ritmo de Siciliana (dança típica italiana), ritmo esse<br />

que Händel aproveitará no famoso Messias. <strong>20</strong><br />

O grande mestre J. S. Bach, Kantor na igreja de Leipzig, função de responsabilidade<br />

quanto às composições para liturgia e ensino de música e de<br />

boa formação teológica, escreveu cantatas profanas para diversas ocasiões.<br />

“Não raro, Bach utilizou a mesma música em cantatas sacras e profanas”, 21<br />

como o Oratório de Natal (BWV 248), em que ele aproveita a mesma música<br />

da cantata profana “Hércules na Encruzilhada” (BWV 213).<br />

O argumento geralmente usa<strong>do</strong> de que a música da Reforma utilizou canções<br />

profanas por questões de deficiência técnica e falta de músicos capazes<br />

não é totalmente verdadeiro. Lutero conhecia a arte musical, Calvino utilizou<br />

importantes mestres de sua época (o grande polifonista Claude Goudimel,<br />

por exemplo). Que dizer <strong>do</strong> famoso organista que influenciou J. S. Bach, D.<br />

Buxtehude (1637-1707)?<br />

Não devemos ser ingênuos quanto à evolução histórica da música e de<br />

seus meios técnicos disponíveis, bem como quanto à já afirmada influência<br />

das culturas. Os conceitos técnicos e estéticos e as práticas musicais foram<br />

se definin<strong>do</strong> ao longo das eras e diante de múltiplas influências, cristãs ou<br />

não, sen<strong>do</strong> absorvidas pela igreja ou pelo mun<strong>do</strong> fora dela com seletividade<br />

de propósito. Há, entretanto, sempre muita discussão sobre o que deveria ou<br />

não ser incorpora<strong>do</strong> ao culto, à música, as modificações necessárias. Esse é<br />

um velho dilema.<br />

Os séculos 11 ao 13 ilustram bem até que ponto era vaga na Idade Média<br />

a linha divisória entre a música sacra e secular. O exemplo disto é o conductus<br />

utiliza<strong>do</strong> na catedral de Notre Dame. O termo era aplica<strong>do</strong> ao serviço religioso<br />

romano em que o celebrante era “conduzi<strong>do</strong>” de um local a outro (uma espécie<br />

de procissão), quan<strong>do</strong> então entoava-se um texto, mas passou a ser aplica<strong>do</strong> a<br />

canções latinas seculares com um texto sério. 22 A própria música monofônica,<br />

de melodia única, sen<strong>do</strong> a semente musical <strong>do</strong> Ocidente, foi a base da música<br />

sacra <strong>do</strong>s primeiros séculos e também da música profana com a <strong>do</strong>s trova<strong>do</strong>res<br />

e suas canções românticas poéticas. Claro que isto com pequenas variantes<br />

estruturais da música, com diferenças não só quanto ao propósito e o texto,<br />

mas sen<strong>do</strong> também uma meditativa para o culto e outra dançante e contan<strong>do</strong><br />

estórias de amor e heroísmo. Otto Maria Carpeaux diz que “a poesia lírica<br />

<strong>20</strong> Ibid.<br />

21 GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Lisboa: Gradiva Publicações,<br />

1994, p. 453.<br />

22 BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1986, p. 17.<br />

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aristocrática <strong>do</strong>s Trouba<strong>do</strong>urs em seus castelos, viagens e cruzadas, e a lírica<br />

popular cantada nas aldeias com o tempo impõem a polifonia que adentrará<br />

na igreja medieval”. 23<br />

Um tipo de música vocal <strong>do</strong> século 13, importante até o final da Idade<br />

Média, foi o Moteto. O termo vem <strong>do</strong> francês mot, que quer dizer palavra,<br />

e o gênero utilizava vários textos seculares, por vezes em línguas diferentes<br />

simultaneamente. Ela é um <strong>do</strong>s exemplos mais drásticos da mistura. A voz principal<br />

na época, chamada “tenor” (deriva<strong>do</strong> <strong>do</strong> latim tenere – manter), entoava<br />

o cantochão sacro em latim; as demais vozes em língua vernácula entoavam<br />

um canto secular com alguma estória. No entanto, a mesma melodia podia<br />

servir para textos sacros ou profanos. No início, por razões óbvias, a música<br />

era executada fora <strong>do</strong> ambiente da igreja, nos pátios. É interessante notar que,<br />

com o passar de poucos séculos, o Moteto foi modifica<strong>do</strong> e passou a ser usa<strong>do</strong><br />

na liturgia luterana por Bach, por exemplo, como introdução ao culto luterano<br />

<strong>do</strong>minical na Igreja de São Tomás, em Leipzig, Alemanha, segui<strong>do</strong> por hinos<br />

e uma Cantata. 24<br />

A conhecida e importante contribuição da Reforma Protestante foi o uso<br />

da língua vernácula na liturgia e a preeminência da Escritura. Isso sim foi<br />

uma revolução! Na música, a inovação foi o advento da forma Coral alemã<br />

(Kirchenlied – canção de igreja), na qual a congregação participava <strong>do</strong> canto<br />

em uníssono em língua própria num canto silábico, nota-sílaba, o que facilitou<br />

o canto congregacional e a memorização <strong>do</strong> texto, finalmente uma estética<br />

diferenciada! Entretanto, desde as primeiras publicações de hinários corais em<br />

1524, a procura por hinos convenientes para a igreja excedeu a oferta. Muitas<br />

canções novas foram compostas, porém “mais numerosas ainda foram as que<br />

se basearam, no to<strong>do</strong> ou em parte, em canções profanas ou sacras já existentes”,<br />

comenta Grout. 25<br />

O uso <strong>do</strong> contrafacta, que eram paródias de canções profanas nas quais a<br />

melodia era conservada e o texto adapta<strong>do</strong> para dar senti<strong>do</strong> espiritual ao hino,<br />

era costume corrente no século 16. Temos um exemplo na canção profana de<br />

Hans Leo Hassler (1564-1612) chamada “Minh’alma está transtornada pelos<br />

encantos de uma terna <strong>do</strong>nzela”, que foi adaptada ao texto sacro “De to<strong>do</strong> o<br />

coração anelo” pelo mesmo Hassler em 1601 e, posteriormente, na Paixão<br />

segun<strong>do</strong> São Mateus de J. S. Bach (1727), com o famoso Coral “Ó cabeça<br />

ensanguentada e ferida”. Esse hino chegou a nós com o título “Fronte ensanguentada”<br />

(264 <strong>do</strong> HNC).<br />

23 CARPEAUX, Uma nova história da música, p. 4, 5.<br />

24 GROUT e PALISCA, História da música ocidental, p. 450.<br />

25 Ibid., p. 278.<br />

103


Silas Palermo, Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

Por outro la<strong>do</strong>, é fato que a música da igreja gozava de maior respeito<br />

<strong>do</strong> que a secular. Esta ganhou maior destaque a partir <strong>do</strong> Iluminismo, quan<strong>do</strong><br />

as salas de concerto e os teatros tiveram proeminência e os músicos sérios aos<br />

poucos saíram <strong>do</strong> controle da igreja. Nomes como Mozart, Beethoven, Brahms<br />

e muitos outros <strong>do</strong>s séculos seguintes compuseram música sacra ou não com<br />

a mesma genialidade e qualidade, com semelhantes características formais de<br />

música e com a “assinatura” da personalidade e filosofia de cada compositor,<br />

adaptan<strong>do</strong> o texto ao propósito deseja<strong>do</strong>. Com o perío<strong>do</strong> das “luzes”, o espírito<br />

laico, individualista, teve por efeito aproximar a música sacra <strong>do</strong> estilo da<br />

música profana, em particular a <strong>do</strong> teatro.<br />

Mesmo na primeira metade <strong>do</strong> século <strong>20</strong>, com o auge <strong>do</strong> modernismo<br />

na Europa e no Brasil, o importante professor e compositor Schoenberg, que<br />

divulgou e organizou a música atonal e <strong>do</strong>decafônica, contemporâneo de um<br />

Kandinsky, declarava que a música e o texto formam uma “unidade mística”.<br />

Chegou também a compor sob encomenda uma música para a liturgia judaica<br />

chamada “Kol Nidrei”, música essa com narra<strong>do</strong>r, coro misto, orquestra,<br />

conteú<strong>do</strong> emotivo e confissão de fé no discurso. No mesmo senti<strong>do</strong> compôs<br />

“Moisés e Arão”, uma ópera incompleta. 26 As listas de compositores em ambos<br />

os campos são praticamente idênticas na Europa. O declínio, não das produções<br />

sacras, mas da qualidade delas, é que começa a ser nota<strong>do</strong>.<br />

A partir <strong>do</strong> século <strong>20</strong> e adentran<strong>do</strong> no 21, a música recebe grande<br />

influência da modalidade inferior, seja da pseu<strong>do</strong>erudita ou da popularesca,<br />

pois a música com erudição ficou reservada para outro ambiente, o teatro, e<br />

para as grandes personalidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> artístico. O foco sai da música para<br />

a personalidade humana. A igreja, em geral, tomou <strong>do</strong>is rumos: executar os<br />

conheci<strong>do</strong>s repertórios sacros de outrora ou usar da mesma música de identidade<br />

popular <strong>do</strong> momento, de maneira que pouco há de novas produções<br />

cristãs sacras para o culto que tenha bom conteú<strong>do</strong> bíblico e com arte. Salvo<br />

alguns bravos e escassos nomes que são como luzeiros da música cristã atual.<br />

5. o ponto fundamental<br />

Lembremo-nos de que o que foi trata<strong>do</strong> acima não diz respeito específico<br />

à música litúrgica ideal, mas à diferenciação entre sacro e profano em música,<br />

um tipo de dicotomia que vem sen<strong>do</strong> sustentada sem base histórica, estética ou<br />

estrutural da ciência musical. O que temos tentan<strong>do</strong> sustentar até aqui é que a<br />

música não é ou deixa de ser sacra a partir dela mesma como objeto. Intrinsicamente,<br />

ela é produto da cosmovisão <strong>do</strong> artista, das suas crenças, produto de<br />

uma época e cultura, meio de comunicação sujeito aos atributos e desígnios<br />

de tal contexto, meio de expressão de um indivíduo, coletividade ou povo.<br />

26 MEDAGLIA, Júlio. Música impopular. São Paulo: Global Editora, <strong>20</strong>03, p. 58, 66.<br />

104


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 93-107<br />

Devi<strong>do</strong> a esses fatores, devemos então partir <strong>do</strong> contexto da a<strong>do</strong>ração,<br />

como disposição <strong>do</strong> coração e condutor da cosmovisão, para a música como<br />

um meio de sentir e expressar a fé ou a vida comum em linguagem simbólica<br />

e abstrata, a não ser pela força <strong>do</strong> texto, quan<strong>do</strong> há.<br />

Não cremos que apenas o bom senso seja um critério demarcatório, algo<br />

subjetivo demais. O problema da “fusão de estilos musicais” como característica<br />

<strong>do</strong> presente século, nem sagra<strong>do</strong> e nem secular, não é somente uma<br />

característica atual. É certo que nestes tempos pós-modernos, a ênfase sobre<br />

pluralidade e inclusão está absolutizada. Na verdade, esse fenômeno é antigo,<br />

perturba há muito a igreja e se acentuou no século 18, quan<strong>do</strong> as músicas<br />

tendiam para o semissacro ou semiprofano, como se pode ver nos hinos que<br />

constam nos atuais hinários cristãos.<br />

Outro fenômeno é o excesso de antropocentrismo e elementos existencialistas<br />

e místicos que comprometeram a música como arte. A preocupação<br />

estética, formal e funcional da arte musical cedeu lugar ao ego como justificativa<br />

última para o fazer artístico. Consequência: temos hoje um retrato pleno<br />

<strong>do</strong> semiprofano/semissacro na música cristã, que nem se presta, muitas vezes,<br />

como arte nem como Palavra cantada, devi<strong>do</strong> à pobreza tanto artística como<br />

teológica.<br />

O que distingue o santo <strong>do</strong> profano não é exatamente a música enquanto<br />

objeto, produto <strong>do</strong> homem e de seu coração, mesmo porque a música é algo<br />

abstrato que sofre mutações temporais e culturais. Não podemos “pegar” a<br />

música com as mãos como fazemos com um quadro de pintura ou uma escultura,<br />

algo concreto, estável, fora <strong>do</strong> controle <strong>do</strong> autor após concluí<strong>do</strong> e que tem<br />

existência própria. A música mesmo após composta necessita de um elemento<br />

que lhe dê existência contínua: o homem, na figura <strong>do</strong> intérprete executante.<br />

Por isso, o coração desse homem é importante. O padrão não pode ser algo<br />

tão flui<strong>do</strong> como a música e todas as suas mutações.<br />

Deve haver então algo mais consistente e absoluto como padrão para o<br />

homem e sua expressão musical. Encontramos estes marcos na Escritura Sagrada.<br />

O Espírito regenera<strong>do</strong>r de Deus, a água e o Espírito, são os verdadeiros<br />

padrões de santidade, pois estabelecem na regeneração a nova vida e, por conseguinte,<br />

uma cosmovisão correta, um coração volta<strong>do</strong> para Deus, espelhan<strong>do</strong> o<br />

Cria<strong>do</strong>r e Senhor em tu<strong>do</strong> o que esse homem faz. Temos a santidade vinculada<br />

à pessoa, ser moral, e não à música, um ente não-moral. Daí reside o problema<br />

central. A música é criada e manipulada por homens santos ou impuros? Essa<br />

música é produto análogo ao homem.<br />

considerações finais<br />

Se a música sacra é mais um gênero dentre outros, qualquer pessoa habilitada<br />

tecnicamente poderá fazê-la e se valer de várias formas estruturais de<br />

acor<strong>do</strong> com a época e cultura e até mesmo o tipo de culto e a tradição local da<br />

105


Silas Palermo, Da Coerência entre Sacro e Profano em Música<br />

igreja. Assim nesta confusa fronteira chegamos ao “rap cristão”, “rock cristão”,<br />

“sertanejo cristão”, assim como o “clássico cristão” ou qualquer outra<br />

categorização por gênero que a música e a religião fundiram erroneamente. O<br />

que pretendemos esclarecer até aqui é que no passa<strong>do</strong> não havia uma fronteira<br />

clara entre compositores de música sacra ou não; ambos poderiam escrever sob<br />

encomenda para qualquer estilo. Igualmente a melodia de uma peça musical poderia<br />

ser aproveitada em outra, sacra ou profana, adaptan<strong>do</strong>-se somente o texto.<br />

O que é de fato cristão é a pessoa. Antes da música cristã, se é que ela<br />

exista como forma, há o cristão músico. Desta feita, entendemos a sacralidade<br />

ou não da música vinculada à pessoa e seu esta<strong>do</strong> diante de Deus. O que é<br />

regenera<strong>do</strong>, quem recebe <strong>do</strong> alto o novo nascimento, é o ser, aquele que está<br />

em Cristo. Assim, o santo ou o profano está na pessoa e tu<strong>do</strong> o que faz é de<br />

conformidade com isso. “Todas as coisas são puras para os puros; todavia,<br />

para os impuros e descrentes, nada é puro. Porquanto tanto a mente como a<br />

consciência deles estão corrompidas” (Tt 1.15). O impulso religioso é “estrutural”,<br />

mas o seu conteú<strong>do</strong> e direção estão de acor<strong>do</strong> com o motivo central, o<br />

coração, o que este absolutiza tornan<strong>do</strong> um í<strong>do</strong>lo (a música pode ser um í<strong>do</strong>lo<br />

também). Dooyeweerd explica:<br />

Se esse motivo é de caráter apóstata, ele distanciará o ego de sua origem verdadeira<br />

e direcionará seu impulso religioso para nosso horizonte temporal de<br />

experiência, buscan<strong>do</strong> nesse tanto a si mesmo quanto à sua origem. Isto fará com<br />

que surjam í<strong>do</strong>los origina<strong>do</strong>s da absolutização daquilo que tem um significa<strong>do</strong><br />

apenas relativo. 27<br />

Distinguir o santo <strong>do</strong> profano não deve ser um retrocesso ao isolacionismo<br />

e separatismo; o velho dualismo neoplatônico é tão prejudicial quanto esse.<br />

A Reforma libertou os cristãos dessa dicotomia. Nenhuma distinção há entre<br />

vida religiosa e secular; somos inteiramente a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Senhor ou não. Devemos<br />

ter em vista a glória de Deus tanto na criação e sua providência quanto<br />

na redenção. Isso não significa não distinguir claramente o santo <strong>do</strong> profano,<br />

os usos seculares <strong>do</strong>s sagra<strong>do</strong>s, inclusive na música. O que tem aconteci<strong>do</strong> é o<br />

gradual esfriamento da piedade e da verdadeira a<strong>do</strong>ração, produzin<strong>do</strong> a pobreza<br />

teológica da igreja, de seus líderes e compositores, levan<strong>do</strong> à música um texto<br />

pobre e sem biblicidade. Uma vida santa produz música santa.<br />

A música tem uma função na igreja de Cristo; a isso devemos estar atentos.<br />

É um meio de comunicar. Assim ela deve primar pela clareza bíblica <strong>do</strong> texto,<br />

bem como por uma estética adequada para que a música em si não subjugue o<br />

entendimento da mensagem, para que expresse devidamente o seu conteú<strong>do</strong>.<br />

27 DOOYERWEERD, Herman. No crepúsculo <strong>do</strong> pensamento ocidental: estu<strong>do</strong>s sobre a pretensa<br />

autonomia <strong>do</strong> pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, <strong>20</strong>10, p. 83.<br />

106


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 93-107<br />

A música deve cooperar com a comunicação. Para isso a estética se presta.<br />

Nisto identificamos música solene, introspectiva, majestosa, vibrante, enfim,<br />

tu<strong>do</strong> em conformidade comunicativa.<br />

A música revela em si mesma a criação de Deus; a criatividade humana<br />

como imagem <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r. Tem o poder de criar “<strong>do</strong> nada”, <strong>do</strong> silêncio ao<br />

som, e ainda organizá-los. E mais, estabelecer vínculo afetivo e comunicativo.<br />

Desta forma, a música como produto humano tende a expressar o seu coração<br />

com ou sem Deus, regenera<strong>do</strong> ou não, santo ou impuro. O foco primeiro deve,<br />

portanto, ser o da procedência e não <strong>do</strong> produto, <strong>do</strong> moral e não <strong>do</strong> amoral.<br />

A música deve ser a música da igreja, não simplesmente a música na igreja.<br />

abstract<br />

The purpose of this article is to explain and discuss the sacred-profane<br />

dichotomy as applied to music. Is it possible to identify traits that will define<br />

precisely the boundaries between both musical forms? Music is both science and<br />

language, and as such it is permeated by structural form and expressed content.<br />

However, specifically in music, the content tends to change the form depending<br />

on the author’s purpose. By means of musical thought and history in a comparative<br />

way, the author examines the veracity of the sacred-profane dichotomy.<br />

Reformed biblical assumptions also guide the article and its conclusions.<br />

keywords<br />

Sacred Music; Worship; Dichotomy; Sacred; Profane; Aesthetics.<br />

107


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

The Doxological Dimension of Ethics<br />

Thomas Schirrmacher *<br />

Abstract<br />

The author argues that Christian ethics is closely tied not only to <strong>do</strong>ctrine,<br />

but to worship as well. Being rooted in the justness of God, it is both a component<br />

and a direct consequence of worship. This fact points to the true meaning<br />

of “ortho<strong>do</strong>xy,” namely, correct or true praise. Historically, such connection<br />

has been specially emphasized by the Greek Ortho<strong>do</strong>x and the Reformed traditions.<br />

In Protestantism, <strong>do</strong>xology as the origin and aim of ethics is a trademark<br />

of the Reformed movement since John Calvin placed the glory of God at the<br />

center of his theology, being followed by the Reformed catechisms, such as<br />

those of Heidelberg and Westminster. Therefore, there is an inescapable closeness<br />

of liturgy and ethics, as expressed in the ancient maxim “lex orandi, lex<br />

credendi.” In the second part of the article, the author articulates a biblical<br />

theology of <strong>do</strong>xological ethics, addressing topics such as the glory of God,<br />

gratitude as the highest commandment, awe before God as the starting point for<br />

Christian ethics, and the twofold duty to love God and others. Finally, there<br />

is a comparison suggested by missiology between shame-oriented and guiltoriented<br />

cultures, the former being concerned with honor and the latter with<br />

justness. Such orientations derive from sin both as a violation of God’s law<br />

(guilt) and as an encroachment on God’s honor/glory (shame).<br />

* Th.D. in Ecumenical Theology & Missiology, Theological University of Kampen, The Netherlands;<br />

Th.D. in Ethics, Westminster Theological Seminary (Lakeland, Florida); Ph.D. in Cultural Anthropology,<br />

Pacific Western University (Los Angeles); Ph.D. in Sociology of Religion, State University (Bonn).<br />

President and professor of Ethics at Martin Bucer Theological Seminary in Bonn, Germany; professor<br />

of Sociology of Religion at the State University of the West in Timisoara, Romania; professor of Global<br />

Ethics and International Development at William Carey University in Shillong, India; chair of the Theological<br />

Commission of the World Evangelical Alliance (WEA); director of the International Institute for<br />

Religious Free<strong>do</strong>m, and WEA’s Ambassa<strong>do</strong>r for Human Rights.<br />

109


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

Keywords<br />

Christian ethics; Doxology; Worship; Ortho<strong>do</strong>x tradition; Reformed<br />

tradition; Glory of God; Ten Commandments; Shame and guilt.<br />

“If anyone serves, he should <strong>do</strong> it with the strength God provides, so<br />

that in all things God may be praised through Jesus Christ. To him be the<br />

glory and the power forever and ever. Amen”. (1 Peter 4:11)<br />

1. worship and ethics<br />

All told, Christian ethics is so inseparably bound to the Christian faith that<br />

it cannot at all exist as a freely floating entity. Dogmatics (Christian <strong>do</strong>ctrine)<br />

and ethics (Christian praxis) belong inextricably linked. 1 Heiko Krimmer writes<br />

the following on this matter:<br />

There is no such thing as Biblical, Christian ethics. That there is such a specialist<br />

field within the concept of theology at all is a consequence of the invasion of the<br />

Enlightenment into theology. What we nowadays describe and discuss under<br />

the umbrella term of “Christian ethics,” i.e., Christian praxis, was originally<br />

contained in all the individual areas of theology and did not claim to have its<br />

specific area. A biblical and, more specifically, Christian ethic was first declared<br />

to be its own <strong>do</strong>main when Kant, for example, presented his Enlightenment ethics<br />

with its own ethical edifice. And yet, it is not possible to speak about Christian<br />

praxis which is removed from Christian faith. Ethics and <strong>do</strong>gmatics, life and<br />

<strong>do</strong>ctrine, <strong>do</strong> not allow themselves under any circumstances to be separated from<br />

each other within the Bible’s perimeter. 2<br />

When Georg Calixt put forth the first independent work on ethics in 1634,<br />

his intention was not to separate himself from <strong>do</strong>gmatics, but “rather to include<br />

philosophical ethics within <strong>do</strong>gmatics.” 3 However, in the long run that led to<br />

the same result, namely, that ethics was uncoupled from <strong>do</strong>gmatics and from<br />

exegesis. 4 In contrast to this, Emil Brunner wrote similarly to Krimmer: “One<br />

can only correctly present all of ethics as a part of <strong>do</strong>gmatics because ethics is<br />

also a question of God’s actions upon and through people.” 5<br />

1 Up to the 18 th century, the terms “Glaubenslehre” and “Sittenlehre” were used in German;<br />

beginning in the 19 th century, “Dogmatik” and “Ethik” (English: <strong>do</strong>gmatics and ethics).<br />

2 KRIMMER, Heiko. “Grundlagen christlicher Ethik.” Printed excerpt from Das Funda ment:<br />

Zeitschrift des DCTB. Korntal: no year provided, p. 2.<br />

3 HONECKER, Martin. Einführung in die Theologische Ethik. Berlin: Walter de Gruyter, 1990,<br />

p. 25.<br />

4 I say this in opposition to Honecker, pp. 25-31. On pp. 25-31 there is a good overview of various<br />

classifications of <strong>do</strong>gmatics and ethics over the course of the history of theology.<br />

5 BRUNNER, Emil. Das Ge bot und die Ordnungen. Zü rich: Zwingli Ver lag, 1939 4 , p. 71-72.<br />

110


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

Christian ethics is also no continuation of and, all the more, no appendage<br />

to Christian worship. Rather, it is a direct component and a direct consequence<br />

of worship. C. H. Dodd wrote: “The Christian religion is, as is Judaism . . .,<br />

an ethical religion in the special sense that it <strong>do</strong>es not acknowledge a final<br />

separation between worship and social behavior.” 6<br />

That worship and ethics in Christianity are so closely linked with each<br />

other has to <strong>do</strong> with the fact that God is a just God, and that on the basis of<br />

the justness of his essence, all of ethics is determined. Thus, Gottfried Quell<br />

writes the following about the Old Testament:<br />

One could say that justice comprises the foundation of the vision of God in the<br />

Old Testament . . . That God sets what justice is and as a just God is bound to<br />

justice is an indispensable proposition for the Old Testament knowledge of God<br />

in all its variations. 7<br />

For that reason, there are also areas that are normally not addressed in<br />

drafts of Christian ethics, such as prayer, 8 worship, and the Christian church,<br />

which in general belong among the innermost issues of Christian ethics. 9 The<br />

expression used for true, pure teaching, ortho<strong>do</strong>xy [Greek: orthos = correct,<br />

straight; <strong>do</strong>xein = to praise, to extol], on the basis of the meaning of the word,<br />

means neither true teaching nor true praxis. Rather, it brings both of these<br />

together to express true veneration of God.<br />

While Paul speaks in Romans 1:18-32 of an irrational worship which<br />

refuses to give God thanks, the first thing he mentions in the practical portion<br />

in Romans 12:1 (“Therefore, I urge you...”) is that we are exhorted in view<br />

of God’s mercy to place our life, “with neck and crop” (as the saying goes) at<br />

God’s disposal, for “this is your spiritual act of worship” (Romans 12:1 – NIV;<br />

alternatively, “this is the reasonable way for you to worship” – International<br />

Standard Version). A form of worship which <strong>do</strong>es not have practical consequences<br />

in all areas of life is an irrational form of worship. Even if all confessions<br />

surely share this thought, this fact has historically been emphasized<br />

primarily by Ortho<strong>do</strong>x and Reformed believers, and in the present above all<br />

6 DODD, C. H. Das Gesetz der Freiheit: Glaube und Gehorsam nach dem Zeug nis des Neuen<br />

Testaments. Mün chen: Chr. Kaiser, 1960, p. 7.<br />

7 QUELL, Gottfried. “Der Rechtsgedanke im AT,” pp. 176-180. In: KITTEL, Gerhard (ed.).<br />

Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. 10 vols. Stuttgart: W. Kohl hammer, 1990 (reprints<br />

from 1933-1979), vol. II, here pp. 176+178. Quell certainly assumes that the legal thought of Israel was<br />

so strong that it shaped the thinking about God. According to the New Testament understanding, however,<br />

it was just the opposite (comp. what is said about the image of God in Lesson 54.2, also comp. Lessons<br />

44.10 and 33.A.2).<br />

8 See, for example, ELERT, Werner. Das christliche Ethos: Grundlinien der lutherischen Ethik.<br />

Hamburg: Furche-Verlag, 1961 2 , pp. 397-408 (“Das Gebet”). Comp., for instance, Calvin’s long discussion<br />

on prayer in all editions of his magnum opus, The Institutes.<br />

9 See the introduction and arrangement of my Ethik. 8 vols. Nürnberg: VTR, <strong>20</strong>09 4 .<br />

111


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

by the Ortho<strong>do</strong>x and Evangelicals (who have a Reformed or Baptist heritage).<br />

The degree to which that ethic has actually been put into practice is another<br />

story and is a topic for sociological and historical analysis.<br />

In his study titled “Singing the Ethos of God,” Brian R. Brock 10 considers<br />

the Psalms to be a pattern for Christian ethics. They <strong>do</strong> not speak only about<br />

and of God. Rather, they are conversations with God which receive ethics,<br />

develop ethics, ask for strength to achieve their fulfillment, and thank God for<br />

his ordinances, directions, and help. In addition to his exegetical studies, the<br />

author refers to St. Augustine, Martin Luther, and Dietrich Bonhoeffer.<br />

2. reformed theology<br />

In the Protestant realm, <strong>do</strong>xology, as the origin and aim of ethics, became<br />

a trademark of the Reformed movement. The World Alliance of Reformed<br />

Churches did not coincidentally name its centennial celebration “The Glory of<br />

God and the Future of Man.” 11 For John Calvin 12 – in order to limit ourselves<br />

to the best known of the many “Reformed reformers” – the glory of God is<br />

the individual’s goal in life, and it is the goal of the entire history of salvation.<br />

The regiment belongs to the Lord, and for people as much as for the entire<br />

world there is nothing, outside of his glory, worth striving for. What can<br />

diminish God’s glory is foolish, irrational, and malicious.” 13<br />

. . . it is not very sound theology to confine a man’s thoughts so much to himself,<br />

and not to set before him, as the prime motive of his existence, zeal to illustrate<br />

the glory of God. For we are born first of all for God, and not for ourselves. As<br />

all things flowed from him, and subsist in him, so, says Paul (Romans xi.36), they<br />

ought to be referred to him. I acknowledge, indeed, that the Lord, the better to<br />

recommend the glory of his name to men, has tempered zeal for the promotion<br />

and extension of it, by uniting it indissolubly with our salvation. But since he has<br />

taught that this zeal ought to exceed all thought and care for our own good and<br />

10 BROCK, Brian R. Singing the Ethos of God: On the Place of Christian Ethics in Scripture.<br />

Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, <strong>20</strong>07.<br />

11 Die Herrlichkeit Gottes und die Zukunft des Menschen: Hundertjahrkonsultation 1977. Genf:<br />

Reformierter Weltbund, 1977.<br />

12 On Calvin’s teaching about praise and worship, see, in particular, MOELLER, Pamela Ann.<br />

Calvin’s Doxology: Worship in the 1559 Institutes... Princeton Theological Monograph Series 44. Allison<br />

Park, Pennsylvania: Pickwick Publications, 1997; on Calvin’s view of the glory of God, see NIESEL,<br />

Wilhelm. Lobt Gott, den Herrn der Herrlichkeit: Theologie um Gottes Ehre. Konstanz: Christliche<br />

Verlagsanstalt, 1983, pp. 13-16; BUSCH, Eberhard. “Calvins Verkündigung der Herrlichkeit Gottes.”<br />

www.reformiert-info.de/288-0-105-16.html or www.calvin09.org/calvin-theo/calvin-theo-texte/herrlichkeit.html<br />

(accessed on January 18, <strong>20</strong>10); comp. also TYNE, James J. “Putting Contexts in Their<br />

Place: God’s Transcendence in Calvin’s Institutes...,” pp. 369-395 in: SCHLISSEL, Steven M. (ed.).<br />

The Standard Bearer. Nacog<strong>do</strong>ches, Texas: CMP, <strong>20</strong>02.<br />

13 CALVIN, Johannes. Auslegung der Heiligen Schrift: Römerbrief und Korintherbriefe. Neukirchen-Vluyn:<br />

Neukirchener Verlag, 1960, p. 240.<br />

112


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

advantage, and since natural equity also teaches that God <strong>do</strong>es not receive what<br />

is his own, unless he is preferred to all things, it certainly is the part of a Christian<br />

man to ascend higher than merely to seek and secure the salvation of his own soul. 14<br />

For Calvin, the glory of God is primarily found (1) in creation, (2) in<br />

Christ, and (3) in the goal of salvation history.<br />

It was typical of Calvin to place a comprehensive and personal appeal for<br />

prayer, for the church as well as with particular regard for the private realm,<br />

before the exegesis of the Lord’s Prayer. At the same time, the experience of<br />

answered prayer plays a significant role for him, 15 as Calvin is overall marked<br />

by a deep, practical piety. In spite of his deep exegetical and systematic digging,<br />

he allows the experience of Christian life to flow into his work. 16 “According<br />

to the line we have noted up to this point, everything is – and it should not<br />

be a surprise – geared towards instruction for prayer. This is demonstrated in<br />

the disposition.” 17 The true mark of the church is, according to Calvin, not the<br />

preaching of the Word of God, but rather its observance, 18 and that is especially<br />

expressed in personal prayer.<br />

The Reformed view has found its classical expression in the famous first<br />

two questions of the Westminster Shorter Catechism, dating from 1647:<br />

1. What is the chief end of man? Man’s chief end is to glorify God, and to enjoy<br />

Him forever. 2. What rule hath God given to direct us how we may glorify and<br />

enjoy him? The Word of God, which is contained in the Scriptures of the Old and<br />

New Testaments, is the only rule to direct us how we may glorify and enjoy Him. 19<br />

The Heidelberg Cathecism expresses it somewhat differently but likewise<br />

powerfully in that the chapter on ethics built upon the Ten Commandments<br />

goes by the title “Of Thankfulness.” <strong>20</strong> However, as is generally known, this all<br />

14 Translation from www.glaubensstimme.de/<strong>do</strong>ku.php?id=autoren:calvin:calvin-antwort_an_kardinal_sa<strong>do</strong>let.<br />

15 Comp. SCHOLL, Hans. “Der Dienst des Gebetes nach Johannes Calvin.” Zürich: Zwingli Verlag,<br />

1968 (Bern Dissertation)”; BÖTTGER, Paul C. Calvins Institutio als Erbauungsbuch. Neukirchen: Neukirchener<br />

Verlag, 1990, pp. 71-74; comp. HARASTA, Eva. Lob und Bitte: Eine systematisch-theologische<br />

Untersuchung über das Gebet. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, <strong>20</strong>05, pp. 112-142.<br />

16 Comp. OBENDIEK, Harmannus. “Die Erfahrung in ihrem Verhältnis zum Worte Gottes bei<br />

Calvin,” pp. 180-214 in: Aus Theologie und Geschichte der reformierten Kirche. Festgabe für E. F. Karl<br />

Müller. Neukirchen: Buchhandlung des Erziehungsvereins, 1933.<br />

17 BÖTTGER, Calvins Institutio als Erbauungsbuch, p. 71.<br />

18 In particular in WARFIELD, Benjamin B. Calvin and Augustine. The B. B. Warfield Collection.<br />

Phillipsburgh, PA: P & R, 1956, p. 16.<br />

19 Quoted in: Der kürzere Westminster Katechismus von 1647. Translated by Kurt Vetterli. MBS<br />

Texte Reformiertes Forum 61. Bonn: Martin Bucer Seminar, <strong>20</strong>06; also at www.bucer.eu.<br />

<strong>20</strong> According to the Heidelberger Katechismus. Translated by Thomas Schirrmacher. MBS Texte<br />

Reformiertes Forum 59. Bonn: Martin Bucer Seminar, <strong>20</strong>05; comp. as a classical commentary on these<br />

113


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

goes back to Martin Luther’s similar approach of introducing the explanation<br />

of each of the Ten Commandments with the words: “We should fear and love<br />

God, so that we...”<br />

The glory of God as the goal of “Calvinists” was also something that<br />

flowed into Max Weber’s famous thesis that Calvinists had developed capitalism.<br />

A classical description of Calvinists from this discussion should suffice<br />

as a representative indication:<br />

Everything comes <strong>do</strong>wn to the moment when God is honored: the entire world<br />

is appointed for his glory; the same thing is the task of the Christian. God seeks<br />

activity on the part of Christians in the world and society; for these should be<br />

so established that they serve the glory of God; social work, i.e., work in the<br />

world and society, in which Calvinism is enjoined as a duty in majorem gloriam<br />

Dei, and it is precisely this character which is also found in vocational work. 21<br />

In a monumental section of his Church Dogmatics, Karl Barth, as is generally<br />

known, discarded the differentiation between <strong>do</strong>gmatics and ethics and in<br />

good Reformed fashion set the glory of God at the center of the “perfections of<br />

God” (as he ingeniously called the attributes of God) as a landmark. 22 Glory “is<br />

the appearing paragon of all divine perfections. It is the fullness of the divinity<br />

of God. It is the eruptive, expressive, manifesting reality of all that which God<br />

is. It is the essence of God inasmuch as God is a self-revealing being.” 23<br />

3. ortho<strong>do</strong>x theology<br />

Outside of the Protestant realm, <strong>do</strong>xology has always been emphasized<br />

as the origin and aim of Christian ethics above all in Ortho<strong>do</strong>x theology. A few<br />

examples should suffice. Geoffrey Wainwright calls his combined <strong>do</strong>gmatics<br />

and ethics Doxology. 24 Every systematic theology is a “theology of worship.” 25<br />

Vigen Guroian champions the same view in his ethics, in particular in his chapter<br />

two questions: VINCENT, Thomas. The Shorter Catechism of the Westminster Assembly Explained from<br />

Scripture. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1980 (original 1674), pp. 1-24, and WATSON, Thomas. A<br />

Body of Divinity: Contained in Sermons upon the Westminster Assembly’s Catechism. Edinburgh: Banner<br />

of Truth Trust, 1986 (original 1692), pp. 6-38.<br />

21 RACHFAHL, Felix. “Kalvinismus und Kapitalismus,” pp. 65-148 in: WINCKELMANN,<br />

Johannes (ed.). Max Weber. Die protestantische Ethik II: Kritiken und Antikritiken. Gütersloh: Gütersloher<br />

Verlagshaus, 1978 6 , pp. 65-66.<br />

22 BARTH, Karl. Die kirchliche Dogmatik. Study Edition. Zürich: Theologischer Verlag, 1987,<br />

vol. 7, pp. 722-764; comp. vol. 8, pp. 362-365; comp. additionally ibid., vol. 31. Gesamtregister, p. 246<br />

(keyword “Herrlichkeit” [glory]). Comp. as a new example FRAME, John M. The Doctrine of God.<br />

Phillipsburg, New Jersey: Presbyte rian & Reformed, <strong>20</strong>02, in particular pp. 592-595.<br />

23 Ibid., p. 725.<br />

24 WAINWRIGHT, Geoffrey. Doxology: A Systematic Theology. Lon<strong>do</strong>n: Epworth Press, 1980 2 .<br />

25 Ibid., “Preface,” no page.<br />

114


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

“Seeing Worship as Ethics.” 26 He emphasizes that ethics and <strong>do</strong>ctrine are not<br />

to be separated from religious practice, at the apex of which stands worship. 27<br />

Stanley Samuel Harakas likewise emphasizes the character of ethics as<br />

worship in his two- volume work on ethics. 28 “Theoria and Praxis” are not<br />

to be separated. 29 The viewpoint that worship and ethics have to be lived out<br />

sounds very similar to evangelical and pietistic formulations. In the United<br />

States, where Ortho<strong>do</strong>x and Evangelicals most frequently deal with each other<br />

at eye level, an unusual display of unity is demonstrated by repeatedly speaking<br />

about this openly.<br />

It is typical that the Ortho<strong>do</strong>x systematic theologian Geoffrey Wainwright<br />

expressly and approvingly quotes the first article of the Westminster Shorter<br />

Catechism, a Reformed <strong>do</strong>cument! 30 And it is likewise typical that Wilhelm<br />

Niesel refers to the “slogan of Reformed believers throughout time,” “To God<br />

alone be the glory.” At the same time, he asks whether this <strong>do</strong>es not have to<br />

be witnessed to by all churches, and in so <strong>do</strong>ing he refers to Easter Jubilation<br />

in the Greek Ortho<strong>do</strong>x Church as an example. 31<br />

4. other denominations<br />

Whoever thinks that <strong>do</strong>xology is only found to be the justification and<br />

goal of ethics in the Reformed and Ortho<strong>do</strong>x spheres will soon discover that<br />

all denominations confess this in principle. It is in each case only a question<br />

of how prominently this actually works itself out in the <strong>do</strong>gmatic and ethical<br />

system – and, of course, how it looks in practice.<br />

Thus, “all for the greater glory of God” (“omnia ad maiorem Dei gloriam”)<br />

was Ignatius Loyola’s (1491-1556) motto. Loyola was the founder of<br />

the Jesuit Order. He wrote the following in his Spiritual Exercises: “Man is<br />

created to praise, reverence, and serve God our Lord.” 32 In the confession of<br />

faith of the decrees of the First Vatican Council (1870-1871), one reads in point<br />

26 GUROIAN, Vigen. Incarnate Love: Essays in Ortho<strong>do</strong>x Ethics. Notre Dame, Iowa: University<br />

of Notre Dame Press, 1987, pp. 51-78.<br />

27 Ibid., p. 51.<br />

28 HARAKAS, Stanley Samuel. Toward Transfigured Life: The ‘Theoria’ of Eastern Ortho<strong>do</strong>x<br />

Ethics. Minneapolis, MN: Light and Life Publishing, 1984, in part. pp. 188-196; vol. 2: Living the Faith:<br />

The Praxis of Eastern Ortho<strong>do</strong>x Ethics, 1992.<br />

29 Ibid., pp. 3-5.<br />

30 WAINWRIGHT, Doxology, p. 17.<br />

31 NIESEL, Wilhelm, Lobt Gott, den Herrn der Herrlichkeit: Theologie um Gottes Ehre. Konstanz:<br />

Christliche Verlagsanstalt, 1983, p. 11.<br />

32 Chapter 23, quoted in http://www.jesuiten.org/geschichte/index.htm of Feb. 24, <strong>20</strong>09. See also<br />

as a new Catholic example HÖRMANN, Karl. Lexikon der christlichen Moral. Innsbruck: Tyrolia, 1976.<br />

Col. 109-39 (“Bestimmung des Menschen” – English translation: “Man’s Calling”).<br />

115


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

5 of the Canons the following: “If anyone . . . denies that the world was created<br />

for the glory of God: let him be anathema.” 33<br />

From a Lutheran point of view, Amy C. Schifrin laments that the basic<br />

problem in modern Christian social ethics is “the cosmetic separation of ethics<br />

from <strong>do</strong>xology,” and she calls for “<strong>do</strong>xological ethics.” 34 Such examples can<br />

be cited from all Christian denominations and orientations.<br />

5. liturgy and ethics<br />

“Honor be unto the Father and the Son and the Holy Spirit, as it was in<br />

the beginning, is now and ever will be and from eternity to eternity. Amen.”<br />

Since the fourth century, this liturgical refrain has marked Christian worship<br />

services and has summarized its elementary theological structure.” 35<br />

Our question in the discussion often concentrates on the relationship<br />

between liturgy and ethics. Liturgy is indeed, on the one hand, only a part of<br />

the entire spectrum of worship. However, it is its most visible and most significant<br />

expression. This is due to the fact that God seeks public and collective<br />

reverence and pronouncement of his glory. Furthermore, the body of Christ, the<br />

church, is most visible when more than anything else it corporately celebrates<br />

the Lord’s Supper and, in so <strong>do</strong>ing, sacramentally places thanksgiving to God<br />

and Christ at the center of the faith.<br />

The ancient maxim “lex orandi, lex credendi,” meaning that whatever<br />

one prays and confesses in worship is what determines faith and action, is<br />

mainly held high by Catholic, Ortho<strong>do</strong>x, Anglican, Lutheran, and Reformed<br />

churches, 36 but admittedly has fallen into oblivion in a number of wings of<br />

the evangelical spectrum. Calvin, for instance, assumed that the church had to<br />

intensively work on what occurs in the worship service, for it is through the<br />

word, song, and sacrament that the everyday life of believers is shaped. As a<br />

33 DS 3025 (1976 edition).<br />

34 SCHIFRIN, Amy C. “Delight, Design and Destiny: Toward a Doxological Ethics of Sexuality”<br />

(composed on Apr. 28, <strong>20</strong>09), http://www.lutheranforum.org/sexuality/delight-design-and-destinytoward-a-<strong>do</strong>xological-ethics-of-sexuality/<br />

(accessed on Jan. 18, <strong>20</strong>09).<br />

35 WAINWRIGHT, Geoffrey. “Systematisch-theologische Grundlegung,” pp. 72-92, in: SCHMIDT-<br />

LAUBER, Hans-Christoph; BIERITZ, Karl-Heinrich, Handbuch der Liturgik. Leipzig: Ev. Verlagsanstalt,<br />

1995, p. 72.<br />

36 See above all STURFLESSER, Martin; WINTER‚ Stefan. “Ahme nach, was du vollziehst”:<br />

Positionsbestimmungen zum Verhältnis von Liturgie und Ethik. Studien zur Pastoralliturgie 22. Regensburg:<br />

Pustet, <strong>20</strong>09; comp. also WAINWRIGHT, Doxology, pp. 218-286 on the Ortho<strong>do</strong>x and Catholic<br />

discussion; SAUTER, Gerhard. Zugänge zur Dogmatik: Elemente theologischer Urteilsbildung. Göttingen:<br />

V&R, 1998, p. 22 on Lutheran and Anglican discussion; NGIEN, Dennis. Gifted Response: The Triune<br />

God as the Causative Agency of our Responsive Worship. Milton Kenyes (GB): Paternoster, <strong>20</strong>08. pp. 1-2<br />

(Basil of Caesarea), 56-58 (Anselm), 75-76 (Augustine), 159 (Calvin). An evangelical justification is<br />

found in ZAHL, Paul F. M. “Formal-Liturgical Worship,” pp. 23-40 in: ZAHL, Paul F. M. et al. Exploring<br />

the Worship Spectrum: 6 Views. Grand Rapids, MI: Zondervan, <strong>20</strong>06, here pp. 25-27.<br />

116


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

matter of fact, it is often underestimated, for instance, what consequences the<br />

absence of elements in classical worship has (e.g., the lack of sermons from<br />

the Old Testament or the lack of intercessory prayer for the persecuted church)<br />

and how deeply the elements of the worship service outside of the sermon are<br />

able to shape belief through their continual presence or repetition (e.g., the<br />

collective prayer for forgiveness, which humbles Christians, and the absence of<br />

which is mostly a sign of a certain feeling that Christians are principally better<br />

than other people [comp. Luke 18:11-14]).<br />

The thought of the common bond of glorification in the worship service<br />

and in <strong>do</strong>gmatics and ethics is arguably most pronounced in Ortho<strong>do</strong>x theology.<br />

The classic statement may be the following: “The lack of agreement between<br />

liturgy and ethics leads to an undesired separation between that which is worldly<br />

and that which is holy.” 37<br />

6. the glory of god<br />

When the glory of God is commended to people, this has two sides in the<br />

Bible. On the one hand, it has to <strong>do</strong> with recognizing the glory God already<br />

has eternally, be it one way or the other. This is regardless of how we stand<br />

in relation to him, for he is the God of glory (Acts 7:2), “the God of our Lord<br />

Jesus Christ, the glorious Father” (Ephesians 1:17). Just as on Mount Sinai,<br />

God’s glory comes from above and becomes visible for people to see (Exodus<br />

24:16-17).<br />

What is created is called glorious only insofar as it is derived from God’s<br />

glory, with humankind leading the way as the image of God (above all in<br />

Psalm 8:6: “You. . . crowned him with glory and honor”). 38 However, this also<br />

includes celestial bodies (1 Corinthians 15:40f.) or the splen<strong>do</strong>rous lilies of<br />

the field (Matthew 6:28), even if since the fall all of this “glory” is ephemeral<br />

just as the grass is. This means that in the end every form of glory only reflects<br />

the glory of God. 39<br />

On the other hand, we are talking about a glory which we give to God,<br />

the glorification of God, which in the end only acknowledges his existing<br />

glory, as Psalm 150:2 makes clear: “Praise him for his acts of power; praise<br />

him for his surpassing greatness.” The church father and martyr Irenaeus of<br />

Lyons formulated it briefly and concisely: “For the glory of God is a living<br />

man [gloria Dei vivens homo]; and the life of man consists in beholding God”<br />

(Against Heresies IV.<strong>20</strong>:7).<br />

37 GUROIAN, Incarnate Love, p. 399. The liturgy of Ortho<strong>do</strong>x worship is described in German best<br />

by GOGOL, Nikolaj V. Betrachtungen über die Göttliche Liturgie. Würzburg: Der christliche Osten, 1989.<br />

38 On Psalm 8 in the New Testament see BRÜNENBERG, Esther, Der Mensch in Gottes Herrlichkeit:<br />

Psalm 8 und seine Rezeption im Neuen Testament. Forschungen zur Bibel 119. Würzburg:<br />

Echter, <strong>20</strong>09, pp. 135-239.<br />

39 Especially according to BARTH, Dogmatik, vol. 8, p. 364.<br />

117


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

Scholastic theology differentiated between the inner honor of God, which<br />

is in essence inherent to his nature, and the external honor of God, which he assigns<br />

to humankind and is expressed in reverence shown by individuals. People<br />

see the glory of God (Numbers 14:22) and are responsible to see to it that “the<br />

glory of the Lord fills the whole earth” (verse 21). We render God honor which<br />

is due him anyway and which he has anyway, as becomes clear in 1 Chronicles<br />

16:28-29: “Ascribe to the Lord, O families of nations, ascribe to the Lord glory<br />

and strength, ascribe to the Lord the glory due his name. Bring an offering and<br />

come before him; worship the Lord in the splen<strong>do</strong>r of his holiness.”<br />

What also belongs to the glory of God is the fact that he shares his honor<br />

with no one (Isaiah 48:11; Exodus <strong>20</strong>:1), which means for us that nobody else<br />

is to be given honor, no other gods and powers, also no other people, be it the<br />

state, or the church, or the individual himself. In this connection, there has been<br />

talk of the idea that an unholy life led by believers in God brings disgrace to<br />

God, at least in the eyes of non-believers: “You who brag about the law, <strong>do</strong> you<br />

dishonor God by breaking the law? As it is written: ‘God’s name is blasphemed<br />

among the Gentiles because of you’” (Romans 2:23-24).<br />

God inexplicably ties his honor to his people. Thus, in the Old Testament,<br />

in Isaiah 48:10-13, one reads that he calls, tests, and refines “Israel” because<br />

he is the almighty Creator (verse 13) and that “for my own sake, for my own<br />

sake, I <strong>do</strong> this. How can I let myself be defamed? I will not yield my glory<br />

to another” (verse 11). Correspondingly, in the New Testament, in Ephesians<br />

1:9-2:22, one sees that God saves the church by grace and has it mature in<br />

good works so that all powers will recognize his greatness and “in order that<br />

we, who were the first to hope in Christ, might be for the praise of his glory”<br />

(1:12). Ultimately, the following applies to believers: “When Christ, who is<br />

your life, appears, then you also will appear with him in glory” (Colossians<br />

3:3-4; comp. 2 Thessalonians 1:10).<br />

7. goodness to the honor of god – gratitude<br />

as the highest commandment<br />

Conversely, it is repeatedly emphasized that everything good that we<br />

<strong>do</strong> should occur to the honor of God. Thus, the following is said of the gifts<br />

of grace: “If anyone speaks, he should <strong>do</strong> it as one speaking the very words of<br />

God. If anyone serves, he should <strong>do</strong> it with the strength God provides, so that<br />

in all things God may be praised through Jesus Christ. To him be the glory and<br />

the power for ever and ever. Amen” (1 Peter 4:11). According to 1 Corinthians<br />

6:<strong>20</strong>, we are “bought at a price. Therefore honor God with your body.” Thus,<br />

what we <strong>do</strong> physically is included here, as 1 Corinthians 10:31 demonstrates<br />

with respect to eating: “So whether you eat or drink or whatever you <strong>do</strong>, <strong>do</strong> it<br />

all for the glory of God.”<br />

118


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

The highest commandment within Christian ethics that remains is to thank<br />

God, to honor God, and to love him with all of one’s heart. In Romans 1:16-32,<br />

Paul proceeds on the assumption that humankind’s original sin is not a certain<br />

concrete act. Rather, it lies in man’s failure to thank and revere his Creator<br />

and instead to worship other things and other beings. The concrete sins, such<br />

as slander or sexual aberration are, first of all, the consequence of God giving<br />

humankind over to their desires of their hearts (verses 26, 28). Besides, it is<br />

typical for Paul that in the middle of his <strong>do</strong>gmatic-ethical remarks he erupts<br />

into spontaneous praise: “. . . the creator . . . who is forever praised. Amen”<br />

(verse 25).<br />

It is revealing that at the beginning of the Old Testament, Genesis 4 follows<br />

Genesis 3, i.e., the break with God occurred and then fratricide, which<br />

is one of its consequences. It would appear more insightful to see the horrible<br />

guilt of fratricide as the Fall and the broken relationship with God as the result<br />

of it. However, the Bible already emphasizes at this point that the destroyed<br />

relationship among people is just a consequence of the destroyed relationship<br />

between people and God.<br />

8. awe before god and his being as the starting<br />

point for christian ethics<br />

The Old and New Testament term “fear of God” (better expressed as “awe”)<br />

very clearly illustrates the basic normative principle of Christian ethics, which<br />

sees everything that happens as intended for the glory of God. Ernst Luthardt<br />

has written that “as early as the Old Testament, the fear of God, trust in God,<br />

and love of God are the roots of moral behavior.” 40<br />

The essence of wis<strong>do</strong>m literature in the Old Testament is, then, found in<br />

the statement 41 : “The fear of the Lord is the beginning of wis<strong>do</strong>m” (Proverbs<br />

9:10; similarly 1:7) or even with more brevity: “The fear of the Lord – that is<br />

wis<strong>do</strong>m” (Job 28:28), whereby “wis<strong>do</strong>m” here is practical life wis<strong>do</strong>m and<br />

not a purely intellectual item, as the supplements to these statements in other<br />

texts demonstrate: “The fear of the Lord teaches a man wis<strong>do</strong>m, and humility<br />

comes before honor” (Proverbs 15:33); “The fear of the Lord is the beginning<br />

of wis<strong>do</strong>m; all who follow his precepts 42 have good understanding” (Psalm<br />

111:10). Ethical wis<strong>do</strong>m without the fear of God is thus unthinkable in the<br />

Bible. For that reason, the consequence is as follows: “To fear the Lord is to<br />

hate evil” (Proverbs 8:13).<br />

40 LUTHARDT, Chr. Ernst. Kompendium der theologischen Ethik. Leipzig: Dörffling & Franke,<br />

1921 3 , p. 9.<br />

41 Comp. VON RAD, Gerhard. Weisheit in Israel. Neu kirchen: Neukirchener Verlag, 1985 3 , pp. 90-94.<br />

42 In Hebrew grammar, the “his” refers to the “precepts” in Psalm 111:7, but in the old translations<br />

referred to the “fear of the Lord.” However, no true contradiction lies therein.<br />

119


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

Both the Old and the New Testaments have to <strong>do</strong> with God, who is by<br />

far the person mentioned more often in the Bible. At the same time, the Holy<br />

Scriptures of the Old and New Covenants are oriented virtually through and<br />

through towards people’s lives. This practical orientation <strong>do</strong>es not, however,<br />

occur at the expense of occupation with God. Rather, it arises from the fact that<br />

the essence of God, whom the Bible reveals, is repeatedly the reason for ethical<br />

instructions and decisions. David correctly sings: “You are my Lord; apart<br />

from you I have no good thing” (Psalm 16:2).<br />

For that reason, W. S. Bruce has written the following about the Old<br />

Testament: “In Israel it is God himself who is the all wise one, the holy one,<br />

and the good one, the prototype of all moral life and action.” 43<br />

Religious faith and ethical life are so intimately bound together through this<br />

foundational conception of the character of God that they cannot be separated<br />

from each other. “At this point, Jewish ethics hooks into theology, but theology<br />

is itself essentially of an ethical nature.” 44<br />

Emil Brunner coined a similar formula: “There is no ‘goodness in<br />

itself,’” 45 since there is no goodness without one who is good, who creates it,<br />

mandates it, and enables it.<br />

What is good is what God <strong>do</strong>es and wishes; what is evil is what occurs against<br />

the will of God. Goodness has its foundation and existence solely in God’s will.<br />

An idea such as Zarathustra’s religion, that God is the Lord because he chose<br />

the good, the idea of a law which stands above God, is unthinkable in the Old<br />

Testament. God is not merely a guardian of the moral law and of moral rules.<br />

Rather, he is their Creator. 46<br />

The will of God<br />

... is the sole valid norm. For that reason, what is “religious” is at the same time what<br />

is “moral”, and the moral is religious. The relation to God is grounded in God’s<br />

covenant with humankind; for that reason, it is a relationship of trust. It is nothing<br />

like a blind force of nature which asserts claim to God’s rights of Lordship. 47<br />

43 BRUCE, W. S. The Ethics of the Old Testament. Edin burgh: T. & T. Clark, 1895, p. 38.<br />

44 Ibid., p. 39 using the quote by W. L. Davidson.<br />

45 BRUNNER, Emil. Das Gebot und die Ordnungen. Zürich: Zwingli Verlag, 1939 4 , p. 99.<br />

46 Ibid., p. 39. Brunner points out in ibid., pp. 83+578-579, that the Aristotelian-Thomistic (arising<br />

due to St. Thomas Aquinas’ seizing upon the Greek philosopher Aristotle) ethics of the Christian Middle<br />

Ages contradicted this principle and placed a principle of the good as an objective entity in the place of<br />

the will of God and action appropriate to human nature (“natural law”) as a subjective reaction in place<br />

of obedience.<br />

47 Ibid., p. 40.<br />

1<strong>20</strong>


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

Since God himself is justice and he himself institutes just order, he cannot<br />

be unjust: “Far be it from God to <strong>do</strong> evil, from the Almighty to <strong>do</strong> wrong” (Job<br />

34:10; similarly Job 8:3; Deuteronomy 32:4; 2 Chronicles 19:7).<br />

God is the point of departure and the authority of Christian ethics.<br />

Wherever another set of ethics applies, there is the application of another<br />

authority besides the authority of God, for “the [final] authority of a system is<br />

the God of that system.” 48<br />

All of this applies not only to foundational statements, such as: “Be holy<br />

because I, the Lord your God, am holy” (Leviticus 19:2; similarly 11:44). It<br />

also applies to individual questions. This is how Paul justifies his very specific<br />

directions as to how many prophets are allowed to speak after each other in a<br />

worship service (1 Corinthians 14:26-32), for instance with the statement: “For<br />

God is not a God of disorder but of peace” (1 Corinthians 14:33). To mention<br />

an additional example, in the Ten Commandments the seventh day of the week<br />

is a day of rest for God because God himself rested in the creation of the world<br />

on the seventh day and blessed that day (Exodus <strong>20</strong>:11).<br />

There are additional examples for substantiating commands within the<br />

Ten Commandments using the essence of God. One would include grounding<br />

the prohibition against revering other Gods on the jealousy of God (“I, the<br />

Lord your God, am a jealous God”, Exodus <strong>20</strong>:5). Furthermore, the prohibition<br />

against the misuse of God’s name is justified with reference to God as an<br />

afflicting God (Exodus <strong>20</strong>:7) and the overall rationale behind the Ten Commandments<br />

is the goodness of God (“I am the Lord your God, who brought<br />

you out . . . of the land of slavery”, Exodus <strong>20</strong>:2).<br />

9. the twofold commandment: love and honor<br />

god and love others<br />

The combination of honoring God and keeping his commandments, or<br />

loving God and, for that reason, loving his commands and living them out is<br />

something that pervades the entirety of the Holy Scriptures. It is the foundational<br />

structure of the Ten Commandments. The Book of Ecclesiastes ends<br />

with “the conclusion of the matter: Fear God and keep his commandments, for<br />

this is the whole [duty] of man” (Ecclesiastes12:13). In Micah 6:8 one reads:<br />

“He has showed you, O man, what is good. And what <strong>do</strong>es the Lord require<br />

of you? To act justly and to love mercy and to walk humbly with your God.”<br />

It is similarly stated in Deuteronomy 13:4: “It is the Lord your God you must<br />

follow, and him you must revere. Keep his commands and obey him; serve<br />

him and hold fast to him.”<br />

48 DeMAR, Gary. God and Government. Vol. 1. Atlanta, GA: American Vision Press, 1984 (1982<br />

reprint), p. 58.<br />

121


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

In the middle of the praise in Psalm 86:8-13 regarding the hope that all<br />

peoples will worship God and all the praise to the goodness of God because he<br />

rescues people from death, one reads in verse 11: “Teach me your way, O Lord,<br />

and I will walk in your truth; give me an undivided heart, that I may fear your<br />

name.” “The great commandment” is well known and is as follows: “Hear, O<br />

Israel: The Lord our God, the Lord is one. Love the Lord your God with all<br />

your heart and with all your soul and with all your strength” (Deuteronomy<br />

6:4-5). The other is this: “. . . love your neighbor as yourself” (Leviticus 19:18;<br />

Mark 12:19-31). At this point worship and ethics are placed on the same level.<br />

The inalienability of the teaching of the Trinity and of the reverence given<br />

to the Triune God lies, in my opinion, among Father, Son, and Spirit. He did<br />

not first have to create a counterpart in order to be able to actually love. Rather,<br />

love is the agenda of the creation, and it is founded on the fact that the world<br />

was created by a God who is eternally love and not so only theoretically. Rather,<br />

it is in practical terms out of an eternal relationship of love.<br />

10. shame and guilt<br />

At this point, one has to go in detail into a question that has been carried<br />

over from missiology to systematic theology, namely the question of how<br />

the difference between guilt-oriented and shame-oriented cultures influences<br />

our topic and whether Biblical revelation is closer to one or the other culture.<br />

Since issues in shame-oriented cultures are addressed primarily as matters of<br />

“honor,” Christians who live in those contexts particularly emphasize God’s<br />

honor. Since on a global basis evangelicals are in the meantime at home in<br />

shame-oriented cultures, evangelical missionaries, missiologists, and anthropologists<br />

have submitted related groundbreaking studies. 49<br />

In my book Culture of Shame/Culture of Guilt (German original Scham- oder<br />

Schuldgefühl?), I have spoken out at length in favor of the complementarity<br />

of the Biblical message with respect to this question. It is for this reason<br />

that shame-oriented cultures have accumulated needs in the area of Biblical<br />

understandings of law and guilt – all the way into how it applies to politics.<br />

Conversely, guilt-oriented cultures, for instance our German culture, have<br />

accumulated needs on how the Bible sees the loss of one’s own honor and the<br />

disavowal of God’s glory as consequences of the Fall, and, contrariwise, have<br />

the need to come to a deeper understanding of how the cross of Jesus restores<br />

God’s honor and, with that, has restored and will restore our honor.<br />

49 For example, WIHER, Hannes. Shame and Guilt: A Key to Cross-Cultural Ministry. Edition<br />

IWG – Mission Academics 10. Bonn: Verlag für Kultur und Wis senschaft, <strong>20</strong>03, and LOMEN, Martin.<br />

Sünde und Scham im biblischen und islamischen Kontext. Edition Afem – Mission Scripts 21. Nürnberg:<br />

VTR, <strong>20</strong>03, as well as a collective volume by SCHIRRMACHER, Thomas, and MÜLLER, Klaus W.<br />

(eds.), Scham- und Schul<strong>do</strong>rientierung in der Diskussion: Kulturanthropologische, missiologische und<br />

theologische Einsichten. Bonn: VKW & Nürnberg: VTR, <strong>20</strong>06.<br />

122


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

As a violation of the law of God, sin against God leads to guilt before God.<br />

And as an encroachment on the honor/glory of God, sin leads to shame before<br />

God. Only through God’s righteousness and God’s honor/glory is it possible<br />

for man’s righteousness to be restored. 50<br />

This ultimate position of the honor of God makes it impossible to exclude<br />

aspects of an orientation towards honor and dishonor from Christian <strong>do</strong>gmatics<br />

and ethics!<br />

The Bible is full of summons to give God the honor which is due him<br />

(e.g., 1 Chronicles 16:28; Psalm 3:4; 19:2; Luke 12:14). In the process, to “give<br />

honor” is in the final sense a<strong>do</strong>ration, i.e., worship, and in the final analysis<br />

it is something that only God is entitled to: “Oh, praise the greatness of our<br />

God!” (Deuteronomy 32:3).<br />

Admittedly, what becomes very clear here is that the Biblical question<br />

is not whether we are shame or guilt-oriented. Rather, it orients itself towards<br />

our honor and justness. Whoever orients his sense of honor towards people as<br />

the final norm errs just as much as he who orients his sense of justness towards<br />

people as the final norm.<br />

To some extent, one also interestingly finds at this point Biblical complementarity<br />

between shame and guilt orientations in the main confessions of the<br />

Reformation. While the Lutheran discovery was above all that justification<br />

is not allowed to be oriented towards people and cannot in the final event be<br />

produced by people, but is rather a gift of God, the Reformed called for everything<br />

to be oriented towards the glory and honor of God and to make this the<br />

highest goal of life – without giving up the Lutheran discovery. An individual<br />

can produce this honor out of himself as little as he can <strong>do</strong> so with justness.<br />

Through God’s justness, an individual can become just and come to God,<br />

and through God’s honor and glory, an individual can gain the derived glory<br />

of the children of God. Together, both lead to a situation where we can have<br />

fellowship and peace with God (Romans 5:1).<br />

God’s honor means, on the one hand, being oriented towards giving up<br />

one’s own honor and not orienting oneself towards obtaining honor from people.<br />

One should primarily have shame before God and not before people. For that<br />

reason, people are criticized who <strong>do</strong> wrong things out of fear of other people.<br />

A Christian should orient himself towards God and not towards shame before<br />

other people: “However, if you suffer as a Christian, <strong>do</strong> not be ashamed, but<br />

praise God that you bear that name” (1 Peter 4:16). “What will others think of<br />

me?” is not a proper life principle.<br />

50 SCHIRRMACHER, Thomas. Scham- oder Schuldgefühl? Die christliche Botschaft angesichts<br />

von schuld- und schamorientierten Gewissen und Kulturen. Bonn: VKW, <strong>20</strong>05. Likewise idea-Dokumentation<br />

8/<strong>20</strong>05, p. 39.<br />

123


Thomas Schirrmacher, The <strong>do</strong>xological Dimension of Ethics<br />

The absence of self-redemption means: Justness and honor are unable<br />

to be produced by individuals on their own. According to cultural orientation,<br />

self-redemption can come to express that all men think they are able to work<br />

up the necessary justification before God on their own as well as to think that<br />

one is able to work up honor and glory before God on their own. God has<br />

created us to be imbued with honor and justification and has also given us as<br />

individuals a conscience with a shame and guilt orientation. Both orientations<br />

significantly contribute to succeeding in life both within the individual and<br />

within the community.<br />

Sin against God, as a violation of the law of God, leads to guilt before<br />

God. And as an encroachment on the honor/glory of God, sin leads to shame<br />

before God. For that reason, according to Genesis 3, Adam and Eve considered<br />

themselves guilty before God as well as being ashamed (Genesis 3:9-12). Only<br />

through God’s righteousness and God’s honor/glory is it possible for man’s<br />

righteousness to be restored.<br />

Suggestions for further study:<br />

1. In the middle of a theological discussion, Paul breaks out into spontaneous,<br />

practical praise (Romans 1:25). Why would that seem to be<br />

strange in a project paper or dissertation nowadays?<br />

2. How can one recognize for him or herself when good works and<br />

sanctification are not serving the glory of God but rather oneself?<br />

3. Discuss the statement in the 1647 Shorter Catechism: “Man’s chief<br />

end is to glorify God, and to enjoy him forever.”<br />

Resumo<br />

O autor argumenta que a ética cristã está intimamente ligada não apenas<br />

à <strong>do</strong>utrina, mas também ao culto. Estan<strong>do</strong> enraizada na justiça de Deus, ela<br />

é tanto um componente quan<strong>do</strong> uma consequência direta <strong>do</strong> culto. Esse fato<br />

aponta para o verdadeiro senti<strong>do</strong> de “orto<strong>do</strong>xia”, a saber, correta ou verdadeira<br />

a<strong>do</strong>ração. Historicamente, essa conexão tem si<strong>do</strong> especialmente acentuada nas<br />

tradições orto<strong>do</strong>xa grega e reformada. No protestantismo, a <strong>do</strong>xologia como<br />

origem e alvo da ética é uma característica <strong>do</strong> movimento reforma<strong>do</strong> desde<br />

que João Calvino colocou a glória de Deus no centro de sua teologia, sen<strong>do</strong><br />

segui<strong>do</strong> por catecismos reforma<strong>do</strong>s como os de Heidelberg e Westminster.<br />

Portanto, existe uma afinidade inescapável entre liturgia e ética, conforme<br />

expresso na antiga máxima “lex orandi, lex credendi”. Na segunda parte <strong>do</strong><br />

artigo, o autor articula uma teologia bíblica da ética <strong>do</strong>xológica, abordan<strong>do</strong><br />

temas como a glória de Deus, a gratidão como o mandamento supremo, a reverência<br />

diante de Deus como o ponto de partida da ética cristã e o duplo dever<br />

de amar a Deus e ao próximo. Finalmente, é feita uma comparação, sugerida<br />

pela missiologia, entre culturas orientadas para a vergonha e orientadas para<br />

124


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 109-125<br />

a culpa, aquelas estan<strong>do</strong> preocupadas com a honra e estas com a justiça. Tais<br />

orientações derivam <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> tanto como violação da lei de Deus (culpa)<br />

quan<strong>do</strong> como transgressão da honra/glória de Deus (vergonha).<br />

Palavras-chave<br />

Ética cristã; Doxologia; Culto; Tradição orto<strong>do</strong>xa; Tradição reformada;<br />

Glória de Deus; Dez Mandamentos; Vergonha e culpa.<br />

125


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 127-133<br />

Resenha<br />

Danillo A. Santos*<br />

BibleWorks 10. Norfolk, VA: BibleWorks, LLC, <strong>20</strong>15.<br />

BibleWorks começou em 1992 com o trabalho de Mark Cannon. A companhia<br />

visa “proporcionar a pastores, professores, alunos e missionários as<br />

ferramentas necessárias para manejar ‘bem a palavra da verdade’ (2 Tm 2.15)”. 1<br />

Com menos de cinco funcionários de tempo integral, a companhia afirma seu<br />

desejo de “servir a Igreja, não para obter lucro”, 2 poden<strong>do</strong>, assim, “fornecer um<br />

pacote completo que contém as ferramentas mais essenciais para o exercício<br />

da interpretação das Escrituras no grego e hebraico originais, e fazê-lo por um<br />

preço que pastores e alunos com menor poder aquisitivo possam pagar”. 3 Nos<br />

últimos 23 anos de sua existência, BibleWorks (representada aqui pela abreviação<br />

BW) tem constantemente progredi<strong>do</strong> e aperfeiçoa<strong>do</strong> seu programa para<br />

ajudar os usuários a realizarem buscas no texto bíblico que levariam Calvino<br />

e Lutero a sentir inveja.<br />

A última edição <strong>do</strong> programa, BibleWorks 10, foi lançada em abril de <strong>20</strong>15<br />

e mantém a tradição de qualidade e excelência em software bíblico. Esse novo<br />

lançamento merece uma resenha em nosso contexto cada vez mais informatiza<strong>do</strong>.<br />

1. o que é o bibleworks?<br />

De forma simples, BibleWorks é um software de exegese bíblica. Assim,<br />

ele é uma ferramenta, não um produto acaba<strong>do</strong>. BibleWorks não escreve esboços<br />

* O autor é forma<strong>do</strong> em Línguas Bíblicas e Letras Inglesas pelo The Master’s College. Tem o grau<br />

de Mestra<strong>do</strong> em Divindade pelo Reformed Theological Seminary de Jackson, Mississipi, e é <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong><br />

no Westminster Theological Seminary, em Filadélfia, Pensilvânia.<br />

1 Minha tradução. A missão <strong>do</strong> BibleWorks, LLC, em sua totalidade, pode ser encontrada no<br />

endereço: http://www.bibleworks.com/about.html.<br />

2 Ibid.<br />

3 Ibid.<br />

127


BibleWorks 10<br />

de sermões nem faz uma exegese de seminário, mas ajuda o pastor ou aluno a<br />

prepará-los. Em outras palavras, é um programa que facilita buscas bíblicas,<br />

como uma concordância, porém permite um grau muito maior de personalização<br />

e especificidade que qualquer concordância impressa poderia fazer. É possível<br />

fazer essas buscas em várias versões textuais <strong>do</strong> grego, hebraico, aramaico ou<br />

em traduções para diversas línguas (incluin<strong>do</strong>, é claro, o português).<br />

Como BW está direciona<strong>do</strong> à exegese das Escrituras, é óbvio que uma<br />

das funções mais úteis <strong>do</strong> programa é ajudar o usuário na tradução de palavras<br />

bíblicas em grego, hebraico ou aramaico. Com o texto original na janela de<br />

leitura, o usuário pode ver sua tradução e análise morfológica imediatamente<br />

ao passar o cursor por cima da palavra desejada. Esse processo é mais rápi<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que em qualquer outra ferramenta bíblica eletrônica atual.<br />

Do mesmo mo<strong>do</strong>, por ser um programa de exegese bíblica, BW não concentra<br />

sua atenção em ebooks, como o Logos Bible Software o faz. Logos, por<br />

ser primariamente um programa de biblioteca eletrônica, possui um acervo de<br />

ebooks bem maior que o BW, que tem apenas alguns módulos de livros que<br />

poderão ajudar na tarefa mais específica da exegese.<br />

Ao abrir o programa no computa<strong>do</strong>r, o usuário perceberá que BibleWorks<br />

está dividi<strong>do</strong> em três janelas: (1) uma janela de pesquisa, onde se pode fazer<br />

as buscas e ver seus resulta<strong>do</strong>s; (2) uma janela de leitura, mostran<strong>do</strong> a versão<br />

(ou versões) na qual se faz a pesquisa e (3) uma janela de análise, que oferece<br />

vários guias úteis ao estu<strong>do</strong> bíblico. Além dessas janelas, o programa possui<br />

outros recursos, como mapas, comentários, gramáticas gregas e hebraicas,<br />

diagramas gramaticais <strong>do</strong> texto bíblico, livros apócrifos e pseudepígrafos, etc.<br />

Na janela de pesquisa, é possivel fazer diferentes tipos de buscas. O tipo<br />

mais simples pode ser compara<strong>do</strong> a uma concordância poliglota. Assim, por<br />

exemplo, é possível encontrar to<strong>do</strong>s os versículos em uma versão grega <strong>do</strong><br />

Novo Testamento nos quais aparecem a palavra δίκαιος, sua tradução inglesa<br />

righteous ou just, ou a palavra justo. Pode-se, igualmente, fazer pesquisas mais<br />

complexas, como encontrar todas as vezes em que as palavras misericórdia e<br />

fidelidade (ou suas homólogas hebraicas ds,x, e ‏(/‏a‏,מת aparecem juntas, notan<strong>do</strong><br />

assim possíveis referências a Êxo<strong>do</strong> 34.6.<br />

Além dessas buscas léxicas, BW também possibilita pesquisas morfológicas.<br />

Para o aluno que for escrever uma exegese de Tiago 1.1-8, por exemplo,<br />

é possível, para se ter uma ideia geral da epístola, fazer uma busca de verbos<br />

imperativos em to<strong>do</strong> o Novo Testamento e ter o percentual de quantas palavras<br />

<strong>do</strong> livro são imperativos. A busca e a distribuição das porcentagens podem ser<br />

feitas em menos de 30 segun<strong>do</strong>s e mostram que o livro de Tiago realmente tem<br />

maior percentual de imperativos por palavras totais que qualquer outro livro<br />

<strong>do</strong> Novo Testamento (3,152%, compara<strong>do</strong> com 2,703% em 1 Timóteo, em segun<strong>do</strong><br />

lugar, e 0,536% em 2 Coríntios, em último lugar). Assim, ao apresentar<br />

128


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 127-133<br />

o livro na sua exegese, este aluno pode dizer que a epístola de Tiago é o livro<br />

mais imperativo <strong>do</strong> Novo Testamento.<br />

Buscas como o exemplo acima podem ser feitas na janela de pesquisa,<br />

utilizan<strong>do</strong> o banco de da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> grego ou hebraico morfológico. Para acelerar<br />

o processo da busca, as buscas morfológicas são feitas com códigos (ao invés<br />

de escrever cada palavra por extenso). Porém, esse código é difícil de conhecer<br />

e de usar. Por exemplo, se quiséssemos ver onde a palavra ἀγαπαώ aparece na<br />

primeira pessoa <strong>do</strong> subjuntivo, sem nenhuma outra especificação (por exemplo,<br />

de tempo ou voz), o código <strong>do</strong> BW seria [.αγαπαω@vs??1*], excluin<strong>do</strong><br />

os colchetes. Obviamente, é difícil aprender esse código. Por isso, BW vem<br />

com um menu suspenso incluso, que guia o usuário a cada letra com possíveis<br />

critérios morfológicos que o usuário queira adicionar à busca.<br />

Existem outras possibilidades no BW, como as buscas morfológicas ou<br />

léxicas no grego de Josefo, Filo, Septuaginta, livros apócrifos ou pseudepígrafos.<br />

Assim, quan<strong>do</strong> o usuário quiser fazer um estu<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong> de<br />

uma palavra, como ιἑράτευμα, que ocorre apenas em 1 Pedro 2.5 e 9 no Novo<br />

Testamento, ele pode fazer uma busca da mesma palavra em outros textos<br />

gregos mais ou menos contemporâneos <strong>do</strong> Novo Testamento, histórica e socialmente.<br />

Olhan<strong>do</strong> o contexto da palavra nesses outros textos pode revelar que,<br />

no contexto judaico, essa palavra era utilizada quase sempre com referência a<br />

Êxo<strong>do</strong> 19.6. No caso de 1 Pedro 2.9, isso não é surpreendente, visto que Pedro<br />

faz uma alusão clara ao texto de Êxo<strong>do</strong>, mas talvez seja surpreendente saber<br />

que, mesmo no judaismo antigo, o conceito de sacerdócio era frequentemente<br />

associa<strong>do</strong> à nação, e não a um grupo específico.<br />

As possibilidades são múltiplas. O aluno que quiser verificar seu aprendiza<strong>do</strong><br />

de formas <strong>do</strong> verbo Qal poderá fazer uma busca por to<strong>do</strong>s os verbos Qal<br />

nas raízes verbais que ele já aprendeu. O missionário ou tradutor que quiser<br />

uma palavra diferente para comunicar a ideia de “advoga<strong>do</strong>” em 1 João 2.1<br />

(tradução da ARA) pode incluir, em sua janela de leitura, esse versículo em<br />

todas as sete traduções em português, uma das onze traduções em espanhol<br />

(ou todas) ou uma das mais de vinte traduções em inglês. Semelhantemente, o<br />

estudante das escrituras que quer comparar como certas versões em português<br />

(ou em qualquer outra língua) traduzem um texto, pode colocá-las la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>,<br />

com todas as palavras que diferem umas das outras destacadas em uma cor<br />

da sua escolha.<br />

2. quais são os recursos inclusos?<br />

To<strong>do</strong>s os exemplos acima demonstram as possibilidades de pesquisa<br />

quan<strong>do</strong> se usa o mecanismo <strong>do</strong> BW e as várias versões originais e traduções que<br />

vêm com o programa. Mas BibleWorks também inclui muitos outros recursos<br />

exegéticos. A maior parte desses recursos pode ser vista em diferentes guias<br />

da janela de análise. Um desses recursos são os diversos léxicos. Para o grego,<br />

129


BibleWorks 10<br />

o programa vem com uma versão condensada Liddell-Scott e os léxicos completos<br />

Louw-Nida, Friberg e Thayer, entre outros, bem como BDAG e TDNT,<br />

que podem ser compra<strong>do</strong>s em módulos à parte. Para o hebraico, BW contém<br />

BDB completo, Holladay e TWOT e oferece HALOT em um módulo à parte.<br />

BibleWorks também inclui obras completas de gramática em inglês (Wallace,<br />

Robertson, Gesenius, Waltke e O’Connor, etc.), que podem ser buscadas assim<br />

como qualquer outro texto no programa, e flashcards feitos a partir de outras<br />

gramáticas (Futato, Mounce, etc.), completos com arquivos de som com pronúncias<br />

erasmianas e modernas <strong>do</strong> grego e a pronúncia moderna <strong>do</strong> hebraico.<br />

BibleWorks 10 também possui duas pastas com o Novo Testamento inteiro li<strong>do</strong><br />

em grego, de <strong>do</strong>is textos críticos diferentes (NA27 e Roberson-Pierpont). A<br />

quantidade de recursos referentes às línguas originais chega a ser estonteante,<br />

oferecen<strong>do</strong> uma ampla gama de materiais de referência para o usuário.<br />

Os recursos linguísticos acima fazem parte <strong>do</strong> programa, mas provavelmente<br />

não serão utiliza<strong>do</strong>s no dia-a-dia <strong>do</strong> usuário comum <strong>do</strong> BW. Porém,<br />

como já foi dito, a terceira janela <strong>do</strong> BW, a janela de análise, contem múltiplos<br />

guias úteis para o estu<strong>do</strong> exegético da Palavra de Deus. Um <strong>do</strong>s mais valiosos é<br />

o guia de referências cruzadas (“X-Refs”). Nele, há uma relação de possíveis<br />

referências cruzadas ao versículo que o usuário está estudan<strong>do</strong> na janela de<br />

leitura. A diferença entre essa lista e a de uma Bíblia de Estu<strong>do</strong> comum é que<br />

BW consolida as abundantes referências cruzadas em ordem de frequência<br />

de uso, notadas em diferentes Bíblias de Estu<strong>do</strong>, textos da UBS e NA28, e<br />

outros recursos dedica<strong>do</strong>s especificamente a referências cruzadas. Assim,<br />

embora muitas Bíblias de Estu<strong>do</strong> apresentem notas de que Mateus 2.15 faz<br />

referência a Oséias 11.1, poucas também apresentam a cadeia de alusões à<br />

profecia de Balaão em Números 24.8 ou Êxo<strong>do</strong> 4.22, apontadas na longa lista<br />

de referências cruzadas nesse guia <strong>do</strong> BibleWorks.<br />

BibleWorks também incorpora um guia de aparatos críticos <strong>do</strong> Novo e<br />

<strong>do</strong> Antigo Testamento, incluin<strong>do</strong> o aparato grego <strong>do</strong> CNTTS (Center of New<br />

Testament Textual Studies), que custa 100 dólares no Logos ou Accordance, mas<br />

faz parte <strong>do</strong> BW 10. Ao mesmo tempo, começan<strong>do</strong> com BW 9, o professor que<br />

quiser mostrar um exemplo significativo da importância <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s manuscritos<br />

pode, por exemplo, encontrar a digitalização de manuscritos que contêm<br />

tanto ἔχομεν quanto sua forma subjuntiva ἔχωμεν em Romanos 5.1. Assim, ele<br />

pode mostrar, na sala de aula, imagens <strong>do</strong>s manuscritos Alexandrino, Aleph<br />

e Vaticano, e como eles diferem <strong>do</strong>s manuscritos Sinaitico e Boerneriano, e<br />

abrir uma discussão sobre qual parece ser a forma original. O que facilita isso<br />

é que, ao contrário de qualquer outro software bíblico disponível, o BW tem<br />

feito o trabalho de colocar marcas digitais em to<strong>do</strong>s os versículos nas imagens<br />

<strong>do</strong>s manuscritos. Dessa forma, aqueles que ainda estão aprenden<strong>do</strong> o grego<br />

poderão acompanhar o professor pela versificação digital <strong>do</strong>s manuscritos. No<br />

130


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 127-133<br />

momento, a única digitalização hebraica disponível é <strong>do</strong> Codex Leningradensis,<br />

uma adição nova <strong>do</strong> BW 10.<br />

Outro guia exclusivo <strong>do</strong> BibleWorks na janela de análise é o de “uso”<br />

(“Use tab”). Ao rolar o cursor sobre uma palavra na janela de leitura, ela mostra<br />

to<strong>do</strong>s os usos daquela palavra no livro bíblico (em to<strong>do</strong>s os seus casos,<br />

gêneros, números e formas verbais), em uma versão <strong>do</strong> BW (NA28, ESV ou<br />

ARA) ou em uma perícope estabelecida pelo usuário. Assim, ao traduzir o<br />

livro de Colossenses, o estudante poderá perceber que a palavra πᾶς parece<br />

ser frequente. Basta clicar no guia de uso, selecionar “livro” como o âmbito<br />

da pesquisa e mover o cursor sobre a palavra πάντας em Colossenses 1.4. Ele<br />

imediatamente mostrará uma lista completa de todas as 41 vezes que a palavra<br />

πᾶς é usada no livro de Colossenses. Uma segunda busca semelhante àquela<br />

feita acima com verbos imperativos poderá confirmar, pelo guia de estatísticas<br />

da janela de análise, que o livro de Colossenses contém mais ocorrências da<br />

palavra πᾶς por palavras totais que qualquer outro livro <strong>do</strong> Novo Testamento.<br />

Existem outros guias importantes como os de “Notes” e “Editor”, que<br />

permitem ao usuário escrever seus próprios comentários no versículo seleciona<strong>do</strong><br />

na janela de leitura, ou o guia “Context”, que imediatamente classifica<br />

por frequência todas as palavras de uma determinada perícope, livro ou capítulo<br />

bíblico. Em suma, as possibilidades e maneiras de estudar o texto são<br />

incontáveis.<br />

3. o que há de novo no bibleworks 10?<br />

Uma das principais reclamações quanto às versões mais antigas <strong>do</strong> BW<br />

consistia no fato de que o programa era muito “quadra<strong>do</strong>”, esteticamente desagradável<br />

de se olhar. Com tantas possibilidades e guias em to<strong>do</strong>s os lugares,<br />

o programa chocava o usuário antes mesmo de ser usa<strong>do</strong>. Assim, o BW 10 foi<br />

lança<strong>do</strong> com maiores possibilidades de cores e layout. A terceira janela pode<br />

ser subdividida em duas (um componente instala<strong>do</strong> no BW 9, mas otimiza<strong>do</strong><br />

no 10), permitin<strong>do</strong> assim ver, por exemplo, a análise gramatical da palavra<br />

tw:c.mi no Salmo 19.8 e sua imagem no Codex Leningradensis ao mesmo tempo.<br />

Algumas janelas também podem ser ocultadas ou colocadas uma em cima da<br />

outra, em vez de la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, para melhor visualização.<br />

BibleWorks 10 também adicionou certos recursos novos. Como já foi<br />

dito acima, incluiu imagens digitalizadas <strong>do</strong> Codex Leningradensis. Além<br />

dessas imagens, BW 10 também apresenta imagens <strong>do</strong>s manuscritos Ephraemi<br />

e Claromontanus, para o estu<strong>do</strong> textual <strong>do</strong> Novo Testamento. Além desses recursos,<br />

ainda se destacam as seguintes adições: (1) a gramática hebraica de Jan<br />

Verbruggen, (2) o atlas conciso da ESV (o atlas completo pode ser adiciona<strong>do</strong><br />

em um módulo à parte por 30 dólares) e (3) o léxico conciso de Danker, ótimo<br />

para ver a tradução simples de uma palavra em grego.<br />

131


BibleWorks 10<br />

Existem <strong>do</strong>is novos guias na janela de análise com o BW 10. O primeiro<br />

é o de “Forms,” que mostra to<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s de cada forma gramatical de uma<br />

palavra selecionada (por exemplo, o nome de Paulo aparece, no Novo Testamento,<br />

79 vezes no nominativo, 30 no genitivo e acusativo, 17 no dativo e 2 no<br />

vocativo). O segun<strong>do</strong>, UserLex, é semelhante aos guias de “Notes” e “Editor,”<br />

que permitem ao usuário escrever seus próprios comentários. A diferença <strong>do</strong><br />

UserLex é que essas anotações estarão vinculadas a uma palavra em particular.<br />

Um exemplo <strong>do</strong> que é possível fazer com esse novo guia é o que ocorreu<br />

poucos dias depois <strong>do</strong> lançamento <strong>do</strong> BW 10: um usuário italiano criou um<br />

léxico <strong>do</strong> grego para o italiano. Como todas as criações feitas por usuários<br />

individuais podem ser utilizadas na comunidade de usuários <strong>do</strong> BibleWorks,<br />

existe agora um léxico em italiano (entre outros recursos) disponível de graça<br />

nos fóruns <strong>do</strong> BibleWorks.<br />

Finalmente, devo salientar três novas funções <strong>do</strong> BW 10 que são incrivelmente<br />

úteis: (1) cores morfológicas, que permitem destacar palavras por<br />

sua classe morfológica (ex: substantivos verdes, verbos vermelhos, adjetivos<br />

azuis), (2) “screen scaling”, que permite aumentar a escala das fontes <strong>do</strong> programa,<br />

possibilitan<strong>do</strong> assim uma melhor visualização quan<strong>do</strong> o BW está sen<strong>do</strong><br />

projeta<strong>do</strong> em sala de aula, e (3) um banco de da<strong>do</strong>s de fotos de Israel, marcadas<br />

com explicações <strong>do</strong> que se trata e com links para textos bíblicos relevantes.<br />

4. vale a pena comprar?<br />

Realmente, a quantidade de recursos <strong>do</strong> BW 10 chega a ser assombrosa.<br />

Mas o que fazer no caso <strong>do</strong> pastor ou aluno que não usará o programa na sua<br />

inteireza por falta de (1) tempo, (2) conhecimento de informática ou (3) familiaridade<br />

com as línguas originais? Vale mesmo a pena comprar o BibleWorks?<br />

O tempo e o conhecimento de informática realmente apresentam um<br />

problema. Uma reclamação comum sobre o BibleWorks é que a interface <strong>do</strong><br />

usuário não é fácil de usar. As versões mais novas (9 e 10) tentaram remediar o<br />

problema com algumas novas funções mais intuitivas, porém o programa ainda<br />

necessita de aprendiza<strong>do</strong>. Por oferecer uma multiplicidade de ferramentas,<br />

BibleWorks apresenta também uma multiplicidade de coman<strong>do</strong>s. Para piorar<br />

para o usuário brasileiro, a interface <strong>do</strong> usuário ainda não foi traduzida <strong>do</strong> inglês.<br />

Existem certos recursos básicos cria<strong>do</strong>s por usuários <strong>do</strong> BibleWorks disponíveis<br />

em português na internet, mas o programa em si e seu arquivo de ajuda<br />

(um verdadeiro manual) continuam inacessíveis para quem não compreende<br />

o inglês. Porém, como em qualquer outro investimento, quanto mais tempo o<br />

usuário dedicar ao programa, mais ele irá render.<br />

Quanto ao conhecimento das línguas originais, existem coisas que o BW<br />

pode fazer e outras que não pode. O BW ajuda o usuário que tem um grego ou<br />

hebraico fraco, mas que ainda quer aprender ou refrescar sua memória, porém<br />

não será útil àquele que tende a usar o programa como uma muleta. O BW<br />

132


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 127-133<br />

não fará traduções ou interpretações de textos, mas dará recursos para que o<br />

usuário o faça.<br />

Porém, BibleWorks ainda é caro! A atual versão <strong>do</strong> programa custa 389<br />

dólares, embora haja descontos para grupos de dez ou mais pessoas ou para<br />

proprietários de uma versão anterior <strong>do</strong> BibleWorks. Para um programa que<br />

visa “proporcionar a pastores, professores, alunos e missionários as ferramentas<br />

necessárias para manejar ‘bem a palavra da verdade’ (2 Tm 2.15)”, o preço é<br />

um tanto alto para pastores, alunos e missionários brasileiros, que ainda devem<br />

computar a taxa <strong>do</strong> câmbio entre o real e o dólar.<br />

Ao mesmo tempo, se compararmos a quantidade de recursos disponíveis<br />

(alguns <strong>do</strong>s quais não existem em nenhum outro programa) com, por exemplo,<br />

o pacote de Línguas Bíblicas <strong>do</strong> Logos, veremos que o que custa 389 dólares<br />

no BibleWorks chega a 750 dólares no Logos. Essa diferença de preço pode ser<br />

explicada em parte pelos diferentes focos de BibleWorks e Logos: o primeiro<br />

é, antes de mais nada, um software bíblico, e o segun<strong>do</strong> é essencialmente uma<br />

biblioteca eletrônica. Dessa forma, o preço <strong>do</strong> Logos inclui alguns materiais<br />

a mais, como TDNT e LSJ, entre outros léxicos e gramáticas, e vários livros<br />

devocionais, mas não inclui o aparato crítico CNTTS, digitalizações de manuscritos<br />

gregos e hebraicos, traduções da Bíblia em português e não tem a<br />

mesma capacidade <strong>do</strong> BW para fazer buscas morfológicas complexas.<br />

Em suma, o leitor deverá analisar sua necessidade e condição de investir<br />

tempo e dinheiro em um programa como o BibleWorks para experimentar<br />

quão vantajoso ele é. Contu<strong>do</strong>, na opinião deste autor, não há programa de<br />

exegese bíblica disponível no momento que seja páreo para o BibleWorks 10<br />

em termos de conteú<strong>do</strong> e preço.<br />

133


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 135-139<br />

Resenha<br />

Breno Mace<strong>do</strong> *<br />

BURROUGHS, Jeremiah. A<strong>do</strong>ração evangélica. São Paulo: Os Puritanos,<br />

<strong>20</strong>15.<br />

As várias visões sobre o culto público <strong>do</strong> povo Deus e sobre como ele<br />

deve ser a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> desencadearam desde a década de 80 as famosas “guerras <strong>do</strong><br />

louvor” (“worship wars”). Engaja<strong>do</strong>s nessa “batalha” estão solda<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s mais<br />

diversos exércitos: desde aqueles que pensam que não há limites para a atuação<br />

da imaginação e da criatividade na esfera <strong>do</strong> culto até aqueles que entendem<br />

que Deus regula restritamente até mesmo a letra <strong>do</strong>s cânticos entoa<strong>do</strong>s a ele<br />

(salmodia exclusiva). Entretanto, no calor intenso da batalha, algumas vezes<br />

falta a luz, os motivos, por trás de decisões, atitudes e opiniões. Os líderes dessa<br />

guerra são rápi<strong>do</strong>s em afirmar aquilo que pensam, a ditar aquilo que deve ou<br />

que não deve acontecer quan<strong>do</strong> os cristãos se reúnem para o culto, mas são<br />

lentos, e até mesmo negligentes, em fornecer as bases e os fundamentos de<br />

suas opiniões. Falta a eles a sensibilidade pastoral de ensinar ao povo de Deus<br />

através da própria Escritura as razões bíblicas de suas posições.<br />

Jeremiah Burroughs (1599-1646) sabia que o povo de Deus precisava<br />

ser instruí<strong>do</strong>. Participante da Assembleia de Westminster e ti<strong>do</strong> por Richard<br />

Baxter como um puritano modera<strong>do</strong> cujo exemplo, se segui<strong>do</strong>, poderia resolver<br />

todas as divisões da Igreja da Inglaterra, Burroughs sabia que o que a<br />

Igreja precisava era aprender os porquês bíblicos das permissões e proibições<br />

que caracterizam a vida cristã, especialmente na área da a<strong>do</strong>ração. O seu livro<br />

A<strong>do</strong>ração Evangélica é uma ótima demonstração <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> catequético<br />

* Obteve o grau de M.Div. no Greenville Presbyterian Theological Seminary (Carolina <strong>do</strong> Sul), de<br />

Th.M. no Puritan Reformed Theological Seminary (Michigan) e cursa o <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> (Ph.D.) na University<br />

of Free State, África <strong>do</strong> Sul, com concentração em teologia histórica. Leciona no Seminário Teológico<br />

<strong>Presbiteriano</strong> <strong>do</strong> Nordeste, em Teresina, e é professor visitante <strong>do</strong> CPAJ.<br />

135


A<strong>do</strong>ração evangélica<br />

e pastoral no qual ele ensina de uma maneira lúcida, atrativa e acolhe<strong>do</strong>ra<br />

aquilo que ficou conheci<strong>do</strong> no meio reforma<strong>do</strong> como o princípio regula<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> culto. 1 Ao contrário da maioria <strong>do</strong>s livros sobre o culto, esse não é dividi<strong>do</strong><br />

propriamente em capítulos, mas em sermões, 14 no total, e em cada um deles<br />

Burroughs associa a descoberta e o ensino de profundas verdades teológicas<br />

com um pie<strong>do</strong>so apelo aos sentimentos e à consciência <strong>do</strong> leitor. 2<br />

Ele não se apressa no desenvolvimento de cada um de seus tópicos; pelo<br />

contrário, utiliza o tempo que julga necessário para o aprendiza<strong>do</strong> de sua congregação<br />

e para que ela aplique consistentemente aquilo que foi ensina<strong>do</strong>. Por<br />

exemplo, ele utiliza <strong>do</strong>is sermões na explicação de como os cristãos santificam<br />

o nome <strong>do</strong> Senhor enquanto ouvem a palavra pregada durante o culto público.<br />

Um outro exemplo são os três sermões utiliza<strong>do</strong>s para ensinar aos a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res<br />

o papel <strong>do</strong>s sacramentos, seus benefícios e como o cristão santifica o nome<br />

<strong>do</strong> Senhor através da administração <strong>do</strong>s mesmos. Portanto, muito mais <strong>do</strong> que<br />

um manual de teologia <strong>do</strong> culto A<strong>do</strong>ração Evangélica é um manual pastoral.<br />

Para Burroughs, a a<strong>do</strong>ração está intimamente associada com a santificação<br />

<strong>do</strong> nome <strong>do</strong> Senhor. Ele desenvolve sua teologia bíblica da a<strong>do</strong>ração<br />

por meio <strong>do</strong> exemplo de Nadabe e Abiú, adiciona<strong>do</strong> às palavras de Moisés a<br />

Arão em Levítico 10. Ele sistematiza seu pensamento em três proposições<br />

básicas: “(1) Na a<strong>do</strong>ração a Deus, há uma aproximação dele; (2) Quan<strong>do</strong> nos<br />

aproximamos de Deus, devemos ter o cuida<strong>do</strong> de santificar-lhe o nome; (3) Se<br />

não santificarmos o nome de Deus quan<strong>do</strong> nos aproximamos dele, então com<br />

certeza Deus santificará seu próprio nome sobre nós” (p. 21). De acor<strong>do</strong> com<br />

Burroughs, Deus é santifica<strong>do</strong> de duas maneiras: “... pela santidade <strong>do</strong> seu povo<br />

na sua conduta para com ele, mostran<strong>do</strong> a glória da santidade Deus... Mas, se<br />

não fizermos isso, Deus santifica a si mesmo com juízos sobre aqueles que não<br />

santificam o seu nome mediante comportamento de santidade” (p. 17). Essa ideia<br />

da santidade de Deus sen<strong>do</strong> externalizada pela santidade <strong>do</strong> povo em todas as<br />

áreas da vida, incluin<strong>do</strong> a esfera da a<strong>do</strong>ração, é um argumento extremamente<br />

poderoso e eficaz no coração <strong>do</strong> cristão genuíno.<br />

Burroughs, então, aplica pastoralmente o princípio da santificação <strong>do</strong><br />

nome de Deus ao princípio regula<strong>do</strong>r <strong>do</strong> culto. Uma vez que o cristão é obriga<strong>do</strong><br />

a santificar o nome <strong>do</strong> Senhor quan<strong>do</strong> se aproxima dele, e faz isso no<br />

momento da a<strong>do</strong>ração, ten<strong>do</strong> em vista o exemplo de Nadabe e Abiú a conclusão<br />

1 A<strong>do</strong>ração Evangélica é apenas um volume de uma série de trata<strong>do</strong>s relevantes para a vida cristã<br />

escritos por Burroughs. Outros volumes da série são: Conversação Evangélica (1650); Reconciliação<br />

Evangélica (1655); Remissão Evangélica (1661). To<strong>do</strong>s esses são coletâneas de sermões prega<strong>do</strong>s por<br />

Burroughs a sua congregação desenvolven<strong>do</strong> os tópicos correspondentes.<br />

2 Nesta tradução o leitor perceberá que os capítulos de fato foram sermões transcritos à medida<br />

que ele interagia com o texto. No original em inglês os capítulos são claramente identifica<strong>do</strong>s como<br />

sermões.<br />

136


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 135-139<br />

é que o a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>r precisa cultuar a Deus da maneira como ele mesmo ordena.<br />

“Eles ofereceram fogo que Deus não havia ordena<strong>do</strong>. Por isso digo que todas<br />

as coisas na a<strong>do</strong>ração a Deus precisam ter autorização da Palavra de Deus. É<br />

necessário que seja algo ordena<strong>do</strong>; não é suficiente que não seja proibi<strong>do</strong>”<br />

(p. 22). Burroughs explica de uma maneira muito interessante o que era aquele<br />

“fogo estranho” ofereci<strong>do</strong> pelos sacer<strong>do</strong>tes desobedientes. Depois de explicar<br />

o seu senti<strong>do</strong> literal (que aquele era um fogo procedente de um outro lugar que<br />

não o altar) e de aplicar esse senti<strong>do</strong> da expressão à execução de elementos<br />

litúrgicos não ordena<strong>do</strong>s, Burroughs mira o coração <strong>do</strong>s leitores levan<strong>do</strong>-os<br />

para a esfera das emoções e <strong>do</strong>s sentimentos. Ele afirma: “Acima de qualquer<br />

outro fogo estranho, tomem cuida<strong>do</strong> com o fogo estranho da paixão e da ira,<br />

especialmente na a<strong>do</strong>ração a Deus” (p. 37-38). Em outras palavras, de acor<strong>do</strong><br />

com Burroughs, alguns trazem fogo estranho perante o Senhor não apenas<br />

quan<strong>do</strong> algo não ordena<strong>do</strong> em sua santa palavra é pratica<strong>do</strong> no culto público,<br />

mas também quan<strong>do</strong> a igreja traz para a a<strong>do</strong>ração sentimentos, pensamentos<br />

e sensações não dignas daquele momento tão sublime e sacro.<br />

Burroughs utiliza boa parte <strong>do</strong> livro para explicar a importância da participação<br />

<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>r no culto público ao Senhor e a necessidade de preparação<br />

para se aproximar <strong>do</strong> santíssimo Deus em a<strong>do</strong>ração. Ele estabelece uma relação<br />

entre as ideias de aproximar-se de Deus e de cultuar a Deus. Ele aponta<br />

três fatores que conectam as duas atitudes: (1) quan<strong>do</strong> nos achegamos para a<br />

a<strong>do</strong>ração estamos cumprin<strong>do</strong> nosso papel como criaturas na entrega a Deus<br />

daquilo que devemos a ele; (2) nos aproximamos de Deus na a<strong>do</strong>ração porque<br />

esse é o momento específico que ele “usa para comunicar suas maravilhosas,<br />

preciosas, esplêndidas e gloriosas misericórdias ao seu povo” (p. 52); (3) é<br />

especialmente quan<strong>do</strong> um cristão aproxima-se de Deus em a<strong>do</strong>ração que ele<br />

põe em prática sua “fé e humildade e todas as virtudes <strong>do</strong> Espírito” (p. 53). Se o<br />

leitor ainda não tiver si<strong>do</strong> convenci<strong>do</strong> de que ele não apenas deve apresentar-se<br />

diante de Deus em a<strong>do</strong>ração, mas que sua própria alma necessita desse momento<br />

de culto público, Burroughs adiciona que “se a<strong>do</strong>rar a Deus é aproximar-se dele,<br />

então negligenciar a a<strong>do</strong>ração a Deus é afastar-se dele” (p. 59).<br />

Quanto à preparação para a a<strong>do</strong>ração, de acor<strong>do</strong> com Burroughs, ela é<br />

equivalente ao chama<strong>do</strong> bíblico para a purificação antes da entrada na santa<br />

presença de Deus. Para ele é um erro tremen<strong>do</strong> um cristão adentrar a a<strong>do</strong>ração<br />

sem preparação: “Grande parte <strong>do</strong> tempo da a<strong>do</strong>ração geralmente é desperdiça<strong>do</strong><br />

antes mesmo de conseguirmos trazer nosso coração até a a<strong>do</strong>ração. Esse é<br />

um grande e lamentável mal, perder qualquer parte <strong>do</strong> momento da a<strong>do</strong>ração”<br />

(p. 77). Burroughs não se limita a apresentar apenas críticas. Manten<strong>do</strong> o seu<br />

excelente tom pastoral, ele oferece cinco ações como forma de remediar o problema<br />

da preparação: encher o coração com a perspectiva adequada de quem<br />

Deus é; esvaziar o coração de to<strong>do</strong>s os padrões pecaminosos; desconectar o<br />

coração de to<strong>do</strong>s os assuntos temporais e terrenos; estar em constante vigília<br />

137


A<strong>do</strong>ração evangélica<br />

e oração; colocar a alma, a razão e os <strong>do</strong>ns <strong>do</strong> Espírito em um esta<strong>do</strong> de alerta<br />

para o exercício <strong>do</strong> santo dever (p. 82-86). Por meio dessas sugestões práticas,<br />

Burroughs envergonha muitos que promovem hoje a visão de pureza associada<br />

ao culto. Enquanto esses fazem muito barulho através de suas reclamações<br />

e palavras grosseiras, ao mesmo tempo não se preocupam em ser persuasivos e<br />

práticos. Talvez o fato de estarem corretos em suas críticas os tornem cegos<br />

para a necessidade de ganhar aqueles que se opõem. Burroughs, o puritano<br />

inglês, por outro la<strong>do</strong>, direciona seus argumentos para atingir a consciência <strong>do</strong><br />

povo de Deus, alian<strong>do</strong> correção a sugestões práticas, visan<strong>do</strong> assim a persuasão.<br />

Um outro aspecto da a<strong>do</strong>ração importante para Burroughs é a glorificação<br />

de Deus por meio <strong>do</strong> ouvir a sua palavra. Sua argumentação se baseia no<br />

texto de Lucas 8:18: “...vede, pois, como ouvis”. Ele demonstra que ouvir a<br />

palavra é parte integrante da a<strong>do</strong>ração pública (elemento de culto) e, portanto,<br />

deve ser executada com alto grau de zelo. Burroughs afirma que os cristãos<br />

precisam se preparar para esse elemento e lembra que Deus santificará seu<br />

nome tanto naqueles que se preparam quanto naqueles que negligenciam essa<br />

obrigação para a recepção de sua palavra pregada. É impressionante notar a<br />

maneira prática e experimental com a qual Burroughs coloca diante <strong>do</strong> leitor<br />

as formas por meio das quais ele pode santificar o nome de Deus ao ouvir um<br />

sermão. Ele enfatiza que um coração temente, a sujeição humilde à autoridade<br />

da Palavra, o receber a Palavra com alegria e contentamento, dentre outras<br />

maneiras, são formas de exercitar o dever de santificar o nome de Deus quan<strong>do</strong><br />

ouvin<strong>do</strong> sua palavra (p. 196-<strong>20</strong>0).<br />

A administração <strong>do</strong>s sacramentos, sen<strong>do</strong> parte integrante da a<strong>do</strong>ração<br />

evangélica, também faz parte <strong>do</strong> exame cuida<strong>do</strong>so e pastoral de Burroughs.<br />

Aqui ele foca na ceia <strong>do</strong> Senhor e seus sermões não devem ser considera<strong>do</strong>s<br />

como expressões completas <strong>do</strong> seu pensamento teológico nessa área. Seu claro<br />

objetivo é fornecer conselhos pie<strong>do</strong>sos quanto à participação desse sacramento:<br />

como o cristão deve aproximar-se da mesa <strong>do</strong> Senhor? Seu ponto de partida é<br />

demonstrar que a ceia é de fato um elemento ordena<strong>do</strong> por Deus para sua a<strong>do</strong>ração.<br />

Ele lembra ao leitor que Deus deve ser santifica<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> esse elemento<br />

está presente no culto e que os a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res precisam se preocupar em como<br />

eles santificarão a Deus quan<strong>do</strong> participam da mesa. A ênfase aqui é na natureza<br />

corporativa da ordenança. Como a igreja é um só corpo, to<strong>do</strong>s os seus membros<br />

vêm juntos para participar <strong>do</strong>s elementos desse sacramento. Essa ênfase é uma<br />

clara reação à prática romanista na qual os elementos da ceia eram toma<strong>do</strong>s<br />

apenas pelos sacer<strong>do</strong>tes representan<strong>do</strong> a congregação (p. 286-287). O puritano<br />

inglês também instrui quanto àquilo que ele denomina “autodisciplina”. De<br />

acor<strong>do</strong> com sua crítica, havia alguns que estavam se ausentan<strong>do</strong> da mesa ten<strong>do</strong><br />

como fundamento a acusação de que pessoas indignas estariam participan<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> sacramento. Burroughs condena essa prática e coloca a responsabilidade<br />

de afastar os comungantes indignos da ceia nos ombros tanto <strong>do</strong>s ministros<br />

138


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 135-139<br />

quanto <strong>do</strong>s membros da igreja. Quanto a esses últimos ele afirma: “Não digas:<br />

‘O que é que eu tenho a ver com meu irmão? Sou, por acaso, cuida<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

meu irmão?’ Isso foi o que Caim disse. Se vocês pertencem ao mesmo corpo,<br />

precisas expressar cuida<strong>do</strong> por teu irmão” (p. 295).<br />

Burroughs entende a importância <strong>do</strong>s sacramentos e reconhece que, se<br />

um homem está desprovi<strong>do</strong> de um instrumento ordena<strong>do</strong> para a edificação de<br />

sua alma, ele deve então procurar um outro grupo (uma outra igreja) no qual<br />

tal instrumento não lhe seja nega<strong>do</strong>. Ele explica que isso não é ser divisionista<br />

ou cismático, desde que a separação não seja fruto de “um espírito mal<strong>do</strong>so,<br />

de inveja ou má intenção, de falta de amor, ou ... de quaisquer finalidades vis<br />

e desonestas e sem nenhum fundamento justo” (p. 301). Longe de fomentar<br />

brigas entre cristãos, o teólogo puritano estimula a paciência e a tolerância para<br />

com uma igreja faltosa desde que haja esperança para a sua reforma.<br />

O livro é uma verdadeira joia. Em meio às acusações de que os puritanos<br />

ingleses tinham uma teologia seca e morta, o livro serve para demonstrar como,<br />

mesmo <strong>do</strong> púlpito, o pensamento puritano era caloroso, prático e experimental.<br />

Em meio a tanta confusão quanto à a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong> povo de Deus, o livro oferece ao<br />

leitor o que há de melhor na teologia bíblica e reformada no que diz respeito a<br />

esse assunto. Não é um trata<strong>do</strong> sistemático sobre o culto, mas traz uma abordagem<br />

pie<strong>do</strong>sa, cheia de sugestões de como um cristão pode tirar o máximo<br />

de benefício da a<strong>do</strong>ração a Deus. Burroughs, falan<strong>do</strong> há tanto tempo, desperta<br />

a igreja moderna para os benefícios espirituais e para as enormes benesses<br />

reservadas ao povo de Deus na a<strong>do</strong>ração bíblica.<br />

139


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 141-144<br />

Resenha<br />

Giuliano Letieri Coccaro *<br />

GOLDSWORTHY, Graeme. Pregan<strong>do</strong> toda a Bíblia como escritura<br />

cristã. São José <strong>do</strong>s Campos, SP: Fiel, <strong>20</strong>13. 388p.<br />

Embora publica<strong>do</strong> originalmente em inglês em <strong>20</strong>00, este memorável<br />

livro sobre pregação expositiva foi finalmente traduzi<strong>do</strong> para o português em<br />

<strong>20</strong>13. 1 É um lapso temporal enorme se visto a partir das contribuições hermenêuticas<br />

e homiléticas de Graeme Goldsworthy, professor aposenta<strong>do</strong> de Antigo<br />

Testamento, Teologia Bíblica e Hermenêutica <strong>do</strong> Moore Theological College,<br />

em Sydney, Austrália. O propósito de Goldsworthy é orientar os prega<strong>do</strong>res<br />

na aplicação de uma abordagem fundamentalmente cristocêntrica para seus<br />

sermões. A pergunta crucial que deve reger o preparo e a entrega de mensagens<br />

bíblicas é: “Como esta passagem da Escritura e, consequentemente, meu<br />

sermão, dão testemunho de Cristo?” (p. 58). Elaborar uma mensagem focada<br />

na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo é um desafio para quem prega o<br />

Antigo e o Novo Testamentos.<br />

O livro é dividi<strong>do</strong> em 18 capítulos separa<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is grandes blocos.<br />

Na primeira parte, que julgo a mais importante <strong>do</strong> livro, o autor estabelece o<br />

fundamento teórico e teológico de sua abordagem. Nesta primeira seção, além<br />

de expor a <strong>do</strong>utrina reformada das Escrituras e da pregação cristã, Goldsworthy<br />

desenvolve prioritariamente as razões para se preferir a ênfase cristocêntrica<br />

* Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Rev. José Manoel da Conceição (<strong>20</strong>05) e pela<br />

Universidade Presbiteriana Mackenzie (<strong>20</strong>07). Bacharel em Comunicação Social pela Universidade<br />

Católica de Santos, com concentração em Jornalismo (<strong>20</strong>11). Mestre em Teologia com concentração em<br />

Pregação pelo Calvin Theological Seminary, Grand Rapids (<strong>20</strong>15). Professor de Homilética e Prática<br />

de Pregação no Seminário Teológico <strong>Presbiteriano</strong> <strong>do</strong> Sul (SPS), em Campinas.<br />

1 O título original é: “Preaching the Whole Bible as Christian Scripture: The Application of Biblical<br />

Theology to Expository Preaching” ou “Pregan<strong>do</strong> a Bíblia Toda como Escritura Cristã: A Aplicação da<br />

Teologia Bíblica à Pregação Expositiva”. Minha tradução.<br />

141


Pregan<strong>do</strong> toda a Bíblia como escritura cristã<br />

na pregação, a qual, de acor<strong>do</strong> com ele, apenas ecoa a abordagem a<strong>do</strong>tada<br />

por Jesus e pelos apóstolos (Lc 24.27, 44-45; Jo 5.39-40, 46; 1 Co 2.2; 1 Co<br />

1.23-24). 2 Goldsworthy aponta alguns caminhos para pregar a Cristo a partir<br />

<strong>do</strong> entendimento da história da salvação, que ele chama de “abordagem macrotipológica<br />

na estrutura da revelação bíblica” (p. 185).<br />

O autor explica que esse “grande quadro” possui uma relação tipológica<br />

com Jesus. Portanto, cada texto bíblico testifica e dá testemunho de Cristo. Na<br />

segunda parte da obra, após apresentar um panorama dessa macroestrutura,<br />

Goldsworthy aplica sua teologia bíblica aos vários gêneros literários das Escrituras.<br />

O autor explica cada um destes gêneros e os insere dentro da revelação<br />

progressiva <strong>do</strong> reino de Deus em to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> da história da salvação, cujo<br />

pleno cumprimento encontra-se em Cristo. Goldsworthy oferece, inclusive,<br />

alguns exemplos de interpretação cristocêntrica de gêneros literários varia<strong>do</strong>s<br />

que darão direção para os prega<strong>do</strong>res visualizarem como o autor vai da teoria<br />

à prática nessa trajetória de cada passagem bíblica para o Messias.<br />

Não obstante ser ignorada, marginalmente incorporada ou aplicada como<br />

mais um recurso opcional nos livros de homilética, a ferramenta essencial de<br />

Goldsworthy na tarefa da pregação é a teologia bíblica. 3 No subtítulo <strong>do</strong> livro<br />

em inglês, a proposta <strong>do</strong> autor é bem explícita nesse senti<strong>do</strong>: “A Aplicação<br />

da Teologia Bíblica à Pregação Expositiva.” A teologia bíblica, que estuda a<br />

estrutura da autorrevelação de Deus em sua unidade e diversidade, pavimenta<br />

o caminho entre o texto antigo e o ouvinte contemporâneo, pois, em sua<br />

análise, o autor entende que “não há nenhuma aplicação direta [da pregação]<br />

sem a mediação de Cristo” (p. 191). 4 Contrarian<strong>do</strong> e combaten<strong>do</strong> as críticas<br />

de liberais e neo-orto<strong>do</strong>xos no tocante à autoridade suprema e à unidade das<br />

Escrituras, o anglicano conserva<strong>do</strong>r Goldsworthy defende que o entendimento<br />

<strong>do</strong> “grande quadro” da revelação, cujo âmago está no evangelho, é “a chave<br />

de interpretação de toda a Bíblia” (p. 65, 145). Ou seja, a pessoa e a obra de<br />

Jesus Cristo são essenciais para se compreender a totalidade <strong>do</strong> significa<strong>do</strong><br />

2 Para Goldsworthy toda pregação genuinamente expositiva também é fundamentalmente cristocêntrica.<br />

Por esta razão, uso as duas expressões de maneira intercambiável nesta resenha.<br />

3 Isso não significa uma rejeição da teologia sistemática. Para ele, ambas têm seu valor. O prega<strong>do</strong>r<br />

tem que saber o papel de cada uma delas na pregação. “[A teologia bíblica] se focaliza no contexto<br />

<strong>do</strong> texto em toda a revelação bíblica; [a teologia sistemática] se focaliza na importância <strong>do</strong>s textos no<br />

contexto contemporâneo da <strong>do</strong>utrina cristã, conforme ela se aplica a nós agora” (p. 66).<br />

4 Goldsworthy diz que “a afirmação de que a aplicação <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> de qualquer texto deve<br />

proceder, teologicamente, da aplicação que ele tem para com Cristo é um <strong>do</strong>s aspectos mais controversos<br />

da tese central deste livro”. Ele continua: “A Bíblia é a Palavra de Deus em virtude de sua relação com<br />

Cristo e não por causa de sua aplicação espiritual para a nossa vida […] qualquer tentativa de relacionar<br />

um texto diretamente a nós ou a nossos ouvintes contemporâneos, sem investigar sua relação primária<br />

com Cristo, está carregada de perigo. A única coisa que controla o assunto da relação <strong>do</strong> texto conosco<br />

é a sua relação anterior com Cristo” (p. 185-186).<br />

142


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 141-144<br />

de cada texto da Palavra de Deus. “A Bíblia é, primariamente, a respeito de<br />

Deus e de seus atos salva<strong>do</strong>res em Jesus Cristo” (p. 113). Em outras palavras,<br />

o evangelho é o tema da Bíblia, mesmo nas páginas em que o nome de Jesus<br />

não aparece. Se alguém perguntasse ao autor se é possível pregar um sermão<br />

cristão sem mencionar Jesus, ele responderia: “Por que você ousaria tentar<br />

pregar um sermão cristão sem mencionar Jesus?” (p. 189-190).<br />

Os conceitos mais importantes para entender o méto<strong>do</strong> de Goldsworthy<br />

são as duas perspectivas da teologia bíblica na interpretação das Escrituras:<br />

analítica/sincrônica e sintética/diacrônica. 5 Uma análise analítica ou sincrônica,<br />

em resumo, se atém aos detalhes de determina<strong>do</strong> texto bíblico. A abordagem<br />

sintética e diacrônica, por sua vez, interpreta passagens das Escrituras dentro<br />

<strong>do</strong> contexto mais amplo da história redentiva de Deus. Goldsworthy argumenta<br />

que a interpretação bíblica responsável descreve “acuradamente os detalhes<br />

[e permite] que o grande quadro contextualize os detalhes” (p. 67). O autor<br />

sustenta, portanto, que toda a Escritura é o contexto de cada passagem bíblica.<br />

Goldsworthy fornece incontáveis motivos para se pregar expositivamente.<br />

A pregação cristocêntrica proposta por Goldsworthy nos ensina que, à medida<br />

que a obra de Jesus, como a base para a nossa obediência, é negligenciada,<br />

toda a pregação se torna legalista e moralizante. Isso significa que a pregação<br />

cristocêntrica visa crentes e descrentes. Pregar a Cristo a partir de qualquer<br />

texto bíblico é a base da justificação e da santificação. Além disso, o autor traz<br />

alertas a respeito <strong>do</strong> tipo de pregação sobre personagens da Bíblia (sermões<br />

biográficos), incluin<strong>do</strong> a redução de Jesus a um exemplo moral como fazem os<br />

liberais. Mensagens biográficas exemplaristas apenas se preocupam em ensinar<br />

às pessoas como viver melhor e, em fazen<strong>do</strong> isso, distorcem “radicalmente o<br />

entendimento da humanidade e o significa<strong>do</strong> da Escritura” (p. 113).<br />

Atualmente fala-se muito sobre pregação relevante. Neste livro, Goldsworthy<br />

ajuda-nos a redefinir o que é um sermão relevante. De acor<strong>do</strong> com sua<br />

perspectiva, a sede por relevância pode degenerar em categorias “puramente<br />

pragmáticas” (p. 114): se o auditório foi satisfeito, entreti<strong>do</strong> ou se sentiu melhor,<br />

por exemplo. Goldsworthy é taxativo ao afirmar que, diante de nossas reais<br />

necessidades e da resposta de Deus para elas, a relevância da pregação está<br />

atrelada ao evangelho. “A primeira pergunta que to<strong>do</strong>s precisamos fazer não é<br />

se isso foi relevante?”, ou eu o achei proveitoso?”, ou fomos abençoa<strong>do</strong>s?”;<br />

e sim como o estu<strong>do</strong> (o sermão) falou de Cristo e de seu evangelho como o<br />

poder de Deus para a salvação?” (p. 115).<br />

Alguns podem objetar que tal abordagem hermenêutica e homilética,<br />

centrada na pessoa e obra de Jesus, transformaria a pregação numa atividade<br />

5 O autor explica que sincrônico “é o termo técnico aplica<strong>do</strong> ao exame <strong>do</strong> que acontece em determina<strong>do</strong><br />

ponto de tempo”, enquanto que diacrônico “é o termo técnico aplica<strong>do</strong> ao processo de revelação<br />

no decorrer <strong>do</strong> tempo” (p. 67).<br />

143


Pregan<strong>do</strong> toda a Bíblia como escritura cristã<br />

monótona, previsível e repetitiva. Porém ele antecipa essa resistência à previsibilidade<br />

da cristologia <strong>do</strong> sermão dizen<strong>do</strong> que “algo está muito erra<strong>do</strong> se a<br />

maneira de o prega<strong>do</strong>r relacionar o texto com Jesus é sentida como monótona<br />

e previsível” (p. 24). Goldsworthy assegura que pregar a Cristo nunca precisa<br />

“degenerar em chavões banais sobre Jesus, [pois] as riquezas que existem em<br />

Cristo são inesgotáveis, e a teologia bíblica é o caminho para descobri-las”<br />

(p. 72). Se por previsibilidade entende-se o compromisso com a exaltação<br />

de Cristo ou com as insondáveis riquezas <strong>do</strong> evangelho, nenhum prega<strong>do</strong>r<br />

expositivo deve evitá-la.<br />

No prefácio <strong>do</strong> livro, Goldsworthy se propõe a difícil tarefa de oferecer<br />

um material que esteja ao alcance de “pastores teologicamente instruí<strong>do</strong>s”,<br />

bem como de leigos sem grande repertório teológico. O mais interessante é<br />

que ele consegue atingir esse difícil equilíbrio. Goldsworthy reserva boa parte<br />

das notas de rodapé para explicações de termos mais técnicos, discussões mais<br />

aprofundadas, além de fornecer uma vasta bibliografia para um estu<strong>do</strong> mais amplo<br />

<strong>do</strong>s assuntos elenca<strong>do</strong>s. A inserção de gráficos explicativos é um recurso<br />

pedagógico extraordinário para qualquer leitor. Pregan<strong>do</strong> Toda a Bíblia como<br />

Escritura Cristã é um livro acadêmico e prático, profun<strong>do</strong> e claro, de mo<strong>do</strong> que<br />

pode ser aproveita<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s. Nem os muitos erros ortográficos da edição<br />

ofuscam o brilho e a contribuição dessa obra magna. Das devocionais matinais<br />

às pregações <strong>do</strong>minicais, esse livro veio para redirecionar nossa leitura bíblica<br />

e pregação cristã, considerada pelo autor como “a mais nobre de todas as tarefas”<br />

(p. 29). Decerto a obra de Goldsworthy vai convencer muitos prega<strong>do</strong>res<br />

a tomar a mesma decisão <strong>do</strong> apóstolo Paulo: “Porque decidi nada saber entre<br />

vós, senão a Jesus Cristo e este crucifica<strong>do</strong>” (1 Co 2.2).<br />

144


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 145-151<br />

Resenha<br />

Filipe Costa Fontes *<br />

FRAME, J. A <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> conhecimento de Deus. São Paulo: Cultura<br />

Cristã, <strong>20</strong>10. p. 448.<br />

A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento de Deus é um <strong>do</strong>s quatro títulos da Teologia<br />

<strong>do</strong> Senhorio, obra de John Frame publicada na íntegra em nosso país pela<br />

editora Cultura Cristã. Embora não seja possível falar, rigorosamente, numa<br />

ordem para a organização <strong>do</strong>s quatro títulos – a razão disto ficará perceptível<br />

ao longo deste texto – uma sugestão recente <strong>do</strong> autor coloca A Doutrina <strong>do</strong><br />

Conhecimento de Deus como o terceiro, antecedi<strong>do</strong> por A Doutrina de Deus e<br />

A Doutrina da Palavra de Deus, respectivamente, e sucedi<strong>do</strong> por A Doutrina<br />

da Vida Cristã. 1<br />

A publicação original, The Doctrine of the Knowledge of God, se deu<br />

em 1987 e entregou ao público norte-americano o que foram, anteriormente,<br />

anotações de um curso de introdução à teologia e à apologética, denomina<strong>do</strong><br />

“A mente cristã”, ministra<strong>do</strong> por Frame no Seminário Teológico Westminster<br />

(p. 13). Desde <strong>20</strong>10 o público brasileiro tem acesso a essas mesmas aulas,<br />

através da publicação da editora Cultura Cristã, que se deu em encadernação<br />

brochura de 16 x 23 cm, conten<strong>do</strong> 448 páginas, com fonte, espaçamento e<br />

diagramação adequa<strong>do</strong>s tanto para a leitura quanto para destaques no texto<br />

e anotações marginais. A publicação contém algumas poucas falhas de<br />

digitação, mas que não comprometem a leitura. Nela destaca-se ainda, em<br />

termos de apresentação, a tradução <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is índices finais, o de autores e o<br />

de assuntos, que facilitam bastante a interação com uma obra desse porte.<br />

* Gradua<strong>do</strong> em Teologia pelo Seminário <strong>Presbiteriano</strong> Rev. José Manoel da Conceição, licencia<strong>do</strong><br />

em Filosofia pelo <strong>Centro</strong> Universitário Assunção, mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em<br />

Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professor assistente<br />

<strong>do</strong> CPAJ na área de teologia e filosofia.<br />

1 Cf. FRAME, J. A <strong>do</strong>utrina da vida cristã. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>13, p. 25.<br />

145


A <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> conhecimento de Deus<br />

A informação de que A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento de Deus foi, originalmente,<br />

um conjunto de aulas de introdução à teologia pode dar a ideia de<br />

que se trata de um livro de fácil leitura e compreensão. Isso, contu<strong>do</strong>, não é<br />

verdade. Embora John Frame afirme que o livro “não se destina a realizar toda<br />

a obra de uma epistemologia filosófica” (p. 21), o que ele nos oferece é uma<br />

visão <strong>do</strong>s fundamentos da teologia (prolegômenos) que se fundamenta numa<br />

determinada proposta epistemológica (de orientação reformada), articulada nas<br />

páginas iniciais <strong>do</strong> livro, em diálogo crítico com as tendências epistemológicas<br />

mais comuns na história <strong>do</strong> pensamento. É o que se pretende mostrar na<br />

exposição a seguir.<br />

Uma das características da obra de Frame é o perspectivismo. 2 Pode-se<br />

definir perspectivismo em <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s: um geral e outro específico. No<br />

senti<strong>do</strong> geral, perspectivismo é uma postura epistemológica, isto é, um posicionamento<br />

a respeito <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como conhecemos a realidade. Seu pressuposto<br />

básico é a <strong>do</strong>utrina bíblica da criação; mais especificamente, uma de<br />

suas implicações: a finitude humana. E sua afirmação principal é a de que o<br />

conhecimento humano nunca é exaustivo, mas sempre parcial. “O conceito<br />

geral é simplesmente que, porque não somos Deus, por que somos finitos e<br />

não infinitos, nós não podemos conhecer tu<strong>do</strong> de uma vez, e, portanto, nosso<br />

conhecimento é limita<strong>do</strong> a uma perspectiva ou outra”. 3<br />

A consequência disto é a defesa de que um conhecimento mais amplo<br />

da realidade somente pode ser alcança<strong>do</strong> se ela for vista perspectivamente,<br />

como um objeto que é analisa<strong>do</strong> a partir de ângulos diferentes. Aqui vem à tona<br />

o senti<strong>do</strong> específico de perspectivismo: o de uma estratégia meto<strong>do</strong>lógica.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, o perspectivismo consiste no esforço intelectivo de sobrepor<br />

determinadas perspectivas, uma sobre a outra, a fim de ampliar o conhecimento<br />

sobre um determina<strong>do</strong> objeto. No caso da proposta de John Frame, 4 a sobreposição<br />

contempla três perspectivas, baseadas na <strong>do</strong>utrina da Trindade, e, mais<br />

especificamente, nos três atributos fundamentais <strong>do</strong> senhorio divino. São elas:<br />

a perspectiva normativa, a perspectiva situacional e a perspectiva existencial.<br />

Os atributos divinos aos quais elas correspondem, respectivamente, são: a<br />

2 O perspectivismo não é uma singularidade <strong>do</strong> pensamento de John Frame, nem mesmo no<br />

contexto teológico. A teologia sinfônica (Symphonic Theology) de Vern Sheridan Poythress, professor<br />

no Westminster Theological Seminary é um exemplo de outra proposta teológica perspectivista. Cf.<br />

POYTHRESS, V. S. Symphonic Theology: The Validity of Multiple Perspectives in Theology. Phillipsburg,<br />

NJ: P & R Publishing, <strong>20</strong>01.<br />

3 FRAME, John. What is tri-perspectivalism. Disponível em: http://www.frame-poythress.org/<br />

what-is-triperspectivalism/. Acesso em: 03 nov. <strong>20</strong>15.<br />

4 Para maiores informações sobre o desenvolvimento <strong>do</strong> perspectivismo de Frame, ver FRAME,<br />

J. Backgrounds to my thought. Disponível em: http://www.frame-poythress.org/about/john-frame-full-<br />

-bio/. Acesso em: 03 nov. <strong>20</strong>15.<br />

146


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 145-151<br />

autoridade, o controle e a presença. 5 Essa estrutura trinitária dá à proposta de<br />

Frame o nome de tri-perspectivismo. 6<br />

Seguin<strong>do</strong> tal estrutura, e consideran<strong>do</strong> o conhecimento como uma relação<br />

tríplice entre SUJEITO, OBJETO e CRITÉRIO, A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento<br />

de Deus se divide em três partes. A primeira discute a questão <strong>do</strong>s objetos <strong>do</strong><br />

conhecimento, a segunda problematiza a questão da justificação <strong>do</strong> conhecimento,<br />

ou seja, a <strong>do</strong> critério, e a terceira faz <strong>do</strong> sujeito, objeto.<br />

A tese central da primeira parte <strong>do</strong> livro é a de que é possível distinguir<br />

três objetos de conhecimento – Deus, a Bíblia e o mun<strong>do</strong> – cujo conhecimento<br />

acontece de mo<strong>do</strong> inter-relaciona<strong>do</strong> e interdependente. Não se pode conhecer<br />

a Deus, sem o conhecimento da Bíblia e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Da mesma forma, não se<br />

pode conhecer o mun<strong>do</strong>, sem o conhecimento de Deus e da Bíblia. Pode-se dizer<br />

também que o conhecimento que temos de Deus determina o mo<strong>do</strong> como conhecemos<br />

a Bíblia e o mun<strong>do</strong>. Da mesma maneira, o conhecimento que temos<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> interfere no mo<strong>do</strong> como conhecemos a Deus e a Bíblia.<br />

A estrutura trinitária permeia toda esta seção. Além de ser exemplifica<strong>do</strong><br />

pela própria diferenciação <strong>do</strong>s objetos <strong>do</strong> conhecimento – Deus, a Bíblia e o<br />

mun<strong>do</strong> – isto é exemplifica<strong>do</strong> pela distinção entre tipos de conhecimento: o de<br />

fatos ou proposições, o de habilidades e o de pessoas. E, tão comum quanto<br />

esta estrutura, é o apontamento de que a relação harmônica entre as perspectivas<br />

é uma marca característica da postura epistemológica cristã reformada.<br />

Definin<strong>do</strong> o conhecimento de Deus, por exemplo, e utilizan<strong>do</strong>-se da distinção<br />

anterior sobre os tipos de conhecimento, Frame sustenta que, no conhecimento<br />

de Deus, eles estão to<strong>do</strong>s incluí<strong>do</strong>s, distinguin<strong>do</strong>-se apenas perspectivamente<br />

(p. 62-65).<br />

Todas as três espécies de conhecimento são mencionadas na Escritura e todas<br />

elas são teologicamente importantes. O crente deve conhecer fatos acerca de<br />

Deus – quem ele é, o que faz. (...) Além disso, o crente é alguém que aprende<br />

novas habilidades – como obedecer a Deus, como orar, como amar – como<br />

também aprende habilidades nas quais os crentes diferem um <strong>do</strong>s outros – a<br />

pregação, a evangelização, o ofício de diácono, e assim por diante (...) Mas (e<br />

talvez mais importante) o conhecimento cristão é conhecimento pessoal, de<br />

pessoas. É conhecer Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo (p. 62).<br />

Algumas discussões teológicas têm importante espaço nesta primeira parte<br />

da obra. Uma delas é a da relação entre a cognoscibilidade e a incompreensibilidade<br />

de Deus. Dentro dessa discussão, duas questões relevantes são tratadas<br />

com profundidade e merecem destaque. A primeira, de natureza conceitual e<br />

5 Cf. FRAME, J. A <strong>do</strong>utrina de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>13, p. 36-93.<br />

6 Para maiores informações sobre o tri-perspectivismo, cf. FRAME, What is tri-perspectivalism.<br />

147


A <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> conhecimento de Deus<br />

terminológica, é a da necessidade de compreensão adequada <strong>do</strong>s conceitos de<br />

imanência e transcendência divinas. Ao tratar dessa questão, Frame mostra<br />

como uma compreensão equivocada desses <strong>do</strong>is conceitos pode prejudicar a<br />

afirmação da possibilidade <strong>do</strong> conhecimento de Deus, seja pela impossibilidade<br />

de sua identificação (no caso <strong>do</strong> entendimento incorreto de sua transcendência),<br />

ou pela impossibilidade de sua distinção <strong>do</strong> to<strong>do</strong> da realidade criada (no caso da<br />

compreensão incorreta de sua imanência) (p. 28-34). A segunda questão, mais de<br />

natureza histórica, é a controvérsia sobre a natureza <strong>do</strong> conhecimento humano<br />

e sua relação com a natureza <strong>do</strong> conhecimento divino, que envolveu Gor<strong>do</strong>n<br />

Clark e Cornelius Van Til (p. 34-56). 7 A posição de Frame diante da controvérsia<br />

é concilia<strong>do</strong>ra. Ele procura encontrar preocupações válidas na postura de<br />

ambos os pensa<strong>do</strong>res e sustenta que a solução da questão que os dividia pode<br />

ser encontrada na consideração simultânea de continuidades e descontinuidades<br />

entre o pensamento divino e o pensamento humano. Segun<strong>do</strong> Frame:<br />

Nenhum deles se saiu realmente bem nessa discussão; cada um entendeu gravemente<br />

mal o outro (...) Van Til queria preservar a distinção Cria<strong>do</strong>r-criatura na<br />

esfera <strong>do</strong> conhecimento, e Clark queria impedir quaisquer deduções céticas da<br />

<strong>do</strong>utrina da incompreensibilidade, queria insistir em que conhecemos realmente<br />

a Deus basea<strong>do</strong>s na revelação. (...) A minha contribuição para essa discussão será<br />

oferecer ao leitor uma lista de descontinuidades entre os pensamentos de Deus<br />

e os nossos, que podem ser auferidas da Escritura, uma lista de continuidades<br />

entre ambos, que devem ser reconhecidas, e uma lista de alegadas relações entre<br />

ambos, que, ao que me parece, são expostas ambiguamente e que, portanto,<br />

podem ser afirmadas num senti<strong>do</strong> e negadas noutro (p. 37-38).<br />

Na segunda parte, A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento de Deus problematiza<br />

a questão da justificação <strong>do</strong> conhecimento. A questão em pauta nesta parte é a<br />

<strong>do</strong>s critérios de verificação <strong>do</strong> conhecimento. E a pergunta central a ser respondida<br />

por ela é: Como, ou em que circunstancias, um sujeito pode sentir-se<br />

justifica<strong>do</strong> pelo conhecimento que possui?<br />

Esta é a parte da obra em que há maior diálogo crítico com as tendências<br />

epistemológicas não cristãs. Inicialmente, Frame distingue três tendências<br />

presentes ao longo da história <strong>do</strong> pensamento: o racionalismo, o empirismo<br />

e o subjetivismo. Cada uma delas é apresentada como a absolutização (i<strong>do</strong>latria)<br />

de um <strong>do</strong>s elementos envolvi<strong>do</strong>s na dinâmica epistemológica (sujeito,<br />

objeto e critério – apresenta<strong>do</strong>s na ordem inversa). Frame mostra ainda que<br />

cada uma das tendências epistemológicas propõe uma resposta ao problema<br />

da justificação <strong>do</strong> conhecimento. Para o racionalismo, o critério de justificação<br />

7 Para aprofundar o conhecimento sobre a controvérsia entre Gor<strong>do</strong>n Clark e Cornelius Van Til,<br />

ver KLOOSTER, F. H. The Incomprehensibility of God in the Ortho<strong>do</strong>x Presbyterian Conflict. Franeker,<br />

Holanda: T. Wever, 1951, e HOEKSEMA, H. The Clark-Van Til Controversy. Unicoi, TN: Trinity Foundation,<br />

<strong>20</strong>05.<br />

148


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 145-151<br />

é a coerência, ou seja, a lógica interna de um sistema teórico (p. 149-150).<br />

Para o empirismo, o critério é a correspondência, isto é, a identificação entre<br />

ideia e realidade (p. 157-158). E para o subjetivismo, o critério é o que se pode<br />

chamar de “repouso cognitivo”, que nada mais é <strong>do</strong> que a satisfação <strong>do</strong> próprio<br />

sujeito (p. 168-169).<br />

Depois de abordar criticamente essas diferentes tendências, Frame conclui<br />

que a epistemologia cristã precisa fugir da i<strong>do</strong>latria comum a elas, e deve<br />

integrar as três perspectivas e elementos da dinâmica epistemológica. Uma<br />

questão polêmica pode ser levantada neste ponto, com respeito à apreciação<br />

parcialmente positiva que a obra faz da perspectiva subjetiva ou da afirmação<br />

<strong>do</strong> papel ativo <strong>do</strong> sujeito no processo de conhecimento. Frame está consciente<br />

desse fato, e menciona-o como um <strong>do</strong>s aspectos novos da obra que podem<br />

causar desconforto aos mais orto<strong>do</strong>xos (p. 13-14). Um aspecto digno de consideração,<br />

no entanto, é o de que o papel <strong>do</strong> sujeito no processo de conhecimento<br />

não é encara<strong>do</strong> por Frame em termos de autonomia, uma vez que o sujeito é<br />

apenas uma parte <strong>do</strong> conhecimento, <strong>do</strong> qual também fazem parte o objeto e,<br />

sobretu<strong>do</strong>, o critério, e ambos circunscrevem o papel <strong>do</strong> sujeito.<br />

A abrangência da postura epistemológica cristã e sua integração das três<br />

perspectivas e elementos <strong>do</strong> conhecimento encontra-se na <strong>do</strong>utrina da Revelação,<br />

também de forma tri-perspectiva, como algo que acontece na natureza<br />

e na história (perspectiva situacional), em palavra falada e escrita (perspectiva<br />

normativa) e por meio de pessoas (perspectiva subjetiva). 8 Os <strong>do</strong>is primeiros<br />

mo<strong>do</strong>s de revelação são correspondentes ao que, na tradição reformada, é<br />

chama<strong>do</strong>, respectivamente, de revelação geral e revelação especial. O terceiro<br />

é o mais incomum entre eles. Ele, porém, não deve causar espanto a quem<br />

conhece a tradição reformada. Pois o que Frame faz ao distingui-lo é separar<br />

algumas <strong>do</strong>utrinas que, tradicionalmente, são tratadas debaixo da ideia de revelação<br />

especial, como a <strong>do</strong>utrina da encarnação, por exemplo, e incluir outras<br />

<strong>do</strong>utrinas da tradição reformada, como a <strong>do</strong> testemunho interno <strong>do</strong> Espírito<br />

Santo, consideran<strong>do</strong> suas implicações epistemológicas. O que nos importa,<br />

porém, é perceber que o pressuposto com o qual Frame trabalha é o de que a<br />

<strong>do</strong>utrina da Revelação é o ponto de unidade que, perpassan<strong>do</strong> as diferentes<br />

perspectivas, deve levar o pensa<strong>do</strong>r cristão a considerar a integração de todas<br />

elas. A implicação disto para o problema da justificação <strong>do</strong> conhecimento é<br />

que to<strong>do</strong>s os critérios de verdade – coerência, correspondência e “repouso<br />

cognitivo” – devem ser encara<strong>do</strong>s como perspectivas diferentes de um critério<br />

único: a revelação. Frame encerra esta seção afirman<strong>do</strong>: “Assim é que eu sustento<br />

que as três perspectivas são igualmente finais, igualmente importantes.<br />

Cada uma delas depende das outras, de mo<strong>do</strong> que, sem as outras, não seria<br />

inteligível” (p. 179).<br />

8 Para esta organização sistemática, cf. FRAME, J. A <strong>do</strong>utrina da vida cristã. São Paulo: Cultura<br />

Cristã, <strong>20</strong>13, p. 145-151.<br />

149


A <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> conhecimento de Deus<br />

Como na primeira, também podem ser destacadas algumas discussões<br />

desta segunda parte. Uma das mais interessantes é aquela sobre a circularidade<br />

<strong>do</strong> conhecimento, que tem lugar na tratativa sobre a autoridade normativa da<br />

Escritura Sagrada. A argumentação apresentada por Frame, que auxilia o pensa<strong>do</strong>r<br />

cristão no embate com a objeção de assumir a autoridade da Escritura<br />

de mo<strong>do</strong> circular, isto é, a partir da autoridade da própria Escritura, caminha<br />

pela afirmação de três elementos: o <strong>do</strong> caráter inevitável da circularidade (to<strong>do</strong><br />

sistema teórico é circular), o de que a circularidade é legítima e aceitável apenas<br />

em relação a um único objeto (o critério último ou supremo <strong>do</strong> sistema)<br />

e o da amplitude <strong>do</strong> círculo como critério de avaliação de um sistema teórico<br />

(existem círculos estreitos e amplos, e isto define a consistência ou não de um<br />

sistema). Basea<strong>do</strong> nesta argumentação, Frame sustenta que o círculo cristão é<br />

amplo e não estreito (p. 146-149).<br />

A terceira e última parte de A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento de Deus trata da<br />

questão <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s <strong>do</strong> conhecimento. Esta é a parte mais aplicada <strong>do</strong> livro,<br />

e se propõe a considerar o méto<strong>do</strong> teológico, propriamente dito. A primeira<br />

questão nela trabalhada é a relação entre o teólogo e a fonte da teologia: a Escritura.<br />

Tratan<strong>do</strong> dessa questão, Frame discute a tendência antiabstracionista<br />

da teologia moderno-contemporânea, defende a sua abordagem perspectivista<br />

e a exegese contextual, menciona diferentes usos da Escritura, e descreve e<br />

examina, resumidamente, as diferentes divisões ou departamentos da teologia:<br />

exegética, bíblica, sistemática e prática. A nota destoante desta tratativa fica<br />

por conta da abertura de possibilidade para a alegoria como abordagem hermenêutica<br />

adequada (p. 214-215). O argumento sobre o qual essa abertura se<br />

fundamenta é o de que a Escritura pode ser interpretada de todas as diferentes<br />

formas como a própria Escritura se interpreta. Nas palavras <strong>do</strong> autor: “O princípio<br />

relevante, penso eu, é simplesmente este: os textos <strong>do</strong> Antigo Testamento<br />

que Paulo usou têm a possibilidade de ser utiliza<strong>do</strong>s das maneiras pelas quais<br />

ele os utilizou” (p. 215). Com base neste princípio, Frame sustenta literalmente<br />

que as portas estão abertas para a nossa criatividade. A lógica <strong>do</strong> argumento<br />

é: se Paulo utilizou da alegoria e a Escritura autentica este uso, então os teólogos<br />

contemporâneos também podem se utilizar dela. Embora, a princípio,<br />

o argumento seja lógico, sua elaboração parece ter, estranhamente, ignora<strong>do</strong><br />

perspectivas. Pois, se a progressividade da revelação (perspectiva situacional)<br />

e a <strong>do</strong>utrina da inspiração (perspectiva existencial) fossem consideradas, o<br />

argumento de que todas as ferramentas utilizadas pelos escritores bíblicos são<br />

possíveis aos teólogos contemporâneos estaria comprometi<strong>do</strong>.<br />

A segunda questão trabalhada nesta parte final é a relação <strong>do</strong> teólogo<br />

com os da<strong>do</strong>s extrabíblicos que se constituem em ferramentas necessárias<br />

ao empreendimento teológico. Cinco destas ferramentas são consideradas de<br />

mo<strong>do</strong> especial: a linguagem, a lógica, a história, a ciência e a filosofia. A seção<br />

abre espaço para discussões complexas, tais como: a precisão da linguagem,<br />

150


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 145-151<br />

o lugar <strong>do</strong>s padrões confessionais e os limites <strong>do</strong> uso da lógica na teologia.<br />

E delas são extraídas algumas implicações polêmicas. Dentre elas estão a<br />

afirmação de imprecisão na teologia e a defesa da noção de teologia como<br />

aplicação. Frame está consciente delas (p. 13-14). O que se percebe de comum<br />

em Frame, nestas discussões polêmicas, é seu esforço para distinguir teologia<br />

e Escritura Sagrada, enfatizan<strong>do</strong> sempre que a segunda (a Bíblia) deve ser a<br />

autoridade absoluta, norma final de fé e conduta <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r cristão, enquanto<br />

que a primeira (a teologia), embora fundamental – o livro é sobre como fazer<br />

teologia – sen<strong>do</strong> a reflexão humana sobre a Bíblia, deve ser vista por ele como<br />

passível de imprecisões, sob o risco de se incorrer em i<strong>do</strong>latria (p. 241).<br />

A terceira questão desta parte final <strong>do</strong> livro trabalha o tema <strong>do</strong> próprio<br />

sujeito <strong>do</strong> conhecimento teológico. Ela tem como objetivo esclarecer que a<br />

teologia não existe à parte da personalidade <strong>do</strong> teólogo, e procura considerar<br />

a relação entre subjetividade e teologia, enfatizan<strong>do</strong> a influência da espiritualidade<br />

pessoal e <strong>do</strong> caráter de um teólogo em seu empreendimento teórico, e<br />

apontar as capacidades e habilidades necessárias à prática das ciências teológicas.<br />

Ao tratar da relação entre caráter e teologia, Frame discute os efeitos<br />

práticos da teologia, a importância da santificação pessoal, e defende que<br />

“muitas das ambiguidades, falácias e superficialidades que são tão numerosas<br />

na teologia, são falhas de caráter, tanto como <strong>do</strong> intelecto (ou mais)” (p. 339).<br />

Depois de apresentar algumas práticas teológicas perniciosas que resultam da<br />

falha de caráter <strong>do</strong>s teólogos, comprometem o desenvolvimento de uma teologia<br />

saudável e prejudicam o diálogo acadêmico, A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento de<br />

Deus é encerrada com um capítulo sobre méto<strong>do</strong>s apologéticos.<br />

O livro contém ainda dez apêndices: quatro ao fim da primeira parte e seis<br />

ao fim da terceira. Eles são varia<strong>do</strong>s e apresentam desde informações importantes<br />

para o entendimento <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> livro, como é o caso <strong>do</strong>s apêndices A<br />

(Perspectivismo) e D (Fato e interpretação), passan<strong>do</strong> pelo aprofundamento de<br />

questões nele trabalhadas, como é o caso <strong>do</strong> apêndice I (A nova epistemologia<br />

reformada), até elementos de auxílio geral ao teólogo, como os apêndices E<br />

(Avalian<strong>do</strong> escritos teológicos), F (Como escrever um ensaio teológico?) e G<br />

(Máximas para teólogos e apologistas).<br />

A tradução de A Doutrina <strong>do</strong> Conhecimento de Deus e das outras obras da<br />

Teologia <strong>do</strong> Senhorio, de John Frame, é uma importante contribuição da Editora<br />

Cultura Cristã ao cenário teológico brasileiro. Trabalhan<strong>do</strong> dentro da tradição<br />

reformada, Frame se propõe a uma articulação teológica sistemática distinta da<br />

comum, e lida de mo<strong>do</strong> direto com problemas contemporâneos. Esta articulação<br />

tem se mostra<strong>do</strong> útil para uma aproximação mais completa de áreas importantes<br />

como a epistemologia e a ética. Até mesmo em virtude de sua profundidade e<br />

abrangência, é claro que o empreendimento de Frame está sujeito a imprecisões<br />

e equívocos. Mas isto não diminui seus méritos, valor e utilidade. Recomen<strong>do</strong><br />

ao leitor, principalmente ao teólogo, que considere o que ele tem a dizer.<br />

151


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 153-165<br />

Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15<br />

Artigos<br />

Antigo Testamento<br />

ALMEIDA JR., Jair de. O padrão Éden: modelo de restauração da criação.<br />

XII-2 (<strong>20</strong>07), 79-92.<br />

AQUINO, João Paulo Thomaz de. Por que Josias morreu? XVI-1 (<strong>20</strong>11),<br />

91-105.<br />

CAMPOS, Heber Carlos de. O cumprimento próximo <strong>do</strong> “Dia <strong>do</strong> Senhor” na<br />

profecia de Joel. XII-1 (<strong>20</strong>07), 101-126.<br />

CESARETTI, Marcos. É factível que a arca <strong>do</strong> livro de Gênesis tenha si<strong>do</strong><br />

calafetada com betume? XIV-1 (<strong>20</strong>09), 47-73.<br />

COSTA, Hermisten Maia Pereira da. O Deus que se revela: a majestade de<br />

Deus na criação como premissa teológica, antropológica e ecológica (Sl 8.1-9).<br />

XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 9-31.<br />

HACK, Jonathan Luís. Jeremias: um panorama teológico. XX-1 (<strong>20</strong>15), 15-32.<br />

MEISTER, Mauro Fernan<strong>do</strong>. Deus tornou o mal em bem? Uma avaliação da<br />

tradução de Gênesis 50.<strong>20</strong>. XVII-1 (<strong>20</strong>12), 79-87.<br />

SANTOS, Danillo Augusto. Certo tipo ou um tipo certo de ambiguidade? Uma<br />

exegese de Juízes 19. XVI-2 (<strong>20</strong>11), 9-26.<br />

Santos Jr., Daniel. A plantação da igreja no Éden. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 49-59.<br />

SANTOS JR., Daniel. Responden<strong>do</strong> à rainha de Sabá: uma investigação sobre<br />

a natureza da linguagem sapiencial <strong>do</strong> Antigo Testamento. XVI-1 (<strong>20</strong>11), 71-90.<br />

SANTOS JR., Daniel. Sem direito a resposta: lidan<strong>do</strong> com as questões exegéticas<br />

referentes ao livro de Jó. XII-1 (<strong>20</strong>07), 9-26.<br />

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Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15<br />

Apologética<br />

COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A religião entre os gregos e o ateísmo<br />

prático à luz <strong>do</strong> Salmo 14. XVI-2 (<strong>20</strong>11), 119-149.<br />

GAROFALO NETO, Emilio. Antes só <strong>do</strong> que mal acompanhada: o risco<br />

de casar-se com o espírito de seu tempo – uma análise das propostas de<br />

revitalização de igreja <strong>do</strong>s movimentos seeker-sensitive e emergente. XX-2<br />

(<strong>20</strong>15), 41-69.<br />

MATOS, Alderi Souza de. Islã e tolerância: discurso apologético e realidade<br />

histórica. XX-1 (<strong>20</strong>15), 61-88.<br />

MEISTER, Mauro Fernan<strong>do</strong>. Igreja emergente, a igreja <strong>do</strong> pós-modernismo?<br />

Uma avaliação provisória. XI-1 (<strong>20</strong>06), 95-112.<br />

UCHÔA, Bruno Henrique. Inatismo de conceitos, evolucionismo e teísmo.<br />

XIX-2 (<strong>20</strong>14), 31-53.<br />

Eclesiologia<br />

CAMPOS JR., Heber Carlos de. Em busca de uma eclesiologia reformada: a<br />

natureza da igreja conforme as confissões. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 81-93.<br />

DUARTE, Jedeías de Almeida. Plantio de novas igrejas: uma análise conceitual<br />

preliminar. XVI-1 (<strong>20</strong>11), 31-47.<br />

LIMA, Leandro Antonio de. Identidade e organização da igreja na teologia<br />

de Paulo. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 123-133.<br />

MATOS, Alderi Souza de. “Não deixemos de congregar-nos”: enfrentan<strong>do</strong> o<br />

problema da evasão de membros. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 21-33.<br />

REIS, Gildásio Jesus Barbosa <strong>do</strong>s. Revitalização de igrejas: pressupostos<br />

teológicos básicos. XVII-2 (<strong>20</strong>12), 93-112.<br />

SANTOS, João Alves <strong>do</strong>s. A igreja e sua confessionalidade. XIX-1 (<strong>20</strong>14),<br />

95-110.<br />

Educação cristã<br />

COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A reforma calvinista e a educação: anotações<br />

introdutórias. XIII-2 (<strong>20</strong>08), 25-48.<br />

GOMES, Davi Charles. Como sabemos? O professor e as teorias <strong>do</strong> conhecimento.<br />

XIII-2 (<strong>20</strong>08), 65-96.<br />

LOPES, Augustus Nicodemus. Ensinar e aprender em Paulo. XIII-2 (<strong>20</strong>08),<br />

113-123.<br />

154


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 153-165<br />

LOPES, Augustus Nicodemus. João Calvino e a universidade: 500 anos <strong>do</strong><br />

nascimento <strong>do</strong> reforma<strong>do</strong>r (1509-<strong>20</strong>09). XIV-2 (<strong>20</strong>09), 129-136.<br />

LOPES, Edson Pereira. O conceito de educação em João Amós Comenius.<br />

XIII-2 (<strong>20</strong>08), 49-63.<br />

MATOS, Alderi Souza de. Breve história da educação cristã: <strong>do</strong>s primórdios<br />

ao século <strong>20</strong>. XIII-2 (<strong>20</strong>08), 9-24.<br />

MEISTER, Mauro Fernan<strong>do</strong>. Cosmovisão: <strong>do</strong> conceito à prática na escola<br />

cristã. XIII-2 (<strong>20</strong>08), 175-190.<br />

MEISTER, Mauro Fernan<strong>do</strong>. A matriz da educação cristã e a missão. XIX-1<br />

(<strong>20</strong>14), 11-<strong>20</strong>.<br />

MOURA, Roseli Pereira Corrêa de Lima e. A educação integral <strong>do</strong> ser: proposta<br />

e desafio da educação escolar cristã. XIII-2 (<strong>20</strong>08), 97-111.<br />

PORTELA, Solano. Pensamentos preliminares direciona<strong>do</strong>s a uma pedagogia<br />

redentiva. XIII-2 (<strong>20</strong>08), 125-154.<br />

SANTOS JR., Daniel. A proposta pedagógica de Provérbios 22.6. XIII-1<br />

(<strong>20</strong>08), 9-29.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. Educação cristã: conceituação teórica e implicações<br />

práticas. XIII-2 (<strong>20</strong>08), 155-174.<br />

Espiritualidade<br />

COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A piedade obediente de Calvino: teologia<br />

e vida. XIII-1 (<strong>20</strong>08), 71-86.<br />

COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Teologia e piedade: por uma teologia<br />

comprometida. XV-2 (<strong>20</strong>10), 67-83.<br />

COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A enganosa prosperidade <strong>do</strong>s ímpios à<br />

luz <strong>do</strong> Salmo 10: uma reflexão devocional. XX-1 (<strong>20</strong>15), 45-60.<br />

Ética cristã<br />

GAROFALO NETO, Emilio. A busca humana da diversão sob a ótica bíblica<br />

de criação-queda-redenção. XVI-2 (<strong>20</strong>11), 27-49.<br />

MEISTER, Mauro Fernan<strong>do</strong>. Olho por olho: a lei de talião no contexto bíblico.<br />

XII-1 (<strong>20</strong>07), 57-71.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. A luta cristã pela fidelidade conjugal: um matrimônio<br />

digno em uma sociedade adúltera. XI-1 (<strong>20</strong>06), 9-23.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. Homossexualidade: da repressão à celebração.<br />

XX-2 (<strong>20</strong>15), 71-91.<br />

155


Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15<br />

Hermenêutica<br />

CARVALHO, Tarcízio José de Freitas. A abordagem linguística textual e os<br />

estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Antigo Testamento. XIII-1 (<strong>20</strong>08), 87-107.<br />

CARVALHO, Tarcízio José de Freitas. Orientações para a interpretação de<br />

narrativas bíblicas. XVI-1 (<strong>20</strong>11), 107-128.<br />

FERREIRA, Fabiano Antonio. As lentes <strong>do</strong> tradutor e <strong>do</strong> exegeta: um ensaio<br />

em meto<strong>do</strong>logia exegética aplicada ao Antigo Testamento com estu<strong>do</strong> de caso<br />

em Jeremias 1.11-12. XII-2 (<strong>20</strong>07), 27-41.<br />

MEISTER, Mauro Fernan<strong>do</strong>. A exegese bíblica em Calvino: princípios, méto<strong>do</strong>s<br />

e lega<strong>do</strong>. XIV-2 (<strong>20</strong>09), 115-127.<br />

PATROCÍNIO, Jorge Luiz. Validade na interpretação bíblica: a interação<br />

cíclica de autor, texto e intérprete – uma resposta reformada para uma hermenêutica<br />

pós-moderna. XI-2 (<strong>20</strong>06), 101-119.<br />

História da igreja<br />

CAMPOS JR., Heber Carlos de. Calvino e os calvinistas da pós-reforma.<br />

XIV-2 (<strong>20</strong>09), 11-31.<br />

CARVALHO, José Roberto Dias de. Patrick Hamilton: o primeiro prega<strong>do</strong>r e<br />

mártir da Reforma na Escócia. XIV-1 (<strong>20</strong>09), 35-46.<br />

CARVALHO, Marcone Bezerra. Émile-G. Léonard: introdução à sua vida e<br />

obra. XVII-2 (<strong>20</strong>12), 27-44.<br />

CASTRO, Luís Alberto de. A política e os cargos eletivos em Calvino. XII-2<br />

(<strong>20</strong>07), 93-116.<br />

COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A fortuna e a providência: Maquiavel e<br />

Calvino, <strong>do</strong>is olhares sobre a história e a vida. XIX-2 (<strong>20</strong>14), 55-75.<br />

COSTANZA, José Roberto da Silva. Os sacramentos na igreja antiga. XVIII-1<br />

(<strong>20</strong>13), 25-39.<br />

FERREIRA, Franklin. A igreja confessional alemã e a “disputa pela igreja”<br />

(1933-1937). XV-1 (<strong>20</strong>10), 9-36.<br />

GOMES, Elizabeth. Catarina de Siena: uma contribuição feminina ao pensamento<br />

e à espiritualidade ocidental. XX-1 (<strong>20</strong>15), 33-44.<br />

LOPES, Augustus Nicodemus. Os precursores <strong>do</strong> moderno movimento de<br />

restauração apostólica. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 35-47.<br />

MATOS, Alderi Souza de. João Calvino e a disciplina em Genebra: um retrato<br />

para<strong>do</strong>xal. XVIII-1 (<strong>20</strong>13), 61-86.<br />

156


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 153-165<br />

MATOS, Alderi Souza de. O movimento pentecostal: reflexões a propósito <strong>do</strong><br />

seu primeiro centenário. XI-2 (<strong>20</strong>06), 23-50.<br />

MATOS, Alderi Souza de. Um vaso de barro: a dimensão humana de João<br />

Calvino. XIV-2 (<strong>20</strong>09), 47-64.<br />

SILVA, Wilson Santana. Correntes ideológicas <strong>do</strong> século XIX e a religião.<br />

XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 75-98.<br />

SOUZA, Alfre<strong>do</strong> Ferreira de. Por uma história da igreja. XII-1 (<strong>20</strong>07), 127-140.<br />

TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; VIEIRA, Paulo Henrique. A Reforma<br />

Protestante nos manuais de história da educação da Escócia. XV-1 (<strong>20</strong>10),<br />

95-109.<br />

Missiologia<br />

BOSMA, Carl J. Missões e sintaxe grega em Mateus 28.19. XIV-1 (<strong>20</strong>09), 9-31.<br />

FONTES, Filipe Costa. Missão integral ou neocalvinismo: em busca de uma<br />

visão mais ampla da missão da igreja. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 61-72.<br />

MEDEIROS, Elias. The reformers and “missions”: Warneck, Latourette, Neill,<br />

Kane, Winter, and Tucker’s arguments – part 1. XVIII-1 (<strong>20</strong>13), 107-133.<br />

ROSA, Pierre. Uma força missionária no sul global. XX-2 (<strong>20</strong>15), 31-39.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. Antes de continuar falan<strong>do</strong> sobre revitalização de<br />

igrejas: discussão preliminar. XVIII-1 (<strong>20</strong>13), 41-59.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. Revitalização de igrejas: uma reflexão teologicamente<br />

orientada. XVI-1 (<strong>20</strong>11), 9-30.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. Sua igreja necessita de revitalização? Como saber?<br />

XIX-1 (<strong>20</strong>14), 135-148.<br />

Novo Testamento<br />

ALMEIDA JR., Jair de. Uma hipótese plausível da identidade <strong>do</strong> “eu” de<br />

Romanos 7. XIV-1 (<strong>20</strong>09), 101-115.<br />

AQUINO, João Paulo Thomaz de. 1 Coríntios 6.12-<strong>20</strong> e o estilo diatríbico.<br />

XV-1 (<strong>20</strong>10), 37-55.<br />

AQUINO, João Paulo Thomaz de. Atos 6.1-7: A gênese <strong>do</strong> ofício diaconal?<br />

XV-2 (<strong>20</strong>10), 9-<strong>20</strong>.<br />

AQUINO, João Paulo Thomaz de. 1 Coríntios 7.10-11: divórcio entre cristãos?<br />

XIX-1 (<strong>20</strong>14), 111-122.<br />

AQUINO, João Paulo Thomaz de. Marcos 8.1-9 – A segunda multiplicação<br />

de pães e peixes. XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 49-64.<br />

157


Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15<br />

LIMA, Leandro Antonio de. Os números <strong>do</strong> Apocalipse: a importância da<br />

análise literária para a interpretação <strong>do</strong> livro. XVIII-1 (<strong>20</strong>13), 9-23.<br />

LIMA, Leandro Antonio de. O poder da arte literária no Apocalipse: um estu<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> uso <strong>do</strong> Antigo Testamento em Apocalipse 12.1-6. XX-2 (<strong>20</strong>15), 9-29.<br />

LOPES, Augustus Nicodemus. Por que não aceitamos os evangelhos apócrifos.<br />

XVII-1 (<strong>20</strong>12), 9-24.<br />

LOPES, Augustus Nicodemus. A nova perspectiva sobre Paulo: um estu<strong>do</strong><br />

sobre as “obras da lei” em Gálatas. XI-1 (<strong>20</strong>06), 83-94.<br />

REIS, Éverton Wilian <strong>do</strong>s. Discursos no milagre <strong>do</strong>s pães e peixes: tradução<br />

e estu<strong>do</strong>. XVIII-1 (<strong>20</strong>13), 87-105.<br />

SANTOS, João Alves <strong>do</strong>s. Jesus e as moradas na casa <strong>do</strong> Pai: interpretan<strong>do</strong><br />

monai em João 14. XVI-1 (<strong>20</strong>11), 49-70.<br />

SOUZA, Gaspar de. Novamente as obras da lei: Gálatas 2.16. XIX-2 (<strong>20</strong>14),<br />

77-93.<br />

Temas brasileiros<br />

GOMES, Elizabeth. Vermelho Brasil, de Jean-Christophe Rufin: algumas<br />

reflexões. XV-1 (<strong>20</strong>10), 111-128.<br />

MATOS, Alderi Souza de. A atividade literária <strong>do</strong>s presbiterianos no Brasil.<br />

XII-2 (<strong>20</strong>07), 43-62.<br />

MONTEIRO, Donald Bueno. Música religiosa no Brasil colonial. XIV-1<br />

(<strong>20</strong>09), 75-100.<br />

SILVA, Hélio de Oliveira. A Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Brasil e a escravidão:<br />

breve análise <strong>do</strong>cumental. XV-2 (<strong>20</strong>10), 43-66.<br />

SILVA, Wilson Santana. As matrizes acadêmicas <strong>do</strong> pensamento brasileiro:<br />

Comte e Marx. XVII-1 (<strong>20</strong>12), 61-77.<br />

VALENTIM, Carlos Antônio. O Brasil e os brasileiros. XV-2 (<strong>20</strong>10), 97-107.<br />

VASCONCELOS, Micheline Reinaux de. Das sociedades bíblicas aos colportores:<br />

a distribuição de textos protestantes no Brasil (1837-19<strong>20</strong>). XVII-2<br />

(<strong>20</strong>12), 75-92.<br />

Teologia e filosofia<br />

BOTELHO, Marcos Campos. Teologia reformada e pressupostos filosóficos:<br />

juntos contra o ceticismo hermenêutico pós-moderno. XV-2 (<strong>20</strong>10), 85-96.<br />

CAMPOS, Heber Carlos de. O impacto da filosofia de Kant sobre a <strong>do</strong>utrina<br />

da revelação em Karl Barth. XI-1 (<strong>20</strong>06), 25-50.<br />

158


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 153-165<br />

COSTA, Elinês Júlio. Ratio et fides no pensamento de Sigmund Freud. XI-2<br />

(<strong>20</strong>06), 51-72.<br />

GOMES, Davi Charles. A metapsicologia vantiliana: uma incursão preliminar.<br />

XI-1 (<strong>20</strong>06), 113-139.<br />

OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Apontamentos introdutórios sobre a epistemologia<br />

religiosa de João Calvino nas Institutas da Religião Cristã. XIV-2<br />

(<strong>20</strong>09), 65-94.<br />

OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Diagnostican<strong>do</strong> os sintomas <strong>do</strong> nosso tempo:<br />

parte 1 – um ensaio crítico sobre os í<strong>do</strong>los da modernidade. XVI-2 (<strong>20</strong>11),<br />

51-94.<br />

OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Philosophan<strong>do</strong> coram Deo: uma apresentação<br />

panorâmica da vida, pensamento e antecedentes intelectuais de Herman<br />

Dooyeweerd. XI-2 (<strong>20</strong>06), 73-100.<br />

OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Reflexões críticas sobre Weltanschauung:<br />

uma análise <strong>do</strong> processo de formação e compartilhamento de cosmovisões<br />

numa perspectiva teo-referente. XIII-1 (<strong>20</strong>08), 31-52.<br />

PIACENTE JR., José Carlos. A herança epistêmica agostiniano-calvinista em<br />

Alvin Plantinga. XV-2 (<strong>20</strong>10), 21-42.<br />

PIACENTE JR., José Carlos. Um estu<strong>do</strong> comparativo entre as propostas ético-<br />

-sociais de H. Dooyeweerd e N. Wolterstorff. XVII-2 (<strong>20</strong>12), 45-73.<br />

Teologia histórica<br />

CAMPOS JR., Heber Carlos de. O lugar da fé e da obediência na justificação:<br />

um apanha<strong>do</strong> histórico das discussões reformadas <strong>do</strong> século XVII. XIII-1<br />

(<strong>20</strong>08), 53-69.<br />

CASTELO, Paulo Afonso Nascimento. Jonathan Edwards e o livre-arbítrio:<br />

uma breve análise de seus principais conceitos e controvérsias. XVIII-2 (<strong>20</strong>13),<br />

65-74.<br />

GUANAES, Daniel Leite. O conceito de justificação no pensamento de Thomas<br />

Boston. XIV-1 (<strong>20</strong>09), 117-131.<br />

MAGALHÃES, Francisco Mário Lima. O senti<strong>do</strong> de “to<strong>do</strong> o Israel” em Romanos<br />

11.26 segun<strong>do</strong> Calvino. XI-2 (<strong>20</strong>06), 9-22.<br />

PORTELA, Solano. A legitimidade <strong>do</strong> governo e da política em Calvino,<br />

Kuyper e Dooyeweerd. XIV-2 (<strong>20</strong>09), 95-114.<br />

SANTOS, João Alves <strong>do</strong>s. Cristianismo e gnosticismo: uma avaliação de sua<br />

incompatibilidade ao ensejo da publicação <strong>do</strong> “Evangelho de Judas”. XI-1<br />

(<strong>20</strong>06), 51-81.<br />

159


Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. Quem é realmente reforma<strong>do</strong>? Relembran<strong>do</strong><br />

conceitos básicos da fé reformada. XI-2 (<strong>20</strong>06), 121-148.<br />

SANTOS JR., Daniel. O interesse de Calvino pela literatura sapiencial. XIV-1<br />

(<strong>20</strong>09), 33-46.<br />

XIMENES, Luciano. Revelação em Paul Tillich. XII-2 (<strong>20</strong>07), 63-77.<br />

Teologia prática/pastoral<br />

CARDOSO, Dario de Araújo. Uma abordagem cristocêntrica para os sermões<br />

biográficos. XV-1 (<strong>20</strong>10), 57-79.<br />

DUARTE, Jedeias de Almeida. A vocação para o serviço ou o serviço <strong>do</strong>s<br />

vocaciona<strong>do</strong>s? XVI-2 (<strong>20</strong>11), 95-117.<br />

GOMES, Wadislau Martins. Pregação e aconselhamento: uma aproximação<br />

multiperspectiva. XII-1 (<strong>20</strong>07), 73-99.<br />

MAGALHÃES, Francisco Mário Lima. “O diabo está debaixo <strong>do</strong>s nossos<br />

pés”: questionan<strong>do</strong> um clichê evangélico. XIV-1 (<strong>20</strong>10), 81-94.<br />

PALERMO, Silas. Da coerência entre sacro e profano em música. XX-2<br />

(<strong>20</strong>15), 93-107.<br />

REIS, Gildásio Jesus Barbosa <strong>do</strong>s. O pastor e o discipula<strong>do</strong>: um apelo aos<br />

pastores para resgatarem a mentoria espiritual. XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 33-48.<br />

Teologia sistemática<br />

CAMPOS, Heber Carlos de. A presença real de Cristo na ceia no pensamento<br />

de Calvino. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 73-80.<br />

CAMPOS, Heber Carlos de. A graça preveniente na tradição arminiana/<br />

wesleyana (parte 1). XVII-1 (<strong>20</strong>12), 25-43.<br />

CAMPOS, Heber Carlos de. A graça preveniente na tradição arminiana/<br />

wesleyana (parte 2). XVII-2 (<strong>20</strong>12), 9-25.<br />

LIMA, Alan Rennê Alexandrino. A transformação <strong>do</strong>s justos na parousia.<br />

XIX-2 (<strong>20</strong>14), 9-29.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. O perfeccionismo como um obstáculo à santidade<br />

cristã. XIII-1 (<strong>20</strong>08), 109-128.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. A teologia relacional: suas conexões com o teísmo<br />

aberto e implicações para a igreja contemporânea. XII-1 (<strong>20</strong>07), 27-55.<br />

GOMES, Arley Preto. A ação graciosa de Deus sobre a vida <strong>do</strong>s não-eleitos<br />

como efeito colateral da obra redentora de Cristo. XII-2 (<strong>20</strong>07), 9-25.<br />

160


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 153-165<br />

Textos em inglês<br />

BOERSEMA, Ralph F. Original righteousness. XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 99-115.<br />

MACEDO, Breno. Covenant theology in the thought of John Calvin: from the<br />

covenant of works to the Abrahamic covenant. XX-1 (<strong>20</strong>15), 89-105.<br />

NEELE, Adriaan C. Jonathan Edwards (1703-1758) and the nature of theology.<br />

XVII-2 (<strong>20</strong>12), 113-128.<br />

SANTOS JR., Daniel. The meaning of mystery in Romans 11:25. XVII-1<br />

(<strong>20</strong>12), 45-59.<br />

SCHIRRMACHER, Thomas. The <strong>do</strong>xological dimension of ethics. XX-2<br />

(<strong>20</strong>15), 109-125.<br />

VAN HOUWELINGEN, P. H. R. (Rob). John and the others: to whom <strong>do</strong>es<br />

the “we” in the Fourth Gospel’s prologue and epilogue refer? XIX-2 (<strong>20</strong>14),<br />

95-115.<br />

VAN HOUWELINGEN, P. H. R. (Rob). Riddles around the letter to the Hebrews.<br />

XVI-2 (<strong>20</strong>11), 151-162.<br />

Textos especiais<br />

ÁSSI, Gustavo R. S. O que podemos aprender com o projeto <strong>do</strong> grande colisor<br />

de hádrons? XIV-1 (<strong>20</strong>09), 141-143.<br />

MATOS, Alderi Souza de. <strong>Fides</strong> Reformata – vinte anos de história. XX-1<br />

(<strong>20</strong>15), 9-14.<br />

OLIVEIRA, Fabiano de Almeida; MEISTER, Mauro; PORTELA, Solano.<br />

Relação de obras sobre educação cristã. XIII-2 (<strong>20</strong>08), 191-<strong>20</strong>1.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. Calvino em livros: uma bibliografia anotada.<br />

XIV-2 (<strong>20</strong>09), 139-146.<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. O que é e como fazer “revisão da literatura” na<br />

pesquisa teológica. XVII-1 (<strong>20</strong>12), 89-104.<br />

SCHALKWIJK, Frans Leonard. As lágrimas de Cunhaú. XV-2 (<strong>20</strong>10), 109-111.<br />

Resenhas<br />

ARMSTRONG, John. O ministério pastoral segun<strong>do</strong> a Bíblia. XVII-1 (<strong>20</strong>12),<br />

117-1<strong>20</strong>. (Vlademir Hernandes)<br />

BibleWorks 10. XX-2 (<strong>20</strong>15), 127-133. (Danillo A. Santos)<br />

BURROUGHS, Jeremiah. A<strong>do</strong>ração evangélica. XX-2 (<strong>20</strong>15), 135-139.<br />

(Breno Mace<strong>do</strong>)<br />

161


Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15<br />

CAMPOS, Héber Carlos de. O habitat humano. XVI-2 (<strong>20</strong>11), 167-169. (Solano<br />

Portela)<br />

CARSON, D. A. A intolerância da tolerância. XVIII-1 (<strong>20</strong>13), 135-140.<br />

(Cláudio Marra)<br />

CHALLIES, Tim. Desintoxicação sexual. XVI-2 (<strong>20</strong>11), 177-178. (Augustus<br />

Nicodemus Lopes)<br />

CLARK, Gor<strong>do</strong>n H. Em defesa da teologia. XVI-2 (<strong>20</strong>11), 171-176. (Leonar<strong>do</strong><br />

Bruno Galdino)<br />

COLLINS, Gary R. Aconselhamento cristão. XV-2 (<strong>20</strong>10), 117-122. (Wadislau<br />

Martins Gomes)<br />

CRAIG, William Lane. Em guarda: defenda a fé cristã com razão e precisão.<br />

XVII-2 (<strong>20</strong>12), 129-132. (André Leonar<strong>do</strong> Venâncio)<br />

DEYOUNG, Kevin. Super ocupa<strong>do</strong>. XIX-2 (<strong>20</strong>14), 137-140. (Filipe Costa<br />

Fontes)<br />

DEYOUNG, Kevin; GILBERT, Greg. Qual a missão da igreja? XIX-2 (<strong>20</strong>14),<br />

121-124. (Filipe Costa Fontes)<br />

DOBSON, James. Educan<strong>do</strong> crianças geniosas. XI-2 (<strong>20</strong>06), 149-156. (Elizabeth<br />

Zekveld Portela)<br />

DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo <strong>do</strong> pensamento ocidental. XV-1<br />

(<strong>20</strong>10), 129-133. (José Carlos Piacente Júnior)<br />

Evangelical manifesto (Manifesto evangélico) – XIII-1 (<strong>20</strong>08), 129-134.<br />

(Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister)<br />

FARIA, Eduar<strong>do</strong> Galasso (Org.). João Calvino: textos escolhi<strong>do</strong>s – XIV-2<br />

(<strong>20</strong>09), 137-138. (Alderi Souza de Matos)<br />

FRAME, John M. A <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> conhecimento de Deus. XX-2 (<strong>20</strong>15), 145-151.<br />

(Filipe Costa Fontes)<br />

GEORGE, Timothy. Teologia <strong>do</strong>s reforma<strong>do</strong>res. XV-2 (<strong>20</strong>10), 113-115. (Hermisten<br />

Maia Pereira da Costa)<br />

GIRALDI, Luiz Antônio. História da Bíblia no Brasil. XIV-1 (<strong>20</strong>09), 135-136.<br />

(Antônio Paulo Benatte)<br />

GOHEEN, Michael W. A igreja missional na Bíblia. XX-1 (<strong>20</strong>15), 115-1<strong>20</strong>.<br />

(Breno Mace<strong>do</strong>)<br />

GOLDSWORTHY, Graeme. Pregan<strong>do</strong> toda a Bíblia como escritura cristã.<br />

XX-2 (<strong>20</strong>15), 141-144. (Giuliano Letieri Coccaro)<br />

GRUDEM, Wayne. Política segun<strong>do</strong> a Bíblia. XIX-2 (<strong>20</strong>14), 117-1<strong>20</strong>. (Christian<br />

Brially de Medeiros)<br />

162


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 153-165<br />

HARRIS, Joshua; STANFORD, Eric. Orto<strong>do</strong>xia humilde. XIX-2 (<strong>20</strong>14),<br />

133-136. (Tarcízio José de Freitas Carvalho)<br />

HORTON, Michael. Cristianismo sem Cristo. XV-1 (<strong>20</strong>10), 135-142. (Leonar<strong>do</strong><br />

Bruno Galdino)<br />

JADON, José Carlos. O ethos <strong>do</strong> discurso televisivo da Igreja Universal <strong>do</strong><br />

Reino de Deus (IURD), <strong>do</strong> ponto de vista da semiótica de linha francesa –<br />

XIII-1 (<strong>20</strong>08), 143-145. (Paulo Romeiro)<br />

JONES, Peter. Bruxaria global: técnicas da espiritualidade pagã e a resposta<br />

cristã. XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 117-121. (José Carlos Piacente Júnior)<br />

JONES, Peter. The god of sex: how spirituality defines your sexuality. XI-2<br />

(<strong>20</strong>06), 157-161. (Valdeci da Silva Santos)<br />

KAISER JR., Walter C. Documentos <strong>do</strong> Antigo Testamento: sua relevância e<br />

confiabilidade. XIII-1 (<strong>20</strong>08), 139-141. (Márcio Roberto Alonso)<br />

KELLER, Timothy. Igreja centrada. XX-1 (<strong>20</strong>15), 111-114. (Gildásio Jesus<br />

Barbosa <strong>do</strong>s Reis)<br />

KINGSOLVER, Barbara. The poisonwood Bible. XV-2 (<strong>20</strong>10), 129-131.<br />

(Elizabeth Gomes)<br />

LOPES, Hernandes Dias. Destina<strong>do</strong>s para a glória. XII-1 (<strong>20</strong>07), 145-146.<br />

(Solano Portela)<br />

LUNDGAARD, Kris. O mal que habita em mim. XI-2 (<strong>20</strong>06), 163-167. (Filipe<br />

Costa Fontes)<br />

MACCULLOUGH, Marti e outros. Fundamentos pedagógicos – XIII-2 (<strong>20</strong>08),<br />

211-214. (Robinson Grangeiro Monteiro)<br />

MARRA, Cláudio. A igreja discipula<strong>do</strong>ra. XII-1 (<strong>20</strong>07), 141-144. (Solano<br />

Portela)<br />

MATOS, Alderi Souza de. Uma igreja peregrina: história da Igreja Presbiteriana<br />

<strong>do</strong> Brasil de 1959 a <strong>20</strong>09. XIV-1 (<strong>20</strong>09), 133-134. (Alderi S. Matos)<br />

MATTOS, Luiz Roberto França de. Jonathan Edwards e o avivamento brasileiro.<br />

XI-1 (<strong>20</strong>06), 151-153. (Alderi Souza de Matos)<br />

McGRATH, Alister E. Fundamentos <strong>do</strong> diálogo entre religião e ciência. XII-2<br />

(<strong>20</strong>07), 129-135. (George Camargo <strong>do</strong>s Santos)<br />

McGRATH, Alister E. Paixão pela verdade: a coerência intelectual <strong>do</strong> evangelicalismo.<br />

XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 123-125. (Ângelo Vieira Silva)<br />

McGRATH, Alister; McGRATH, Joanna. O delírio de Dawkins: uma resposta<br />

ao fundamentalismo ateísta de Richard Dawkins. XII-2 (<strong>20</strong>07), 117-1<strong>20</strong>.<br />

(Valdeci da Silva Santos)<br />

163


Índice de <strong>Fides</strong> Reformata: <strong>20</strong>06-<strong>20</strong>15<br />

MEIER, Celito. A educação à luz da pedagogia de Jesus de Nazaré. XIII-2<br />

(<strong>20</strong>08), <strong>20</strong>3-<strong>20</strong>5. (Carlos Ribeiro Caldas Filho)<br />

MEILAENDER, Gilbert. Bioética: uma perspectiva cristã. XVII-1 (<strong>20</strong>12),<br />

111-115. (João Paulo Thomaz de Aquino)<br />

MERRILL, Eugene H. Teologia bíblica <strong>do</strong> Antigo Testamento. XV-1 (<strong>20</strong>10),<br />

143-146. (Carlos Augusto Dias)<br />

MORELAND, James Porter; CRAIG, William Lane. Filosofia e cosmovisão<br />

cristã. XII-2 (<strong>20</strong>07), 125-128. (Fernan<strong>do</strong> Jorge Maia Abraão)<br />

NASCIMENTO FILHO, Antônio José <strong>do</strong>. Bartolomeu de las Casas, um cidadão<br />

universal: uma questão de alteridade com os povos <strong>do</strong> novo mun<strong>do</strong>. XI-1<br />

(<strong>20</strong>06), 147-150. (Valdeci da Silva Santos)<br />

OHLER, Annemarie; MENZEL, Tom. Atlas da Bíblia. XX-1 (<strong>20</strong>15), 121-126.<br />

(Dario de Araújo Car<strong>do</strong>so)<br />

OUWENEEL, Willem. Coração e alma – uma perspectiva cristã da psicologia.<br />

XIX-2 (<strong>20</strong>14), 125-132. (João Batista <strong>do</strong>s Santos Almeida)<br />

PAZMIÑO, Robert W. Temas fundamentais da educação cristã. XIII-2 (<strong>20</strong>08),<br />

<strong>20</strong>7-210. (Gildásio Jesus Barbosa <strong>do</strong>s Reis)<br />

PEARCEY, Nancy R.; THAXTON, Charles B. A alma da ciência: fé cristã e<br />

filosofia natural. XI-1 (<strong>20</strong>06), 141-145. (Valdeci da Silva Santos)<br />

PIPER, John; TAYLOR, Justin; HELSETH, Paul K. Teísmo aberto – uma teologia<br />

além <strong>do</strong>s limites bíblicos. XII-1 (<strong>20</strong>07), 147-153. (Filipe Costa Fontes)<br />

PLANTINGA JR., Cornelius. O crente no mun<strong>do</strong> de Deus. XIII-2 (<strong>20</strong>08),<br />

215-217. (Tarcízio José de Freitas Carvalho)<br />

PLANTINGA JR., Cornelius. O crente no mun<strong>do</strong> de Deus: uma visão cristã da<br />

fé, da educação e da vida. XIII-1 (<strong>20</strong>08), 135-138. (Marcelo Smeets)<br />

REEDER III, Harry L.; SWAVELY, David. A revitalização da sua igreja segun<strong>do</strong><br />

Deus. XVI-1 (<strong>20</strong>11), 129-132. (Gladston Cunha)<br />

SANTOS, Valdeci da Silva. O triunfo da graça na vida prática. XVIII-1 (<strong>20</strong>13),<br />

145-148. (José Carlos Piacente Júnior)<br />

SCHAEFFER, Francis. Gênesis no espaço-tempo. XX-1 (<strong>20</strong>15), 107-110.<br />

(Allen Porto)<br />

SHEDD, Russell P. O líder que Deus usa. XIV-1 (<strong>20</strong>09), 137-139. (Wanderson<br />

F. M. de Oliveira)<br />

SOARES, Esequias. Gramática prática de grego. XVI-2 (<strong>20</strong>11), 163-166.<br />

(João Paulo Thomaz de Aquino)<br />

164


FIDES REFORMATA XX, Nº 2 (<strong>20</strong>15): 153-165<br />

STOTT, John. O discípulo radical. XVII-1 (<strong>20</strong>12), 121-124. (Gladston Cunha)<br />

TIMMIS, Steve; CHESTER, Tim. Igreja diária: comunidades <strong>do</strong> evangelho<br />

em missão. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 149-156. (Emílio Garofalo Neto)<br />

TRIPP, Paul D. O que você esperava? Expectativas fictícias e a realidade <strong>do</strong><br />

casamento. XVI-1 (<strong>20</strong>11), 139-143. (Valdeci da Silva Santos)<br />

TRUEMAN, Carl R. O imperativo confessional. XIX-1 (<strong>20</strong>14), 157-163.<br />

(Hermisten Maia Pereira da Costa)<br />

VAN TIL, Cornelius. Apologética cristã. XVII-1 (<strong>20</strong>12), 105-109. (José Carlos<br />

Piacente Júnior)<br />

VAN TIL, Cornelius. O pastor reforma<strong>do</strong> e o pensamento moderno. XVI-1<br />

(<strong>20</strong>11), 133-137. (José Carlos Piacente Júnior)<br />

VANDRUNEN, David M. Natural law and the two king<strong>do</strong>ms. XVIII-1 (<strong>20</strong>13),<br />

141-144. (João Paulo Thomaz de Aquino)<br />

VANHOOZER, Kevin J. Há um significa<strong>do</strong> neste texto? Interpretação bíblica:<br />

os enfoques contemporâneos. XII-2 (<strong>20</strong>07), 121-123. (Daniel Santos Jr.)<br />

VEITH JR., Gene Edward. O facismo moderno. XV-2 (<strong>20</strong>10), 123-127. (José<br />

Carlos Piacente Júnior)<br />

WARFIELD, Benjamin B. A inspiração e autoridade da Bíblia. XVI-1 (<strong>20</strong>11),<br />

145-150. (Nelson G. Abreu Júnior)<br />

WIKER, Benjamin; WITT, Jonathan. Um mun<strong>do</strong> com significa<strong>do</strong>. XVII-2<br />

(<strong>20</strong>12), 137-139. (Wadislau Martins Gomes)<br />

WRIGHT, C. J. H. A missão <strong>do</strong> povo de Deus: uma teologia bíblica da missão<br />

da igreja. XVIII-2 (<strong>20</strong>13), 127-129. (Éverton Wilian <strong>do</strong>s Reis)<br />

WURLITZER, L. L. Olam: crônicas de luz e sombras. XVII-2 (<strong>20</strong>12), 133-136.<br />

(João Paulo Thomaz de Aquino e Wirlei Vieira de Souza)<br />

ZACHARIAS, Ravi. O grande tecelão: como Deus nos molda por meio <strong>do</strong>s<br />

acontecimentos da vida. XV-1 (<strong>20</strong>10), 147-150. (Wanderson de Oliveira)<br />

165


Excelência e Piedade a Serviço <strong>do</strong> Reino de Deus<br />

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO<br />

ANDREW JUMPER<br />

Venha estudar conosco!<br />

Cursos modulares, corpo <strong>do</strong>cente pós-gradua<strong>do</strong>, convênio com instituições internacionais,<br />

biblioteca teológica com mais de 40.000 volumes, acervo bibliográfico<br />

atualiza<strong>do</strong> e informatiza<strong>do</strong>.<br />

Especialização à Distância (EAD)<br />

São três cursos totalmente online: Especialização em Estu<strong>do</strong>s Teológicos (EET), Especialização<br />

em Teologia Bíblica (ETB) e Especialização em Teologia Prática (ETP).<br />

Revitalização e Multiplicação de Igrejas (RMI)<br />

O RMI objetiva capacitar pastores e líderes na condução <strong>do</strong> processo de restauração<br />

<strong>do</strong> ministério pastoral, da oração e da expansão da igreja por meio de missões, usan<strong>do</strong><br />

ferramentas bíblico-teológicas e de outras áreas das ciências.<br />

Mestra<strong>do</strong> em Divindade (Magister Divinitatis – MDiv)<br />

Trata-se <strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> eclesiástico <strong>do</strong> CPAJ. É análogo aos já tradicionais mestra<strong>do</strong>s<br />

profissionalizantes, diferin<strong>do</strong>, entretanto, <strong>do</strong> Master of Divinity norte-americano<br />

apenas no fato de que não constitui e nem pretende oferecer a formação básica para<br />

o ministério pastoral. O MDiv <strong>do</strong> CPAJ não é submeti<strong>do</strong> à avaliação e não possui<br />

credenciamento da CAPES.<br />

Mestra<strong>do</strong> em Teologia (Sacrae Theologiae Magister – STM)<br />

Esse mestra<strong>do</strong> acadêmico difere <strong>do</strong> Magister Divinitatis por sua ênfase na pesquisa<br />

e sua harmonização com os mestra<strong>do</strong>s acadêmicos em teologia ofereci<strong>do</strong>s em universidades<br />

e escolas de teologia internacionais. O STM <strong>do</strong> CPAJ não é submeti<strong>do</strong> à<br />

avaliação e não possui credenciamento da CAPES.<br />

Doutora<strong>do</strong> em Ministério (DMin)<br />

O Doutora<strong>do</strong> em Ministério (DMin) é um curso ofereci<strong>do</strong> em parceria com o Reformed<br />

Theological Seminary (RTS), de Jackson, Mississippi. O programa possui o reconhecimento<br />

da JET/IPB e da Association of Theological Schools (ATS), nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />

O corpo <strong>do</strong>cente inclui acadêmicos brasileiros, americanos e de outras nacionalidades,<br />

com sólida formação em suas respectivas áreas.<br />

<strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong><br />

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Editoração eletrônica<br />

LIBRO Comunicação<br />

Impressão e acabamento<br />

Yangraf Gráfica e Editora

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