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INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE<br />
Diretor-Presidente Maurício Melo de Meneses<br />
CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER<br />
Diretor Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister<br />
<strong>Fides</strong> reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora<br />
Mackenzie, 1996 –<br />
Semestral.<br />
ISSN 1517-5863<br />
1. Teologia 2. <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação<br />
<strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />
CDD 291.2<br />
This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American<br />
Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16 th Flr., Chicago, IL 60606, USA,<br />
e-mail: atla@atla.com, www.atla.com.<br />
<strong>Fides</strong> Reformata também está incluída nas seguintes bases indexa<strong>do</strong>ras:<br />
CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx),<br />
Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory<br />
(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO<br />
(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).<br />
Editores Gerais<br />
Leandro Antonio de Lima<br />
Daniel Santos Júnior<br />
Editor de resenhas<br />
Filipe Costa Fontes<br />
Redator<br />
Alderi Souza de Matos<br />
Editoração<br />
Libro Comunicação<br />
Capa<br />
Rubens Lima
Conselho Editorial<br />
Augustus Nicodemus Lopes<br />
Davi Charles Gomes<br />
Heber Carlos de Campos<br />
Heber Carlos de Campos Júnior<br />
Jedeías de Almeida Duarte<br />
João Alves <strong>do</strong>s Santos<br />
João Paulo Thomaz de Aquino<br />
Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister<br />
Valdeci da Silva Santos<br />
A revista <strong>Fides</strong> Reformata é uma publicação semestral <strong>do</strong><br />
<strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />
Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais <strong>do</strong>s autores, não<br />
representan<strong>do</strong> necessariamente a posição <strong>do</strong> Conselho Editorial. Os direitos de publicação<br />
desta revista são <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />
Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor.<br />
Pede-se permuta.<br />
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Se solicita canje. Si chiede lo scambio.<br />
Endereço para correspondência<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Fides</strong> Reformata<br />
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Endereço para permuta<br />
Instituto <strong>Presbiteriano</strong> Mackenzie<br />
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Prédio 2 – Biblioteca Central<br />
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Tel.: (11) 2114-8302<br />
E-mail: biblio.per@mackenzie.com.br
Editorial<br />
É com grande alegria que apresentamos ao leitor o volume XX, n o 1, da<br />
revista <strong>Fides</strong> Reformata, que comemora a marca histórica de <strong>20</strong> anos de publicação<br />
impressa ininterrupta. Desde 1996, a revista trouxe ao cenário acadêmico<br />
e pastoral <strong>do</strong> leitor de fala portuguesa 257 artigos e 150 resenhas, acumulan<strong>do</strong><br />
um total de 5.977 páginas de pesquisas. Esses materiais podem ser consulta<strong>do</strong>s<br />
fisicamente em várias bibliotecas ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ou eletronicamente no site<br />
oficial <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong> e em bancos<br />
de da<strong>do</strong>s como ATLA Serials, Fuente Academica, etc. Uma busca simples nos<br />
tópicos e autores que contribuíram para essa conquista revelará que a revista<br />
buscou interagir com muitas questões teológicas, exegéticas, históricas, éticas,<br />
filosóficas e pastorais, proporcionan<strong>do</strong> ao leitor uma amostra da perspectiva<br />
reformada que caracteriza nossa instituição.<br />
Este número que comemora os <strong>20</strong> anos contém inicialmente um texto<br />
<strong>do</strong> Prof. Alderi Matos com um breve relato sobre a história da revista, que<br />
coloca em perspectiva a relevância daquilo que celebramos com esta edição.<br />
O segun<strong>do</strong> artigo, escrito por Jonathan Hack, apresenta uma correlação entre<br />
a vida e a mensagem <strong>do</strong> profeta Jeremias, analisan<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> conciso seu<br />
chama<strong>do</strong>, seu estilo literário, sua reação à perseguição, suas “confissões” e as<br />
influências recebidas em sua formação. Segun<strong>do</strong> o autor, o artigo visa incentivar<br />
uma melhor compreensão <strong>do</strong> livro de Jeremias que, de mo<strong>do</strong> geral, tem si<strong>do</strong><br />
ignora<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> evangélico. O terceiro artigo, escrito por Elizabeth Gomes,<br />
relata a vida genial e a obra de Catarina de Siena, uma mulher pie<strong>do</strong>sa que se<br />
tornou embaixatriz, conselheira e <strong>do</strong>utora da igreja, na tentativa de influenciar<br />
e reformar uma igreja corrupta e uma política venal e torpe – de dentro para<br />
fora –, influencian<strong>do</strong> papas, prela<strong>do</strong>s, mulheres, frades e freiras, reis e vassalos<br />
da Europa medieval. Segun<strong>do</strong> a autora, Catarina foi a mulher que mais marcou<br />
sua época e sua história por amor <strong>do</strong> sangue de Cristo.<br />
O quarto artigo, escrito por Hermisten Costa, considera o aparente sucesso<br />
<strong>do</strong> ímpio em seus atos de blasfêmia, arrogância, soberba e imoralidade, o<br />
que, segun<strong>do</strong> o autor, provoca uma certa insegurança no salmista em relação<br />
a Deus e aos acontecimentos que presencia. O artigo analisa como a ótica da<br />
fé é fundamental para crer em Deus, e continuar cren<strong>do</strong>, apesar de nossa visão<br />
imediata e precipitada da situação que nos circunda. O quinto artigo, escrito<br />
por Alderi Matos, trata da compatibilidade <strong>do</strong>s conceitos de islã e tolerância.<br />
Segun<strong>do</strong> o autor, muitos observa<strong>do</strong>res e estudiosos afirmam que as ações <strong>do</strong>s<br />
grupos radicais apresentam uma concepção distorcida <strong>do</strong> islã, que contradiz<br />
o verdadeiro espírito dessa religião. Assim, o artigo reexamina essa questão<br />
olhan<strong>do</strong> para as fontes <strong>do</strong> islã, sua história e os acontecimentos atuais. Finalmente,<br />
o sexto artigo, escrito por Breno Mace<strong>do</strong>, cumprin<strong>do</strong> o compromisso
estratégico mais recente da revista de publicar um artigo em inglês a cada<br />
número, trata da teologia pactual no pensamento de João Calvino. O texto<br />
investiga algumas das principais obras <strong>do</strong> reforma<strong>do</strong>r na tentativa de organizar<br />
o seu pensamento no que diz respeito a essa <strong>do</strong>utrina, o que permite ao autor<br />
delinear qual seria a visão <strong>do</strong> líder de Genebra sobre cada uma das dispensações<br />
<strong>do</strong> pacto divino com o homem. Neste artigo inicial são analisa<strong>do</strong>s os<br />
pactos das obras, noaico e abraâmico.<br />
A seção de resenhas traz avaliações de obras relevantes para o contexto<br />
atual da igreja, entre elas Gênesis no Espaço-Tempo, de Francis Schaeffer,<br />
resenhada por Allen Porto; A Igreja Centrada, de Timothy Keller, resenhada<br />
por Gildásio Reis; A Igreja Missional na Bíblia, de Michael Goheen, resenhada<br />
por Breno Mace<strong>do</strong>; e Atlas da Bíblia, de Annemarie Ohler e Tom Menzel,<br />
resenha<strong>do</strong> por Dario Car<strong>do</strong>so.<br />
Prosseguin<strong>do</strong> com o compromisso da revista de proporcionar e incentivar<br />
uma reflexão teológica reformada, entrego aos leitores o primeiro número <strong>do</strong><br />
vigésimo ano de <strong>Fides</strong> Reformata, desejoso de que os artigos e resenhas despertem<br />
mais uma vez o interesse por uma pesquisa que visa contribuir para a<br />
edificação <strong>do</strong> povo de Deus servin<strong>do</strong> sua igreja ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Boa leitura!<br />
Dr. Daniel Santos<br />
Editor Geral
Sumário<br />
Artigos<br />
<strong>Fides</strong> Reformata – vinte anos de história<br />
Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 9<br />
Jeremias: um panorama teológico<br />
Jonathan Luís Hack....................................................................................................................... 15<br />
Catarina de Siena: uma contribuição feminina ao pensamento e à espiritualidade<br />
ocidental<br />
Elizabeth Gomes............................................................................................................................ 33<br />
A enganosa prosperidade <strong>do</strong>s ímpios à luz <strong>do</strong> salmo 10: uma reflexão devocional<br />
Hermisten Maia Pereira da Costa................................................................................................. 45<br />
Islã e tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 61<br />
Covenant theology in the thought of John Calvin: from the covenant<br />
of works to the abrahamic covenant<br />
Breno Mace<strong>do</strong>................................................................................................................................ 89<br />
Resenhas<br />
Gênesis no espaço-tempo (Francis Schaeffer)<br />
Allen Porto..................................................................................................................................... 107<br />
Igreja centrada (Timothy Keller)<br />
Gildásio Jesus Barbosa <strong>do</strong>s Reis................................................................................................... 111<br />
A igreja missional na Bíblia (Michael W. Goheen)<br />
Breno Mace<strong>do</strong>................................................................................................................................ 115<br />
Atlas da Bíblia (Annemarie Ohler e Tom Menzel)<br />
Dario de Araujo Car<strong>do</strong>so.............................................................................................................. 121
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 9-14<br />
<strong>Fides</strong> Reformata – Vinte Anos de História<br />
Alderi Souza de Matos *<br />
A revista <strong>Fides</strong> Reformata foi lançada nos primeiros anos de existência <strong>do</strong><br />
<strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong> (CPAJ). Em junho de<br />
1990, o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Brasil, ao aprovar o novo<br />
Regimento Interno da Junta de Educação Teológica, deu-lhe a atribuição de<br />
“criar e fazer funcionar cursos de extensão, mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> teológicos<br />
e integrá-los a um <strong>do</strong>s seminários da IPB, quan<strong>do</strong> julgar conveniente, sempre<br />
com a supervisão da JET”.<br />
No ano seguinte, atenden<strong>do</strong> a suas novas atribuições regimentais, a JET<br />
decidiu criar <strong>do</strong>is cursos de mestra<strong>do</strong>, um em Teologia, sedia<strong>do</strong> no Seminário<br />
<strong>Presbiteriano</strong> Rev. José Manoel da Conceição, em São Paulo, e outro em Educação<br />
Cristã, no Seminário <strong>Presbiteriano</strong> de Campinas. O Mestra<strong>do</strong> em Teologia<br />
teve o apoio oficial da Igreja Presbiteriana Evangélica (EPC), <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />
e recebeu o nome de <strong>Centro</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong> em homenagem<br />
a um grande incentiva<strong>do</strong>r inicial, Rev. Dr. <strong>Andrew</strong> Albert <strong>Jumper</strong> (1927-1992),<br />
pastor por muitos anos da Igreja Presbiteriana Central de St. Louis, Missouri.<br />
A inauguração ocorreu no dia 6 de março de 1992, sen<strong>do</strong> nomea<strong>do</strong> como<br />
primeiro coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> curso o Rev. João Alves <strong>do</strong>s Santos. Entre os estudantes<br />
dessa época pioneira estavam os Revs. Edilson Botelho Nogueira, Edival José<br />
Vieira, Fôlton Nogueira da Silva, Sebastião Macha<strong>do</strong> Arruda e Tarcízio José de<br />
Freitas Carvalho, que fizeram parte da primeira turma de forman<strong>do</strong>s <strong>do</strong> CPAJ.<br />
O Dr. Gerard Van Groningen, que nos anos 80 viera diversas vezes ao Brasil<br />
para colaborar na educação teológica, voltou a São Paulo em setembro de<br />
1992 para ensinar disciplinas de sua área (Antigo Testamento).<br />
Em fevereiro de 1993, após concluir seu curso de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> em Teologia<br />
Sistemática em St. Louis, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, o Dr. Heber Carlos de Campos<br />
assumiu a coordenação <strong>do</strong> curso. Nesse perío<strong>do</strong>, também ministraram aulas<br />
* Doutor em Teologia (Th.D.) pela Boston University School of Theology (EUA); professor de<br />
Teologia Histórica no CPAJ; redator e revisor de <strong>Fides</strong> Reformata.<br />
9
Alderi Souza de Matos, <strong>Fides</strong> Reformata – Vinte Anos de História<br />
no CPAJ os Drs. Fred Klooster (Teologia Contemporânea), Moises Silva<br />
(Novo Testamento), Darryl Hart (História da Igreja) e Laird Harris (Antigo<br />
Testamento), procedentes de diferentes seminários reforma<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s. Nos anos subsequentes, graças a um convênio firma<strong>do</strong> com a EPC, três<br />
pastores brasileiros fizeram seus estu<strong>do</strong>s de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> no exterior e passaram<br />
a integrar o corpo <strong>do</strong>cente: Augustus Nicodemus Lopes (Novo Testamento),<br />
Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister (Antigo Testamento) e Alderi Souza de Matos (História<br />
da Igreja). Entre outras atividades, esses professores passaram a editar<br />
uma revista teológica.<br />
A revista <strong>Fides</strong> Reformata foi criada no final de 1995 pela Junta Regional<br />
de Educação Teológica <strong>do</strong> Seminário Teológico <strong>Presbiteriano</strong> Rev. José Manoel<br />
da Conceição. A Juret-JMC era constituída pelos Revs. Onézio Figueire<strong>do</strong>, Paulo<br />
Viana de Moura e Rubens de Souza Castro e os presbíteros Adilson Neves e<br />
Damócles Perrone Carvalho. O primeiro número, com 81 páginas, veio a lume<br />
no primeiro semestre de 1996 e foi apresenta<strong>do</strong> pelo Rev. Fôlton Nogueira da<br />
Silva, diretor <strong>do</strong> seminário. Disse ele em suas palavras introdutórias: “Temos<br />
o propósito de apresentar o pensamento reforma<strong>do</strong> sobre questões relevantes<br />
para o povo de Deus e nosso esforço maior será apresentar a riqueza deste<br />
pensamento de forma simples”.<br />
Desde o início, participaram ativamente da administração da revista e da<br />
elaboração de artigos os professores que integravam o <strong>Centro</strong> de Pós-Graduação<br />
<strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>, até então um curso de pós-graduação <strong>do</strong> Seminário JMC. O<br />
número de lançamento teve seis artigos <strong>do</strong>s seguintes colabora<strong>do</strong>res: Mauro<br />
Fernan<strong>do</strong> Meister, Augustus Nicodemus Lopes, Alderi Souza de Matos, Heber<br />
Carlos de Campos, Ricar<strong>do</strong> Quadros Gouvêa e Parcival Mó<strong>do</strong>lo. Também<br />
incluiu cinco resenhas escritas por Frans Leonard Schalkwijk, Fôlton Nogueira<br />
da Silva, Francisco Solano Portela Neto e Augustus Nicodemus Lopes,<br />
duas delas por este último. A revista contou com o valioso apoio <strong>do</strong> Instituto<br />
Mackenzie e foi impressa em sua gráfica.<br />
A partir <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> número, ainda em 1996, <strong>Fides</strong> passou a contar com<br />
um Conselho Editorial, composto pelos seguintes membros: Augustus Nicodemus<br />
Lopes, Cláudio Antônio Batista Marra, Fôlton Nogueira da Silva, Heber<br />
Carlos de Campos, João Alves <strong>do</strong>s Santos, Parcival Mó<strong>do</strong>lo e Tarcízio José<br />
de Freitas Carvalho. Os principais responsáveis pela produção da revista eram<br />
Tarcízio Carvalho (redator), Cláudio Marra (jornalista responsável) e Augustus<br />
Nicodemus (editor). O segun<strong>do</strong> número teve nove artigos, sete resenhas ou<br />
artigos-resenhas e uma lista de “livros recebi<strong>do</strong>s”. Os novos autores de artigos<br />
foram Boanerges Ribeiro, Guilhermino Cunha, Paulo Anglada e Solano Portela.<br />
No quarto número (1997-2), Alderi Matos passou a constar com editor ao la<strong>do</strong><br />
de Augustus Nicodemus e no quinto número (1998-1) surgiu um editor de<br />
resenhas: Mauro Meister.<br />
10
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 9-14<br />
Em 1997, a Comissão Executiva da IPB, presidida pelo Rev. Guilhermino<br />
Cunha, institucionalizou o <strong>Centro</strong> de Pós-Graduação e o desvinculou <strong>do</strong> Seminário<br />
José Manoel da Conceição. Nesse mesmo ano, o CPAJ solicitou ao<br />
seminário a autorização para continuar publican<strong>do</strong> a revista. Após analisar a<br />
solicitação e escolher o momento próprio para a tomada de decisões, a Juret-JMC<br />
resolveu atender ao pedi<strong>do</strong>, com duas condições: (a) manter o nível acadêmico e<br />
o compromisso <strong>do</strong>utrinário com a teologia reformada; (b) continuar solicitan<strong>do</strong><br />
a colaboração <strong>do</strong>s professores <strong>do</strong> Seminário JMC. A sexta edição (1998-2) foi a<br />
primeira a ser publicada sob os auspícios <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong><br />
<strong>Jumper</strong>. Essa decisão foi explicada em uma “Palavra da Juret”, assinada pelo<br />
seu presidente, Rev. Rubens de Souza Castro.<br />
Nessa época, a revista passou a ser disponibilizada on-line e foi aprovada<br />
para indexação na ATLA (American Theological Library Association). Além<br />
de artigos e resenhas, surgiu a seção “Indicações bibliográficas”. Nos três primeiros<br />
anos, além <strong>do</strong>s colabora<strong>do</strong>res já menciona<strong>do</strong>s, outros autores de artigos<br />
foram, pela ordem de aparecimento: Frans Leonard Schalkwijk, Paulo Sérgio<br />
Gomes, Hermisten Maia Pereira da Costa, Moisés Silva, Davi Charles Gomes,<br />
Antônio Carlos Barro, C. Timóteo Carriker, Valdeci da Silva Santos, Elizabeth<br />
Zekveld Portela, Luiz Roberto França de Mattos e Gerard Van Groningen.<br />
No primeiro número de 1999, o editorial anunciou que aquela era a última<br />
edição a ser distribuída gratuitamente. Daí em diante haveria a necessidade<br />
de se fazer uma assinatura da revista. Com o passar <strong>do</strong> tempo, esse sistema se<br />
mostrou inviável. Nesse número, também foi anunciada pela primeira vez uma<br />
novidade: o oferecimento, pelo CPAJ, de um curso de pós-graduação lato sensu<br />
em Bíblia pela internet. Esse foi possivelmente o primeiro curso <strong>do</strong> gênero a<br />
ser ofereci<strong>do</strong> no Brasil. Nas páginas finais, havia informações detalhadas sobre<br />
os programas ofereci<strong>do</strong>s pelo <strong>Centro</strong> de Pós-Graduação, bem como anúncios<br />
de cursos especiais pelo Dr. Moisés Silva e o Dr. Ronal<strong>do</strong> Lidório.<br />
Em <strong>20</strong>01, a revista sofreu alguns sobressaltos em virtude de uma crise<br />
que levou ao afastamento de quase to<strong>do</strong>s os professores <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> de Pós-<br />
-Graduação. O nome da publicação foi modifica<strong>do</strong> para <strong>Fides</strong> Reformata<br />
et Semper Reformanda Est, uma imitação infeliz <strong>do</strong> famoso lema “Ecclesia<br />
reformata semper reformanda est”. Este foi o único ano da história da revista<br />
em que somente um número foi publica<strong>do</strong> (VI-1). O novo título foi manti<strong>do</strong><br />
no número seguinte, no primeiro semestre de <strong>20</strong>02, mas na segunda edição<br />
daquele ano voltou o ser utiliza<strong>do</strong> o nome original, <strong>Fides</strong> Reformata. A principal<br />
herança dessa época foi a nova capa, cujo layout, conten<strong>do</strong> no centro<br />
uma gravura <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> templo reforma<strong>do</strong> de Genebra, se mantém até hoje.<br />
Os principais colabora<strong>do</strong>res da revista nesse perío<strong>do</strong> foram Antônio José <strong>do</strong><br />
Nascimento Filho, Antônio Máspoli de Araújo Gomes, Carlos Ribeiro Caldas<br />
Filho, Gabriele Greggersen, Paulo José Benício, Ricar<strong>do</strong> Quadros Gouvêa,<br />
Ronal<strong>do</strong> Cavalcante e William Lacy Lane.<br />
11
Alderi Souza de Matos, <strong>Fides</strong> Reformata – Vinte Anos de História<br />
O número <strong>do</strong> 1º semestre de <strong>20</strong>03 voltou a ter a participação <strong>do</strong>s professores<br />
originais <strong>do</strong> CPAJ, que haviam si<strong>do</strong> readmiti<strong>do</strong>s no final <strong>do</strong> ano anterior, no<br />
início <strong>do</strong> primeiro mandato <strong>do</strong> Rev. Roberto Brasileiro Silva, novo presidente <strong>do</strong><br />
SC/IPB. Os novos editores da revista eram Tarcízio Carvalho e Valdeci Santos.<br />
Desde <strong>20</strong>01, passaram a constar das páginas iniciais os nomes <strong>do</strong>s dirigentes<br />
<strong>do</strong> Instituto <strong>Presbiteriano</strong> Mackenzie, sen<strong>do</strong> diretor-presidente nessa época o<br />
Dr. Cyro Aguiar. Em <strong>20</strong>03, passou a ser incluí<strong>do</strong> o nome <strong>do</strong> diretor <strong>do</strong> CPAJ,<br />
na ocasião o Dr. Luiz Roberto França de Mattos, que, devi<strong>do</strong> a uma grave<br />
enfermidade, foi substituí<strong>do</strong> no ano seguinte pelo Dr. Davi Charles Gomes. O<br />
novo diretor-presidente <strong>do</strong> IPM era o Dr. Custódio Pereira. Em <strong>20</strong>05, o corpo<br />
editorial passou a ser constituí<strong>do</strong> pelos professores Alderi Matos, Augustus<br />
Nicodemus, Mauro Meister e Valdeci Santos. O sumário da revista começou<br />
a ser incluí<strong>do</strong> na quarta capa, tornan<strong>do</strong> mais fácil a identificação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong><br />
de cada número.<br />
O Dr. Alderi, além de constar como “editor geral”, também exercia a<br />
função de revisor <strong>do</strong> texto. Em seu primeiro editorial, ele afirmou:<br />
12<br />
Com este número, a revista <strong>Fides</strong> Reformata entra no seu décimo ano de publicação.<br />
Trata-se de um marco extremamente significativo, pelo qual somos<br />
profundamente gratos a Deus e ao Instituto <strong>Presbiteriano</strong> Mackenzie. Ao longo<br />
destes anos, os editores têm procura<strong>do</strong> oferecer ao público leitor materiais<br />
caracteriza<strong>do</strong>s pela seriedade acadêmica, compromisso com a fé reformada,<br />
relevância para a igreja de Cristo e desafio e edificação pessoal.<br />
A edição <strong>do</strong> 2º semestre de <strong>20</strong>05 trouxe um recurso muito valioso: um<br />
índice de todas as matérias publicadas na revista em seus dez primeiros anos<br />
de circulação. Os 139 artigos foram classifica<strong>do</strong>s em 18 áreas: Antigo Testamento,<br />
Apologética, Crítica Textual, Culto e Liturgia, Eclesiologia, Educação<br />
Cristã e Geral, Ética e Sociedade, Filosofia, Hermenêutica, História da Igreja,<br />
Missões, Novo Testamento, Psicologia e Aconselhamento, Teologia Histórica,<br />
Teologia Pastoral, Teologia Sistemática, Temas Brasileiros e Vida Cristã.<br />
Também foram incluídas as centenas de resenhas e indicações bibliográficas<br />
publicadas naquela década.<br />
Nos primeiros anos da revista, cada edição trazia um grande número de<br />
artigos e resenhas. A partir de <strong>20</strong>04, passaram a ser publica<strong>do</strong>s seis artigos e três<br />
resenhas a cada número, o que, com pequenas variações, vem sen<strong>do</strong> manti<strong>do</strong><br />
até hoje. Entre os contribuintes, estavam não somente os professores <strong>do</strong> CPAJ,<br />
mas alunos, ex-alunos, ministro da IPB e outros. Durante algum tempo houve<br />
uma alternância em termos de autoria: em um semestre, dava-se preferência<br />
a colabora<strong>do</strong>res internos (professores) e no outro, a contribuições externas.<br />
Em <strong>20</strong>08, foram incluí<strong>do</strong>s no corpo editorial os professores Fabiano de<br />
Almeida Oliveira e Daniel Santos Jr. Naquele ano, auxiliou na revisão o Prof.<br />
João Alves <strong>do</strong>s Santos. O 2º semestre de <strong>20</strong>08 trouxe uma contribuição inédita:
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 9-14<br />
a primeira edição especial de <strong>Fides</strong> Reformata, dedicada ao tema “Educação”,<br />
sen<strong>do</strong> o editorial assina<strong>do</strong> pelo Presb. Solano Portela, presidente da Junta de<br />
Educação Teológica (JET/IPB). Distribuí<strong>do</strong>s em quatro seções (histórica, filosófica,<br />
exegética e pedagógica), foram incluí<strong>do</strong>s nove artigos, segui<strong>do</strong>s de<br />
uma extensa bibliografia sobre educação cristã. Esse também foi, até hoje, o<br />
número mais volumoso da revista, com mais de <strong>20</strong>0 páginas. No 2º semestre<br />
de <strong>20</strong>09, veio a lume a segunda edição especial, dedicada ao 5º centenário <strong>do</strong><br />
nascimento de João Calvino.<br />
Em <strong>20</strong>10, os editores acadêmicos foram reduzi<strong>do</strong>s a <strong>do</strong>is: Augustus<br />
Nicodemus (editor geral) e Alderi Matos (editor assistente e revisor). No 2º<br />
semestre de <strong>20</strong>11 surgiu uma inovação significativa, que foi a publicação de<br />
um artigo em inglês (ou outro idioma) em cada número. A razão apresentada<br />
foi o fato de que, além de ser indexada em instituições e órgãos acadêmicos<br />
internacionais, a revista estava gozan<strong>do</strong> de aceitação fora <strong>do</strong> Brasil. Até o<br />
presente, foram publica<strong>do</strong>s nesse idioma artigos <strong>do</strong>s seguintes autores: Rob<br />
van Houwelingen, Daniel Santos, Adriaan Neele, Elias Medeiros, Ralph<br />
Boersema e Breno Mace<strong>do</strong>. Ao longo <strong>do</strong>s anos, além de estar indexada na<br />
ATLA Religion Database, a revista também foi incluída nas seguintes bases<br />
indexa<strong>do</strong>ras: CLASE, Latindex, Francis, Ulrich’s International Periodicals<br />
Directory e Fuente Academica.<br />
No 1º semestre de <strong>20</strong>14, sen<strong>do</strong> diretor <strong>do</strong> CPAJ desde o ano anterior o<br />
Dr. Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister, foi lança<strong>do</strong> o terceiro número especial de <strong>Fides</strong><br />
Reformata e seus dez artigos versaram sobre diferentes aspectos da Eclesiologia.<br />
Nesse ano, foram nomea<strong>do</strong>s editores gerais os Drs. Daniel Santos Jr. e<br />
Leandro Antonio de Lima, e editor de resenhas o Prof. Filipe Costa Fontes,<br />
permanecen<strong>do</strong> o Dr. Alderi Matos como redator. O próximo número (<strong>20</strong>15-2)<br />
deverá trazer um índice completo de todas as matérias publicadas no segun<strong>do</strong><br />
decênio <strong>do</strong> periódico. À exceção das edições especiais, são impressos 1.500<br />
exemplares a cada semestre, que são ofereci<strong>do</strong>s a to<strong>do</strong>s os seminários da IPB,<br />
alunos <strong>do</strong> CPAJ, pastores e outros interessa<strong>do</strong>s.<br />
Os professores residentes que escreveram artigos para a revista ao longo<br />
<strong>do</strong>s últimos dez anos foram, em ordem alfabética: Alderi Matos, Augustus<br />
Nicodemus Lopes, Daniel Santos Jr., Dario de Araújo Car<strong>do</strong>so, Davi Gomes,<br />
Fabiano Oliveira, Filipe Fontes, Heber Campos, Heber Campos Júnior, Jedeias<br />
Duarte, João Alves, João Paulo Thomaz de Aquino, Leandro de Lima, Mauro<br />
Meister, Tarcízio Carvalho e Valdeci Santos. Também colaboraram com textos<br />
os seguintes professores visitantes: Elias Medeiros, Emílio Garofalo Neto,<br />
Frans Leonard Schalkwijk, Gildásio Jesus Barbosa <strong>do</strong>s Reis, Hermisten Costa,<br />
Jorge Patrocínio, José Carlos Piacente Júnior, Wadislau Martins Gomes e<br />
Wilson Santana.<br />
Ao completar <strong>20</strong> anos de publicação ininterrupta, os editores de <strong>Fides</strong><br />
Reformata são profundamente gratos ao Deus trino por esse marco histórico.<br />
13
Alderi Souza de Matos, <strong>Fides</strong> Reformata – Vinte Anos de História<br />
Também expressam o seu sincero reconhecimento ao Instituto <strong>Presbiteriano</strong><br />
Mackenzie e seus órgãos dirigentes (Conselho de Cura<strong>do</strong>res, Conselho Deliberativo<br />
e Diretoria Executiva), pelo constante apoio financeiro e logístico<br />
na publicação da revista, bem como à Junta de Educação Teológica, por seu<br />
incentivo, e à Editora Cultura Cristã, pelo auxílio na distribuição. Continuam<br />
com o firme propósito de, nos próximos anos, continuar proporcionan<strong>do</strong> textos<br />
cuida<strong>do</strong>samente prepara<strong>do</strong>s sobre as diferentes áreas da enciclopédia teológica,<br />
na perspectiva da cosmovisão reformada, ten<strong>do</strong> em vista o bem-estar e a<br />
prosperidade da igreja e da causa de Cristo no Brasil e no mun<strong>do</strong>.<br />
14
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
Jonathan Luís Hack *<br />
resumo<br />
Para incentivar uma melhor compreensão <strong>do</strong> livro de Jeremias, em geral<br />
ignora<strong>do</strong> no meio evangélico, apresenta-se um resumo <strong>do</strong>s aspectos centrais<br />
de sua mensagem teológica. O texto inicia com uma correlação entre a vida e<br />
a mensagem <strong>do</strong> profeta Jeremias, analisan<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> conciso seu chama<strong>do</strong>,<br />
seu estilo literário, sua reação à perseguição, suas “confissões” e as influências<br />
recebidas em sua formação. A seguir, investigam-se aspectos da teologia <strong>do</strong><br />
livro, com foco na soberania de Deus, na revelação divina por meio <strong>do</strong>s profetas,<br />
na acusação de Deus contra o seu povo, no seu chama<strong>do</strong> ao arrependimento,<br />
na garantia divina de salvação e no seu amor contínuo pelo povo. O ensaio<br />
finaliza com breves considerações sobre como aplicar essa mensagem à vida<br />
da igreja e à vida <strong>do</strong> cristão.<br />
palavras-chave<br />
Jeremias; Vocação profética; Mensagem subversiva; Foco teocêntrico.<br />
introdução<br />
Jeremias é o maior livro da Bíblia em termos de extensão <strong>do</strong> texto, ultrapassan<strong>do</strong><br />
até o livro de Salmos. No entanto, é um livro pouco conheci<strong>do</strong><br />
nas igrejas e pelos cristãos. Este artigo busca cooperar para a transformação<br />
dessa realidade ao desvendar de maneira panorâmica os aspectos centrais da<br />
mensagem teológica desse importante livro. 1<br />
* Mestre em Estu<strong>do</strong>s Teológicos pelo Calvin Theological Seminary e <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> em Letras na<br />
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ministro da Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Brasil e coordena<strong>do</strong>r da área<br />
de Teologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.<br />
1 Buscan<strong>do</strong> apresentar didaticamente o conteú<strong>do</strong>, o texto principal contém inúmeras referências ao<br />
livro de Jeremias, mas as indicações de leituras de aprofundamento e debates acadêmicos são mantidas<br />
nas notas.<br />
15
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
Iniciaremos com uma breve investigação sobre a influência mútua entre<br />
a vida e a mensagem de Jeremias. Nosso objetivo principal não será o de<br />
aprofundar cada uma das importantes questões analisadas, mas apenas elencar<br />
diversas áreas importantes a serem consideradas no estu<strong>do</strong> de Jeremias para<br />
reflexões posteriores. Na segunda parte, faremos uma concisa análise de sua<br />
mensagem teológica. Ficará claro o aspecto teocêntrico da teologia de Jeremias,<br />
pois Deus é o foco central de seu anúncio profético. Novamente, a ideia<br />
é apenas apontar caminhos importantes a serem trilha<strong>do</strong>s em aprofundamentos<br />
subsequentes. Finalmente, apresentaremos algumas considerações sobre como<br />
aplicar essa mensagem à nossa vida moderna.<br />
1. a correlação entre a vida e a teologia de jeremias<br />
Para entender bem a mensagem <strong>do</strong> livro de Jeremias, precisamos conhecer<br />
seu personagem humano principal. Conhecemos mais sobre a vida de Jeremias<br />
<strong>do</strong> que sobre qualquer outro profeta bíblico. O texto apresenta diversos da<strong>do</strong>s<br />
de sua vida e seus sentimentos íntimos a respeito <strong>do</strong> que está acontecen<strong>do</strong>.<br />
Por que isso é importante? Porque no caso de Jeremias, quem ele é influenciou<br />
aquilo que fez, assim como o que fez também influenciou quem ele era.<br />
Como os eventos da vida de Jeremias modelaram seu pensamento? Como sua<br />
mensagem e perspectiva teológica afetaram sua vida?<br />
Por um la<strong>do</strong>, as origens de Jeremias (1.1-3) 2 tiveram certo impacto sobre<br />
a formação de seu pensamento:<br />
(a) Sen<strong>do</strong> de uma linhagem sacer<strong>do</strong>tal, Jeremias certamente cresceu em<br />
meio a sacrifícios e outros procedimentos sacer<strong>do</strong>tais. Dessa forma, estava bem<br />
familiariza<strong>do</strong> com eles e com o discurso religioso correlato à função sacer<strong>do</strong>tal.<br />
(b) Sen<strong>do</strong> de Anatote, 3 Jeremias conhecia a mensagem <strong>do</strong>s profetas envia<strong>do</strong>s<br />
a Israel (Amós e Oseias o antecederam). 4 Certamente aprendeu bastante<br />
sobre as tradições mais valorizadas no Norte: o Êxo<strong>do</strong>, a aliança <strong>do</strong> Sinai e o<br />
fracasso de Israel em guardar os mandamentos de Deus, o qual resultou em sua<br />
subsequente conquista e deportação pelos assírios um século antes, em 722 a.C. 5<br />
(c) Sen<strong>do</strong> um profeta ativo desde o 13º ano <strong>do</strong> reina<strong>do</strong> de Josias (627-626<br />
a.C.), acompanhou de perto as suas reformas (2Rs 22.1–23.30) após a triunfante<br />
2 Todas as referências bíblicas pertencem ao livro de Jeremias, a menos que indicadas de outra<br />
forma.<br />
3 Anatote era uma cidade no território de Benjamim, a poucos quilômetros de Jerusalém, mas<br />
ainda na parte sudeste da nação de Israel. Os parentes de Jeremias tinham terras lá (32.6-12).<br />
4 Em Judá, Isaías e Miqueias haviam profetiza<strong>do</strong> bem antes, no século 8 a.C., enquanto Naum e<br />
Sofonias antecederam Jeremias por poucos anos; Habacuque provavelmente foi seu contemporâneo.<br />
5 Essas são as tradições valorizadas pelas tribos <strong>do</strong> Norte, segun<strong>do</strong> VON RAD, Gerhard, Old<br />
Testament Theology. 2 vols. Peabody: Prince, <strong>20</strong>05, v. 2, p. 192. Em contraste, Judá sustenta uma teologia<br />
sionista, defendida por Isaías mas criticada por Jeremias (ver adiante).<br />
16
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
redescoberta <strong>do</strong> “Livro da Lei” no templo (2Rs 22.8), que ocorreu no 18º ano<br />
de seu reina<strong>do</strong>. Jeremias foi bastante influencia<strong>do</strong> pela tradição deuteronomista.<br />
Também experimentou o posterior fracasso dessa reforma (a longo termo). Ele<br />
sabia quão enganosas podem ser a mente e a vontade humanas (17.9).<br />
(d) Sen<strong>do</strong> (provavelmente) da linhagem de Eli, 6 ele conhecia a história<br />
<strong>do</strong> santuário de Siló, fato que usou mais tarde como advertência a Judá (7.12).<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a mensagem que Javé lhe deu era dura de pregar e de ser<br />
ouvida, com os seguintes resulta<strong>do</strong>s na vida de Jeremias:<br />
(a) Houve constantes problemas com seus inimigos. Os líderes de Judá o<br />
perseguiram, castigaram e aprisionaram como um trai<strong>do</strong>r (por sua mensagem<br />
de que Israel deveria se submeter à Babilônia) e como falso profeta (por sua<br />
profecia de juízo, ao invés de paz).<br />
(b) Experimentou profunda angústia pessoal, expressa em suas “confissões”<br />
(ver adiante).<br />
(c) Investiu suas economias em sua mensagem (32.1-15). Jeremias foi<br />
desafia<strong>do</strong> a agir conforme cria, ou seja, compran<strong>do</strong> um terreno em coerência<br />
com seu discurso de restauração futura.<br />
(d) Foi proibi<strong>do</strong> de se casar e ter filhos (16.1-4), devi<strong>do</strong> ao iminente juízo<br />
sobre Jerusalém.<br />
Vamos examinar algumas partes da vida de Jeremias com mais detalhes.<br />
1.1 Jeremias é chama<strong>do</strong> por Deus<br />
O chama<strong>do</strong> vocacional é a legitimação necessária para o ministério de<br />
um profeta. 7 Outorga a certeza da eleição divina para essa missão (1.5). Como<br />
Moisés e Gideão, Jeremias humildemente declina da missão (1.6), mas o soberano<br />
Deus não aceita um “não” como resposta! Sua timidez seria superada, pois<br />
Deus o tornará forte (1.18; 6.27; 15.<strong>20</strong>). Deus também promete que estará com<br />
Jeremias e o protegerá de seus inimigos (1.8,19). A função de Jeremias (1.9)<br />
se baseia nas palavras de Moisés (Dt 18.18) sobre a promessa de revelações<br />
futuras por meio de profetas que proclamariam a Palavra de Deus.<br />
A missão de Jeremias é indicada em 1.10: “para arrancares e derribares,<br />
para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares”.<br />
Esse tema recorrente (12.14-17; 18.7-10; 24.6; 31.28; 42.10; 45.4) antecipa a<br />
mensagem <strong>do</strong> livro. Indica que o ministério de Jeremias é primariamente de<br />
6 Eli foi o sumo sacer<strong>do</strong>te em Siló no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>s juízes. Sacer<strong>do</strong>tes da casa de Eli serviram como<br />
sumo sacer<strong>do</strong>tes de Israel até que Salomão expulsou Abiatar de Jerusalém para Anatote, pon<strong>do</strong> em seu<br />
lugar Za<strong>do</strong>que (1Rs 2.26-27) e cumprin<strong>do</strong> assim a palavra <strong>do</strong> Senhor contra a casa de Eli.<br />
7 Brueggemann, Walter. Like Fire in the Bones: Listening for the Prophetic Word in Jeremiah.<br />
Org. Patrick Miller Jr. Mineápolis: Fortress, <strong>20</strong>06, p. 245, nota 15, também indica que esse é “um mecanismo<br />
literário que serve como autorização teológica para o livro”. (Todas as citações de obras em<br />
inglês foram traduzidas pelo autor).<br />
17
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
condenação e, em menor escala, de restauração. 8 Embora esperássemos um<br />
chama<strong>do</strong> para profetizar a Israel e Judá, Jeremias é comissiona<strong>do</strong> para ser<br />
um profeta às nações (1.5,10). Isso já indica a forte ênfase <strong>do</strong> livro na soberania<br />
de Javé sobre todas as nações, o que permitirá a Jeremias proclamar os<br />
oráculos divinos contra outros povos (caps. 46-51).<br />
1.2 Jeremias é talentoso com as palavras<br />
Aprendemos com a crítica retórica que a forma da mensagem é parte<br />
importante de seu conteú<strong>do</strong>. Assim, para cumprir seu papel profético, a linguagem<br />
<strong>do</strong> profeta deve chocar a sensibilidade <strong>do</strong> público, proclaman<strong>do</strong> palavras<br />
em fogo (5.14; <strong>20</strong>.9; 23.29) que são absorvidas com deleite pelo profeta<br />
(15.16). Jeremias, pois, usa expressões vigorosas, falan<strong>do</strong> “com exclamações<br />
e interjeições, com partículas enfáticas, com gritos passionais e repreensões e<br />
advertências urgentes, e, acima de tu<strong>do</strong>, com assonâncias extraordinariamente<br />
notáveis”. 9 Ou seja, sua mensagem é hiperbólica, exagerada, calorosa e poética.<br />
O discurso profético não pode ser convencional, racional ou previsível,<br />
porque precisa modelar consciências e definir como o povo deve entender a<br />
realidade. Jeremias usa um linguajar forte para provocar uma reação, geran<strong>do</strong><br />
ao mesmo tempo um senso de urgência e profunda preocupação com sua audiência.<br />
Os ouvintes precisam reavaliar o que assumem como óbvio em suas<br />
vidas. Em outras palavras, por meio de sua mensagem o profeta apresenta uma<br />
interpretação alternativa da realidade que visa levar o povo a compreender o<br />
mun<strong>do</strong> e as circunstâncias presentes <strong>do</strong> ponto de vista de Deus. 10 Sua mensagem<br />
é sub-versiva, pois tanto subverte a cosmovisão <strong>do</strong>minante, quanto apresenta<br />
outra versão <strong>do</strong>s fatos, a versão oficial <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r.<br />
1.3 Jeremias é persegui<strong>do</strong> por seu próprio povo<br />
Um profeta é parte de uma espécie humana rara que consegue expor a<br />
corrupção da sociedade humana, não se deixan<strong>do</strong> enganar por suas racionalizações<br />
e convenções. “O profeta não vê o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto de vista de uma<br />
8 THOMPSON, J. A. The Book of Jeremiah. NICOT. Grand Rapids: Eerdmans, 1980, p. 151;<br />
Brueggemann, Walter. The Theology of the Book of Jeremiah. OTT. Cambridge: Cambridge University,<br />
<strong>20</strong>07, p. 60-61; Brueggemann, Walter. Like Fire, p. 9, 24-26. Holladay, William Lee.<br />
Jeremiah 1: A Commentary on the Book of the Prophet Jeremiah, Chapters 1-25. Hermeneia. Filadélfia:<br />
Fortress, 1986, p. 1,21,37, defende a omissão <strong>do</strong> par central de verbos.<br />
9 Muilenburg, James. “The Terminology of Adversity in Jeremiah”. In: Harry T. Frank e<br />
Wm. L. Reed (Orgs.). Translating and Understanding the Old Testament; H. G. May Festschrift. Nashville:<br />
Abing<strong>do</strong>n, 1970 (p. 42-63), p. 60. Von Rad (Theology, v. 2, p. 193) chama a atenção em Jeremias para<br />
a “criação de novas formas para sua expressão apropriada”, em contraste com as tradicionais fórmulas<br />
proféticas empregadas anteriormente por outros profetas.<br />
10 Brueggemann, Like Fire, p. 7-8,158-167; The Prophetic Imagination (Filadélfia: Fortress,<br />
1978), p. 66.<br />
18
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
teoria política; ele é uma pessoa que vê o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto de vista de Deus;<br />
ele vê o mun<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong>s olhos de Deus”. 11 Diversas vezes (7.2; 17.19;<br />
19.2,14; 22.2; 38.14; cf. 36.10), Jeremias se posicionou junto aos portões da<br />
cidade e <strong>do</strong> templo (possivelmente na ocasião de algum <strong>do</strong>s três grandes festivais<br />
de Israel), cumprin<strong>do</strong> uma função oficial de “prega<strong>do</strong>r de portão” para<br />
encorajar os peregrinos a fazerem um autoexame antes de se encaminharem<br />
para a a<strong>do</strong>ração. O foco da mensagem de Jeremias está na vida moral deles,<br />
que ele expõe abertamente ao denunciar várias violações da lei de Deus.<br />
Como de costume, 12 Jeremias recebeu uma reação violenta à sua mensagem.<br />
Foi feri<strong>do</strong> e meti<strong>do</strong> no tronco (<strong>20</strong>.2), sofreu um julgamento que quase<br />
o levou à morte (26.7-9), foi açoita<strong>do</strong> e aprisiona<strong>do</strong> (37.15-16) e, depois,<br />
joga<strong>do</strong> numa cisterna (38.6), sen<strong>do</strong> finalmente arrasta<strong>do</strong> (contra a sua vontade?)<br />
para o Egito (43.6). Apesar disso, conseguiu permanecer vivo devi<strong>do</strong><br />
à graça de Deus manifesta através de alguns poucos que o apoiavam (26.24;<br />
39.13-14; 40.5). A usual reação defensiva de Jeremias era a de reivindicar<br />
sua legitimidade como profeta de Javé (26.12,15; cf. 38.15-16). Estava apenas<br />
cumprin<strong>do</strong> a tarefa profética mais básica: uma defesa das tradições mais<br />
preciosas de Israel. 13<br />
1.4 Jeremias é perturba<strong>do</strong> por suas próprias emoções<br />
O processo de proclamar as palavras de Deus pode ser bem desgastante.<br />
Conhecen<strong>do</strong> o futuro iminente de seu próprio povo, Jeremias se angustia<br />
e chora (4.19; 8.18,21; 9.1,10; 13.17), atitude que lhe deu a fama de “profeta<br />
chorão”. 14 Ele não é como Jonas, que aguar<strong>do</strong>u ansiosamente que ocorresse a<br />
destruição que anunciara (Jn 3.10-4.2; cf. Jr 17.16)! Pelo contrário, intercede<br />
profundamente por eles (14.7-9,19-22; 21.2; 37.3; 42.2-4), ao ponto de Deus<br />
o proibir de continuar oran<strong>do</strong> (7.16; 11.14; 14.11)! Mesmo em sua ira contra<br />
seus inimigos, Jeremias recorda a Deus como havia suplica<strong>do</strong> por eles (18.<strong>20</strong>).<br />
Esse comportamento para<strong>do</strong>xal é reflexo da própria conduta de Javé. Jeremias<br />
é um representante de Deus; ele chora porque se identifica com os sentimentos<br />
11 Heschel, Abraham J. The Prophets. Nova York: HarperCollins, <strong>20</strong>01 (1962), p. 176.<br />
12 Falar contra a ideologia <strong>do</strong>minante sempre é uma escolha perigosa (cf. 26.<strong>20</strong>-23). Para uma<br />
análise da reação da comunidade ao Sermão <strong>do</strong> Templo, ver: O’CONNOR, Kathleen M. “‘Do Not Trim<br />
a Word’: The Contributions of Chapter 26 to the Book of Jeremiah”. The Catholic Biblical Quarterly<br />
51 (1989), p. 617-630; e AMRAM, David W. “The Trial of Jeremiah”. The Biblical World 16 (1900),<br />
p. 431-437.<br />
13 Ver DAVIDSON, R. “Ortho<strong>do</strong>xy and the Prophetic Word: A Study in the Relationship between<br />
Jeremiah and Deuteronomy”. Vetus Testamentum 14 (1964), p. 407-416; em especial, na p. 408: “Os<br />
profetas eram os guardiães e intérpretes dessa tradição, não seus cria<strong>do</strong>res”.<br />
14 A tradição o associa também com Lm 1.16 e 2.11. Rendtorff, Rolf. The Canonical Hebrew<br />
Bible: A Theology of the Old Testament. Leiden: Deo, <strong>20</strong>05, p. 229-231, o denomina “profeta em crise”.<br />
19
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
divinos. 15 Deus sofre pela <strong>do</strong>r de seu povo (14.17; 31.<strong>20</strong>), mas precisa levar<br />
até o fim o juízo anuncia<strong>do</strong> – da mesma forma que os pais disciplinam seus<br />
filhos, mesmo quan<strong>do</strong> sentem sua <strong>do</strong>r (cf. Hb 12.4-11).<br />
O conflito interno de Jeremias se agrava pela inevitável consequência:<br />
a perseguição <strong>do</strong> seu próprio povo. Os sofrimentos injustos levam Jeremias a<br />
questionar a justiça de Deus (por exemplo, 12.1; 15.18) em suas “confissões”<br />
(11.18-12.6; 15.10-21; 17.14-18; 18.18-23; <strong>20</strong>.7-18). 16 Às vezes, parece que<br />
Jeremias odeia sua missão, pois ela gera problemas com seus parentes (12.6)<br />
e conheci<strong>do</strong>s (11.21). Ele não consegue entender seu sofrimento, nem fugir<br />
de sua função profética. Porém, no fim, aprende que Deus é soberano. Percebe<br />
que também estava representan<strong>do</strong> simbolicamente o sofrimento iminente de<br />
seu próprio povo.<br />
1.5 Jeremias é influencia<strong>do</strong> por outros<br />
Como qualquer um de nós, Jeremias foi influencia<strong>do</strong> por outras pessoas.<br />
Ele se encontra no fim de uma longa séria de pessoas usadas por Deus antes<br />
dele. Vejamos brevemente algumas influências sobre sua mensagem. 17<br />
(a) Jeremias se identifica com Moisés. 18 Vem de linhagem sacer<strong>do</strong>tal, é<br />
profeta e tenta orientar seu povo por cerca de 40 anos. Seu chama<strong>do</strong> se modela<br />
em Moisés (Dt 18), apresenta protestos similares (1.6; cf. Êx 4.10) e recebe as<br />
15 Von Rad, Theology, v. 2, p. 195-196, fala de um sentimento <strong>do</strong>minante de lamento e sofrimento<br />
em Jeremias. Posteriormente, ele fala da via <strong>do</strong>lorosa de Jeremias (v. 2, p. <strong>20</strong>6-<strong>20</strong>8) como sua<br />
participação no sofrimento divino.<br />
16 Esses textos expressam a ira, autocomiseração, retaliação e resistência de Jeremias ao chama<strong>do</strong><br />
de Deus. Para estu<strong>do</strong>s posteriores nessa área, consultar Diamond, A. R. Pete. The Confessions of<br />
Jeremiah in Context: Scenes of a Prophetic Drama. JSOTSupp 45. Sheffield: Sheffield, 1987; O’Connor,<br />
Kathleen M. The Confessions of Jeremiah: Their Interpretation and Role in Chapters 1-25. SBLDS 94.<br />
Atlanta: Scholars, 1988 e Smith, Mark S. The Laments of Jeremiah and their Contexts: A Literary and<br />
Redactional Study of Jeremiah 11-<strong>20</strong>. SBLMS 42. Atlanta: Scholars, 1990, além <strong>do</strong>s ensaios de Von<br />
Rad, “The Confessions of Jeremiah”, A Prophet to the Nations: Essays in Jeremiah Studies. Orgs. Leo<br />
G. Perdue e B. W. Kovacs. Winona Lake: Eisenbrauns, 1984, p. 339-347; Bultmann, Christoph. “A<br />
Prophet in Desperation? The Confessions of Jeremiah”. In: Johannes C. De Moor (Org.). The Elusive<br />
Prophet: The Prophet as a Historical Person, Literary Character and Anonymous Artist. Leiden: Brill,<br />
<strong>20</strong>01, p. 83-93; e BRIGHT, John, “Jeremiah’s Complaints: Liturgy, or Expressions of Personal Distress?”.<br />
In: J. I. Durham e J. R. Porter (Orgs.). Proclamation and Presence: Old Testament Essays in Honor of<br />
G. H. Davies. Londres: SCM, 1970, p. 189-214. Von Rad também os analisa em sua Theology (v. 2,<br />
p. <strong>20</strong>1-<strong>20</strong>6).<br />
17 Holladay, William Lee. Jeremiah 2: A Commentary on the Book of the Prophet Jeremiah,<br />
Chapters 26-52. Hermeneia. Filadélfia: Fortress, 1989, p. 35-70, apresenta uma análise detalhada de<br />
possíveis paralelos com outros livros bíblicos.<br />
18 Quanto a isso, ver <strong>do</strong>is artigos relevantes de Holladay: “The Background of Jeremiah’s Self-<br />
Understanding: Moses, Samuel, and Psalm 22”, Journal of Biblical Literature 83 (1964), p. 153-164; e<br />
“Jeremiah and Moses: Further Observations”, Journal of Biblical Literature 85 (1966), p. 17-27. Ele também<br />
inclui Samuel como influência sobre Jeremias. Além disso, em seu comentário (Jeremiah 1, p. 27), acrescenta<br />
uma comparação com Gideão.<br />
<strong>20</strong>
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
mesmas garantias de que as palavras de Deus estariam em sua boca. Jeremias<br />
também intercede por seu povo contra a ira de Deus. Todavia, enquanto Moisés<br />
levou o povo <strong>do</strong> Egito para Canaã, Jeremias testemunha o exílio <strong>do</strong> povo e<br />
termina no Egito com os “fugitivos” (43.1-7).<br />
(b) A acusação de Jeremias quanto à i<strong>do</strong>latria é bem similar à de Oseias<br />
(tabela 1). 19 A metáfora de casamento é proeminente em Jeremias 2-3, como<br />
símbolo <strong>do</strong> relacionamento entre Javé e Israel (2.2; 3.1-13). Oseias e Jeremias<br />
usam a aliança <strong>do</strong> Sinai como paradigma para uma vida fiel coram Deo, <strong>20</strong> mas<br />
Jeremias vai além, salientan<strong>do</strong> a devassidão da esposa, anuncian<strong>do</strong> o divórcio<br />
de Deus e exigin<strong>do</strong> arrependimento como condição de retorno (tabela 2). 21<br />
Tabela 1. Similaridades entre os profetas<br />
Tabela 2. Diferenças entre ambos<br />
Jeremias Oseias Jeremias Oseias<br />
2.8; 4.22 4.1,6 2.<strong>20</strong>-25 2.5-7<br />
3.1-<strong>20</strong> 2.2,14-16 3.1-5 2.11-12<br />
4.3 10.12 3.13 2.18-25<br />
7:9 4.2 3.22-25 2.3-5<br />
14.10 8.13<br />
31.34 2.<strong>20</strong><br />
(c) É possível que a escola deuteronomista tenha marca<strong>do</strong> definitivamente<br />
o livro. 22 Certamente há pontos em comum: uma ênfase em observar a<br />
Torá (5.4-5; 8.7) e nas consequências de não fazê-lo (expulsão da terra). Deus<br />
está prestes a infligir sobre seu povo a maldição que procede de sua aliança<br />
(Lv 26.31-33; Dt 28.49-68). Jeremias também afirma a justiça de Deus (em<br />
impor o exílio) e sua fidelidade (em restaurar Israel).<br />
Esses diversos pontos considera<strong>do</strong>s revelam a forte correlação entre a vida<br />
de Jeremias, desde seus anos formativos até sua maturidade, e a mensagem anunciada<br />
pelo profeta. Certamente podemos extrapolar e entender que isso também<br />
19 Para uma análise mais ampla, ver McConville, J. G. Judgment and Promise: An Interpretation<br />
of the Book of Jeremiah. Leicester: Apollos, 1993, p. 152-163. Também há paralelos com Miqueias<br />
(Jr 26.17-19 e Mq 3.12), Obadias (Jr 49.7-22 e Ob 1-14) e Isaías (Jr 23.5-6 e Is 4.2; 11.1,10).<br />
<strong>20</strong> Cf. Brueggemann, Theology, p. 15-<strong>20</strong>.<br />
21 Para uma avaliação da recodificação por Jeremias dessa metáfora, ver DIAMOND, A. R. Pete<br />
e O’CONNOR, Kathleen M., “Unfaithful Passions: Coding Women Coding Men in Jeremiah 2-3 (4:2)”,<br />
Biblical Interpretation 4 (1996), p. 288-310; especialmente p. 306-307.<br />
22 Não há concordância entre os estudiosos quanto à existência e à extensão <strong>do</strong> linguajar deuteronomista<br />
no livro de Jeremias.<br />
21
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
ocorre com to<strong>do</strong>s os que proclamam a Palavra de Deus, embora não tenhamos<br />
da<strong>do</strong>s comprobatórios no caso da maioria <strong>do</strong>s demais profetas. Passemos agora<br />
a examinar mais atentamente algumas características da teologia desse livro.<br />
2. a mensagem teológica <strong>do</strong> livro<br />
Jeremias é um livro riquíssimo teologicamente. Seria pretencioso desejar<br />
abranger to<strong>do</strong> o seu conteú<strong>do</strong> nestas poucas linhas. Nosso objetivo, bem mais<br />
simples, é indicar rotas de navegação dentro desse oceano de significa<strong>do</strong>s.<br />
Vimos que Jeremias é um profeta em crise. Ele se esforça por compreender as<br />
razões teológicas para a destruição de Jerusalém e seu templo. Sua teodiceia<br />
afirma que, sen<strong>do</strong> Javé o Deus soberano sobre todas as nações, ele é sempre<br />
fiel à sua aliança graciosa com Israel, mesmo ao ponto de trazer juízo contra<br />
seus filhos para restaurá-los ao caminho correto da vida. Analisemos essa<br />
mensagem teológica com mais detalhes.<br />
2.1 Deus é soberano<br />
Jeremias sempre enfatiza a soberania absoluta de Javé. 23 Ele é to<strong>do</strong>-poderoso<br />
(27.4-5; 32.27; 46.10), transcendente (23.23) e onipresente (23.24). É<br />
o Cria<strong>do</strong>r de todas as coisas (10.12,16; 31.35; 51.15,19), 24 mas pode dissolver<br />
a criação em sua ira (4.23-26; 18.6). Ele é o rei (48.15; 51.57), o justo juiz que<br />
vê e sabe de tu<strong>do</strong> (11.<strong>20</strong>; 17.10; <strong>20</strong>.12). Não há ninguém como ele (10.6-7).<br />
Além disso, embora Javé seja especificamente o Deus de Israel (2.3; 10.16;<br />
17.13), ele governa sobre toda a terra. Para Jeremias, os conflitos políticos de<br />
sua época refletem apenas a vontade de Deus em ação. Deus tanto pode fazer<br />
o “inimigo <strong>do</strong> norte” vir quanto pode impedi-lo de atacar seu povo. Ele é o<br />
Senhor sobre todas as nações (5.15; 18.7-10; 25.17-29), o governa<strong>do</strong>r da história<br />
(27.6-7; 45.4; 50.44). Portanto, Deus está no coman<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>. As más<br />
ações de indivíduos e de nações se encaixam de alguma maneira no propósito<br />
final de Deus para seu povo. Não obstante, estes indivíduos e nações ainda são<br />
responsáveis pelo mal que causaram ao longo <strong>do</strong> caminho. 25 Deus os punirá<br />
mais tarde por sua maldade (50.9; 51.1).<br />
Adicionalmente, Javé irá restaurar o seu povo (30.22; 31.1) após a merecida<br />
punição (5.29), tão somente porque ele pode, e ninguém mais se importa<br />
(15.5). Ele o faz porque os ama e é fiel à sua aliança.<br />
23 Brueggemann, Theology, p. 43-133, argumenta que essa é mensagem principal “que <strong>do</strong>mina<br />
a retórica e a fé <strong>do</strong> livro de Jeremias” (p. 44). Ver também: VanGemeren, Willem A. Interpreting<br />
the Prophetic Word: An Introduction to the Prophetic Literature of the Old Testament. Grand Rapids:<br />
Zondervan, 1990, p. 310-311.<br />
24 Ver Brueggemann, Like Fire, p. 41-55, para uma análise da teologia da criação no livro<br />
de Jeremias.<br />
25 Simundson, Daniel J. “Preaching from Jeremiah: Challenges and Opportunities”. Word &<br />
World 22 (<strong>20</strong>02), p. 423-432; ver especificamente a p. 430.<br />
22
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
2.2 Deus revela sua palavra por meio de seus profetas<br />
Esse Deus soberano escolhe seus próprios instrumentos para proclamar a<br />
sua palavra, a qual ele vela para cumprir (1.12; 4.28). Isso significa que alguns<br />
profetas especulam sobre o que não sabem, porque não receberam nenhuma<br />
revelação divina (14.14; 23.16,18,21-22). Também significa que o instrumento<br />
escolhi<strong>do</strong> não conseguirá se esquivar da ardente proclamação que irrompe de<br />
seu interior (5.14; <strong>20</strong>.9; 23.9,29).<br />
Portanto, é importante que Jeremias demonstre que prega apenas o que<br />
Javé man<strong>do</strong>u. 26 A fórmula profética “a Palavra <strong>do</strong> Senhor veio a Jeremias” (com<br />
variações) 27 ocorre 17 vezes no livro, enfatizan<strong>do</strong> que a mensagem de Jeremias<br />
veio diretamente de Javé para a boca <strong>do</strong> profeta (1.9; 5.14; 19.2; 26.12,16;<br />
36.1-2). Jeremias é o porta-voz de Deus (15.19). 28 Isso coloca o verdadeiro<br />
profeta em conflito direto com aqueles que não entraram no conselho divino<br />
para ouvir a voz de Deus (14.13-18; 23.9-40; 27.14-18). Estes profetizam<br />
mentiras e praticam o engano (5.31; 6.13). Jeremias contende mais específica<br />
e diretamente contra Hananias (28.1-17) e Semaías (29.24-32).<br />
Essa revelação verbal exige apenas uma coisa: uma “obediência responsiva”<br />
à “voz de Javé, que está no coman<strong>do</strong>”. 29 Não é suficiente ter “a lei <strong>do</strong><br />
Senhor” (8.8), pois Deus quer que eles obedeçam à sua palavra. Por isso, um<br />
verbo importante em Jeremias é “ouvir”. 30 Israel é acusa<strong>do</strong> porque não ouve<br />
(nem obedece) a Deus, um fato recorrente em sua história (25.4).<br />
2.3 Deus acusa seu povo<br />
Para Jeremias, Israel é a nação escolhida de Deus. Como tal, está em<br />
aliança com Deus. Esse relacionamento exige <strong>do</strong> povo obediência a tu<strong>do</strong><br />
o que a aliança postula. Jeremias os adverte sobre sua desobediência: Israel<br />
violou sua aliança com Javé. To<strong>do</strong> o povo é corrupto (5.1-5) e não segue a<br />
26 Ver Dt 13.1-6; 18.15-22. Para outros mecanismos de legitimação usa<strong>do</strong>s por Jeremias, ver<br />
BERQUIST, J. L. “Prophetic Legitimation in Jeremiah”. Vetus Testamentum 39 (1989), p. 129-39.<br />
27 A fórmula ocorre em 7.1; 11.1; 18.1; 21.1; 25.1; 30.1; 32.1; 34.1,8; 35.1; 40.1 e 44.1. Com<br />
algumas variações, também ocorre em 1.2; 14.1; 46.1; 47.1 e 49.34. A expressão “palavra <strong>do</strong> Senhor”<br />
é repetida 71 vezes em Jeremias, num total de 447 vezes na Bíblia toda, segun<strong>do</strong> o software Logos.<br />
Rendtorff, Hebrew Bible, p. <strong>20</strong>5-<strong>20</strong>7, indica a constante presença em Jeremias <strong>do</strong>s termos “palavra”,<br />
“dito de Javé” e “assim diz o Senhor”.<br />
28 WILLIAMS, Michael J. The Prophet and His Message: Reading Old Testament Prophecy<br />
Today. Phillipsburg: P&R, <strong>20</strong>03, p. 73-106, analisa a tarefa profética e apresenta os profetas como<br />
representantes de Deus (bem como <strong>do</strong> povo e de si mesmos) não apenas em suas palavras, mas também<br />
em suas emoções e comportamento. Ver também Heschel, The Prophets, p. 146-156.<br />
29 Brueggemann, Theology, p. 22. Uma característica da verdadeira profecia é sua capacidade<br />
de gerar, naqueles que a aceitam, arrependimento e um retorno a Deus em contrição (23.22).<br />
30 O verbo shama‘ ocorre 184 vezes em Jeremias, mais <strong>do</strong> que em qualquer outro livro no Antigo<br />
Testamento (Isaías vem em segun<strong>do</strong> lugar, com 106 vezes, e Deuteronômio em terceiro, com 91). A raiz<br />
<strong>do</strong> verbo também significa “obedecer”, uma mensagem que está no centro de Dt 6.4-5.<br />
23
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
verdade nem a justiça. Estão violan<strong>do</strong> abertamente os Dez Mandamentos (7.9;<br />
cf. Os 4.2), geran<strong>do</strong> injustiças sociais e males morais (5.26-28; 7.5-6; 22.13-17;<br />
34.16). Adicionalmente, o povo a<strong>do</strong>ra falsos deuses (2.5,23-25; 3.9; 5.7; 7.18;<br />
16.11-12; 22.9; 23.13; 32.29), incluin<strong>do</strong> a prática de sacrifícios de crianças<br />
(7.30-31; 19.5; 32.35) e imoralidade sexual (5.7-8; 23.10,14). A mancha de<br />
sua culpa era tão profunda que não poderia mais ser limpa (2.22).<br />
Diante dessa situação, Deus lhes pede que ouçam sua palavra (11.2,6)<br />
e os ameaça (26.4-6), mas eles não o ouvem mais (6.10,17,19; 7.13,24,26;<br />
11.7-8,10; 13.10-11; 17.23; 22.21; 25.3-4,7), chegan<strong>do</strong> até a duvidar que<br />
Javé iria fazer algo a respeito (5.12-13; 7.10). Portanto, como parte ofendida,<br />
Javé acusa seu povo (2.1-3.5) 31 e chama a natureza como testemunha da<br />
antiga aliança entre eles. Ele questiona o comportamento deles, lembra-os <strong>do</strong>s<br />
benefícios que receberam e os ameaça com a merecida punição. Jeremias acusa<br />
reis, príncipes, sacer<strong>do</strong>tes e profetas (1.18; 5.5; 32.32) como responsáveis por<br />
essa situação (cf. 22.13-19, uma dura acusação contra um rei). Jeremias enuncia<br />
o peca<strong>do</strong> de Judá de seis maneiras diferentes (informadas com suas passagens<br />
principais): infidelidade conjugal (capítulos 2-3), rebelião de um vassalo (4-6),<br />
saúde arruinada (8-9), criação em desordem (passim), comunidade moribunda<br />
(9) e liderança enganosa (22-23). 32<br />
O que é mais incrível nesse cenário é que Israel pensava que estava seguin<strong>do</strong><br />
corretamente a palavra de Javé! Ainda faziam os sacrifícios exigi<strong>do</strong>s,<br />
atendiam às convocações e festas solenes, e prestavam um culto liturgicamente<br />
correto. O que estava erra<strong>do</strong> era seu comportamento diário, principalmente em<br />
seus relacionamentos sociais, além de terem adiciona<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>ração a outros<br />
deuses como atividade paralela. O Decálogo usualmente era li<strong>do</strong> em voz alta e<br />
o povo declarava sua anuência nas grandes festas anuais. Jeremias repreende a<br />
hipocrisia deles – o povo atende à celebração no templo (7.10), mas continua<br />
a violar os mandamentos (7.9). O templo se torna um lugar de proteção, onde<br />
podiam a<strong>do</strong>rar a Javé e assumir que estavam livres de qualquer consequência<br />
de seus peca<strong>do</strong>s. Jeremias não é contra a forma externa de culto e <strong>do</strong> relacionamento<br />
com Javé (17.25-26; 33.17-26). Mesmo assim, ele insiste que Deus não<br />
pode ser a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> apenas pelo aparato material ou por formas mecânicas (um<br />
conceito posteriormente desenvolvi<strong>do</strong> mais intensamente por Jesus, Jo 4.24).<br />
Seu objetivo não é destruir a religião formal, mas persuadir Judá de que eles<br />
deviam praticar as implicações da aliança à qual juraram obediência (11.1-10). 33<br />
Para ele, a Torá abrange “as exigências éticas e a proibição contra a a<strong>do</strong>ração<br />
31 Os profetas usam a metáfora de um processo legal para apresentar as complicações <strong>do</strong> relacionamento<br />
de Deus com seu povo. Obviamente, Deus não necessita provar seu caso em um tribunal<br />
superior. A metáfora é usada para convencer Israel de sua culpa e produzir arrependimento.<br />
32 Brueggemann, Theology, p. 81-98.<br />
33 Thompson, Jeremiah, p. 67-71; Rendtorff, Hebrew Bible, p. 211-212.<br />
24
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
de outros deuses”. 34 Cair em um tipo de erro facilmente leva a outros erros; ou<br />
seja, quebrar os mandamentos da primeira tábua (referente a Deus) implica em<br />
quebrar os mandamentos da segunda (referentes ao próximo), e vice-versa. 35<br />
2.4 Deus chama ao arrependimento<br />
O verbo “voltar-se” ou “arrepender-se” é outro termo muito importante<br />
no livro. 36 As acusações feitas por Jeremias contêm uma convocação implícita<br />
ao arrependimento (36.3,7). Ainda há tempo para adiar a punição inevitável<br />
(9.23-24; 18.7-8), pois Deus é paciente e compasssivo (3.12). Ele adverte repetidas<br />
vezes antes <strong>do</strong> juízo, e isso revela sua longânima graça. 37 Javé insiste em<br />
que eles se arrependam e retornem a ele (3.14,22; 4.14; 6.16), mas eles não o<br />
ouvem (5.3; 8.4-7; 18.11-12). A teimosia deles vem de longa data (11.6-8; 16.12).<br />
Quan<strong>do</strong> o rei queimou o escrito profético (36.1-32), de forma intencional,<br />
após os líderes da corte terem insisti<strong>do</strong> que não o fizesse (v. 25), isso sinalizou<br />
uma rejeição completa da palavra de Javé pela nação e seus líderes. Deus não<br />
tem outra escolha senão pôr em ação seu juízo irrevogável contra o povo com<br />
o qual tem aliança. 38 Após essa rejeição final, Javé não mais se dispõe a ouvir<br />
súplicas e ordena a Jeremias que não mais interceda pelo povo (7.16; 11.14;<br />
14.12; 15.1). Deus não pode mais manifestar sua compaixão (13.14; 15.6), pois<br />
agora a punição está próxima e é inevitável (4.28; 7.27-29; 25.1-11; 35.17). O<br />
chama<strong>do</strong> de Jeremias ao celibato é um sinal para o povo dessa decisão divina<br />
irreversível de puni-los (16.1-4), assim como sua proibição de participar de<br />
festas e funerais (16.5-9). Não há mais conforto nem alegria para esta geração,<br />
o que é simboliza<strong>do</strong> pela ação de quebrar o vaso de barro (19.1-13).<br />
É importante entender que, apesar de o arrependimento parecer inútil a<br />
essa altura, é exatamente isso o que Deus busca em seu povo. O juízo certamente<br />
viria, mas Deus nunca despreza um coração contrito e por certo aliviaria<br />
sua mão na execução da disciplina se o seu povo o buscasse verdadeiramente.<br />
Infelizmente, Israel preferiu descartar o aviso de Jeremias.<br />
2.5 Deus garante salvação<br />
O grande problema de Israel nessa época não foi um afastamento completo<br />
<strong>do</strong>s caminhos de Deus. Em suas mentes, imaginavam ser bons a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res e<br />
34 Hyatt, J. Philip. “Torah in the Book of Jeremiah”. Journal of Biblical Literature 60 (1941),<br />
p. 381-396, p. 392.<br />
35 Thompson, Jeremiah, p. 278.<br />
36 Segun<strong>do</strong> o software Logos, o verbo shub ocorre 106 vezes no livro (segui<strong>do</strong> de longe por<br />
Gênesis, com 68 vezes, e Salmos, com 67). Ver também Rendtorff, Hebrew Bible, p. <strong>20</strong>8,225-227.<br />
37 “Longânimo” é um bom termo para descrever as emoções divinas (2.31-32; 9.17-19; 14.17).<br />
38 Holladay, Jeremiah 2, p. 30. Ele chama a atenção para a oferta de arrependimento no v. 7<br />
que é descartada no v. 31. Observe-se que o texto <strong>do</strong> livro não está ordena<strong>do</strong> cronologicamente.<br />
25
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
pessoas religiosas. Eles realmente criam que Javé é o Senhor <strong>do</strong> universo e que<br />
o templo era o local de sua habitação. Seu engano não reside em sua correta<br />
percepção da soberania de Javé sobre todas as nações, nem em sua suposição<br />
de que ele escolheu habitar entre seu povo em Jerusalém. 39 O problema teológico<br />
aqui é a inferência incorreta de que Deus sempre protegeria seu povo de<br />
qualquer inimigo. Essa proteção era garantida, pensavam eles, por três razões<br />
principais:<br />
(a) A reputação de Javé ficaria prejudicada entre as nações se Israel fosse<br />
derrota<strong>do</strong>. Essa era uma maneira antiga e comum de barganhar com Deus:<br />
lembrá-lo de considerar seu nome santo e sua glória (como Moisés em Êx<br />
33.1-17). Não consideravam que a reputação dele também ficaria prejudicada<br />
se ele simplesmente desconsiderasse o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu povo.<br />
(b) A aliança eterna estabelecida por Javé com Davi (2Sm 7.4-17; 23.1-7)<br />
e sua escolha de Sião (Jerusalém) como local de sua habitação são eventos<br />
fundamentais na história de Israel. O templo proporcionava um local para se<br />
entrar na presença <strong>do</strong> Deus To<strong>do</strong>-Poderoso e a<strong>do</strong>rá-lo. Javé se alegra com a<br />
ideia de Davi sobre um santuário central e aceita a oração de Salomão (1Rs<br />
9.3-9), estabelecen<strong>do</strong> as mesmas condições de obediência que sempre estão<br />
presentes em nosso relacionamento com Deus. Entretanto, aquilo que foi outorga<strong>do</strong><br />
como meio de graça para a vida na presença de Deus se deturpou em<br />
uma esperança enganosa de proteção incondicional da parte de Deus.<br />
(c) A pregação de Isaías no século anterior reforçou seriamente esse conceito<br />
(Is 55.3). Ele orientou Ezequias a confiar completamente no livramento<br />
de Deus e a não temer seus inimigos (Is 36-37; ver especialmente 37.35),<br />
basean<strong>do</strong>-se na aliança divina com Davi. Portanto, na época de Jeremias, o<br />
povo aguardava o mesmo tipo de livramento (21.2) e os profetas proclamavam<br />
“paz, paz” como palavra de Javé para Israel (6.14; 8.11; 14.13; 23.17). 40 Entenderam<br />
a aliança de forma errada, apegan<strong>do</strong>-se às promessas, mas ignoran<strong>do</strong><br />
as responsabilidades. Gaban<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> ponto teológico erra<strong>do</strong>, 41 transformaram a<br />
a<strong>do</strong>ração ao Senhor em camuflagem para suas más ações.<br />
Jeremias expõe a falácia da confiança deles em seu Sermão <strong>do</strong> Templo<br />
(7.1-14). 42 Eles estão erra<strong>do</strong>s porque a verdadeira segurança não está em um<br />
39 Para um estu<strong>do</strong> mais extenso sobre o engano <strong>do</strong> povo em Jeremias, ver: OVERHOLT, Thomas W.<br />
The Threat of Falsehood: A Study in the Theology of the Book of Jeremiah. SBT2 16. Londres: SCM,<br />
1970, especialmente p. 86-104.<br />
40 Para uma análise desses oráculos de salvação, ver: SISSON, Jonathan Paige. “Jeremiah and the<br />
Jerusalem Conception of Peace”. Journal of Biblical Literature 105 (1986), p. 429-442.<br />
41 Deviam se gloriar acerca de um conhecimento real de Javé (9.23-24; 22.16). Ver: Brueggemann,<br />
“Bragging about the Right Stuff”. Journal for Preachers 26 (<strong>20</strong>03), p. 27-32, especialmente<br />
p. 31.<br />
42 Brueggemann, Like Fire, p. 16: “Jeremias parece ser um homem que fala a verdade em<br />
um mun<strong>do</strong> de falsidade e autoengano” (grifos <strong>do</strong> autor).<br />
26
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
edifício, mas na retidão moral, na fidelidade e na obediência a Deus. Javé abomina<br />
oblações que procedem da desobediência (6.19-<strong>20</strong>; 7.21; 11.15; 14.12).<br />
A frequência aos cultos e rituais religiosos não é substituto <strong>do</strong> relacionamento<br />
real (12.2). Jeremias não é contra a liturgia nem contra o templo em si, mas<br />
sim contra a falsa segurança <strong>do</strong> povo pelo fato de o templo estar em Jerusalém.<br />
Como o templo sinaliza a presença de Javé entre seu povo (Sl 46.5-7; 132), o<br />
anúncio de sua destruição é considera<strong>do</strong> uma blasfêmia e Jeremias é submeti<strong>do</strong><br />
a julgamento (26:7-15), escapan<strong>do</strong> por pouco da morte devi<strong>do</strong> a uma profecia<br />
anterior de Miqueias (26.16-19; cf. Mq 3.11-12) e pela influência de amigos<br />
poderosos (26.24). O profeta Urias, com mensagem similar, não alcançou o<br />
mesmo livramento (26.<strong>20</strong>-23).<br />
Jeremias continua batalhan<strong>do</strong> contra as profecias enganosas feitas<br />
em nome de Javé (5.30-31; 14.13-16; 23.13-40) – “engano” é outro termo<br />
importante no livro (7.4,8-9). 43 Jeremias faz uma crítica radical contra essa<br />
ideologia real e sacer<strong>do</strong>tal de proteção divina. Ele lembra a Israel acerca <strong>do</strong><br />
antigo santuário de Siló (7.12; 26.9), que foi destruí<strong>do</strong> por similares suposições<br />
erradas. 44 In<strong>do</strong> além, Jeremias afirma que paz incondicional não existe, pois<br />
a aliança de Deus com Davi também é condicionada à obediência (17.24-27;<br />
21.12; 22.1-5). Todavia, Deus não permitirá que essa aliança fique violada para<br />
sempre, por causa de sua graça e <strong>do</strong> seu santo nome. Dessa forma, há garantia<br />
de salvação, mas não <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que Israel imaginava.<br />
2.6 Deus ama continuamente seu povo<br />
Vimos que o juízo divino é um <strong>do</strong>s temas pervasivos desse livro, levan<strong>do</strong><br />
tanto Jeremias quanto Baruque a gemer sem esperança (45.1-5). O juízo<br />
alcançará as outras nações (46-51). Esse juízo divino, contu<strong>do</strong>, é tanto uma<br />
expressão da ira de Deus para com o peca<strong>do</strong> deles, 45 quanto <strong>do</strong> seu profun<strong>do</strong><br />
amor por seu povo. Segun<strong>do</strong> Jeremias, o único mo<strong>do</strong> de corrigir o caminho<br />
tortuoso que Judá estava seguin<strong>do</strong> seria através de uma disciplina séria que<br />
destruiria toda falsa esperança e os levaria ao arrependimento e uma nova vida<br />
(30.11; 31.18). A restauração final é o propósito <strong>do</strong> juízo iminente de Deus. 46<br />
É por isso que Jeremias vai contra a ideia de um perío<strong>do</strong> curto e cômo<strong>do</strong> de<br />
43 O termo sheqer ocorre 39 vezes em Jeremias, mais <strong>do</strong> que em qualquer outro livro bíblico.<br />
44 Ver HOLWERDA, David E. Jesus & Israel: One Covenant or Two? Grand Rapids: Eerdmans,<br />
1995, p. 63-64.<br />
45 Heschel, The Prophets, p. 134, indica que Jeremias frequentemente é chama<strong>do</strong> de profeta da<br />
ira divina por proclamar como o povo provocou Deus à indignação (7.18,<strong>20</strong>,29; 11.17; 23.19-<strong>20</strong>; 25.6;<br />
32.30-32; 44.3-8).<br />
46 Rendtorff, Hebrew Bible, p. <strong>20</strong>8, declara que “mesmo a pregação mais violenta de juízo<br />
por Jeremias nunca pode ser lida fora <strong>do</strong> contexto maior da história de salvação de Deus”. Ver também<br />
Brueggemann, Like Fire, p. 23; Theology, p. 115-118.<br />
27
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
exílio (29.1-23) e proclama total rendição à Babilônia, pois ela é o instrumento<br />
divino de punição (27.1–28.17). Nisso discorda de Hananias (27.16; 28.3), que<br />
pensava que o juízo de Deus no ano 597 já tinha si<strong>do</strong> suficiente e profetizava<br />
paz a partir de agora.<br />
Além disso, Jeremias proclama que, após satisfazer sua ira, Deus novamente<br />
mostraria compaixão para com o remanescente de Israel (12.15; 30.18;<br />
31.<strong>20</strong>; 33.25-26; 42.12), que seria liberta<strong>do</strong> de seu cativeiro (16.14-15; 24.5-7;<br />
30.3; 31.23), o qual duraria 70 anos (29.10-14). Deus redime Israel apenas<br />
porque o ama (30.17; 31.3; Lm 3.22) e deseja renovar o relacionamento com<br />
ele (30.22). Israel é uma esposa maculada (3.1) que não pode ser aceita de volta,<br />
mas Deus per<strong>do</strong>a até a mácula que não pode ser limpa (2.22; 50.<strong>20</strong>; 31.34b;<br />
33.8) e declara que Israel é novamente virgem (31.4,21-22). Por isso Jeremias<br />
proclama que “há esperança para o teu futuro” (31.17; 29.11). Ele compra um<br />
campo como sinal de que a vida retornaria à normalidade (32.15,37). Mais que<br />
isso, o futuro será melhor <strong>do</strong> que os dias gloriosos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Haverá acesso<br />
livre a Deus, não se precisará mais de estruturas formais (3.16-17). Haverá<br />
pastores verdadeiros segun<strong>do</strong> o coração de Deus (3.15; 23.4-6; 30.9,21), e<br />
conhecimento universal de Deus (31.34). As nações se unirão a Israel nessa<br />
nova época, se quiserem aprender o caminho de Javé (12.14-17; 3.17; 16.19-21).<br />
E haverá prosperidade (32.41-42).<br />
Para concretizar esse futuro brilhante, Deus estabelecerá uma nova aliança<br />
(31.31-34) que depende inteiramente da fidelidade dele, de maneira que o<br />
povo não se afastará dele (32.40; 50.5). 47 “Nova” aqui basicamente significa<br />
renovada, visto que muitas coisas permanecem iguais: Deus, o povo, a Torá,<br />
o relacionamento (“serão meu povo, serei seu Deus”; 32:38), o perdão. 48 O<br />
“novo” é a circuncisão <strong>do</strong> coração (4.4) que Deus fará. 49 O povo da nova<br />
aliança não dependerá de seus corações enganosos (3.17; 17.1,9), porque isso<br />
sempre comduz ao fracasso.<br />
Em suma, percebemos claramente o foco teocêntrico da mensagem<br />
teológica de Jeremias. Todas as circunstâncias são interpretadas <strong>do</strong> ponto de<br />
vista divino. Deus é a fonte e a base para a compreensão da realidade. Ele<br />
<strong>do</strong>mina sobre as nações e as usa para cumprir seus propósitos soberanos.<br />
Ele usa agentes humanos para revelar sua vontade, mas confronta aqueles que<br />
47 Holwerda, Jesus, p. 95; Brueggemann, Like Fire, p. 105-106.<br />
48 Cf. KAISER JR., Walter C. “The Old Promise and the New Covenant”. Journal of Evangelical<br />
Theological Studies 15 (1972), p. 11-23; VanGemeren, Interpreting, p. 313-317; Brueggemann,<br />
Theology, p. 126-127. Para estu<strong>do</strong> posterior sobre a novidade da aliança, sua continuidade e<br />
descontinuidade com os pactos anteriores e sua relação com a mensagem de outros profetas, consultar:<br />
Von Rad, Theology, v. 2, p. 212-217; ANDERSON, Bernhard W. “‘The Lord Has Created Something<br />
New’: A Stylistic Study of Jer 31:15-22”. Catholic Biblical Quaterly 40 (1978), p. 463-478, e a bibliografia<br />
sobre o assunto em VanGemeren, Interpreting, p. 503, nota 102.<br />
49 Cf. Dt 30.6; 10.16; Ez 18.31; 36.26-27; Rm 2.28-29; Cl 2.11.<br />
28
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
falam apenas de seus próprios sonhos. Ele acusa seu povo de ser religioso, mas<br />
infiel à aliança e desobediente na implantação da justiça social proposta. Ele<br />
chama continuamente ao arrependimento, pois deseja se relacionar intensamente<br />
com seu povo. Ele garante salvação incondicional, mas não livramento<br />
das consequências <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>. Ele ama perpetuamente, e redime seu povo de<br />
seu peca<strong>do</strong> e aflições.<br />
considerações finais<br />
Como vimos, a destruição de Jerusalém por Babilônia é uma resposta<br />
pactual <strong>do</strong> soberano Deus à desobediência de Judá às exigências da aliança. 50<br />
O livro de Jeremias explica e valida a causa <strong>do</strong> exílio de Judá, pela sua própria<br />
recusa pecaminosa em ouvir e retornar para Deus, e anuncia o esperançoso<br />
destino futuro daqueles que estão na Babilônia, basea<strong>do</strong> em uma nova aliança. 51<br />
Compreende-se a realidade histórica nesta teologia pactual como algo que se<br />
fundamenta na soberania de Javé como Senhor supremo <strong>do</strong> universo. É um<br />
movimento <strong>do</strong> juízo para a esperança e a promessa. 52<br />
Como devemos aplicar essa mensagem hoje? Algumas linhas de ação são<br />
propostas a seguir, já crian<strong>do</strong> uma conexão com a mensagem neotestamentária:<br />
(a) Devemos evitar o erro comum de institucionalizar o Deus soberano<br />
ou de limitar suas possíveis ações. Enquanto os profetas oficiais continuaram<br />
em sua “tradição”, defenden<strong>do</strong> a teologia sionista proposta por Isaías, Deus<br />
se moveu adiante e eles se distanciaram <strong>do</strong> que ele estava falan<strong>do</strong> à situação<br />
presente. Embora Javé seja sempre fiel à sua palavra, nossa compreensão dela<br />
nunca é completa. Nossa teologia não pode ser mais importante <strong>do</strong> que ouvir<br />
de forma atenta e concreta àquilo que Deus está dizen<strong>do</strong> agora (erro básico<br />
<strong>do</strong>s religiosos na época de Jesus: Mc 7.11-13; Jo 5.38-39; Mt 22.29). 53 Podemos<br />
descobrir que nossos pensamentos precisam de alguns ajustes. Ecclesia<br />
semper reformanda est!<br />
(b) Sempre temos uma chance perante Deus para o arrependimento <strong>do</strong>s<br />
nossos peca<strong>do</strong>s, pois ele sempre está aguardan<strong>do</strong> intensamente por isso. No<br />
entanto, o livro de Jeremias nos ensina que a oportunidade de evitar a punição<br />
corretiva associada aos peca<strong>do</strong>s tem um tempo limite, mesmo no longânimo<br />
amor divino. O arrependimento sempre é necessário, mesmo que seja para<br />
nos submetermos humildemente às consequências <strong>do</strong> que fizemos. O amor<br />
incondicional de Deus inclui a disciplina necessária para nos trazer de volta<br />
a ele (Hb 12.4-11). Quão teimosos queremos ser depende de nossa estupidez.<br />
50 Brueggemann, Theology, p. 76-77.<br />
51 McConville, Judgment and Promise, p. 180-181.<br />
52 Brueggemann, Like Fire, 152.<br />
53 Overholt, Threat of Falsehood, p. 39-42.<br />
29
Jonathan Luís Hack, Jeremias: Um Panorama Teológico<br />
O Senhor sempre adverte que “dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões”<br />
(At 26.14).<br />
(c) Como Jeremias indica claramente em seu Sermão <strong>do</strong> Templo, a verdadeira<br />
religião implica numa forte ética em conformidade com a Torá (Tg 1.27;<br />
1Jo 3.18). As duas tábuas <strong>do</strong> Decálogo (mandamentos verticais e horizontais)<br />
precisam ser obedecidas ao mesmo tempo e se resumem em amarmos a Deus e<br />
ao próximo com to<strong>do</strong> o nosso coração (Mt 22.37-40; 1Jo 4.<strong>20</strong>-21). Nossa missão<br />
profética como igreja de Cristo começa internamente, ao examinarmos nossa<br />
observância da correta a<strong>do</strong>ração e da justiça social de Deus. Depois, continua<br />
ao proclamarmos ao mun<strong>do</strong> aquilo que o Senhor deseja para a humanidade.<br />
A justiça <strong>do</strong> povo de Deus é manifestação <strong>do</strong> seu Reino entre nós (Mt 6.10) e<br />
deve modelar o estilo de vida de to<strong>do</strong>s os outros povos da terra. 54<br />
(d) A vida de Jeremias é cheia de incidentes. Cada um deles interfere<br />
em sua compreensão de Deus e influencia sua mensagem. Isso transparece em<br />
alguns outros profetas (como Oseias), mas certamente se aplica a to<strong>do</strong>s os<br />
que vivem na presença de Deus, pois o Senhor conduz todas as circunstâncias<br />
ao nosso re<strong>do</strong>r para gerar em nós a imagem <strong>do</strong> seu Filho (Rm 8.28-29). Para<br />
alcançarmos integridade, nossa mensagem precisa ser coerente com nossa vida.<br />
Em geral não conseguimos mudar o que acontece em nossas vidas, mas com<br />
certeza podemos interpretar esses acontecimentos à luz da Palavra de Deus,<br />
submeten<strong>do</strong>-nos à soberania <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r e reagin<strong>do</strong> corretamente às circunstâncias<br />
a partir da perspectiva divina (2Co 4.17-18; Hc 3.17-19).<br />
(e) A mensagem da nova aliança proclamada por Jeremias é crucial à<br />
teologia cristã pois se cumpre na morte de Cristo (Lc 22.<strong>20</strong>). Jesus é o Deus-<br />
-homem que pode satisfazer completamente as condições pactuais (2Co 3.2-18)<br />
e beber o “cálice <strong>do</strong> furor” de Deus (25.15-29; Lc 22.42). Essa nova aliança<br />
traz a paz perpétua (cf. Ez 34.25; 37.26; Jo 14.27; Cl 1.<strong>20</strong>; Fp 4.7) implantada<br />
pelo prometi<strong>do</strong> Renovo de Justiça (33.15-16). 55<br />
(f) A estrutura <strong>do</strong> livro de Jeremias gira em torno da missão anunciada em<br />
1.10 – destruição e construção. Essa percepção teológica das circunstâncias pelas<br />
quais o seu povo passava tornam a mensagem de Jeremias algo essencial para<br />
a vida cristã. Esses <strong>do</strong>is momentos contrastantes reaparecem continuamente na<br />
teologia da igreja: a morte e a ressurreição de Cristo (1Co 15.3-4; Jo 2.19-22), 56 o<br />
despojar <strong>do</strong> velho homem e o revestir <strong>do</strong> novo (Ef 4.22-24), a disciplina divina<br />
e a restauração (Hb 12.10-11), a mortificação e a vida abundante (2Co 4.11;<br />
Rm 8.13; 1Pe 2.24), o choro da noite e a alegria que vem pela manhã (Sl 30.5;<br />
143.8; Lm 3.22-23). Cada um de nós tem seu momento de destruição, suas<br />
54 Holwerda, Jesus, p. 138.<br />
55 Cf. CRAMER, George H. “Messianic Hope in Jeremiah”. Bibliotheca Sacra 115 (1958),<br />
p. 237-246.<br />
56 Brueggemann, Theology, p. 191-192; Like Fire, p. 26-28,129-130,167,178.<br />
30
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 15-31<br />
aflições pessoais, que precisam ser reinterpretadas à luz das promessas divinas<br />
de restauração. Somente “olhan<strong>do</strong> firmemente para o Autor e Consuma<strong>do</strong>r da<br />
fé” (Hb 12.2), receberemos força, alegria e esperança para caminharmos em<br />
meio ao sofrimento (Tg 5.8; 1Pe 1.3-9; 4.12-13; Rm 8.17-18; Sl 32.10-11).<br />
(g) Jeremias é um construtor de pontes. Ele se conecta com as tradições<br />
mais antigas da Torá, mas ao mesmo tempo traz uma nova mensagem de Deus<br />
que modela a realidade presente, influencian<strong>do</strong> as novas gerações. 57 Como<br />
profeta, Jeremias prefigura Cristo e a igreja. Para seguirmos seu exemplo,<br />
precisamos conhecer bem o texto bíblico e aprender a ver a vida <strong>do</strong> ponto de<br />
vista de Deus; daí podemos atualizar o texto, mediante a orientação <strong>do</strong> Espírito<br />
Santo, para confrontar nossa pecaminosa realidade cotidiana com a contínua<br />
novidade da cosmovisão divina. 58 A tarefa profética da igreja consiste em proclamar<br />
a mensagem subversiva das Escrituras (Mt 5.13-16; 1Co 1.18-25; 2Co<br />
10.4-5), a qual anuncia uma perspectiva transforma<strong>do</strong>ra de vida abundante e<br />
teocêntrica na presença <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r, uma alternativa salutar à ideologia egocêntrica<br />
e he<strong>do</strong>nista pre<strong>do</strong>minante no mun<strong>do</strong> (At 17.6).<br />
Observamos apenas alguns pontos da rica mensagem de Jeremias. Há<br />
muito mais a ser escava<strong>do</strong>. Há outras aplicações a serem salientadas. Convi<strong>do</strong><br />
você a mergulhar nesse livro e a descobrir por você mesmo a “profundidade<br />
da riqueza, tanto da sabe<strong>do</strong>ria como <strong>do</strong> conhecimento de Deus” (Rm 11.33).<br />
A ele, pois, a glória eternamente. Amém!<br />
Abstract<br />
In order to motivate a better understanding of the book of Jeremiah,<br />
usually undervalued in evangelical circles, this article presents a summary of<br />
the core aspects of its theological message. The text begins with a correlation<br />
between the prophet’s life and message, discussing concisely his prophetic call,<br />
his literary style, his reaction to being persecuted, his “confessions”, and the<br />
influences received during his preparation. Next, several features of the book’s<br />
theology are investigated, focusing on God’s sovereignty, his divine revelation<br />
through prophets, his indictment against his people, his call to repentance, the<br />
divine assurance of salvation, and his perpetual love for his people. The article<br />
concludes with some considerations on how to apply this message to the<br />
church’s life and to the individual Christian.<br />
Keywords<br />
Jeremiah; Prophetic call; Subversive message; Theocentric focus.<br />
57 Brueggemann, Theology, p. 184-186.<br />
58 Esse é um tema recorrente ao final <strong>do</strong>s artigos de Brueggemann reuni<strong>do</strong>s em seu livro Like<br />
Fire (p. 26-28,39-40,68-71,85,115,129-131,140,167,177,187-188,198,212) e no final <strong>do</strong> seu livro<br />
Theology (p. 195-196).<br />
31
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 33-44<br />
Catarina de Siena: Uma Contribuição Feminina<br />
ao Pensamento e à Espiritualidade Ocidental<br />
Elizabeth Gomes *<br />
Resumo<br />
A vida genial e a obra de Catarina de Siena marcam-na como simples<br />
mulher pie<strong>do</strong>sa que se tornou embaixatriz, conselheira e <strong>do</strong>utora da igreja,<br />
na tentativa de influenciar e reformar uma igreja corrupta, bem como uma<br />
política venal e torpe – de dentro para fora –, influencian<strong>do</strong> papas, prela<strong>do</strong>s,<br />
simples mulheres, frades e freiras discípulos, reis e vassalos da Europa medieval.<br />
Manten<strong>do</strong>-se dentro da igreja romana, ela reconhecia algumas das<br />
suas heresias e buscava uma fé arrependida da parte daqueles que estavam no<br />
poder. Foi a mulher que mais marcou sua época e sua história, por amor <strong>do</strong><br />
“sangue de Cristo”.<br />
Palavras-chave<br />
Catarina de Siena; Igreja Católica; Paixão por Cristo; Varonilidade;<br />
Comunhão; Chama<strong>do</strong>; Mãe.<br />
Introdução<br />
Por que uma pessoa de visão protestante e reformada escolheria uma<br />
santa da Igreja Católica Romana como tema de estu<strong>do</strong>? O que a curta vida<br />
de uma contemplativa teria a ver com mulheres e homens <strong>do</strong> século 21 que<br />
queiram discernir e impactar a igreja cristã, bem como o mun<strong>do</strong> tenebroso<br />
em que estão inseri<strong>do</strong>s?<br />
Comecei a pesquisar biografias de mulheres que tiveram influência positiva<br />
sobre a vida da igreja desde seu início, quan<strong>do</strong> Jesus foi segui<strong>do</strong> e auxilia<strong>do</strong><br />
* Formada no <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong> com o grau de Magister<br />
Divinitatis (M.Div.) na área de Filosofia e Teologia. Autora e tradutora de muitos livros.<br />
33
Elizabeth Gomes, Catarina de Siena<br />
“também por algumas mulheres” (Lc 8.2-3). 1 Pretendia procurar exemplos de<br />
mulheres de quatro épocas diferentes e mostrar o que as caracterizava e as diferenciava<br />
<strong>do</strong>s milhares de segui<strong>do</strong>res de Jesus Cristo. Cogitei de uma pessoa<br />
da era patrística, uma da era medieval, uma da Reforma e uma <strong>do</strong>s tempos<br />
atuais. Contu<strong>do</strong>, o material ficou tão extenso que não caberia em um livro de<br />
quinhentas laudas, quanto mais em um breve artigo. Porque sempre imaginei<br />
a Idade Média como uma época de trevas e as suas mulheres como de pouca<br />
ou nenhuma ação, e ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> surpresa por saber que duas delas foram<br />
designadas pelos papas como “<strong>do</strong>utoras da igreja”, fiquei de escolher entre as<br />
figuras medievais de Hildegarda de Bingen e Catarina de Siena. Novamente<br />
surpreendida pela riqueza dessas vidas dedicadas ao Senhor, tive de delimitar<br />
ainda mais o assunto – e escolhi a que menos se parecia com as mulheres de<br />
destaque <strong>do</strong> século atual.<br />
Diz a historia<strong>do</strong>ra eclesiástica Mary Malone:<br />
Jamais houve época na história cristã em que as mulheres não estivessem fisicamente<br />
presentes – to<strong>do</strong>s... estiveram envolvi<strong>do</strong>s com mulheres, essencialmente<br />
como mães e <strong>do</strong>a<strong>do</strong>ras de vida... como esposas, amantes, mentoras, mestras, e,<br />
ocasionalmente, amigas. A autoidentidade de to<strong>do</strong> líder cristão masculino foi<br />
formada contra o pano de fun<strong>do</strong> das mulheres invisíveis e silentes que tornaram<br />
possíveis suas vidas públicas. 2<br />
É intrigante a história de mulheres cristãs que contribuíram para a formação<br />
<strong>do</strong> pensamento filosófico ocidental num mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo gênero<br />
masculino. Essa história é valiosa para oferecer aos estudantes de teologia<br />
filosófica e aos leitores em geral um respal<strong>do</strong> para reflexão e produção literária<br />
e acadêmica que vise maior compreensão da ética entendida e vivenciada por<br />
mulheres cristãs.<br />
O presente artigo responde três perguntas sobre esta pensa<strong>do</strong>ra: 1) Qual o<br />
impacto da mulher cristã no mun<strong>do</strong> em que está inserida? 2) Quais os empecilhos<br />
que ela precisa sobrepujar devi<strong>do</strong> a seu gênero? 3) Quais as contribuições<br />
singulares, ligadas ou devidas a sua condição de mulher, diferentes daquelas<br />
de pensa<strong>do</strong>res masculinos?<br />
Em 25 de março de 1347, nasceu Catarina, 23ª filha de Jacopo e Lapa<br />
Benincasa, ten<strong>do</strong> uma irmã gêmea que morreu ao nascer. Na movimentada<br />
casa de um tingi<strong>do</strong>r de peles e teci<strong>do</strong>s, aos seis anos de idade, Catarina teve<br />
sua primeira visão (de Cristo em vestes sacer<strong>do</strong>tais, acima da igreja de São<br />
Domingos). Inspirada pelo anseio de imitar os Pais <strong>do</strong> Deserto, Catarina<br />
1 GOMES, Elizabeth. Mulheres no espelho. Belo Horizonte: Editora Betânia, 1996, p. 90.<br />
2 MALONE, Mary. Women and Christianity. Vol. I: The First Thousand Years. Nova York: Orbis,<br />
<strong>20</strong>01.<br />
34
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 33-44<br />
iniciou a prática de muitas penitências, fazen<strong>do</strong>, aos sete anos, voto de perpétua<br />
virgindade.<br />
Em sua casa, tais práticas ascéticas eram condenadas. Seus pais e irmãos<br />
queriam que a bela moça de longos cabelos loiros se arrumasse bem e arranjasse<br />
um bom casamento – solução pragmática para toda moça de família grande<br />
com precários recursos financeiros. Forçada aos trabalhos caseiros comuns a<br />
toda mulher, aos 16 anos de idade (1363-1364) Catarina se tornou terciária<br />
<strong>do</strong>minicana, recolhen<strong>do</strong>-se em sua própria casa. 3 Com a morte <strong>do</strong> pai em<br />
1368, a família perdeu to<strong>do</strong>s os bens, ainda que Catarina conseguisse manter<br />
a residência familiar na qual cui<strong>do</strong>u de sua mãe, Lapa, até o final da sua vida.<br />
Dominavam a Idade Média <strong>do</strong>is grandes ideais de unidade – um romano<br />
e outro de origem cristã. As hordas de bárbaros tinham si<strong>do</strong> reduzidas e<br />
disciplinadas, e na Europa Ocidental havia alguma percepção de comunhão<br />
humana. A energia da mente de Catarina estava em constante crescimento e<br />
ela escrevia longas e carinhosas cartas de conselho espiritual a discípulos de<br />
perto e de longe. Sua correspondência política – tensa, nervosa, viril, respiran<strong>do</strong><br />
vibrante paixão e força indicativas de um coração que se quebrava – também<br />
crescia. A base <strong>do</strong>utrinária de Catarina sempre foi a Igreja, corpo místico de<br />
Cristo. Denunciou as faltas e deficiências <strong>do</strong>s poderosos, mostran<strong>do</strong>-se deferente<br />
diante da autoridade legítima da igreja universal, que ela entendia como romana,<br />
queren<strong>do</strong> preservar, purificar e orientar essa Santa Chiesa para o bem de to<strong>do</strong>s.<br />
Viajou, acompanhada de frei Raimun<strong>do</strong> de Cápua, a Pisa, a Florença,<br />
à França e a Roma. A partir de 1374, quan<strong>do</strong> foi enviada de Florença como<br />
embaixatriz a Avinhão, com apenas <strong>do</strong>is breves intervalos, ela viveu a vida<br />
de uma atarefada woman of affairs (mulher de grandes realizações). Sua paixão<br />
espiritual sofria pela disparidade entre o sinal e o que é significa<strong>do</strong>, e ela<br />
dedicou to<strong>do</strong>s os seus esforços para restaurar e purificar esse sinal – a igreja<br />
universal de Cristo.<br />
Catarina confrontava uma igreja conformada com a imagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
A volta <strong>do</strong>s papas de Avinhão para Roma não resultou, como ela esperava, na<br />
pacificação da cristandade nem na reforma da igreja. Catarina viveu e morreu<br />
na visão da comunhão da humanidade em nome de Cristo.<br />
1. ministran<strong>do</strong> aos carentes<br />
“Em obediência aos mandamentos de Deus e impelida por seu amor<br />
aos homens”, Catarina ministrava aos necessita<strong>do</strong>s. Ela buscava servir os<br />
prisioneiros, os pobres e <strong>do</strong>entes, as vítimas da peste (que entre 1374 e 1400<br />
matou mais de 350 milhões de pessoas na Europa – entre 30 e 60% de toda a<br />
3 Frei Josaphat diz que ela foi “leiga mantelata”, não ligada a qualquer regra ou superior.<br />
JOSAPHAT, Carlos. As santas <strong>do</strong>utoras: espiritualidade e emancipação da mulher. São Paulo: Paulus,<br />
<strong>20</strong>05.<br />
35
Elizabeth Gomes, Catarina de Siena<br />
população). Um terço da população de Siena foi dizima<strong>do</strong>. Entre as vítimas<br />
de sua cidade, morreram <strong>do</strong>is irmãos dela e oito sobrinhos. Contam que, num<br />
episódio extremo, Catarina pôs os lábios na ferida cancerosa de um paciente<br />
no hospital como um ato de contato direto com as chagas de Cristo. 4<br />
A uma humilde sobrinha que entrara no convento e estava desanimada<br />
da vida, ela escreveu:<br />
Desejo ver-te nutrida <strong>do</strong> alimento angélico, pois de outra feita não poderias ser<br />
verdadeira noiva de Cristo crucifica<strong>do</strong>, consagrada a ele pela religião verdadeira.<br />
Não vás desperdiçan<strong>do</strong> teu tempo. Banha-te, inunda-te no <strong>do</strong>ce sangue<br />
de teu noivo... sê firme e madura em ti mesma; serve as irmãs com ternura e<br />
toda vigilância... cuida<strong>do</strong> para não prender teu coração a ninguém senão Cristo<br />
crucifica<strong>do</strong>...<br />
A um secretário deprimi<strong>do</strong> por haver peca<strong>do</strong> e questionan<strong>do</strong> sua fé, temeroso<br />
de ter perdi<strong>do</strong> a salvação, escreveu:<br />
Desejo que a confusão de tua alma seja consumida e desapareça na esperança <strong>do</strong><br />
Sangue e no fogo <strong>do</strong> amor imensurável de Deus, e que nada permaneça salvo o<br />
verdadeiro conhecimento de ti mesmo, em que tu te humilhas, cresces e nutres<br />
a luz em tua alma. Não estará Ele mais disposto a per<strong>do</strong>ar <strong>do</strong> que mesmo nós a<br />
pecar? Não é Ele o Media<strong>do</strong>r e nós o <strong>do</strong>ente? Ele não considera a confusão da<br />
mente pior <strong>do</strong> que todas as demais falhas?... Sen<strong>do</strong> assim, queri<strong>do</strong> filho, abre<br />
os olhos de teu intelecto à luz da mais santa fé e considera o quanto és ama<strong>do</strong><br />
por Deus... Tu sabes que a confusão discorda totalmente da <strong>do</strong>utrina que te<br />
foi dada. É lepra que seca alma e corpo... dispon<strong>do</strong> a mente aos conflitos e<br />
variadas fantasias, furtan<strong>do</strong> a luz sobrenatural da alma, obscurecen<strong>do</strong> sua luz<br />
natural... Ele nos criou na verdade a fim de nos dar a vida eterna. Que o diabo<br />
da confusão seja venci<strong>do</strong>! Retorna ao mar de paz onde jamais terás me<strong>do</strong> de<br />
separar-te de Deus... vive morto para a vontade própria e nesta morte ganharás<br />
a virtude. Conforta-te em que nenhuma pessoa se perderá das mãos de Cristo,<br />
pois tu<strong>do</strong> é dele. 5<br />
À medida que se espalhavam notícias sobre as visões de Catarina, as<br />
pessoas vinham vê-la em seus transes. Entre tais êxtases, em disposições de<br />
caloroso bom-senso terreno, ela resolvia querelas civis, converten<strong>do</strong> notórios<br />
cafajestes à penitência e fé. 6 Adquiriu fama e discípulos que a veneravam,<br />
chaman<strong>do</strong>-a de “mãe”, como, disse ela, “a mãe traz o filho ao peito”.<br />
4 TUCHMAN, Barbara. A Distant Mirror: The Calamitous 14th Century. Nova York: Ballentine,<br />
1978, p. 323-328.<br />
5 A Neri de Lan<strong>do</strong>ccio dei Pagliaresi. In: Letters of Catherine Benincasa (loc. 1105), Kindle<br />
books on-line.<br />
6 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 325.<br />
36
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 33-44<br />
2. ministran<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> político<br />
A partir de 1370, Catarina aumentou sua participação na vida pública,<br />
exortan<strong>do</strong> governantes, prela<strong>do</strong>s, conselhos de cidades e indivíduos em cartas<br />
de orientação política e espiritual. Nessa época, ela “morre misticamente” e<br />
recebe a ordem de ir pelo mun<strong>do</strong> salvan<strong>do</strong> as almas. Raimun<strong>do</strong> de Cápua conta<br />
que Catarina ouviu as seguintes palavras de Deus:<br />
A salvação <strong>do</strong>s homens exige que tu voltes à vida. Mas não viverás mais como<br />
até agora. O pequeno quarto não será mais tua costumeira moradia; pelo contrário,<br />
para a salvação das almas deverás sair de tua cidade. Estarei contigo na<br />
ida e na volta. Levarás o louvor <strong>do</strong> meu nome e a minha mensagem a pequenos<br />
e grandes, a leigos, clérigos e religiosos. Colocarei em tua boca uma sabe<strong>do</strong>ria,<br />
a qual ninguém poderá resistir. Conduzir-te-ei diante de papas, de bispos e de<br />
governantes <strong>do</strong> povo cristão a fim de que por meio <strong>do</strong>s fracos, como é <strong>do</strong> meu<br />
feitio, eu humilhe a soberba <strong>do</strong>s fortes. 7<br />
2.1 Embaixatriz, reforma<strong>do</strong>ra<br />
Florença comissionou-a como embaixa<strong>do</strong>ra para negociar a reconciliação<br />
com o papa e a remoção <strong>do</strong> interdito. 8 Contu<strong>do</strong>, para Catarina, sua maior<br />
missão era o apostola<strong>do</strong> para toda a humanidade, por meio de sua própria incorporação<br />
com Deus e Jesus, mediante uma purificação e renovação da Igreja.<br />
Ela insistia com o papa Gregório XI (1370-1378), a quem chamava de<br />
<strong>do</strong>lce babbo mio, para que ele começasse a reforma, designan<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>tes<br />
dignos, pacifican<strong>do</strong> a Itália não por meio de armas, mas com misericórdia e<br />
perdão, voltan<strong>do</strong> a Roma não com uma guarda armada e espada, mas com a<br />
cruz na mão como o Bendito Cordeiro, “pois me parece que a Bondade divina<br />
está preparan<strong>do</strong> para transformar os lobos furiosos em cordeiros... e os trará,<br />
humildes, ao vosso seio... Ó Pai, paz, por amor de Deus!” 9<br />
A própria Catarina não foi desobediente, consideran<strong>do</strong> seu fundamento<br />
a igreja de Roma, o papa<strong>do</strong>, o sacerdócio, a ordem <strong>do</strong>minicana, seu lar e sua<br />
santidade. Ela repreendia de dentro <strong>do</strong> aprisco.<br />
A sua autoridade era a voz de Deus falan<strong>do</strong> diretamente a ela, preservada<br />
no Diálogo, que foi dita<strong>do</strong> aos seus secretários-discípulos, os quais creram<br />
que foram da<strong>do</strong>s “pessoalmente por Deus o Pai, que falou segun<strong>do</strong> a mente<br />
da gloriosa e santa virgem Catarina de Sena... estan<strong>do</strong> ela em transe e ouvin<strong>do</strong><br />
a voz real de Deus falan<strong>do</strong> com ela”. 10<br />
7 Raimun<strong>do</strong> de Cápua, Biografia de Santa Catarina de Sena, livro III, cap. 1, cita<strong>do</strong> em<br />
Catarina de Siena, O Diálogo. Trad. João Alves Basílio. São Paulo: Paulus, <strong>20</strong>08, p. 7.<br />
8 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 325.<br />
9 Carta nº X.<br />
10 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 324.<br />
37
Elizabeth Gomes, Catarina de Siena<br />
2.2 Promotora de cruzadas<br />
As cruzadas eram o sonho de espalhar a fé por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, desvian<strong>do</strong><br />
a atenção das constantes guerras entre ingleses e franceses, e entre os diversos<br />
reinos italianos, unin<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s contra inimigos comuns – muçulmanos e<br />
judeus. Catarina convenceu o Papa Gregório XI a declarar uma cruzada em<br />
1373. Em todas as cartas de seu pontifica<strong>do</strong>, Gregório via as cruzadas não só<br />
como guerra defensiva contra os turcos, mas como meio de reconciliação entre<br />
França e Inglaterra, e esvaziamento <strong>do</strong>s mercenários da Europa.<br />
2.3 Conselheira <strong>do</strong> supremo pontífice<br />
Catarina travou conhecimento com frei Raimun<strong>do</strong> de Cápua, um nobre<br />
de grande cultura e futuro geral da Ordem Dominicana, que se tornou seu confessor<br />
e biógrafo. Cápua foi intérprete de Catarina quan<strong>do</strong> em Roma, porque<br />
ela falava somente a língua toscana e o papa, francês e latim.<br />
Em 1376, Catarina foi a Florença e de lá foi enviada por Gregório XI<br />
a Avinhão como representante para negociar a paz entre os <strong>do</strong>is papa<strong>do</strong>s.<br />
Em Avinhão seus objetivos foram converter os chefes e líderes e trazê-los à<br />
obediência, bem como converter o papa e os cardeais e colocá-los a serviço <strong>do</strong>s<br />
fiéis e <strong>do</strong> conjunto da população. Catarina sentia-se oprimida pela atmosfera<br />
de sensualidade daquela cidade. O “fe<strong>do</strong>r <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>”, bem como a curiosidade<br />
das grandes damas, que cutucavam e beliscavam seu corpo a fim de testar os<br />
êxtases depois da eucaristia, 11 muito a afligiam, mas ela estava determinada a<br />
cumprir sua missão no mun<strong>do</strong>.<br />
Em The Outline of History, H. G. Wells comenta que, enquanto a igreja<br />
<strong>do</strong> século 13 estendeu seu poder legal no mun<strong>do</strong>, perdeu o pulso sobre a consciência<br />
<strong>do</strong>s homens, tornan<strong>do</strong>-se menos persuasiva e mais violenta. Em to<strong>do</strong> o<br />
século 14, o papa<strong>do</strong> nada fez para recuperar seu poder moral – pelo contrário.<br />
Clemente V foi escolhi<strong>do</strong> pelo rei Filipe IV da França e estabeleceu a corte<br />
em Avinhão, onde, com seus maus hábitos e associações francesas, to<strong>do</strong>s os<br />
papas permaneceram até 1377, com Gregório XI. 12 Isso chegou ao fim pela<br />
influência dessa simples mulher, Catarina de Siena, que convenceu o papa a<br />
voltar para Roma.<br />
O rei Carlos V e os cardeais franceses não queriam que o papa retornasse<br />
para Roma, e tentaram dissuadir Gregório, mas Catarina deu-lhe forças para<br />
resistir às pressões. Quan<strong>do</strong> Roma prometeu submissão se ele voltasse, o papa<br />
não mais pôde adiar a sua volta. Seu próprio pai, o Conde Guilherme de Beaufort,<br />
jogou-se ao chão imploran<strong>do</strong> que ficasse, mas Gregório pisou sobre ele,<br />
citan<strong>do</strong> o Salmo 91.13 (“Pisarás a áspide e o basilisco”), entran<strong>do</strong> na cidade<br />
11 Ibid., p. 326.<br />
12 WELLS, H. G. The Outline of History. Nova York: Macmillan, 1921, p. 662-665.<br />
38
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 33-44<br />
eterna em janeiro de 1377. Foi curta a sua estada em Roma, pois Gregório<br />
morreu em março de 1378.<br />
A Igreja se tornara dependente <strong>do</strong> sistema financeiro desenvolvi<strong>do</strong> durante<br />
o exílio em Avinhão, centro comercial da França, onde o próprio papa, bem<br />
como os lideres da igreja, tinham inúmeras transações comerciais. Apesar de<br />
reconhecer a necessidade de reforma, a hierarquia resistia a ela fortemente.<br />
Se o papa a tentasse, os prela<strong>do</strong>s resistiriam e a igreja estaria dividida como se<br />
fosse pestilência de hereges.<br />
Com a morte de Gregório XI em 1378, foi eleito o italiano Bartolomeo<br />
Prignano, arcebispo de Bari, que se tornou o papa Urbano VI. Totalmente<br />
desprepara<strong>do</strong> para o trono papal, Urbano foi transforma<strong>do</strong> em implacável flagelo<br />
da simonia – menos movi<strong>do</strong> por zelo religioso <strong>do</strong> que por simples ódio e<br />
inveja de privilégios. Repreendia publicamente os cardeais por se ausentarem,<br />
viverem vidas de luxúria e lascívia, e aceitarem dinheiro e outros favores das<br />
fontes seculares. Proibiu vender ou obter benefícios e ordenou ao tesoureiro<br />
papal que não lhes pagasse a metade <strong>do</strong> dinheiro <strong>do</strong>s benefícios usuais e, sim,<br />
utilizasse esse dinheiro para a restauração das igrejas de Roma. Tratava-os<br />
sem tato ou dignidade, seu rosto fican<strong>do</strong> roxo e a voz rouca de fúria, gritan<strong>do</strong><br />
invectivas de baixo calão e dizen<strong>do</strong> “Cala a boca” aos mais antigos cardeais.<br />
Estes, que o haviam eleito com a esperança de continuar o próprio <strong>do</strong>mínio<br />
corrupto e poderoso, agora procuravam removê-lo.<br />
A reação de Catarina ante a impiedade fez com que ela exclamasse:<br />
Infelizes homens! Vós que vos nutris no seio da Igreja, como flores de seu jardim,<br />
para exalar o <strong>do</strong>ce perfume, sen<strong>do</strong> pilares <strong>do</strong> Vigário de Cristo... lâmpadas para<br />
iluminar o mun<strong>do</strong> e difundir a fé... vós que fostes anjos sobre a terra, virastes<br />
para o caminho <strong>do</strong> diabo... o veneno <strong>do</strong> egoísmo destrói o mun<strong>do</strong>!<br />
Como ser útil à Igreja e ao mun<strong>do</strong>? Catarina acreditava que: (a) Não se<br />
devia confiar nas ações e penitências externas, mas sim no amor e na contrição,<br />
na força infinita da graça e no “infinito desejo que ela suscita”. (b) Tinha<br />
consciência de que to<strong>do</strong> peca<strong>do</strong> e toda virtude tem uma dimensão pessoal e<br />
uma dimensão comunitária, social. Visam a Deus e ao próximo, à Igreja e ao<br />
mun<strong>do</strong>. (c) É preciso viver no conhecimento de si e de Deus, na humildade e<br />
caridade, na discrição que é a virtude <strong>do</strong> verdadeiro discernimento <strong>do</strong> bem<br />
a fazer aqui e agora. 13<br />
3. analfabeta e escritora genial<br />
De 1370-1374 cresceram a reputação e influência de Catarina. Ela fez<br />
muitos discípulos, desenvolven<strong>do</strong> uma extensa correspondência que a tornou<br />
13 RAIMUNDO DE CÁPUA, Biografia de Catarina de Sena, p. 53-54.<br />
39
Elizabeth Gomes, Catarina de Siena<br />
conhecida como pacifica<strong>do</strong>ra. Sua correspondência era feita com o auxílio de<br />
diversos amanuenses, pois ela só aprendeu a escrever – e atribuiu isso a um<br />
milagre – perto <strong>do</strong> final de sua vida. Outra versão da história diz que foi ensinada<br />
a ler aos <strong>20</strong> anos de idade por uma irmã <strong>do</strong>minicana de nobre estirpe. Quanto<br />
mais Catarina avançava na mística, conforme diz Carlos Josaphat, tanto mais<br />
se fazia presente na política, ditan<strong>do</strong> diretivas para o papa e para os chefes de<br />
diversas cidades, reinos e principa<strong>do</strong>s.<br />
Suas cartas transmitem um profun<strong>do</strong> amor a Deus e ao próximo, e sábia<br />
perspicácia de mente. São conhecidas 381 cartas, sen<strong>do</strong> dentre elas 23 escritas<br />
a papas, 13 a reis e rainhas e 38 a diversos governantes, bem como 16 a<br />
membros de sua família. Por mais respeitosa que fosse, Catarina não poupava<br />
palavras quanto aos erros daqueles que desejava salvar.<br />
4. êxtases, misticismo e orações<br />
Seu estilo incomum de vida e seus constantes êxtases provocaram muitas<br />
suspeitas. Teve voz insistente e segui<strong>do</strong>res ardentes, sen<strong>do</strong> reverenciada pela<br />
experiência desses êxtases e por dizer ter recebi<strong>do</strong> os stigmata das cinco feridas<br />
de Cristo sobre as mãos, os pés e o coração (visíveis somente para ela).<br />
A visão católica da Igreja como noiva de Cristo é contrária à visão bíblica<br />
protestante: ela não enxerga o sacerdócio universal de to<strong>do</strong>s os crentes, nem o<br />
leigo como parte da Igreja, e sim, somente as mulheres que juraram celibato –<br />
freiras, monjas e mantelatas ou beguinas – próximas ao clero (que são apenas<br />
os sacer<strong>do</strong>tes e frades). Mulheres santas e separadas, preferivelmente virgens<br />
(se bem que havia viúvas ou mulheres que abdicaram de vida de casada) seriam<br />
as únicas noivas de Cristo.<br />
Catarina afirmava que Cristo confirmou o seu noiva<strong>do</strong>:<br />
“não com um anel de prata, mas com um anel de sua própria santa carne, tirada<br />
quan<strong>do</strong> ele foi circuncida<strong>do</strong> como infante”. Jesus a tomou como noiva numa<br />
cerimônia oficiada por sua santa Mãe, assistida por São João, São Paulo e São<br />
Domingos, sen<strong>do</strong> o rei Davi o instrumentista que tocou a música da harpa. 14<br />
Não obstante as viagens fantásticas indicadas por histórias como esta,<br />
Catarina teve algumas percepções sábias quanto às implicações de ser noiva/<br />
esposa de Cristo: coração largo por pensamentos e imaginações santas e oração,<br />
estreito para com as coisas da terra. Na sua carta a Nanna, uma sobrinha<br />
que entrara no convento, escreveu:<br />
Para ser noiva de Cristo é necessário possuir lâmpada, azeite e luz. A lâmpada<br />
é nosso coração... largo em cima, por pensamentos e imaginações santas e<br />
14 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 324.<br />
40
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 33-44<br />
oração contínua. Abaixo, a lâmpada é estreita para com as coisas terrenas – não<br />
as aman<strong>do</strong> ou desejan<strong>do</strong>-as com extravagância, mas sempre grata a Deus por<br />
tu<strong>do</strong> que ele provê. Essa lâmpada não serviria se não tivesse o azeite, a <strong>do</strong>ce<br />
virtude da humildade e paciência, ten<strong>do</strong> verdadeiro conhecimento próprio,<br />
saben<strong>do</strong> de nossas fraquezas e permanecen<strong>do</strong> a memória no conhecimento da<br />
bondade de Deus... 15<br />
Questionamos a veracidade <strong>do</strong>s êxtases de Catarina, mas não podemos<br />
negar seu la<strong>do</strong> prático e consciente de intervir na política e vida social vigente,<br />
de mo<strong>do</strong> a trazer algum senso de realidade de vida cristã e salvar o mun<strong>do</strong><br />
conturba<strong>do</strong> em que vivia.<br />
Catarina se colocou em pé de igualdade com as humildes freiras contemplativas,<br />
ao mesmo tempo em que se provava mulher de grande dinamismo.<br />
Ambas as experiências estavam relacionadas a algo mais profun<strong>do</strong>: sua alma<br />
tinha sede <strong>do</strong> infinito. Bem sabia que nem em obras nem em êxtase ascético,<br />
mas tão somente no “desejo santo”, na vida de aspiração incessante coram<br />
Deo, é que seu coração era completamente quebranta<strong>do</strong>, até o dia em que<br />
declarou: “Ó Deus, recebei o sacrifício de minha vida neste corpo místico da<br />
Santa igreja. Nada tenho para dar, salvo o que vós me destes. Tomai, portanto,<br />
esse meu coração, e imprimi-o sobre a face de vossa Esposa”. 16 Morreu “de<br />
coração quebra<strong>do</strong>”, aos 33 anos.<br />
conclusão<br />
Catarina intervém, denuncia, suplica e exige em nome <strong>do</strong> evangelho,<br />
apelan<strong>do</strong> sempre para o “sangue de Cristo”. 17 Tem consciência de sua missão<br />
reforma<strong>do</strong>ra e da realização mediante os “seus” – aqueles “que o Pai lhe deu”,<br />
em clara referência à expressão usada por Jesus em João 17.<br />
Uma afirmação constante de Catarina era “Sê homem!”, que dizia ao<br />
papa, a monges e freiras, a parentes e a políticos diversos. A “varonilidade de<br />
Cristo” era seu desejo – e tal expressão não estava ligada a qualquer ênfase<br />
de gênero masculino (ela mesma queria portar-se “varonilmente”), e sim à<br />
condição “de ser humano de caráter, verdade e confiabilidade”. Assim foi que<br />
Catarina escreveu a Urbano VI em 1380:<br />
Portai-vos varonilmente para mim, no santo temor de Deus. Sede totalmente<br />
exemplar em palavras, hábitos e ações. Que tu<strong>do</strong> seja visto claramente à luz de<br />
Deus e <strong>do</strong>s homens, como luz colocada no castiçal da Santa Igreja, para a qual<br />
to<strong>do</strong>s os povos cristãos observam e devem olhar.<br />
15 Catarina de Siena, Letter to Nanna, niece in Florence (loc. 669).<br />
16 CATARINA DE SENA, Orações, p. 99.<br />
17 JOSAPHAT, As santas <strong>do</strong>utoras, p. 39.<br />
41
Elizabeth Gomes, Catarina de Siena<br />
O desânimo entre os clérigos produziria na próxima geração o grande<br />
“herege” John Wycliffe e na seguinte Jan Hus, 18 até que, um século depois,<br />
outro <strong>do</strong>minicano sairia <strong>do</strong> “aprisco de lobos romanos”, promulgan<strong>do</strong> e sen<strong>do</strong><br />
o instrumento de uma reforma total em bases verdadeiras – Martinho Lutero.<br />
Teria si<strong>do</strong> diferente caso Catarina fosse homem? Parece que sua “fragilidade<br />
feminina” era um elemento a seu favor, pois<br />
Deus escolheu as coisas loucas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para envergonhar os sábios e escolheu<br />
as coisas fracas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para envergonhar as fortes, e Deus escolheu as coisas<br />
humildes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e as desprezadas e aquelas que não são, para reduzir a nada as<br />
que são, a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus (1Co 1.27-29).<br />
A constante tradição bíblica mostra Deus escolhen<strong>do</strong> os fracos para confundir<br />
os fortes, e cada [mulher assim escolhida por Deus] enuncia sua convicção de<br />
que primeiro importa obedecer a Deus <strong>do</strong> que os homens [At 5.<strong>20</strong>]. A substância<br />
da experiência mística dessa mulher se concentra numa vida de amor a Deus e<br />
compaixão pelo ser humano. 19<br />
Se pertencesse ao gênero masculino, talvez ela não tivesse desenvolvi<strong>do</strong><br />
a atitude maternal demonstrada tanto aos seus discípulos na vida restrita de<br />
Siena quanto nos interesses públicos <strong>do</strong>s poderosos da terra. Catarina via<br />
ambas essas escolas como importantes, por serem escolas de caráter designadas<br />
por Deus. Cumpriu fielmente sua “missão de mãe” (1Tm 2.15). Mesmo que<br />
tal atitude fosse possível a homens de Deus (Paulo se refere aos seus filhos<br />
espirituais como “meus filhos por quem de novo sofro as <strong>do</strong>res de parto, até<br />
ser Cristo forma<strong>do</strong> em vós” – Gl 4.19), isso não era cultural ou socialmente<br />
viável aos homens <strong>do</strong> século 14.<br />
O conteú<strong>do</strong> filosófico e o argumento da obra de Catarina eram preocupações<br />
tipicamente excluídas pelo modelo <strong>do</strong>minante masculino da filosofia<br />
moral: cuida<strong>do</strong>s, emoção, relacionamentos e o ser relacional contextualiza<strong>do</strong>.<br />
O mun<strong>do</strong> e a igreja – que, em vez de influenciar o mun<strong>do</strong> para o bem, estava<br />
vendida ao príncipe <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – não eram paradigmas <strong>do</strong> Sumo Bem. Catarina<br />
foi aceita no século 14 como uma Débora <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong>s juízes de Israel, que<br />
teve de sacudir Baraque de sua letargia e timidez (Juízes 4 e 5), ou Ester, numa<br />
corte de ímpios (“quem sabe se para conjetura como esta é que foste elevada a<br />
rainha?” – Et 4.14). A “não rainha” Catarina foi respeitada como realeza pelo<br />
mun<strong>do</strong> de sua época. O fato de ela ser mulher dava ânimo aos que se sentiam<br />
enfraqueci<strong>do</strong>s e desarmava os que queriam se impor. Edmund Gardner exprime<br />
bem a impressão que temos dessa vida singular:<br />
18 TUCHMAN, A Distant Mirror, p. 328.<br />
19 MALONE, Women and Christianity, v. II, p. 101.<br />
42
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 33-44<br />
A Catarina foram da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>ns mais raros <strong>do</strong> que a apaixonada fome e sede de<br />
justiça, um discernimento de espírito e intuição tão veloz e infalível que os<br />
homens achavam-na milagrosa... personalidade tão irresistível que homem nem<br />
mulher conseguia resisti-la. Possuía uma sabe<strong>do</strong>ria simples, não ensinada, que<br />
confundia as artes e sutilezas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e com essas, uma fala tão <strong>do</strong>urada, tão<br />
prenhe de eloquência... que suas palavras, quer escritas, quer faladas, faziam os<br />
corações arder quan<strong>do</strong> vinham as suas mensagens. <strong>20</strong><br />
Não há dúvida de que em Catarina estamos diante de um <strong>do</strong>s gênios da<br />
era medieval, que teve a habilidade de despertar a in<strong>do</strong>lência de Gregório XI<br />
e sacudir a imponência de Urbano 21 com uma cartinha para destacar a moral<br />
da história:<br />
Mitigai um pouco, por amor de Cristo crucifica<strong>do</strong>, esses impulsos repentinos<br />
que a natureza força sobre vós. Em santa virtude, jogai fora a natureza a<br />
fim de torná-la sobrenaturalmente grande... estabelecei varonilmente vosso<br />
coração... 22<br />
Apesar de seu ideal de perfeição e santidade desde menina, Catarina conhecia<br />
a si mesma, seu peca<strong>do</strong>, sua miséria – saben<strong>do</strong> que, não fosse a graça<br />
e misericórdia divina, ela teria os mesmos peca<strong>do</strong>s, ou piores, que aqueles<br />
de seu tempo. Sua igreja era cristã – mas apostatava por desconhecer as Escrituras<br />
e acrescentar a elas as tradições e os ensinos humanos. Catarina cria<br />
piamente nos ensinos clássicos da igreja romana, e daí muitos de seus conceitos<br />
eram permea<strong>do</strong>s de <strong>do</strong>utrinas que os protestantes consideram espúrias,<br />
principalmente a ênfase na eucaristia como repetição constante <strong>do</strong> sacrifício de<br />
Cristo, ao contrário <strong>do</strong> que ensina a carta aos Hebreus; no papa como vigário<br />
de Cristo na terra desde São Pedro e no acréscimo de obras para “merecer a<br />
graça”, contrarian<strong>do</strong> o que ensina Efésios 2. Iriam se passar quase <strong>20</strong>0 anos<br />
antes que uma reforma verdadeira da igreja fosse realizada. Mas ela se dispôs<br />
“a começar em mim”. O estu<strong>do</strong> dessa santa da igreja romana – cuja ética não<br />
apenas conceitual, mas extremamente prática, influiu em to<strong>do</strong>s os aspectos da<br />
vida – deverá provocar em mulheres e homens cristãos reforma<strong>do</strong>s de nossa<br />
era uma disposição santa de pensar segun<strong>do</strong> Deus pensa, para agir conforme<br />
Deus quer.<br />
<strong>20</strong> GARDNER, Edmund G. Saint Catherine of Sienna. Hibbert Journal, p. 577.<br />
21 Com um presente, uma alegoria em forma de laranjas amargas, açucaradas por dentro para<br />
disfarçar o amargor, folheadas a ouro – belíssimas, mas intragáveis – confeccionadas pelas mãos da<br />
própria Catarina.<br />
22 Carta a Urbano VI. In: Letters of Catherine Benincasa, Kindle books on line, p. 568.<br />
43
Elizabeth Gomes, Catarina de Siena<br />
abstract<br />
Catherine of Siena’s outstanding life and work show how a simple, pious<br />
woman became an ambassa<strong>do</strong>r, counselor, and <strong>do</strong>ctor of the church as she<br />
attempted to influence and reform a corrupt ecclesiastical structure, as well<br />
as a venal and devious political system, from the inside out. She influenced<br />
popes, prelates, women, friars and nuns, kings and vassals in medieval Europe.<br />
Remaining inside the Roman church, she recognized some of its heresies and<br />
sought a repentant faith from those in power. She was the woman who made the<br />
strongest impact on her time and context, out of love for “the blood of Christ”.<br />
keywords<br />
Catherine of Siena; Catholic Church; Passion for Christ; Manliness;<br />
Fellowship; Calling; Mother.<br />
44
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz<br />
<strong>do</strong> Salmo 10: Uma Reflexão Devocional<br />
Hermisten Maia Pereira da Costa *<br />
resumo<br />
Consideran<strong>do</strong> o aparente sucesso <strong>do</strong> ímpio em seus atos de blasfêmia,<br />
arrogância, soberba e imoralidade, o salmista, numa atitude precipitada, sente-se<br />
inseguro em relação a Deus e aos acontecimentos que presencia. Partin<strong>do</strong> da<br />
conclusão madura <strong>do</strong> salmista, o artigo analisa como a ótica da fé é fundamental<br />
para crer em Deus e continuar cren<strong>do</strong> apesar de nossa visão imediata<br />
e precipitada da situação que nos circunda.<br />
palavras-chave<br />
Salmo 10; Impiedade; Ateísmo; Justiça de Deus; Paciência; Fé.<br />
introdução<br />
Conforme vimos em outro artigo, 1 to<strong>do</strong> conhecimento parte de um pré-<br />
-conhecimento que nos é forneci<strong>do</strong> por nossa condição ontologicamente finita<br />
e pelas circunstâncias temporais, geográficas, intelectuais e sociais dentro das<br />
quais construímos as nossas estruturas de conhecimento. Só existe possibilidade<br />
de conhecimento porque, entre outras coisas, antes de nós percebermos,<br />
há um objeto referente que, por existir, possibilita o conhecer. Deste mo<strong>do</strong>, o<br />
ser antecede ao sujeito que conhece e, portanto, ao próprio conhecer. Somente<br />
em Deus há a perfeita harmonia e coexistência entre o ser e o conhecer. Em<br />
nossa finitude, a essência precede à experiência. E esta modela a nossa visão<br />
* Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e <strong>do</strong> Seminário Rev. José Manoel da Conceição,<br />
em São Paulo. Integra a equipe pastoral da Primeira Igreja Presbiteriana em São Bernar<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
Campo (SP).<br />
1 COSTA, Hermisten M. P. A religião entre os gregos e o ateísmo prático à luz <strong>do</strong> Salmo 14. <strong>Fides</strong><br />
Reformata XVI-2 (<strong>20</strong>11), p. 119-149.<br />
45
Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Fazer uma inversão aqui seria algo avassala<strong>do</strong>r para a nossa epistemologia<br />
e, consequentemente para a nossa práxis.<br />
Somos em muitos senti<strong>do</strong>s parte de um produto cultural, filhos de uma<br />
geração com uma série de valores que determinam em grande parte as nossas<br />
pré-compreensões. Valen<strong>do</strong>-se de uma figura de Aristóteles (384-322 a.C.),<br />
Mohler faz uma aplicação interessante e elucidativa:<br />
A última criatura a quem você deveria perguntar como é se sentir molha<strong>do</strong><br />
é a um peixe, porque ele não faz ideia de que esteja molha<strong>do</strong>. Uma vez que<br />
nunca esteve seco, ele não tem um ponto de referência. Assim somos nós,<br />
quan<strong>do</strong> se trata de cultura. Somos como peixes no senti<strong>do</strong> de que não temos<br />
sequer a capacidade de reconhecer onde a nossa cultura nos influencia. Desde<br />
a época em que estávamos no berço, a cultura tem forma<strong>do</strong> nossas esperanças,<br />
perspectivas, sistemas de significa<strong>do</strong> e interpretação, e até mesmo nossos<br />
instrumentos intelectuais. 2<br />
Portanto, a realidade se mostra a nós com contornos próprios delinea<strong>do</strong>s<br />
não simplesmente pelo que ela é, mas, também, pelos nossos olhos que a enxergam<br />
e pinçam fragmentos desta realidade conferin<strong>do</strong>-lhes novas configurações<br />
com cores mais ou menos vivas, atribuin<strong>do</strong>-lhes valores muitas vezes<br />
bastante distintos <strong>do</strong>s reais.<br />
O Salmo 10 reflete a situação singular de uma sociedade onde o mal parece<br />
imperar: o descaso para com Deus, o desprezo para com a lei, a difamação,<br />
exploração, perseguição e destruição são moedas correntes. 3 Temos aqui uma<br />
descrição sumária da anatomia <strong>do</strong> coração e da mente humana sem Deus e<br />
algumas de suas implicações.<br />
Neste salmo nos deparamos com a perspectiva de um homem fiel, temente<br />
a Deus, mas que se angustiava com a aparente prosperidade <strong>do</strong> ímpio<br />
e os seus atos de extrema maldade. A situação tem <strong>do</strong>is aspectos confluentes<br />
que intensificavam a sua <strong>do</strong>r. À sua vista, o ímpio não enfrentava problemas;<br />
tu<strong>do</strong> lhe corria bem. Para agravar a situação, até Deus, de quem se espera<br />
uma atitude justa, parecia distante no momento em que o salmista mais sentia<br />
necessidade de sua presença prove<strong>do</strong>ra.<br />
Isto é expresso no primeiro verso: “Por que, Senhor, te conservas longe?<br />
E te escondes nas horas de tribulação?” (Sl 10.1). Vejamos, então, alguns<br />
aspectos desta descrição.<br />
2 MOHLER JR., Albert. Pregar com a cultura em mente. In: DEVER, Mark (Ed.). A pregação<br />
da cruz. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>10, p. 66. Lewis se vale parcialmente desta figura, argumentan<strong>do</strong>:<br />
“Nós nos sentimos molha<strong>do</strong>s, se cairmos na água, porque não somos animais aquáticos: um peixe não<br />
se sente molha<strong>do</strong>”. LEWIS, C. S. A essência <strong>do</strong> cristianismo autêntico. São Paulo: Aliança Bíblica<br />
Universitária, (s.d.), p. <strong>20</strong>-21.<br />
3 “Esta descrição representa, como num espelho, uma viva imagem de um esta<strong>do</strong> amplamente<br />
corrupto e caótico da sociedade”. CALVINO, João. O Livro <strong>do</strong>s Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999,<br />
v. 1, p. <strong>20</strong>4 (Sl 10).<br />
46
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
1. a estrutura de pensamento e comportamento<br />
<strong>do</strong> ímpio<br />
À luz deste salmo, podemos dizer que toda a estrutura de pensamento <strong>do</strong><br />
ímpio parte de uma perspectiva errada a respeito de Deus. Uma falsa teologia<br />
nos conduz, invariavelmente, a uma visão defeituosa da realidade, a uma ética<br />
desfocada e, portanto, viciada. Analisemos alguns desses aspectos conforme<br />
o Salmo 10 nos mostra:<br />
1.1 Em relação a Deus<br />
1.1.1 Amaldiçoa e blasfema contra Deus<br />
“Pois o perverso se gloria da cobiça de sua alma, o avarento maldiz o<br />
Senhor e blasfema (nã’ats) contra ele” (Sl 10.3).<br />
O blasfemar (nã’ats) contra Deus aqui é o mesmo que desprezar, rejeitar,<br />
abominar conforme aparece no verso 13. O ímpio, quan<strong>do</strong> é bem-sucedi<strong>do</strong><br />
em seus maus caminhos, tende a a<strong>do</strong>tar a postura de blasfemar contra Deus,<br />
desprezá-lo em suas palavras e comportamento, maldizen<strong>do</strong> o nome de Deus, ou<br />
seja, a sua natureza santa e justa (Sl 74.10,18). 4 O blasfema<strong>do</strong>r toma a longanimidade<br />
de Deus como motivo para suas zombarias e leviandades. Ele se gloria<br />
em seus desejos pecaminosos e na capacidade de concretizá-los. “Seguro pelos<br />
sucessos externos, silencia prontamente a voz da consciência”. 5<br />
1.1.2 Ateísmo funcional irresponsável e propala<strong>do</strong><br />
“O perverso (rãshã’), na sua soberba, não investiga (dârash); que não<br />
há Deus são todas as suas cogitações (mezimmah)” (Sl 10.4).<br />
Este homem perverso (rãshã’) (versos 3, 4 e 15) é também chama<strong>do</strong> de<br />
ímpio (2,13) e malva<strong>do</strong> (15). Aqui temos um ateísmo funcional ou prático. 6 O<br />
ímpio descrito não está interessa<strong>do</strong> em investigar a questão da existência ou<br />
4 “Até quan<strong>do</strong>, ó Deus, o adversário nos afrontará? Acaso, blasfemará (nã’ats) o inimigo incessantemente<br />
o teu nome?” (Sl 74.10). “Lembra-te disto: o inimigo tem ultraja<strong>do</strong> ao Senhor, e um povo<br />
insensato tem blasfema<strong>do</strong> (nã’ats) o teu nome” (Sl 74.18).<br />
5 WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1994, p. 107. De mo<strong>do</strong> semelhante, Calvino<br />
escreve: “Os ímpios e perversos, se ven<strong>do</strong> intoxica<strong>do</strong>s com sua prosperidade, lançavam de si to<strong>do</strong> o<br />
temor de Deus”. CALVINO, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. <strong>20</strong>4 (Sl 10).<br />
6 “Um ateu teórico é alguém que nega com consciência a existência de um ser supremo, ao passo<br />
que um ateu prático pode até acreditar que existe um ser supremo, mas vive como se não existisse nenhum<br />
Deus”. POJMAN, Louis P. Ateísmo. In: AUDI, Robert (Dir.). Dicionário de Filosofia de Cambridge.<br />
São Paulo: Paulus, <strong>20</strong>06, p. 54). Detalharemos melhor este ponto ao estudar o Salmo 14.<br />
47
Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
não de Deus. Falta-lhe humildade e bom senso para isso. Ele, na realidade,<br />
vive conforme a sua fé: Deus não existe. Esta é a sua filosofia existencial.<br />
Não nos esqueçamos de que tanto o teísmo como o ateísmo são uma questão<br />
de fé! 7 Para as questões éticas, o perigo jaz no ateísmo funcional, não necessariamente<br />
no teórico.<br />
Vejam então como o ateísmo influencia diretamente a nossa ética. O<br />
ateu prático confesso conforme é aqui descrito passa a não ter compromisso<br />
com nada, exceto com seus interesses. Ele não se importa com nada nem com<br />
ninguém. Não há valores transcendentes que o referenciem. Não há Deus. Não<br />
há lei. 8 Por isso, ele só se importa com os seus interesses. Todas as suas “cogitações”<br />
(mezimmah) (verso 4) estão fundamentadas e são realizadas parti<strong>do</strong><br />
da impunidade. Sente-se livre e à vontade para planejar o mal, tramar, cometer<br />
impiedade, praticar perversidade, ser mau. Não há lei ou ele se julga superior<br />
a todas as leis. As leis são para os outros, não para ele.<br />
Como o homem foi cria<strong>do</strong> para se relacionar com Deus, o ateísmo afeta<br />
a nossa estrutura ontológica, 9 a nossa natureza, interferin<strong>do</strong>, portanto, dramaticamente<br />
em nossa perspectiva da realidade, na estruturação de nosso pensamento,<br />
sentimentos e de todas as coisas. “Quan<strong>do</strong> o Cria<strong>do</strong>r é excluí<strong>do</strong>, o nosso<br />
próprio pensamento se torna ‘nulo’”. 10<br />
Não há neutralidade em relação a Deus, porque de fato não há autonomia:<br />
7 “O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o cristianismo”. MCGRATH, Alister. O Deus desconheci<strong>do</strong>:<br />
em busca da realização espiritual. São Paulo: Loyola, <strong>20</strong>01, p. 23. “O cristão que acredita em<br />
Deus, então, o faz por fé. Mas o ateu precisa fazer o mesmo. Ele crê que Deus não existe. Isso mesmo:<br />
crê. Como não consegue provar que não existe Deus, o ateísmo também é um tipo de fé”. MCGRATH,<br />
Alister. Como lidar com a dúvida sobre Deus e sobre você mesmo. Viçosa, MG: Ultimato, <strong>20</strong>08, p. 36.<br />
“Pode-se negar que a existência de Deus seja demonstrável. Não se pode demonstrar que Deus não existe”.<br />
LACOSTE, Jean-Yves. Ateísmo. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário crítico de teologia. São<br />
Paulo: Paulinas/Loyola, <strong>20</strong>04, p. <strong>20</strong>4. Ver: CLARK, Gor<strong>do</strong>n H. Em defesa da teologia. Brasília, DF:<br />
Monergismo, <strong>20</strong>10, p. 29ss.; CRAIGIE, Peter C. Psalms 1-50. Word Biblical Commentary, v. 19. 2. ed.<br />
Waco: Thomas Nelson, <strong>20</strong>04, p. 126-127 (Sl 10).<br />
8 “... visto sua própria concupiscência ser sua lei, ele imagina que lhe é lícito fazer tu<strong>do</strong> quanto<br />
lhe apeteça”. CALVINO, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. 210 (Sl 10.4).<br />
9 “Deixar de relacionar-se com Deus é deixar de ser completamente humano. Ser realiza<strong>do</strong> é ser<br />
plenifica<strong>do</strong> por Deus. Nada transitório pode preencher esta necessidade. Nada que não seja o próprio<br />
Deus pode esperar tomar o lugar de Deus. Assim mesmo, por causa da decadência da natureza humana,<br />
há hoje a tendência natural de se tentar fazer com que outras coisas preencham essa necessidade. O<br />
peca<strong>do</strong> nos afasta de Deus, e nos leva a pôr outras coisas em seu lugar. Essas vêm para substituir Deus.<br />
Elas, porém, não satisfazem. E, como a criança que experimenta e expressa insatisfação quan<strong>do</strong> o pino<br />
quadra<strong>do</strong> não se encaixa no orifício re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, passamos a experimentar um sentimento de insatisfação.<br />
De alguma forma, permanece em nós a sensação de necessidade de algo indefinível de que a natureza<br />
humana nada sabe, só sabe que não o possui”. MCGRATH, Alister E. Paixão pela verdade: a coerência<br />
intelectual <strong>do</strong> evangelicalismo. São Paulo: Shedd, <strong>20</strong>07, p. 68.<br />
10 VEITH JR., Gene Edward. De to<strong>do</strong> o teu entendimento. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>06, p. 73.<br />
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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
Seres humanos jamais são neutros em relação a Deus. A<strong>do</strong>ramos a Deus como<br />
Cria<strong>do</strong>r e Senhor ou nos afastamos de Deus. Porque o nosso coração é dirigi<strong>do</strong><br />
por Deus ou contra Deus, o pensamento teórico jamais é puro ou autônomo<br />
como muitos gostariam de pensar. 11<br />
O não investigar (dârash) (Sl 10.4) significa não se importar, não buscar<br />
a Deus. O ímpio acredita não ter elementos suficientes para crer em Deus; contu<strong>do</strong>,<br />
para<strong>do</strong>xalmente, sustenta ter razões suficientes para negá-lo. Ou, como<br />
afirmou Eco: “... não vejo como é possível não acreditar em Deus e considerar<br />
que não se pode comprovar Sua existência, e depois a acreditar firmemente<br />
na inexistência de Deus, pensan<strong>do</strong> poder prová-Lo”. 12 Deste mo<strong>do</strong>, o ímpio<br />
está satisfeito com a sua conclusão gratuita e, arrogantemente, propala isso<br />
com palavras e atitudes, sen<strong>do</strong> a sua ideologia reforçada pela sua evidente prosperidade<br />
e impunidade que enchem os olhos <strong>do</strong>s menos avisa<strong>do</strong>s e também<br />
precipita<strong>do</strong>s em suas conclusões.<br />
O não investigar é um mal em si mesmo. Um bom princípio é examinar<br />
o que se nos apresenta como realidade, não nos deixan<strong>do</strong> seduzir e guiar por<br />
nossas inclinações ou pelas tendências massificantes. Em geral, quan<strong>do</strong> nos<br />
faltam critérios objetivos, apelamos para o gosto como critério definitivo<br />
e solitário. Assim, somos conduzi<strong>do</strong>s simplesmente por princípios que nos<br />
agradam sem verificar a sua veracidade. O fim disso pode ser trágico. Assim<br />
sen<strong>do</strong>, por mais autoeloquentes que possam se configurar aspectos da chamada<br />
realidade, precisamos examiná-los antes de os tomarmos como pressupostos<br />
para a aceitação de outras declarações também reivindicatórias. Quan<strong>do</strong> nos<br />
omitimos deste exame, deste juízo crítico, sem perceber estamos contribuin<strong>do</strong><br />
para que os ensinamentos hoje aceitos inconsistentemente amanhã se tornem<br />
pressupostos que determinarão as nossas escolhas e avaliações. 13<br />
As hipóteses de hoje poderão se tornar nas teorias de amanhã e as futuras<br />
leis <strong>do</strong> pensamento e da moral. Neste caso, já estarão acima de qualquer<br />
suspeita e discussão: tornaram-se verdade. A ciência é, com frequência, um<br />
refinamento das observações cotidianas. 14<br />
Como escreveu Pearcey: “A questão importante é o que aceitamos como<br />
premissas básicas, pois são elas que moldam tu<strong>do</strong> o que vem depois”. 15 Há o<br />
11 NASH, Ronald H. Questões últimas da vida: uma introdução à filosofia. São Paulo: Cultura<br />
Cristã, <strong>20</strong>08, p. 22.<br />
12 ECO, Umberto. In: ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem?<br />
Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 85.<br />
13 Ver: LEWIS, C. S. A abolição <strong>do</strong> homem. São Paulo: Martins Fontes, <strong>20</strong>05, p. 5.<br />
14 Creio ser interessante ler o texto: JONES, Taylor B. Por que uma visão bíblica da ciência? In:<br />
MacArthur, John (Ed. ger.). Pense biblicamente!: recuperan<strong>do</strong> a visão cristã <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. São Paulo:<br />
Hagnos, <strong>20</strong>05, especialmente p. 337-363.<br />
15 PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertan<strong>do</strong> o cristianismo de seu cativeiro cultural. Rio<br />
de Janeiro: CPAD, <strong>20</strong>06, p. 44.<br />
49
Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
perigo de, sem nos darmos conta, formar a nossa cosmovisão com base em um<br />
mosaico de peças promíscuas, contraditórias e excludentes.<br />
1.1.3 Deísmo imoral<br />
“Diz ele, no seu íntimo: Deus se esqueceu, virou o rosto e não verá isto<br />
nunca. (...) Por que razão despreza o ímpio a Deus, dizen<strong>do</strong> no seu íntimo<br />
que Deus não se importa (dârash)?” (Sl 10.11,13).<br />
Curiosamente a palavra que é usada para falar <strong>do</strong> ímpio que não investiga<br />
(Sl 10.4) é a mesma que o ímpio usa para dizer que Deus também não se importa<br />
conosco (Sl 10.13). Deste mo<strong>do</strong>, temos um ateu que não se importa com<br />
Deus e acredita que se há Deus ele não se importa conosco. Este homem dá uma<br />
espécie de troco ao Deus por ele concebi<strong>do</strong> com vistas ao seu aniquilamento:<br />
ele não liga para mim, também eu não o levo em consideração. Temos aqui a<br />
concepção de um Deus apático, indiferente ou um Deus distante, 16 conforme<br />
viria a difundir o deísmo. 17<br />
O deísmo é uma denominação genérica das <strong>do</strong>utrinas filosófico-religiosas<br />
que surgiram em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século 17, as quais, contrapon<strong>do</strong>-se ao “ateísmo”,<br />
afirmavam a existência de Deus; entretanto, negavam a revelação especial, os<br />
milagres e a providência. 18 Esse Deus é concebi<strong>do</strong> preliminarmente como a<br />
causa motora <strong>do</strong> universo. Uma das ideias pre<strong>do</strong>minantes era a de que um Deus<br />
transcendente criou o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-o de leis próprias e retirou-se para o seu<br />
ócio celestial, deixan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> trabalhar conforme as leis predeterminadas.<br />
Uma figura comum ao deísmo <strong>do</strong> século 18 era a <strong>do</strong> relógio de precisão, 19<br />
que seria o equivalente ao universo que trabalha sozinho depois de se lhe dar<br />
16 “Imaginavam que ele estava confina<strong>do</strong> no céu, onde se entregava ao ócio sem sentir a menor<br />
preocupação com o que se faz aqui em baixo”. CALVINO, v. 1, p. 214 (Sl 10.5-6).<br />
17 Palavra que parece ter si<strong>do</strong> usada pela primeira vez no século 16 pelos socinianos, objetivan<strong>do</strong><br />
distinguirem-se <strong>do</strong>s ateus. Cf. Deísmo. In: LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 236. É neste senti<strong>do</strong> que Pierre Viret (1511-1571), teólogo calvinista,<br />
amigo e correspondente de Calvino, usou a expressão em 1564: “Há vários que confessam que acreditam<br />
que existe um Deus e uma Divindade, como os Turcos e os Judeus. Ouvi dizer que há nesse ban<strong>do</strong><br />
aqueles que se chamam Deístas, uma palavra totalmente nova que eles querem opor ao Ateísmo”.<br />
VIRET, P. Instruction Chrétienne. Apud: Deísmo. In: LALANDE, Vocabulário técnico e crítico da filosofia,<br />
p. 236. A respeito <strong>do</strong> emprego da palavra ateísmo, ver também: MOHLER JR., Albert. Ateísmo remix:<br />
um confronto cristão aos novos ateístas. São José <strong>do</strong>s Campos, SP: Fiel, <strong>20</strong>09, p. 21-22.<br />
18 Calvino fala de uma crença semelhante sustentada pelos epicureus e outros sistemas da antiguidade:<br />
“Silencio quanto aos Epicureus, peste de que o mun<strong>do</strong> tem sempre esta<strong>do</strong> cheio, que sonham a um<br />
Deus ocioso e inoperante, e outros em nada mais sãos, que outrora imaginaram que Deus assim governasse<br />
acima da região média <strong>do</strong> ar, que deixasse as partes inferiores à sorte”. CALVINO, As Institutas, I.16.4.<br />
19 Esta figura fora usada no século 14 por Nicolaus de Oresmes. Cf. CHARLEY, J. W. Deísmo.<br />
In: NELSON, Wilton M. (Ed. Ger.). Diccionario de Historia de la Iglesia. Miami, Flórida: Editorial<br />
Caribe, 1989, p. 332.<br />
50
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
corda. A conclusão tirada pelos deístas é que as leis que regem o universo são<br />
imutáveis. O deísmo consequentemente atribui à criação a capacidade de se<br />
sustentar e se governar por si mesma. <strong>20</strong> Temos aqui um naturalismo autônomo.<br />
Desta forma, Deus é um proprietário ausente, que não age diretamente<br />
sobre a criação. A única relação existente entre o Cria<strong>do</strong>r e a criação se dá por<br />
meio de suas leis deixadas, as quais regem o universo de forma determinista. 21<br />
Deus seria regente <strong>do</strong> universo “apenas de nome”. 22<br />
1.1.4 Senso de impunidade exacerba<strong>do</strong><br />
“Pois diz lá no seu íntimo: Jamais serei abala<strong>do</strong> (mot); de geração em<br />
geração, nenhum mal me sobrevirá” (Sl 10.6).<br />
O ímpio crê firmemente em seu coração que poderá continuar fazen<strong>do</strong><br />
o mal enquanto quiser; mal nenhum em tempo algum lhe sobrevirá; ele jamais<br />
vacilará. “Os ímpios com frequência vomitam linguagem soberba a esse<br />
respeito”. 23 O senso de impunidade é um estímulo à sofisticação da crueldade. 24<br />
1.2 Em relação a si mesmo<br />
1.2.1 Arrogante<br />
“Com arrogância (rãshã’), os ímpios perseguem o pobre....” (Sl 10.2).<br />
O arrogante (rãshã’) aqui descrito é o mesmo ímpio ilustra<strong>do</strong> no Salmo<br />
1.6; 25 iníquo (Sl 5.4), perverso (Sl 9.17; 10.3,4; 11.6; 12.8; 17.9). O arrogante<br />
é capaz de qualquer crueldade para evidenciar aquilo que julga ser verdade:<br />
a sua superioridade. 26<br />
O arrogante confia tanto em sua capacidade que não percebe o cerco e<br />
emboscada que prepara para si mesmo. Se há uma coisa que o arrogante não<br />
tem é senso de perigo. Demovê-lo de sua excessiva confiança em si mesmo é<br />
algo extremamente difícil; ele sempre acha que tem uma solução fruto <strong>do</strong> brilhantismo<br />
que lhe é próprio. Por isso, termina por ficar preso no próprio produto de<br />
<strong>20</strong> Cf. SHEDD, William G. T. Dogmatic theology. 2. ed. Nashville: Thomas Nelson, © 1980, v. I,<br />
p. 528.<br />
21 Ver: Destino. In: Voltaire, Dicionário filosófico. Os Pensa<strong>do</strong>res XXIII. São Paulo: Abril Cultural,<br />
1973, p. 154-155; GEISLER, N. L.; FEINBERG, P. D. Introdução à filosofia. São Paulo: Vida Nova, 1983,<br />
p. 218ss.; WAINWRIGHT, William J. Deísmo. In: AUDI, Dicionário de filosofia de Cambridge, p. 212.<br />
22 CALVINO, As Institutas, I.16.4.<br />
23 CALVINO, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. 215 (Sl 10.5-6).<br />
24 “A impunidade é mãe da libertinagem”. CALVINO, João. Efésios. São Paulo: Paracletos, 1998,<br />
p. 186 (Ef 6.9).<br />
25 Do mesmo mo<strong>do</strong> Sl 3.7; 7.10; 9.5; 26.5; 28.3, etc.<br />
26 Ver: CALVINO, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. <strong>20</strong>7 (Sl 1.2).<br />
51
Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
sua arrogância: “Faz-se conheci<strong>do</strong> o Senhor, pelo juízo que executa; enlaça<strong>do</strong><br />
está o ímpio (rãshã’) nas obras de suas próprias mãos” (Sl 9.16).<br />
1.2.2 Soberbo<br />
“O perverso, na sua soberba (gobah), não investiga; que não há Deus<br />
são todas as suas cogitações” (Sl 10.4).<br />
A expressão descreve alguém que tem um espírito de superioridade,<br />
sente-se mais alto <strong>do</strong> que os demais. Ele se julga melhor e mais capaz <strong>do</strong><br />
que to<strong>do</strong>s, daí a confiança em seus planos, estratégias e méto<strong>do</strong>s para iludir,<br />
humilhar, convencer e destruir. 27 Ele sabe, está satisfeito com isso. Não<br />
precisa investigar coisa alguma. Este, por tais atos, é abominável ao Senhor:<br />
“Abominável é ao Senhor to<strong>do</strong> arrogante (gobah) de coração; é evidente que<br />
não ficará impune” (Pv 16.5).<br />
1.2.3 Autossuficiente<br />
“Pois diz lá no seu íntimo: Jamais serei abala<strong>do</strong> (mot); de geração em<br />
geração, nenhum mal me sobrevirá” (Sl 10.6).<br />
Ele se sente seguro na sua confortável e aparentemente inabalável<br />
situação. Aqui existe algo de extrema relevância que revela a arrogância <strong>do</strong><br />
ímpio. Analisemos isso:<br />
Nos Salmos encontramos diversas expressões de confiança de servos de<br />
Deus que creem também que não serão abala<strong>do</strong>s. Contu<strong>do</strong>, estes falam desta<br />
certeza porque confiam em Deus e seguem a sua Palavra. O Senhor os fortalece<br />
e firma, não permitin<strong>do</strong> que vacilem (Sl 16.8; 17.5; 21.7; 62.2,6; 66.9; 94.18;<br />
121.3; 125.1). 28 Aqui, diferentemente, o soberbo tem uma confiança puramente<br />
naturalista. Ele por si só, analisan<strong>do</strong> o curso da história sobre o qual crê ter<br />
to<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio, acredita que jamais será abala<strong>do</strong>.<br />
Davi, no Salmo 30, em seu cântico de ação de graças a Deus, relembra a<br />
sua temporária e vã arrogância e como Deus o disciplinou atrain<strong>do</strong>-o para Si:<br />
27 Ver: Sl 103.11 e 113.5, referin<strong>do</strong>-se a Deus.<br />
28 “O Senhor, tenho-o sempre à minha presença; estan<strong>do</strong> ele à minha direita, não serei abala<strong>do</strong>”<br />
(Sl 16.8). “Os meus passos se afizeram às tuas veredas, os meus pés não resvalaram” (Sl 17.5). “O rei<br />
confia no Senhor e pela misericórdia <strong>do</strong> Altíssimo jamais vacilará” (Sl 21.7). “Só ele é a minha rocha,<br />
e a minha salvação, e o meu alto refúgio; não serei muito abala<strong>do</strong>. (...) Só ele é a minha rocha, e a minha<br />
salvação, e o meu alto refúgio; não serei jamais abala<strong>do</strong>” (Sl 62.2,6). “O que preserva com vida a<br />
nossa alma e não permite que nos resvalem os pés” (Sl 66.9). “Quan<strong>do</strong> eu digo: resvala-me o pé, a tua<br />
benignidade, Senhor, me sustém” (Sl 94.18). “Ele não permitirá que os teus pés vacilem; não <strong>do</strong>rmitará<br />
aquele que te guarda” (Sl 121.3). “Os que confiam no Senhor são como o monte Sião, que não se abala,<br />
firme para sempre” (Sl 125.1).<br />
52
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
Porque não passa de um momento a sua ira; o seu favor dura a vida inteira.<br />
Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã. Quanto a mim,<br />
dizia eu na minha prosperidade: jamais serei abala<strong>do</strong> (mot). Tu, Senhor, por<br />
teu favor fizeste permanecer forte a minha montanha; apenas voltaste o rosto,<br />
fiquei logo conturba<strong>do</strong> (Sl 30.5-7).<br />
1.3 Em relação aos homens<br />
1.3.1 Persegue os pobres e necessita<strong>do</strong>s<br />
“Com arrogância, os ímpios perseguem (dalaq) 29 o pobre (‘aniy); 30 sejam<br />
presas das tramas (mezimmah) (= plano, propósito, “teorias refinadas”)<br />
que urdiram. (...) Põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos<br />
lugares ocultos; seus olhos espreitam o desampara<strong>do</strong>. Está ele de emboscada,<br />
como o leão na sua caverna; está de emboscada para enlaçar o<br />
pobre (‘aniy): apanha-o e, na sua rede, o enleia. Abaixa-se, rasteja; em<br />
seu poder, lhe caem os necessita<strong>do</strong>s” (Sl 10.2,8-10).<br />
O seu alvo principal são aqueles que não podem oferecer resistência, que<br />
não têm recursos, nem quem os defenda. O salmista emprega três figuras para<br />
descrever a violência feroz <strong>do</strong> ímpio que é incandescente em sua perseguição.<br />
Ele age como um ladrão e assassino de estrada (8), um leão (9) e um caça<strong>do</strong>r<br />
(9). As três figuras envolvem o trabalho de preparação para o seu ataque. 31 O<br />
verso 10 apresenta o desfecho deste ataque: “Abaixa-se, rasteja; em seu poder,<br />
lhe caem os necessita<strong>do</strong>s” (Sl 10.10). No verso 11 vemos o seu raciocínio<br />
lógico construí<strong>do</strong> a partir de seu ateísmo prático. 32<br />
1.3.2 Gloria-se em sua cobiça<br />
“Pois o perverso se gloria (hãlal) da cobiça (ta’ a wãh) de sua alma, o<br />
avarento maldiz o Senhor e blasfema contra ele” (Sl 10.3).<br />
Ele louva e se alegra com os seus próprios desejos e apetites pecaminosos;<br />
cultiva a satisfação em sentir o desejo de destruir, perseguir, humilhar, possuir.<br />
Alimenta-se com os seus próprios peca<strong>do</strong>s.<br />
29 A palavra tem também o senti<strong>do</strong> de inflamação (Sl 7.13), esquentar (Is 5.11), acender (o fogo)<br />
(Ez 24.10); incendiar (Os 1.18). No texto parece significar perseguir com astúcia, perseverança e intensa<br />
fúria (Gn 31.36; Lm 4.19). Calvino diz que “a soberba <strong>do</strong>s perversos, como o fogo, devora o pobre e<br />
aflito”. Calvino, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. <strong>20</strong>8 (Sl 10.2).<br />
30 ‘aniy (“necessita<strong>do</strong>”, “fraco”, “pobre”, “aflito”, “humilde”). Indica alguém que está indefeso,<br />
sujeito à opressão. Ver: COPPES, Leonard J. ‘Ãnâ. In: HARRIS, R. Laird et. al. (Eds.). Dicionário<br />
Internacional de Teologia <strong>do</strong> Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1145-1146.<br />
31 O detalhamento e a aplicação feita por Calvino destas figuras são bastante ilustrativos. Ver:<br />
Calvino, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. 219-2<strong>20</strong> (Sl 10.8-9).<br />
32 Ver: BOYCE, James M. Psalms: an expositional commentary. Grand Rapids, MI: Baker, 1994,<br />
v. 1, p. 86, (Sl 10).<br />
53
Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
1.3.3 Ridiculariza<br />
“São prósperos os seus caminhos em to<strong>do</strong> tempo; muito acima e longe<br />
dele estão os teus juízos; quanto aos seus adversários, ele a to<strong>do</strong>s ridiculiza<br />
(pûha)” (Sl 10.5).<br />
Profere palavras mentirosas expon<strong>do</strong>-os ao ridículo; escarnece de to<strong>do</strong>s<br />
os seus inimigos. O ato de ridicularizar faz parte de seu arsenal de mentiras.<br />
Difunde um testemunho falso a fim de expor ao ridículo o seu oponente. Espalha<br />
falsas notícias; daí a ideia de sopro (Pv 19.5,9; 29.8). Temos aqui uma<br />
estratégia que visa diminuir e desmoralizar seus adversários. Deste mo<strong>do</strong>, estes,<br />
independentemente de seus argumentos, já estarão derrota<strong>do</strong>s à vista daqueles<br />
que simpatizaram com as calúnias <strong>do</strong> ímpio.<br />
1.3.4 Amaldiçoa, engana e insulta<br />
“A boca, ele a tem cheia de maldição, enganos (mir e mâh) e opressão;<br />
debaixo da língua, insulto e iniquidade” (Sl 10.7).<br />
Ele amaldiçoa, engana (mir e mâh) 33 e insulta. 34 Usa <strong>do</strong>s artifícios da linguagem<br />
para ameaçar, enganar e humilhar o seu inimigo a quem visa destruir.<br />
2. a percepção imediata <strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong><br />
O oprimi<strong>do</strong>, ven<strong>do</strong> o que vê e como vê, abala-se em sua fé. Há aqui um<br />
círculo vicioso: as evidências interferem em minha visão e, quanto mais minha<br />
visão é distorcida, as configurações <strong>do</strong> real assumem papéis distintos que<br />
me fazem ver elementos que reforçam o que penso ter visto, apesar disto não<br />
corresponder à realidade <strong>do</strong>s fatos. Pior: corro o risco de ver apenas uma parte<br />
da realidade, esquecen<strong>do</strong>-me de Deus, <strong>do</strong> seu caráter e poder.<br />
2.1 Em relação a Deus: distante e indiferente<br />
“Por que, Senhor, te conservas longe? E te escondes nas horas de tribulação?<br />
(...) Levanta-te, Senhor! Ó Deus, ergue a mão! Não te esqueças<br />
<strong>do</strong>s pobres” (Sl 10.1,12).<br />
Calvino chama a atenção para o fato de que “embora Davi se queixe de<br />
Deus conservar-se à distância, ele estava, não obstante, plenamente convicto<br />
de sua presença consigo; <strong>do</strong> contrário teria si<strong>do</strong> debalde tê-lo invoca<strong>do</strong> para<br />
prover auxílio”. 35<br />
33 A palavra tem o senti<strong>do</strong> de fraudar (Sl 5.7; 17.1); agir com <strong>do</strong>lo (Sl 24.4; 34.13); malícia (Sl 36.3).<br />
34 Injuriar, oprimir (Sl 55.11; 72,14).<br />
35 Calvino, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. <strong>20</strong>6 (Sl 10.1).<br />
54
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
Temos aqui, portanto, um sentimento ambíguo: Se por um la<strong>do</strong> cremos<br />
em Deus, por outro, temos a impressão de que ele se mantém indiferente,<br />
especialmente porque em nosso coração já idealizamos uma forma de ele agir<br />
contra os nossos adversários a qual não percebo acontecen<strong>do</strong>. Daí a angústia<br />
<strong>do</strong> salmista. Temos um caso paralelo no livro de Jó (21.7-16). 36<br />
2.2 Em relação ao soberbo<br />
Ele prospera, dan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> certo em sua vida. A impressão que se tem é<br />
que em to<strong>do</strong> o tempo tu<strong>do</strong> corre bem nas diversas esferas de sua vida. Ele<br />
maquina o mal, é incorreto em seus negócios, amaldiçoa, blasfema, persegue,<br />
oprime, mas não tem perigo; tu<strong>do</strong> dá certo (Sl 10.5). Ele, de fato, infunde terror<br />
naqueles que o conhecem (Sl 10.18).<br />
3. conclusão <strong>do</strong> salmista<br />
3.1 Quanto à natureza de Deus<br />
Aqui temos um ponto fundamental: como vemos a Deus? A nossa perspectiva<br />
errada de Deus nos conduz a uma visão equivocada da vida, <strong>do</strong> sucesso<br />
e das aflições. Observe que não estou falan<strong>do</strong> apenas circunstancialmente. O<br />
fato é que não temos alternativa. Somos essencialmente religiosos. Ou cremos<br />
em Deus, conhecen<strong>do</strong>-o, ainda que não exaustivamente, ou não cremos em<br />
Deus. Este é o grande divisor de águas de nossa existência e, por isso mesmo,<br />
de nossa visão de mun<strong>do</strong> e comportamento. Não estou dizen<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> se<br />
resolva aqui; antes, enten<strong>do</strong> que a partir deste ponto temos uma bifurcação<br />
que, conforme o caminho que vamos seguir, irá definir toda a nossa existência.<br />
A partir <strong>do</strong> direcionamento que seguirmos, teremos que fazer inúmeras<br />
outras escolhas menores durante toda a nossa existência. Estas terão grande<br />
relevância em nossa vida; contu<strong>do</strong>, o grande abismo de separação foi estabeleci<strong>do</strong><br />
lá atrás.<br />
O salmista crê em Deus. Portanto, o seu horizonte já está delinea<strong>do</strong>. Dentro<br />
desta compreensão, outras escolhas, outras compreensões serão elaboradas<br />
e concluídas, as quais serão profundamente importantes no seu refinamento<br />
teológico e existencial. Espero deixar isso mais claro no desenvolvimento<br />
deste ponto.<br />
36 “Como é, pois, que vivem os perversos, envelhecem e ainda se tornam mais poderosos? Seus<br />
filhos se estabelecem na sua presença; e os seus descendentes, ante seus olhos. As suas casas têm paz,<br />
sem temor, e a vara de Deus não os fustiga. O seu touro gera e não falha, suas novilhas têm a cria e<br />
não abortam. Deixam correr suas crianças, como a um rebanho, e seus filhos saltam de alegria; cantam<br />
com tamboril e harpa e alegram-se ao som da flauta. Passam eles os seus dias em prosperidade e em<br />
paz descem à sepultura. E são estes os que disseram a Deus: Retira-te de nós! Não desejamos conhecer<br />
os teus caminhos. Que é o To<strong>do</strong>-Poderoso, para que nós o sirvamos? E que nos aproveitará que lhe<br />
façamos orações? Vede, porém, que não provém deles a sua prosperidade; longe de mim o conselho <strong>do</strong>s<br />
perversos!” (Jó 21.7-16).<br />
55
Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
3.1.1 Deus é Rei eterno<br />
“O Senhor é rei eterno: da sua terra somem-se as nações” (Sl 10.16).<br />
Deus tem to<strong>do</strong> o poder; tu<strong>do</strong> lhe pertence. A aparente prosperidade <strong>do</strong><br />
ímpio está nas mãos de Deus, que governa todas as coisas eternamente. Quan<strong>do</strong><br />
Deus manifestar a sua justiça, não haverá nação, por mais poderosa que seja,<br />
que poderá resistir-lhe.<br />
3.1.2 Deus é justo<br />
“Para fazeres justiça ao órfão e ao oprimi<strong>do</strong>, a fim de que o homem, que<br />
é da terra, já não infunda terror” (Sl 10.18).<br />
Deus é justo mesmo que não vejamos a sua manifestação. Ele é justo<br />
em sua própria natureza. A nossa percepção não serve de critério seguro para<br />
avaliar to<strong>do</strong>s os atos de Deus, no entanto, ele permanece sen<strong>do</strong> o que é.<br />
3.2 Em relação aos atos de Deus<br />
3.2.1 Deus defende os desvali<strong>do</strong>s<br />
“Tu, porém, o tens visto, porque atentas aos trabalhos e à <strong>do</strong>r, para que<br />
os possas tomar em tuas mãos. A ti se entrega o desampara<strong>do</strong>; tu tens<br />
si<strong>do</strong> o defensor <strong>do</strong> órfão” (Sl 10.14).<br />
Em sua precipitação o salmista falara de um Deus distante e indiferente.<br />
Agora, olhan<strong>do</strong> com mais cautela os fatos, ele tem de admitir que Deus não<br />
é indiferente nem está distante. Antes, ele tem observa<strong>do</strong> toda esta situação e<br />
tem defendi<strong>do</strong> o órfão e o desampara<strong>do</strong>. Sempre há o perigo de trazermos para<br />
nós a providência de Deus queren<strong>do</strong>, arrogantemente, ajuizar sobre o tempo<br />
e o mo<strong>do</strong> de Deus agir. É de fato, um difícil, porém, necessário exercício de<br />
fé, aprender a confiar no cuida<strong>do</strong> de Deus e a descansar em seu soberano e<br />
amoroso cuida<strong>do</strong>.<br />
3.2.2 Deus ouve as nossas orações<br />
“Tens ouvi<strong>do</strong> (shama), Senhor, o desejo <strong>do</strong>s humildes...” (Sl 10.17).<br />
Ainda que sejamos tenta<strong>do</strong>s em nossa precipitação a achar que ele está<br />
distante ou muito ocupa<strong>do</strong>, Deus sempre ouve com atenção as nossas súplicas.<br />
É o que demonstra Davi em outro Salmo: “Eu disse na minha pressa: estou<br />
56
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
excluí<strong>do</strong> da tua presença. Não obstante, ouviste (shama) a minha súplice voz,<br />
quan<strong>do</strong> clamei por teu socorro” (Sl 31.22). 37<br />
Deus nos ouve até mesmo quan<strong>do</strong> estamos sofren<strong>do</strong> devi<strong>do</strong> à nossa<br />
desobediência. Ele é misericordioso: “Então, Jonas, <strong>do</strong> ventre <strong>do</strong> peixe, orou<br />
ao Senhor, seu Deus, e disse: Na minha angústia, clamei ao Senhor, e ele me<br />
respondeu; <strong>do</strong> ventre <strong>do</strong> abismo, gritei, e tu me ouviste (shama) a voz” (Jn 2.1-2).<br />
Devemos aprender a confiar em Deus, expor-lhe em oração as nossas angústias<br />
38 e aguardar com fé a sua resposta: “De manhã, Senhor, ouves (shama)<br />
a minha voz; de manhã te apresento a minha oração e fico esperan<strong>do</strong>” (Sl 5.3).<br />
Ele entende as nossas necessidades e nos responde em sua misericórdia. 39 Não<br />
tenhamos a pretensão de estabelecer para Deus o caminho da justiça.<br />
3.2.3 Deus fortalece o coração <strong>do</strong>s fiéis<br />
“Tens ouvi<strong>do</strong>, Senhor, o desejo <strong>do</strong>s humildes; tu lhes fortalecerás (kûn) 40<br />
o coração e lhes acudirás” (Sl 10.17).<br />
Ao cultivarmos a certeza de que Deus nos ouve, Deus mesmo firma os<br />
nossos corações, o nosso centro vital, para que não sejamos leva<strong>do</strong>s pelas<br />
circunstâncias e precipitadamente pela aparência <strong>do</strong>s fatos. “É uma bênção<br />
singular a que Deus nos confere quan<strong>do</strong>, em meio às tentações, Ele nutre nossos<br />
corações, não os deixan<strong>do</strong> retroceder dele, nem buscan<strong>do</strong> em outra fonte<br />
algum outro apoio e livramento”. 41<br />
Deus fortalece os nossos corações para nos firmar os passos: “Tirou-me<br />
de um poço de perdição, de um tremedal de lama; colocou-me os pés sobre<br />
uma rocha e me firmou (kûn) os passos” (Sl 40.2). “O Senhor firma (kûn) os<br />
passos <strong>do</strong> homem bom, e no seu caminho se compraz” (Sl 37.23).<br />
“Firme (kûn) está o meu coração, ó Deus, o meu coração está firme<br />
(kûn); cantarei e entoarei louvores” (Sl 57.7). Quan<strong>do</strong> nosso coração é firma<strong>do</strong><br />
pelo Senhor nas Suas promessas nos dispomos a entoar-lhe louvores<br />
37 “Apartai-vos de mim, to<strong>do</strong>s os que praticais a iniquidade, porque o Senhor ouviu (shama) a voz<br />
<strong>do</strong> meu lamento; o Senhor ouviu (shama) a minha súplica; o Senhor acolhe a minha oração” (Sl 6.8-9).<br />
38 “Na minha angústia, invoquei o Senhor, gritei por socorro ao meu Deus. Ele <strong>do</strong> seu templo<br />
ouviu (shama) a minha voz, e o meu clamor lhe penetrou os ouvi<strong>do</strong>s” (Sl 18.6).<br />
39 “Responde-me quan<strong>do</strong> clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia, me tens alivia<strong>do</strong>; tem misericórdia<br />
de mim e ouve (shama) a minha oração” (Sl 4.1/Sl 4.3). “Pois não desprezou, nem abominou a<br />
<strong>do</strong>r <strong>do</strong> aflito, nem ocultou dele o rosto, mas o ouviu (shama), quan<strong>do</strong> lhe gritou por socorro” (Sl 22.24).<br />
“Ouve (shama), Senhor, a minha voz; eu clamo; compadece-te de mim e responde-me” (Sl 27.7). Ver<br />
também: Sl 28.2,6; 34.6,17; 39.12; 40.1; 54.2; 55.17; 61.1; 116.1; 119.149; 130.2 143.1; 145.19.<br />
40 A palavra tem o senti<strong>do</strong> de estabelecer, firmar, manter-se reto. No estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Salmo 108 exploro<br />
mais pormenorizadamente o significa<strong>do</strong> da palavra.<br />
41 Calvino, O Livro <strong>do</strong>s Salmos, v. 1, p. 230 (Sl 10.17).<br />
57
Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
com integridade: “Firme (kûn) está o meu coração, ó Deus! Cantarei e entoarei<br />
louvores de toda a minha alma” (Sl 108.1).<br />
3.2.4 Deus nos acode em nossas necessidades<br />
“Tens ouvi<strong>do</strong>, Senhor, o desejo <strong>do</strong>s humildes; tu lhes fortalecerás o<br />
coração e lhes acudirás (qashab)” (Sl 10.17).<br />
Deus ouve as nossas orações e fortalece o nosso coração com as suas<br />
promessas. As suas palavras não são vazias, antes, são os fundamentos de<br />
sua ação: ele nos acode, nos socorre de fato. Aqui o salmista se vale de um<br />
sinônimo para reforçar a mesma ideia. Deus nos tem ouvi<strong>do</strong> (shama) e, por<br />
isso, nos acode (qashab) em nossas reais necessidades. Ele dá atenção a nós<br />
e à nossa súplica.<br />
3.2.5 Deus manifesta a Sua justiça<br />
“Para fazeres justiça ao órfão e ao oprimi<strong>do</strong>, a fim de que o homem, que<br />
é da terra, já não infunda terror” (Sl 10.18).<br />
Deus é justo e fará justiça no tempo certo. Podemos e devemos suplicar<br />
por sua justiça, contu<strong>do</strong>, a manifestação da justiça também é uma questão<br />
de tempo. Deus em sua longanimidade muitas vezes não executa de forma<br />
imediata o seu juízo a fim de oferecer a oportunidade aos seus servos de se<br />
arrependerem e os justos de aprenderem a perseverar em sua fé.<br />
Deus fará justiça no seu tempo. Em sua justiça não há apelação; ela é<br />
decisiva visto que ele é justo, por isso julga justa e retamente.<br />
considerações finais<br />
(1) Precisamos de cautela em nossos juízos a respeito <strong>do</strong> silêncio de<br />
Deus. O aparente silêncio não é indiferença ou incapacidade. Pode ser uma<br />
manifestação de longanimidade dentro de seu propósito pedagógico (Sl 10.1).<br />
Não podemos deixar que as nossas experiências mutáveis se constituam apressadamente<br />
em parâmetros para a nossa teologia, que deve ser proveniente<br />
das Escrituras. As Escrituras é que devem avaliar, instruir e corrigir as nossas<br />
experiências. 42<br />
(2) Ao contrário <strong>do</strong> ímpio, não cedamos à tentação de pensar que somos<br />
autossuficientes. Confiemos em Deus e em sua manutenção (Sl 10.6). “Confia<br />
42 “A teologia cristã oferece uma estrutura pela qual as ambiguidades da experiência podem ser<br />
interpretadas. A teologia visa interpretar a experiência. É como uma rede que podemos lançar sobre a<br />
experiência, a fim de capturar seu senti<strong>do</strong>. A experiência é vista como algo para ser interpreta<strong>do</strong>, em<br />
vez de algo que em si é capaz de interpretar. A teologia cristã visa assim a dirigir-se a, interpretar e<br />
transformar a experiência humana”. MCGRATH, Paixão pela verdade, p. 66-67.<br />
58
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 45-60<br />
os teus cuida<strong>do</strong>s ao Senhor, e ele te susterá; jamais permitirá que o justo seja<br />
abala<strong>do</strong> (mot)” (Sl 55.22).<br />
(3) Ainda que não percebamos a manifestação da justiça de Deus, não<br />
duvidemos de sua providência. Deus age sempre no tempo determina<strong>do</strong> por ele<br />
mesmo; afinal, Deus é o Rei eterno, ten<strong>do</strong> pleno controle <strong>do</strong> tempo (Sl 10.12,16). 43<br />
(4) Aprendemos neste salmo que, por mais graves que sejam as circunstâncias<br />
adversas, o nosso recurso é orar a Deus. Ele é o Rei soberano e preserva<strong>do</strong>r<br />
de seu povo. Ele conhece as nossas necessidades (Sl 10.14). Devemos,<br />
portanto, expor a Deus as nossas angústias e incompreensões suplican<strong>do</strong> o seu<br />
auxílio (Sl 10.12).<br />
(5) Isto serve de grande estímulo e conforto para nós. Deus reina. Ele tem<br />
o controle total de to<strong>do</strong>s os reinos e da história. Aos irmãos atribula<strong>do</strong>s que<br />
aguardavam a manifestação da justiça de Deus, Pedro escreve:<br />
Ama<strong>do</strong>s, esta é, agora, a segunda epístola que vos escrevo; em ambas, procuro<br />
despertar com lembranças a vossa mente esclarecida, para que vos recordeis<br />
das palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como <strong>do</strong><br />
mandamento <strong>do</strong> Senhor e Salva<strong>do</strong>r, ensina<strong>do</strong> pelos vossos apóstolos, ten<strong>do</strong> em<br />
conta, antes de tu<strong>do</strong>, que, nos últimos dias, virão escarnece<strong>do</strong>res com os seus<br />
escárnios, andan<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> as próprias paixões e dizen<strong>do</strong>: Onde está a promessa<br />
da sua vinda? Porque, desde que os pais <strong>do</strong>rmiram, todas as coisas permanecem<br />
como desde o princípio da criação. Porque, deliberadamente, esquecem que,<br />
de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da<br />
água pela palavra de Deus, pela qual veio a perecer o mun<strong>do</strong> daquele tempo,<br />
afoga<strong>do</strong> em água. Ora, os céus que agora existem e a terra, pela mesma palavra,<br />
têm si<strong>do</strong> entesoura<strong>do</strong>s para fogo, estan<strong>do</strong> reserva<strong>do</strong>s para o Dia <strong>do</strong> Juízo e<br />
destruição <strong>do</strong>s homens ímpios. Há, todavia, uma coisa, ama<strong>do</strong>s, que não deveis<br />
esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia.<br />
(...) Virá, entretanto, como ladrão, o Dia <strong>do</strong> Senhor, no qual os céus passarão<br />
com estrepitoso estron<strong>do</strong>, e os elementos se desfarão abrasa<strong>do</strong>s; também a terra<br />
e as obras que nela existem serão atingidas (2Pe 3.1-8,10).<br />
Pregan<strong>do</strong> em Atenas, Paulo afirma que Deus “estabeleceu um dia em<br />
que há de julgar o mun<strong>do</strong> com justiça, por meio de um varão que destinou e<br />
acreditou diante de to<strong>do</strong>s, ressuscitan<strong>do</strong>-o dentre os mortos” (At 17.31).<br />
(6) Confiar no sustento de Deus que se manifesta no tempo propício.<br />
Portanto, devemos pedir a Deus que mantenha o nosso coração reto, firme em<br />
suas promessas (Sl 10.17; ver Sl 11.2), renovan<strong>do</strong> em nós um espírito inabalável.<br />
Daí a oração de Davi: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova<br />
dentro de mim um espírito inabalável (kûn)” (Sl 51.10).<br />
43 Para uma aplicação pastoral <strong>do</strong> Salmo 10, Ver: POWLISON, David. Uma nova visão. São Paulo:<br />
Cultura Cristã, <strong>20</strong>10, p. 87-102.<br />
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Hermisten Maia Pereira da Costa, A enganosa Prosperidade <strong>do</strong>s Ímpios à Luz <strong>do</strong> Salmo 10<br />
Habacuque, viven<strong>do</strong> em momento extremamente difícil sob a ameaça da<br />
violenta Babilônia, e sem conseguir compreender adequadamente a história,<br />
após expor a Deus a sua angústia, escreve: “O justo viverá pela sua fé” (Hc 2.4).<br />
A sua fé alicerçada em Deus lhe permitiu declarar na conclusão <strong>do</strong> livro:<br />
Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; o produto da oliveira<br />
minta, e os campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas <strong>do</strong><br />
aprisco, e nos currais não haja ga<strong>do</strong>, todavia, eu me alegro no Senhor, exulto<br />
no Deus da minha salvação. O Senhor Deus é a minha fortaleza, e faz os meus<br />
pés como os da corça, e me faz andar altaneiramente (Hc 3.17-19).<br />
(7) Temos aqui um alerta para nós a fim de que, quan<strong>do</strong> investi<strong>do</strong>s de<br />
poder e recursos, não sejamos tenta<strong>do</strong>s a tratar o nosso próximo com arrogância<br />
e desdém. Deus não se agrada disso (Sl 10.14-18).<br />
(8) A enganosa prosperidade <strong>do</strong>s ímpios consiste no fato de pensarem<br />
que podem viver sem Deus, prescindin<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu cuida<strong>do</strong>, misericórdia e<br />
amor. A continuar assim, eles descobrirão, talvez tardia e inevitavelmente,<br />
que jogaram sua vida fora, toman<strong>do</strong> aspectos <strong>do</strong> provisório como definitivo e<br />
eterno. Os bens materiais podem ser uma grande bênção de Deus se não nos<br />
conduzirem ao materialismo, à redução de toda realidade à fluidez <strong>do</strong> que é<br />
efêmero e passageiro.<br />
(9) Por pior que seja a condição de peca<strong>do</strong> e maldade <strong>do</strong> ímpio descrita<br />
neste salmo, lembremo-nos de que: a) Se ele, por graça, se arrepender de<br />
seus peca<strong>do</strong>s, voltan<strong>do</strong>-se para Deus, será salvo. O santo Deus que reina,<br />
governa também com a sua misericórdia. b) Este homem é o espelho <strong>do</strong> que<br />
poderíamos ser se não fosse a graça de Deus que nos atraiu para si, per<strong>do</strong>an<strong>do</strong><br />
os nossos peca<strong>do</strong>s, dan<strong>do</strong>-nos um novo coração. Ó maravilhosa graça de Deus!<br />
Aleluia! Amém!<br />
abstract<br />
Observing the wicked’s seeming success in their acts of blasphemy, arrogance,<br />
pride, and immorality, the psalmist, in a rash atitude, feels insecure<br />
regarding God and the events he sees around him. Starting from the psalmist’s<br />
mature conclusion, the article analyzes how the perspective of faith is fundamental<br />
toward trusting in God and continuing to trust despite our immediate,<br />
precipitous perceptions of the situation around us.<br />
keywords<br />
Psalm 10; Impiety; Atheism; God’s justice; Patience; Faith.<br />
60
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
Islã e Tolerância: Discurso Apologético<br />
e Realidade Histórica<br />
Alderi Souza de Matos *<br />
resumo<br />
O início <strong>do</strong> século 21 está testemunhan<strong>do</strong> eventos de grande significa<strong>do</strong><br />
histórico no âmbito da religião. O radicalismo islâmico tem assombra<strong>do</strong> o<br />
mun<strong>do</strong> com sua persistente agressividade e vasta amplitude. O Oriente Médio,<br />
o norte da África e partes da Ásia, Europa e América <strong>do</strong> Norte têm si<strong>do</strong> palco<br />
<strong>do</strong> fanatismo e da violência <strong>do</strong>s extremistas. Em especial, as comunidades<br />
cristãs que vivem pacificamente em países muçulmanos estão sen<strong>do</strong> alvo de<br />
horrível crueldade. Em diversas regiões, o pouco que restava <strong>do</strong> cristianismo<br />
está a caminho da extinção. Muitos observa<strong>do</strong>res e estudiosos afirmam que<br />
essas ações representam uma grotesca distorção <strong>do</strong> islã, não sen<strong>do</strong> condizentes<br />
com o verdadeiro espírito dessa religião. Os apologistas internos e externos<br />
declaram repetidamente que a fé muçulmana tem cultiva<strong>do</strong> historicamente a<br />
tolerância e a paz. O objetivo deste artigo é reexaminar essa questão olhan<strong>do</strong><br />
para as fontes <strong>do</strong> islã, sua história e os acontecimentos <strong>do</strong>s anos recentes.<br />
palavras-chave<br />
Islã; Islamismo; Muçulmanos; Maomé; Corão; Hadith; Sharia; Tolerância;<br />
Multiculturalismo; Fundamentalismo; Cristianismo; Perseguição; Direitos<br />
humanos.<br />
introdução<br />
Nos últimos anos, muitos termos de origem árabe se tornaram frequentes<br />
na imprensa ocidental, como “aiatolá”, “xiita”, “sunita”, “imã”, “ramadã”,<br />
* Doutor em Teologia (Th.D.) pela Boston University School of Theology; professor de Teologia<br />
Histórica no <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>, São Paulo.<br />
61
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
“burca”, “xa<strong>do</strong>r”, “madraçal”, “talibã”, “jihad”, “sharia” e “califa<strong>do</strong>”. O uso<br />
dessa terminologia não resulta de questões inocentes, como um súbito interesse<br />
intelectual ou histórico pelos povos muçulmanos, e sim de um espectro<br />
sombrio que tem se levanta<strong>do</strong> sobre o mun<strong>do</strong> neste início <strong>do</strong> século 21 – o<br />
radicalismo islâmico. 1 Essa forma de extremismo político e religioso já havia<br />
surgi<strong>do</strong> em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século <strong>20</strong>, mas tem atingi<strong>do</strong> proporções assusta<strong>do</strong>ras<br />
nestes primeiros anos <strong>do</strong> novo século, a começar <strong>do</strong>s atenta<strong>do</strong>s contra as Torres<br />
Gêmeas, em Nova York, no fatídico 11 de setembro de <strong>20</strong>01. No Ocidente, o<br />
episódio mais recente foi o assassinato de vários caricaturistas <strong>do</strong> jornal satírico<br />
Charlie Heb<strong>do</strong>, em Paris, no dia 7 de janeiro de <strong>20</strong>15.<br />
No entanto, o principal cenário <strong>do</strong> extremismo islâmico tem si<strong>do</strong> o território<br />
<strong>do</strong>s países liga<strong>do</strong>s a essa religião, como Afeganistão, Paquistão, Síria,<br />
Iraque, Egito e Líbia, nos quais a maior parte das vítimas tem si<strong>do</strong> os próprios<br />
muçulmanos. Como se não bastassem tantas atrocidades em nome de Deus, em<br />
<strong>20</strong>14 surgiu no Oriente Médio, no contexto da guerra civil na Síria e <strong>do</strong> caos<br />
reinante no Iraque, a expressão máxima <strong>do</strong> terror, o chama<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Islâmico.<br />
Esse movimento de inspiração sunita tem si<strong>do</strong> responsável por alguns <strong>do</strong>s<br />
maiores atos de selvageria e barbárie de que se tem notícia na história recente<br />
da humanidade, dirigin<strong>do</strong> sua fúria homicida contra a facção xiita e as minorias<br />
religiosas da região, principalmente cristãs.<br />
O presidente americano Barack Obama, líder mais importante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
ocidental, tem feito um esforço sistemático no senti<strong>do</strong> de isentar a religião<br />
islâmica de qualquer responsabilidade por essas atrocidades. Ele jamais utiliza<br />
a expressão “terroristas islâmicos” – são simplesmente terroristas. Mesmo<br />
no caso <strong>do</strong> ataque de um grupo radical da Somália contra uma universidade<br />
<strong>do</strong> Quênia, em 2 de abril de <strong>20</strong>15, no qual 147 estudantes foram mortos pelo<br />
fato de serem cristãos, ele não se referiu aos terroristas como muçulmanos<br />
nem aos estudantes como cristãos. 2 Um ban<strong>do</strong> de extremistas simplesmente<br />
matou a esmo um enorme grupo de estudantes. Em outras palavras, o fator<br />
religioso seria irrelevante nesses episódios. Para Obama, tais indivíduos de<br />
mo<strong>do</strong> algum representam o islã, que para ele é essencialmente uma religião<br />
de paz e tolerância.<br />
Porém, existem algumas perguntas que precisam ser respondidas. Se<br />
as motivações <strong>do</strong>s extremistas não têm uma origem islâmica, quais são de<br />
fato tais motivações? Seriam elas apenas de ordem política, social ou ideológica,<br />
sem qualquer dimensão religiosa? É de fato o islã uma religião cujos<br />
1 Em anos recentes, tem si<strong>do</strong> feita uma importante distinção terminológica no que se refere aos<br />
segui<strong>do</strong>res de Maomé. O termo “islã” é reserva<strong>do</strong> para essa religião no seu senti<strong>do</strong> geral, convencional.<br />
Já o termo “islamismo” é aplica<strong>do</strong> por muitos autores ao islã político ou fundamentalismo islâmico.<br />
2 W[hite H[ouse] Statement on Kenya terror attack fails to mention Christians were singled out.<br />
Disponível em: http://townhall.com/tipsheet/leahbarkoukis/<strong>20</strong>15/04/04/obama-statement-on-kenya-<br />
-n1980810. Acesso em: 13/05/<strong>20</strong>15.<br />
62
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
pressupostos conduzem a uma convivência harmoniosa com outras religiões<br />
e cosmovisões? O que dizem a história e a situação atual sobre isso? Principalmente,<br />
que tipos de valores e condutas caracterizam o islã majoritário ou<br />
normativo, conforme se observa na vida atual das nações islâmicas? Qual é o<br />
status <strong>do</strong>s grupos religiosos minoritários nesses países?<br />
Na tentativa de responder tais indagações, este artigo aborda inicialmente<br />
duas interpretações básicas <strong>do</strong> islã correntes nos meios acadêmicos. Em seguida,<br />
considera sucessivamente o surgimento dessa religião, suas crenças mais<br />
importantes e sua história subsequente, até o advento <strong>do</strong> islamismo radical<br />
no século <strong>20</strong>. Por último retoma a questão da tolerância, analisan<strong>do</strong> a lógica<br />
interna <strong>do</strong> islã, o conceito de jihad e a perseguição <strong>do</strong>s cristãos na atualidade,<br />
destacan<strong>do</strong> o que ocorre em alguns países significativos.<br />
1. atitudes quanto ao islã<br />
A literatura sobre a religião islâmica é vasta e se avolumou consideravelmente<br />
nas últimas décadas. 3 Isso se deve não somente ao recrudescimento<br />
<strong>do</strong> radicalismo associa<strong>do</strong> a essa religião, mas a um contato sem precedentes<br />
entre o mun<strong>do</strong> islâmico e o Ocidente nos últimos 50 anos. A maior parte das<br />
nações muçulmanas é pobre, muitas delas têm si<strong>do</strong> afligidas por guerras e<br />
revoluções, e isso produziu um grande êxo<strong>do</strong> para a Europa e os Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s. Estima-se que haja atualmente 5 milhões de muçulmanos na França,<br />
4 milhões na Alemanha e 3 milhões no Reino Uni<strong>do</strong>. Nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />
as estimativas estão em torno de 6 milhões. Devi<strong>do</strong> à imigração e a elevadas<br />
taxas de natalidade, esses números crescem continuamente.<br />
Recentemente, a organização Pew Research Center publicou um estu<strong>do</strong><br />
segun<strong>do</strong> o qual haverá um crescimento exponencial <strong>do</strong> islã nas próximas décadas,<br />
quan<strong>do</strong> o número de muçulmanos deverá se tornar quase igual ao de<br />
cristãos em termos mundiais. De <strong>20</strong>10 a <strong>20</strong>50, os cristãos deverão passar de 2,17<br />
para 2,92 bilhões e os muçulmanos, de 1,6 para 2,76 bilhões. Nesse perío<strong>do</strong>,<br />
o percentual de cristãos na população mundial se manterá em torno de 31,4,<br />
enquanto que o <strong>do</strong>s muçulmanos deverá crescer de 23,2 para 29,7. Depois de<br />
<strong>20</strong>70, existe a possibilidade de que o islã ultrapasse o cristianismo em número<br />
de adeptos. 4 O <strong>Centro</strong> para o Estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Cristianismo Global, <strong>do</strong> Seminário<br />
3 Nos últimos anos, várias dissertações sobre o tema foram apresentadas no curso de Mestra<strong>do</strong><br />
em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie: LIMA, César Rocha. Da Bíblia ao<br />
Alcorão: desconstruções e (re)construções simbólicas no processo de reversão ao islã no Brasil (<strong>20</strong>13);<br />
MAMEDES, Janoí Joaquim. A mesquita da luz: o islã sunita no Rio de Janeiro (<strong>20</strong>14); SILVA, Dirceu<br />
Alves da. A mulher muçulmana: uma visão panorâmica de Meca a São Paulo (<strong>20</strong>14); PAGANELLI, Magno.<br />
A relação entre a violência <strong>do</strong> Hamas e a interpretação <strong>do</strong> Corão (<strong>20</strong>14).<br />
4 Here is the best prediction yet of how Christianity and Islam will change worldwide by <strong>20</strong>50.<br />
Disponível em: http://www.christianitytoday.com/gleanings/<strong>20</strong>15/april/heres-best-prediction-yetchristianity-islam-<strong>20</strong>50-pew.html.<br />
Acesso em: 08/05/<strong>20</strong>15.<br />
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Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
Teológico Gor<strong>do</strong>n-Conwell, tem números mais otimistas, preven<strong>do</strong> que mais<br />
de 3,3 bilhões de pessoas serão cristãs em <strong>20</strong>50. 5<br />
Esses fatos destacam que o islã e o cristianismo estão viven<strong>do</strong> uma<br />
situação inteiramente nova. Nunca antes em toda a história houve um contato<br />
tão estreito entre esses <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s conceituais, e tal interação tem gera<strong>do</strong><br />
tanto grandes oportunidades quanto enormes tensões. Essa aproximação entre<br />
o Oriente islâmico e o Ocidente cristão se dá num momento muito particular<br />
da vida <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ocidental, caracteriza<strong>do</strong> pelo que se convencionou chamar<br />
de pós-modernidade. O hemisfério norte pós-moderno está aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong><br />
rapidamente as suas raízes cristãs e se deixan<strong>do</strong> seduzir pelo mais completo<br />
secularismo. Nesse ambiente irreligioso, floresce uma nova ideologia, o multiculturalismo,<br />
com a consequente valorização das minorias.<br />
Isso tem um la<strong>do</strong> positivo, o respeito pelos diferentes grupos que compõem<br />
a sociedade, em especial aqueles historicamente marginaliza<strong>do</strong>s, e um<br />
la<strong>do</strong> negativo, o aban<strong>do</strong>no ou relativização <strong>do</strong>s próprios valores em nome da<br />
igualdade de todas as culturas, bem como a rejeição de qualquer crítica às<br />
crenças e práticas de outros grupos. Esse relativismo para<strong>do</strong>xalmente mescla<strong>do</strong><br />
com uma tendência absolutista é o que se denomina “politicamente correto”.<br />
Tal clima cultural tem beneficia<strong>do</strong> grandemente o universo muçulmano, sen<strong>do</strong><br />
ativamente utiliza<strong>do</strong> pelos seus apologistas. Qualquer questionamento <strong>do</strong>s<br />
valores e práticas islâmicos é rapidamente tacha<strong>do</strong> de “islamofobia”, tanto por<br />
líderes dessa religião quanto por seus simpatizantes ocidentais.<br />
Um <strong>do</strong>s melhores livros sobre o islã publica<strong>do</strong>s originalmente em português<br />
é O Mun<strong>do</strong> Muçulmano, de Peter Demant, renoma<strong>do</strong> especialista internacional<br />
no assunto. Em sua obra, ele observa que, quan<strong>do</strong> se analisam as causas da grande<br />
crise vivida pelo islã e da ameaça que o radicalismo representa para o mun<strong>do</strong>,<br />
duas escolas interpretativas se opõem no Ocidente. 6 Uma delas, denominada<br />
“internalista”, argumenta que o próprio islã é o problema e que, para o desenvolvimento<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> muçulmano e sua democratização, é necessário que haja<br />
uma reforma dessa religião. Os principais representantes dessa teoria, chama<strong>do</strong>s<br />
por seus críticos de reacionários e “orientalistas”, são Bernard Lewis, 7 Daniel<br />
Pipes e Martin Kramer. A segunda escola, “externalista”, considera essa visão<br />
5 Ibid. O islã também tem cresci<strong>do</strong> no Brasil. Ver: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/<br />
agencia-esta<strong>do</strong>/<strong>20</strong>15/05/31/aumenta-numero-de-brasileiros-converti<strong>do</strong>s-ao-isla.htm.<br />
6 DEMANT, Peter. O mun<strong>do</strong> muçulmano. São Paulo: Contexto, <strong>20</strong>04, p. 334-336. Esse holandês<br />
nasci<strong>do</strong> em 1951 residiu por quase uma década em Israel e desde 1999 é professor <strong>do</strong> Departamento de<br />
História da Universidade de São Paulo.<br />
7 Bernard Lewis nasceu em Londres em 1916 e é professor emérito de Estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Oriente Próximo<br />
na Universidade de Princeton. Alguns de seus livros publica<strong>do</strong>s em português são: O Oriente Médio:<br />
<strong>do</strong> advento <strong>do</strong> cristianismo aos dias de hoje; Assassinos – os primórdios <strong>do</strong> terrorismo no islã; O que<br />
deu erra<strong>do</strong> no Oriente Médio?; A crise <strong>do</strong> islã: guerra santa e terror profano e A descoberta da Europa<br />
pelo islã, os primeiros publica<strong>do</strong>s pela editora Jorge Zahar e o último por Perspectiva.<br />
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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
reducionista e aponta para fatores exógenos – as intromissões ocidentais – como<br />
responsáveis pelos problemas das sociedades muçulmanas. Seus expoentes são<br />
Edward Said, Maxime Rodinson e John Esposito, que muitos consideram “uma<br />
‘quinta coluna’ islamófila na academia”. 8<br />
A escola internalista pre<strong>do</strong>minou até os anos 70. A partir da década seguinte,<br />
sob a influência de fatores como o pós-modernismo, as novas ênfases<br />
subjetivistas e relativistas na filosofia e nas ciências sociais, o relativismo cultural<br />
e o multiculturalismo, a posição externalista se tornou mais influente, até,<br />
em certos contextos, constituir “a nova orto<strong>do</strong>xia <strong>do</strong> ‘politicamente correto’”. 9<br />
Todavia, depois <strong>do</strong> 11 de setembro e agora mais ainda, com o surgimento <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> Islâmico e sua barbárie, a visão internalista novamente está ganhan<strong>do</strong><br />
credibilidade. Com vistas a compreender o ethos ou espírito <strong>do</strong> islã, e averiguar<br />
se ele é compatível ou não com a tolerância e a convivência pacífica com outros<br />
grupos, é necessário conhecer os contornos básicos de sua história e convicções.<br />
2. primórdios da fé islâmica<br />
O islã surgiu na península arábica no início <strong>do</strong> século 7º da era cristã. A<br />
Arábia estava situada na periferia de duas superpotências. De um la<strong>do</strong>, havia o<br />
Império Bizantino, na Ásia Menor, sucessor <strong>do</strong> antigo Império Romano oriental,<br />
ten<strong>do</strong> como religião oficial a igreja grega, mais tarde conhecida como orto<strong>do</strong>xa.<br />
Ao oriente estava o Império Sassânida, que incluía a Pérsia e a Mesopotâmia,<br />
herdeiro da velha civilização <strong>do</strong> zoroastrismo, sistema religioso-filosófico<br />
funda<strong>do</strong> no século 6º AC.<br />
Como as guerras contínuas haviam inviabiliza<strong>do</strong> a Rota da Seda, que<br />
trazia produtos da China para o Mediterrâneo através da Pérsia, os comerciantes<br />
buscaram rotas alternativas, sen<strong>do</strong> que uma delas atravessava o Hijaz, no<br />
noroeste da Arábia. Esse fato beneficiou grandemente a região, em especial a<br />
cidade de Meca, tradicional centro de peregrinação no qual muitas divindades<br />
eram cultuadas em torno de uma estranha pedra negra – um meteorito de 30<br />
centímetros de diâmetro ti<strong>do</strong> como sagra<strong>do</strong>. Mais tarde seria ergui<strong>do</strong> ali um<br />
edifício em forma de cubo, a Caaba (Ka’aba), local mais reverencia<strong>do</strong> <strong>do</strong> islã.<br />
A sociedade era tribal e o estilo de vida valorizava a liberdade de circulação,<br />
a preservação da honra e a lealdade ao clã. As lutas pelos escassos recursos<br />
eram frequentes, “o que provocava ciclos de vingança”. 10<br />
8 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. 336. Esposito é funda<strong>do</strong>r e diretor <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> para o Entendimento<br />
Muçulmano-Cristão, na Universidade Georgetown, em Washington. Esse centro recebeu uma<br />
<strong>do</strong>tação de <strong>20</strong> milhões de dólares <strong>do</strong> príncipe saudita Alwaleed Bin Talal e passou a ter o seu nome.<br />
Para uma avaliação crítica desse autor, ver: Schwartz, Stephen. John L. Esposito: apologist for<br />
Wahhabi Islam. American Thinker. Disponível em: http://www.americanthinker.com/articles/<strong>20</strong>11/09/<br />
john_l_esposito_ apologist_for_wahhabi_islam.html. Acesso em: 31/05/<strong>20</strong>15.<br />
9 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. 338.<br />
10 Ibid., p. 23-25.<br />
65
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
Nesse contexto entrou em cena a figura notável de Muhammad ou Maomé<br />
(570-632), que pertencia a um ramo <strong>do</strong> clã <strong>do</strong>s coraixitas, um <strong>do</strong>s mais poderosos<br />
de Meca. Aos 25 anos, ele casou-se com Khadija, uma rica viúva, com<br />
a qual teve uma única filha, Fátima. Era merca<strong>do</strong>r e acredita-se que em suas<br />
viagens comerciais foi influencia<strong>do</strong> por judeus e cristãos, <strong>do</strong>s quais recebeu<br />
suas concepções monoteístas. Aos 35 anos, resolveu um conflito entre três<br />
xeiques no templo de Meca e concluiu que podia ser um grande líder religioso<br />
de seu povo. Finalmente, aos 40 anos, sentiu-se chama<strong>do</strong> pelo anjo Gabriel<br />
(Jibril) a pregar a religião de um Deus único e to<strong>do</strong>-poderoso, diante <strong>do</strong> qual<br />
cada ser humano deve se submeter incondicionalmente. 11 Daí a palavra “islã”,<br />
isto é, “submissão”, sen<strong>do</strong> que “muçulmano” significa “aquele que se submete”.<br />
Aos 50 anos, Alá confirmou o chama<strong>do</strong> de Maomé levan<strong>do</strong>-o à noite para<br />
Jerusalém (esplanada <strong>do</strong> templo), onde ele conversou com Jesus (Issa), Moisés<br />
(Mussa) e Abraão (Ibrahim). A seguir, ele e o anjo subiram por uma escada até<br />
o sétimo céu. 12 Dois anos mais tarde, sua pregação contra a i<strong>do</strong>latria irritou a<br />
elite comercial de Meca, fazen<strong>do</strong> com que ele e seus poucos segui<strong>do</strong>res fossem<br />
expulsos. Seguiram então para a cidade de Iatreb, mais tarde denominada<br />
Medina, 300 quilômetros ao norte de Meca. Esse episódio, conheci<strong>do</strong> como<br />
héjira ou migração (hijra), marca o início <strong>do</strong> calendário muçulmano (ano<br />
622). Com o tempo, os muçulmanos impuseram sua superioridade militar em<br />
Medina, que se tornou a primeira comunidade a viver sob as leis da nova fé. 13<br />
O poder crescente de Maomé como líder político e militar levou um número<br />
cada vez maior de tribos a se aliar ao seu projeto. Com isso, ele impôs<br />
sua autoridade em sua cidade natal, Meca, limpou a Caaba de todas as divindades<br />
pagãs e estabeleceu-a com o principal centro da nova religião. Quan<strong>do</strong><br />
o funda<strong>do</strong>r morreu, em 632, nos braços da esposa favorita de seu harém, a<br />
maior parte da Arábia estava em mãos muçulmanas. Maomé se tornou uma<br />
figura altamente reverenciada pelos seus segui<strong>do</strong>res, que o consideram o último<br />
e maior <strong>do</strong>s profetas de Deus e o grande exemplo a ser segui<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s<br />
os aspectos da vida.<br />
Contu<strong>do</strong>, devoção ainda maior é prestada ao livro sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> islã, o Corão<br />
(Qur’an ou “recitação”), uma compilação de todas as revelações dadas a Maomé,<br />
que só recebeu sua versão definitiva trinta anos após a morte <strong>do</strong> profeta. Esse<br />
livro é considera<strong>do</strong> a revelação direta e pessoal de Alá, sen<strong>do</strong>, portanto, divino.<br />
Afirmam que existe um protótipo dele no próprio céu. Dessa maneira, ocorre<br />
uma curiosa inversão em comparação com o cristianismo. Neste, a pessoa de<br />
Cristo ocupa lugar supremo e a Bíblia uma posição subordinada. No islã é o<br />
11 HUME, Roberto Ernesto. Las religiones vivas. Buenos Aires e Montevidéu: Mun<strong>do</strong> Nuevo,<br />
1931, p. 223.<br />
12 BEVERLEY, James A. Muhammad amid the faiths. Christian History, v. XXI, n. 2 (<strong>20</strong>02), p. 12.<br />
13 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. 26.<br />
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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
oposto, vin<strong>do</strong> o Corão em primeiro lugar e em seguida a pessoa de Maomé.<br />
Esse livro é constituí<strong>do</strong> de 114 capítulos ou “suras”, que formam um volume<br />
pouco menor que o Novo Testamento. O primeiro capítulo contém uma breve<br />
oração inicial, a Fatiha. Em seguida, os capítulos estão dispostos em ordem<br />
decrescente de tamanho, desde o maior, com 286 versículos, até os menores,<br />
com menos de dez, num total de 6.236 versículos. Todas as suras, exceto a<br />
9ª, começam com a mesma fórmula: “Em nome de Alá, o Compassivo, o<br />
Misericordioso”.<br />
3. convicções fundamentais<br />
A religião islâmica é bastante complexa, porém dá ênfase especial a alguns<br />
poucos deveres essenciais, que são considera<strong>do</strong>s os cinco pilares <strong>do</strong> islã. São<br />
eles: (a) Shahada (testemunho): consiste na recitação diária de uma declaração<br />
de fé fundamental – “Não há outro Deus senão Alá e Maomé é seu profeta”.<br />
A simples repetição desse cre<strong>do</strong> é aceita como prova de conversão. (b) Salat<br />
(oração): os fiéis devem orar cinco vezes ao dia, de preferência em uma mesquita<br />
ou então sobre um tapete, volta<strong>do</strong>s em direção a Meca, a cidade sagrada.<br />
Nas sextas-feiras, realizam-se cerimônias especiais nas mesquitas. (c) Zakat<br />
(esmolas): a conversão ao islã supõe claramente o pagamento desse imposto<br />
de 2,5% <strong>do</strong>s rendimentos para os pobres e necessita<strong>do</strong>s. (d) Sawm (jejum):<br />
em especial no mês sagra<strong>do</strong> de Ramadã (9º mês), os fiéis praticam completa<br />
abstinência de relações sexuais, alimentos e água, mas apenas durante o dia.<br />
(e) Hajj (peregrinação): pelo menos uma vez na vida, deve-se ir a Meca para<br />
caminhar ao re<strong>do</strong>r da mesquita sagrada e realizar vários outros rituais; em caso<br />
de impossibilidade, pode-se mandar um substituto. 14<br />
Muitos consideram como outro pilar a jihad, que literalmente significa<br />
“esforço”, ou seja, a luta espiritual particular ou o empenho em prol da expansão<br />
<strong>do</strong> islã por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Esse conceito é entendi<strong>do</strong>, em especial pelos<br />
conserva<strong>do</strong>res, como “guerra santa” em defesa <strong>do</strong>s territórios e <strong>do</strong>s interesses<br />
islâmicos. Os teólogos dessa religião distinguem entre quatro modalidades:<br />
(1) jihad <strong>do</strong> coração – a luta contra as tendências más da natureza humana,<br />
a busca <strong>do</strong> aperfeiçoamento pessoal; (2) jihad da boca e da pena – o esforço<br />
verbal, na forma de argumentação e imprecações, visan<strong>do</strong> refutar a oposição ao<br />
islã, ou o uso da palavra escrita em sua defesa, como faz a apologética islâmica<br />
em relação às <strong>do</strong>utrinas centrais <strong>do</strong> cristianismo; (3) jihad da mão – promoção<br />
da causa de Alá por meio de ações louváveis como o tratamento exemplar <strong>do</strong>s<br />
outros e a devoção a Deus; (4) jihad da espada – combate físico em prol <strong>do</strong> islã. 15<br />
14 HUME, Las religiones vivas, p. 237s.<br />
15 ELASS, Mateen A. Four jihads. Christian History, v. XXI, n. 2 (<strong>20</strong>02), p. 35.<br />
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Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
Associa<strong>do</strong>s aos pilares <strong>do</strong> islã estão algumas <strong>do</strong>utrinas centrais, a começar<br />
<strong>do</strong> entendimento <strong>do</strong> ser supremo. Alá é ti<strong>do</strong> como um Deus absolutamente<br />
único, eterno, poderoso, onisciente, onipresente e transcendente, sen<strong>do</strong> tanto<br />
o politeísmo quanto a i<strong>do</strong>latria peca<strong>do</strong>s abomináveis. Existe uma distância<br />
intransponível entre Deus e os mortais, que lhe devem obediência absoluta.<br />
O islã também aceita a existência de anjos, jinns e demônios. Os primeiros<br />
intercedem pelos homens junto a Alá, sen<strong>do</strong> que Gabriel tem um status especial<br />
como arcanjo e às vezes é chama<strong>do</strong> o Espírito Santo. Os jinns ou gênios são<br />
seres intermediários entre os homens e os anjos. Um deles é o diabo (shaytan<br />
ou iblis), que está acompanha<strong>do</strong> de shayatin, demônios. No fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,<br />
haverá uma ressurreição geral. Os muçulmanos creem no juízo final, no paraíso<br />
e no inferno. O paraíso é descrito com abundantes prazeres para os senti<strong>do</strong>s:<br />
rios e jardins, ricas iguarias e diversos deleites sensuais. O inferno também é<br />
descrito com muito realismo. Outra convicção é a crença no destino (kismet)<br />
ou fatalismo absoluto, uma vez que tu<strong>do</strong> está predetermina<strong>do</strong> por Alá. 16<br />
Uma questão para<strong>do</strong>xal é a relação entre o islã e as duas religiões que<br />
lhe deram origem. Os muçulmanos creem que Deus levantou no mun<strong>do</strong> uma<br />
longa sucessão de profetas. O Corão menciona 28 deles, 23 pertencentes ao<br />
Antigo Testamento e três ao Novo Testamento (Zacarias, João Batista e Jesus).<br />
Outro deles é Saleh ou Selá, um antigo profeta árabe. Maomé é ti<strong>do</strong> como o<br />
último e o maior de to<strong>do</strong>s, e assim a revelação dada a ele inclui e transcende<br />
as anteriores. Ele se considerava um herdeiro das tradições judaica e cristã<br />
e a parte inicial <strong>do</strong> Corão expressa a esperança de que os “povos <strong>do</strong> livro” o<br />
aceitem como profeta. Todavia, seções posteriores fazem forte polêmica contra<br />
os <strong>do</strong>is grupos. Mesmo assim, Maomé manteve uma atitude positiva para<br />
com os cristãos e decretou que eles e os judeus deviam receber proteção sob<br />
o <strong>do</strong>mínio islâmico. 17<br />
A falta de familiaridade de Maomé com o cristianismo orto<strong>do</strong>xo fica<br />
evidente no Corão. O livro refuta três ensinos cristãos fundamentais: que Jesus<br />
era o filho de Deus, que ele morreu na cruz e que Deus é um ser trino. 18 Segun<strong>do</strong><br />
o islã, Jesus nasceu da virgem Maria e realizou muitos milagres, mas foi protegi<strong>do</strong><br />
da morte por crucificação e não ressuscitou dentre os mortos. Ele subiu<br />
ao céu após a morte e retornará à terra. Era um muçulmano fiel ou segui<strong>do</strong>r de<br />
Alá. Alega-se, sem qualquer evidência histórica, que os cristãos corromperam<br />
intencionalmente as suas Escrituras para incluir as <strong>do</strong>utrinas acima.<br />
Com toda a sua imensa importância, o Corão não é a única fonte das<br />
convicções e práticas <strong>do</strong>s muçulmanos. Existem também a tradição islâmica<br />
16 HUME, Las religiones vivas, p. 234-236.<br />
17 BEVERLEY, Muhammad amid the faiths, p. 13.<br />
18 Ibid.<br />
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FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
(hadith) e a lei islâmica (sharia). A hadith é um conjunto de tradições sobre<br />
Maomé, sua família e seus companheiros que são consideradas, tanto em seus<br />
aspectos legais quanto não legais, tão normativas quanto o Corão. 19 A sharia é a<br />
legislação islâmica conforme exposta no Corão, na tradição e na interpretação<br />
<strong>do</strong>s principais teólogos e juristas, especialmente nos séculos iniciais <strong>do</strong> islã.<br />
Abrange todas as áreas da vida: religião, relações sociais (família, herança,<br />
casamento) e lei criminal. <strong>20</strong> Classifica as ações humanas em cinco categorias –<br />
obrigatórias, indicadas, neutras, reprováveis e proibidas –, prescreven<strong>do</strong> para<br />
estas últimas terríveis punições corporais.<br />
Uma característica notável <strong>do</strong> islã é o seu caráter abrangente ou totalizante,<br />
in<strong>do</strong> muito além <strong>do</strong> que ocorreu na cristandade medieval. A fé islâmica<br />
condiciona todas os aspectos da vida <strong>do</strong>s fiéis, tanto no plano individual quanto<br />
coletivo. Com isso, entre outras consequências, não existe separação entre as<br />
esferas sagrada e secular, entre o âmbito religioso e o social. O islã tem também<br />
grande visibilidade, pois é pratica<strong>do</strong> de maneira muito aberta e pública, em<br />
contraste com o caráter cada vez mais privativo da espiritualidade no Ocidente.<br />
Adicionalmente, essa religião exerce forte poder de atração sobre seus fiéis<br />
e é objeto de grande fervor devocional. Os muçulmanos têm muito interesse<br />
pela religiosidade e gostam de falar sobre o assunto.<br />
Eles se orgulham de constituir uma só comunidade mundial – a umma,<br />
também conhecida como Dar al-islam (“a casa <strong>do</strong> islã”), o conjunto de to<strong>do</strong>s<br />
os territórios submeti<strong>do</strong>s a essa fé. Todavia, para<strong>do</strong>xalmente a comunidade<br />
islâmica sofre graves tensões e divisões por motivos étnicos, políticos, econômicos<br />
e também religiosos. Numa época em que havia maior diversidade no<br />
islã, surgiram muitas seitas e movimentos com ênfases diferentes. Além <strong>do</strong>s<br />
sunitas e xiitas originais, que em alguns países são inimigos acerbos, existem<br />
os sufis, adeptos de uma tendência mística <strong>do</strong> sunismo que dá ênfase à imanência<br />
de Deus e não à sua transcendência. Seu nome deriva da vestimenta de lã<br />
usada pelos adeptos (suf). Alguns grupos sectários são os alawitas ou nusairis<br />
(seita xiita extrema da Síria que venera Ali), os alevitas (ramo xiita da Turquia<br />
com influências pré-islâmicas), os zaiditas (corrente xiita moderada <strong>do</strong> Iêmen)<br />
e os ahmadis (movimento messiânico e pacifista funda<strong>do</strong> na Índia no final<br />
<strong>do</strong> século 19). Nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, existe a Nação <strong>do</strong> Islã, um movimento<br />
19 SCHIRRMACHER, Christine. Islam: an introduction. The WEA Global Issues Series 6. Bonn,<br />
Alemanha: Verlag für Kultur und Wissenschaft, <strong>20</strong>11, p. 31s. Essa autora e professora alemã é uma<br />
renomada especialista em estu<strong>do</strong>s islâmicos, com mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> na área. Leciona na Universidade<br />
Protestante de Lovaina (Bélgica) e na Universidade de Bonn. É diretora <strong>do</strong> Instituto Internacional de<br />
Estu<strong>do</strong>s Islâmicos, da Aliança Evangélica Mundial. Seu esposo, Dr. Thomas Schirrmacher, é presidente<br />
da Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial.<br />
<strong>20</strong> Ibid., p. 75. Sobre a relação entre sharia e direitos humanos, ver SCHIRRMACHER, Thomas.<br />
Human rights. WEA Global Issues Series 5. Bonn: Verlag für Kultur und Wissenschaft, <strong>20</strong>14, p. 57-59.<br />
69
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
de negros que possuía traços sectários, mas gradualmente foi absorvi<strong>do</strong> pelo<br />
sunismo orto<strong>do</strong>xo. 21<br />
4. história posterior<br />
A longa história <strong>do</strong> islã é dividida em vários estágios, nos quais ele se<br />
expandiu amplamente até ocupar uma enorme região <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que se estende<br />
<strong>do</strong> norte da África à In<strong>do</strong>nésia. Essa história é repleta de avanços e recuos,<br />
de progresso e decadência, nos aspectos político, econômico e intelectual.<br />
4.1 Conflitos iniciais<br />
Os primeiros trinta anos após a morte <strong>do</strong> funda<strong>do</strong>r foram cenário de intensa<br />
luta pela liderança <strong>do</strong> movimento. Maomé morreu sem indicar claramente<br />
um sucessor, o que levou ao surgimento de duas tendências antagônicas que<br />
persistem até hoje. A posição majoritária considerou que qualquer fiel podia ser<br />
candidato à sucessão, desde que aceito pela comunidade. O primeiro sucessor<br />
ou “califa” foi Abu Bakr, velho companheiro <strong>do</strong> profeta, que consoli<strong>do</strong>u o<br />
poder islâmico na maior parte da Arábia. Ele foi sucedi<strong>do</strong> em 634 por Umar<br />
ibn al-Khattab, que conquistou vastos territórios <strong>do</strong> Império Bizantino (Egito,<br />
Síria, Palestina, Mesopotâmia e uma porção <strong>do</strong> Cáucaso), bem como parte <strong>do</strong><br />
Império Persa. O terceiro califa, Uthman ibn Affan (644-656) consoli<strong>do</strong>u as<br />
conquistas <strong>do</strong> anterior e tomou o norte da África. 22 No seu governo, houve a<br />
fixação definitiva <strong>do</strong> texto <strong>do</strong> Corão.<br />
A seguir, manifestou-se a segunda tendência na liderança <strong>do</strong> islã, que se<br />
tornou minoritária: a opinião de que os sucessores <strong>do</strong> profeta deviam pertencer<br />
à sua própria família. Em 656, assumiu o califa<strong>do</strong> seu genro Ali, casa<strong>do</strong> com<br />
Fátima. Porém, sua autoridade foi contestada por Mu’awiyya, membro de outro<br />
ramo <strong>do</strong>s coraixitas. Seguiu-se uma guerra civil que resultou no assassinato de<br />
Ali em 661. Surgiu a partir daí uma divisão permanente no islã. Os segui<strong>do</strong>res<br />
de Ali e seus sucessores formaram o parti<strong>do</strong> ou facção (shi’a) de Ali, de onde<br />
procedem os xiitas, que hoje constituem cerca de 10 a 15% <strong>do</strong>s muçulmanos.<br />
A maior parte <strong>do</strong>s árabes aceitou a liderança de Mu’awiyya, que deu início a<br />
uma dinastia, a <strong>do</strong>s omíadas. Esse grupo veio a constituir a maioria orto<strong>do</strong>xa<br />
islâmica, os segui<strong>do</strong>res da tradição (sunna), de onde vem o termo sunitas. A<br />
dinastia xiita inicial teve uma existência breve e trágica. Hassan, filho e sucessor<br />
de Ali, foi assassina<strong>do</strong> em 669. Seu filho Hussein liderou uma rebelião contra<br />
Yazid, sucessor de Mu’awiyya, e foi decapita<strong>do</strong>. Os xiitas até hoje glorificam o<br />
sacrifício de Hussein e contestam a legitimidade <strong>do</strong>s califas sunitas. Para eles,<br />
as autoridades supremas sobre a comunidade islâmica (umma) são os imãs. 23<br />
21 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. 182s.<br />
22 Ibid., p. 38.<br />
23 Ibid., p. 37-40.<br />
70
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
A maior parte <strong>do</strong>s xiitas vive no Irã, Iraque, Paquistão e Índia. Dividem-se em<br />
três grupos principais: duodécimos, ismailis e zaidis.<br />
4.2 Os grandes impérios<br />
Graças às suas notáveis conquistas militares, os muçulmanos fundaram<br />
vastos impérios. O primeiro deles, o Império Omíada, perdurou por quase um<br />
século (661-750), ten<strong>do</strong> sua capital em Damasco, na Síria, e se estendeu da<br />
Península Ibérica até a Índia. Completou a conquista <strong>do</strong> norte da África até o<br />
Maghreb (Marrocos) e invadiu a Espanha em 711. Porém, o avanço islâmico<br />
na Europa ocidental foi permanentemente deti<strong>do</strong> pelos franceses no ano 732, na<br />
célebre batalha de Tours ou Poitiers. 24 As conquistas muçulmanas desse perío<strong>do</strong><br />
representaram sérias perdas para o cristianismo, tanto no Oriente Médio quanto<br />
no norte da África. Importantes centros cristãos como Antioquia, Alexandria<br />
e Cartago foram permanentemente perdi<strong>do</strong>s para o islã. No início, os cristãos<br />
foram trata<strong>do</strong>s com certa tolerância por estarem entre os “povos <strong>do</strong> livro”,<br />
ou seja, outras religiões monoteístas que possuíam um livro sagra<strong>do</strong> anterior.<br />
Não havia pressões para a conversão e eles tinham o status de comunidade<br />
protegida (dhimma). Contu<strong>do</strong>, sofriam várias limitações e nunca estiveram<br />
plenamente seguros. Tinham de usar um vestuário diferente e pagar um imposto<br />
individual (jizya).<br />
Na década de 740, uma revolta <strong>do</strong>s muçulmanos não árabes (mawali),<br />
lidera<strong>do</strong>s por Abu al-Abbas, parente distante de Maomé, derrotou os omíadas<br />
e tomou grande parte de seus territórios. A nova dinastia, sediada em Bagdá,<br />
equiparou os direitos de to<strong>do</strong>s os muçulmanos. O Império Abássida (750-1258)<br />
foi o mais poderoso e avança<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de então, especialmente nos seus <strong>do</strong>is<br />
primeiros séculos, um perío<strong>do</strong> de extraordinária prosperidade e florescimento<br />
cultural que é considera<strong>do</strong> a época de ouro da civilização islâmica. 25 Deu notáveis<br />
contribuições no âmbito da ciência (astronomia, alquimia, matemática,<br />
medicina, ótica), literatura, filosofia, arquitetura e tecnologia.<br />
A partir <strong>do</strong> século 11, os territórios islâmicos sofreram a invasão de<br />
tribos nômades da Eurásia que, ao mesmo tempo em que abraçaram o islã,<br />
causaram tumulto e destruição durante séculos. Os principais desses povos<br />
foram os turcos e os mongóis. Os primeiros tiveram uma vitória decisiva contra<br />
os bizantinos na Batalha de Manzikert, em 1071, que abalou o equilíbrio<br />
geopolítico da região. Esses turcos seljúcidas criaram um sultanato que veio<br />
a incorporar a Síria e a Palestina. Os obstáculos coloca<strong>do</strong>s pelos sultões aos<br />
peregrinos cristãos que queriam visitar os locais sagra<strong>do</strong>s da Palestina foram<br />
o motivo inicial das Cruzadas (1096-1291), grandes campanhas militares <strong>do</strong>s<br />
24 Para uma reavaliação recente desse episódio, ver: LEWIS, David Levering. O islã e a formação<br />
da Europa de 570 a 1215. Barueri, SP: Amarilys, <strong>20</strong>10.<br />
25 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. 43.<br />
71
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
europeus que mais tarde foram transformadas em um símbolo da agressão cristã<br />
contra o islã. 26 Contu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ponto de vista estratégico e psicológico, a perda<br />
da Península Ibérica (al-Andalus) foi bem mais grave para os muçulmanos,<br />
ten<strong>do</strong> se concluí<strong>do</strong> em 1492 com a queda de Granada.<br />
Ainda mais devasta<strong>do</strong>ras para o mun<strong>do</strong> islâmico foram as invasões mongólicas<br />
de Genghis Khan e seus sucessores, principalmente durante o século<br />
14. No âmbito religioso e cultural, a principal consequência dessas invasões<br />
foi a crescente rigidez <strong>do</strong>gmática <strong>do</strong> islã, que se tornou mais intolerante para<br />
com suas dissidências internas e os adeptos de outras religiões (dhimmis).<br />
Demant acredita que essa virada teológica conserva<strong>do</strong>ra “afetou negativamente<br />
a capacidade muçulmana para reagir aos desafios lança<strong>do</strong>s posteriormente<br />
pelo Ocidente”. 27<br />
Outra tribo turca, liderada por Osman, criou o poderoso e dura<strong>do</strong>uro<br />
Império Otomano (1281-1924). Eles tomaram Constantinopla em 1453, pon<strong>do</strong><br />
fim ao antigo Império Bizantino, outra enorme perda para o cristianismo. Os<br />
otomanos avançaram pelos Bálcãs até Viena, na Áustria, e conquistaram o<br />
Oriente Médio e o norte da África até as fronteiras <strong>do</strong> Marrocos. Implantaram<br />
em to<strong>do</strong> o império a supremacia sunita, mas não conseguiram conquistar a<br />
Pérsia (Irã), até hoje solidamente xiita. O auge desse império se deu no século<br />
16 com o sultão Suleiman, o Magnífico. 28 Após uma longa decadência, o<br />
império turco chegou ao fim na esteira da 1ª Guerra Mundial, não sem antes<br />
ter produzi<strong>do</strong> o genocídio armênio (1915-1923). 29<br />
Ao longo <strong>do</strong>s séculos, o islã também se expandiu amplamente na Índia,<br />
no sudeste asiático (In<strong>do</strong>nésia, Malásia, Filipinas) e na África saariana e oriental.<br />
Na Índia, houve choques violentos com o hinduísmo, que culminaram no<br />
fim <strong>do</strong> século 17 com o surgimento <strong>do</strong> fundamentalismo hindu, fortemente<br />
antimuçulmano. Ao mesmo tempo em que o império otomano e outras regiões<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> islâmico entravam em declínio cultural, intelectual e político, o<br />
Ocidente cristão experimentou grande desenvolvimento, graças a fenômenos<br />
como a Reforma Protestante, o iluminismo e a revolução industrial. Finalmente,<br />
as regiões fortemente islamizadas da Ásia, Índia e <strong>do</strong> próprio Oriente Médio<br />
caíram, ainda que por breve tempo, sob o controle das potências coloniais<br />
europeias. Esses fatos, associa<strong>do</strong>s às circunstâncias da criação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de<br />
26 Nos três volumes de sua obra História das Cruzadas (1951-1954), Sir Steven Runciman<br />
contribuiu para divulgar a ideia de que os combatentes cristãos foram vilões e os muçulmanos, vítimas<br />
inocentes e heroicas.<br />
27 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. 56.<br />
28 Sobre como o reforma<strong>do</strong>r Martinho Lutero interpretou a ameaça turca contra a Europa, ver:<br />
MILLER, Gregory. From Crusades to homeland defense. Christian History, v. XXI, n. 2 (<strong>20</strong>02), p. 31-34.<br />
29 Quanto a esse episódio, ver: MATOS, Alderi S. Armênios – um centenário <strong>do</strong>loroso. Brasil<br />
<strong>Presbiteriano</strong>, maio <strong>20</strong>15, p. 8s; Genocídio armênio – memória e negação. Ultimato, julho-agosto <strong>20</strong>15.<br />
72
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
Israel, alimentaram um sentimento de humilhação, injustiça e trauma que<br />
acabou resultan<strong>do</strong> no surgimento <strong>do</strong> islã político ou radicalismo muçulmano. 30<br />
4.3 O fundamentalismo islâmico<br />
Em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século <strong>20</strong>, os países árabes se defrontaram com duas<br />
opções políticas que resultaram em fracasso: de um la<strong>do</strong>, a modernização<br />
pró-ocidental; de outro, o nacionalismo secular e os governos autoritários daí<br />
resultantes. No vácuo dessa crise, surgiu o fundamentalismo muçulmano ou<br />
islamismo, defini<strong>do</strong> por Peter Demant como<br />
uma ideologia política antimoderna, anti-secularista e antiocidental, cujo projeto<br />
é converter o indivíduo para que se torne um muçulmano religioso observante, é<br />
transformar a sociedade formalmente muçulmana em uma comunidade religiosa<br />
voltada ao serviço a Deus e estabelecer o reino de Deus em toda a Terra. 31<br />
O autor acrescenta que essa tendência talvez seja a vertente pre<strong>do</strong>minante <strong>do</strong><br />
islã atual.<br />
O fundamentalismo começou com uma fase sunita nos anos 50 a 70,<br />
graças aos escritos <strong>do</strong> paquistanês Abu al-Ala Mawdudi (1903-1979) e de seu<br />
discípulo egípcio Sayyid Qutb (1906-1966), liga<strong>do</strong> à Fraternidade Muçulmana.<br />
Em seguida, nos anos 80, houve um intervalo xiita sob a liderança <strong>do</strong> aiatolá<br />
Ruhollah Khomeini (1902-1989), o qual, reagin<strong>do</strong> contra a modernização<br />
pró-ocidental <strong>do</strong> seu país, idealizou e liderou a Revolução Iraniana (1978-<br />
1979), que implantou a primeira república islâmica. Outra expressão desse<br />
fundamentalismo xiita foi o grupo Hezbollah, surgi<strong>do</strong> no Líbano. Finalmente,<br />
a partir <strong>do</strong>s anos 90, ocorreu a internacionalização <strong>do</strong> radicalismo islâmico na<br />
esteira da Guerra <strong>do</strong> Golfo (1991). 32 Algumas das manifestações mais conhecidas<br />
dessa fase são as organizações terroristas Hamas (territórios palestinos),<br />
Talebã (Afeganistão) e al-Qaeda, <strong>do</strong> saudita Osama bin Laden, morto em <strong>20</strong>11.<br />
Finalmente, em <strong>20</strong>14, esse radicalismo entrou em um estágio ainda mais apavorante<br />
com o Esta<strong>do</strong> Islâmico <strong>do</strong> Iraque e da Síria e seu séquito de horrores.<br />
Segun<strong>do</strong> os teóricos <strong>do</strong> fundamentalismo, os princípios que inspiram<br />
o movimento são os seguintes: antiapologia (o islã é perfeito e não precisa<br />
de justificação), antiocidentalismo (é preciso manter uma barreira contra o<br />
mun<strong>do</strong> não muçulmano), literalismo (o texto sagra<strong>do</strong> deve ser entendi<strong>do</strong> de<br />
maneira literal), politização (deve haver a implantação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> islâmico) e<br />
30 Sobre essas questões, ver entrevista com J. Dudley Woodberry em: Christian History, v. XXI,<br />
n. 2 (<strong>20</strong>02), p. 43-45.<br />
31 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. <strong>20</strong>1.<br />
32 Ibid.<br />
73
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
universalismo (o islã precisa ser imposto a toda a humanidade). 33 Daí resultam<br />
várias ênfases <strong>do</strong> fundamentalismo atual: islamização da política, da sociedade<br />
civil e da cultura; construção de um islã internacional; luta militar aberta em<br />
novas frentes; islamização das diásporas muçulmanas no Ocidente. 34 Tu<strong>do</strong><br />
isso chega ao auge na guerra internacional de bin Laden e, posteriormente, <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> Islâmico.<br />
5. a tolerância no islã<br />
A esta altura, é necessário voltar às indagações <strong>do</strong> início. Será que as ações<br />
<strong>do</strong> fundamentalismo islâmico são de fato uma deturpação <strong>do</strong> verdadeiro islã,<br />
como alegam muitos apologistas dessa religião? Deixan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> as ações<br />
<strong>do</strong>s grupos extremistas, é a fé muçulmana uma religião de paz, tolerância e<br />
concórdia com outros grupos? Muitos autores, quer sejam adeptos dessa fé<br />
ou não, defendem tal tese. 35 A quarta capa de uma monografia declara: “Por<br />
meio de ilustrações históricas convincentes e cuida<strong>do</strong>sa exposição teológica,<br />
[o livro] apresenta um argumento conciso mas irrefutável de que a fé islâmica<br />
é inerente e enfaticamente tolerante por natureza e disposição”. 36 Outro autor<br />
conclui um estu<strong>do</strong> sobre o tema com a seguinte declaração:<br />
Sem dúvida, historicamente, a civilização islâmica revelou notável capacidade<br />
de adaptação e reconciliação. Ela apresentou grandes exemplos de tolerância e<br />
boa-vontade universal. Sua singular filosofia de tolerância está fundamentada<br />
no amor, serviço e bem-estar <strong>do</strong> humanismo. 37<br />
Em geral, os argumentos em favor da tolerância islâmica se concentram<br />
em três aspectos: exemplos de atitudes conciliatórias de Maomé, passagens<br />
<strong>do</strong> Corão que demonstram uma atitude pacífica para com outros grupos e<br />
situações concretas de convivência cordial entre muçulmanos e adeptos de<br />
outras religiões. Ao mesmo tempo, procuran<strong>do</strong> inverter a discussão, os apologistas<br />
islâmicos gostam de apontar para exemplos de intolerância cristã,<br />
33 Ibid., p. <strong>20</strong>6-<strong>20</strong>9.<br />
34 Ibid., p. 248.<br />
35 No âmbito acadêmico, ver, por exemplo, em ordem cronológica: TYLER, Aaron. Religious<br />
tolerance and Islam: a case study of Turkey. <strong>Fides</strong> et Historia 37, n. 1, Wint-Spr <strong>20</strong>05, p. 35-51; OMAR,<br />
Abdul Rashied. Islam beyond tolerance: the Qur’anic concept of ta’aruf. Brethren Life and Thought 53,<br />
n. 2, Spr <strong>20</strong>08, p. 15-<strong>20</strong>; KHAN, A. Q. Tolerance in Islam. Hamdard Islamicus 32, n. 2, Apr-Jun <strong>20</strong>09,<br />
p. 93-95; KAZMI, Syed Latif Hussain. An essay on the place of tolerance in Islam. Journal of Shi‘a<br />
Islamic Studies, v. II, n. 1, Winter <strong>20</strong>09, p. 27-51; SHAH-KAZEMI, Reza. The spirit of tolerance in<br />
Islam. Londres, Nova York: Institute of Ismaili Studies, <strong>20</strong>12.<br />
36 SHAH-KAZEMI, The spirit of tolerance in Islam, quarta capa. Minha tradução.<br />
37 KAZMI, An essay on the place of tolerance in Islam, p. 49. Minha tradução. O autor é professor<br />
de filosofia na Universidade Muçulmana de Aligarh, na Índia.<br />
74
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
mencionan<strong>do</strong> nesse senti<strong>do</strong> as Cruzadas, a Inquisição, a expulsão <strong>do</strong>s mouros<br />
da Península Ibérica, o extermínio <strong>do</strong>s indígenas <strong>do</strong> Novo Mun<strong>do</strong> e a escravidão<br />
nas Américas, entre outros episódios. 38 Eles deliberadamente se esquecem de<br />
que, em primeiro lugar, nenhuma dessas condutas foi motivada por convicções<br />
e valores cristãos e, em segun<strong>do</strong> lugar, os cristãos atuais lamentam esses<br />
erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e têm expressa<strong>do</strong> publicamente o seu profun<strong>do</strong> pesar pelos<br />
mesmos. Em contraste com isso, um exame deti<strong>do</strong> <strong>do</strong> islã mostra que existem<br />
aspectos muito preocupantes quanto à questão da tolerância em suas fontes,<br />
em sua história passada e em seu comportamento atual.<br />
5.1 O ethos <strong>do</strong> islã<br />
Por ser a mais recente das grandes religiões mundiais, por entender que o<br />
seu funda<strong>do</strong>r é o último e o maior <strong>do</strong>s profetas e por acreditar que o seu livro<br />
sagra<strong>do</strong> é a própria palavra divina aos seres humanos, o islã acredita que sua<br />
missão é levar o mun<strong>do</strong> inteiro a conhecer a Alá e submeter-se a ele. Embora<br />
o cristianismo também seja uma religião universalista, os cristãos sabem que<br />
nunca a humanidade inteira aceitará o evangelho. Os muçulmanos não só<br />
acreditam que o mun<strong>do</strong> pode e deve aceitar a fé islâmica, mas estão dispostos<br />
a utilizar qualquer meio para que isso aconteça. Essa mentalidade certamente<br />
não é condizente com um espírito tolerante, porque a tolerância pressupõe<br />
que to<strong>do</strong>s têm o direito de crer no que quiserem sem ser coagi<strong>do</strong>s a crer ou<br />
deixar de crer.<br />
Outra dificuldade é que pre<strong>do</strong>mina no islã uma veneração profunda pelas<br />
origens dessa religião. Assim, tanto a pessoa de Maomé quanto o Corão e a<br />
tradição islâmica são considera<strong>do</strong>s intocáveis. O funda<strong>do</strong>r é idealiza<strong>do</strong> e considera<strong>do</strong><br />
um ser perfeito em suas virtudes e ações. Um autor o descreve com<br />
as seguintes expressões: “protótipo da perfeição humana e espiritual”, “ideal<br />
perfeito da vida moral”, “a perfeição personificada”, “o modelo perfeito de<br />
um comportamento ético”. 39 O problema é que Maomé foi também um líder<br />
político e militar, ten<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> a força e a violência para impor as suas convicções.<br />
O Corão, ao la<strong>do</strong> de muitas expressões de brandura no tratamento <strong>do</strong>s<br />
não muçulmanos, também ostenta passagens eivadas de forte agressividade.<br />
Aqui está uma diferença fundamental entre o islã e o cristianismo. Embora<br />
Jesus tenha usa<strong>do</strong> uma linguagem forte em relação aos líderes <strong>do</strong> judaísmo e<br />
em certa ocasião tenha expulsa<strong>do</strong> os que faziam comércio no recinto <strong>do</strong> templo,<br />
a tônica da sua mensagem foi o amor, o perdão, a não retaliação e a pregação<br />
pacífica <strong>do</strong> reino de Deus. Também é interessante o que ocorre com a Bíblia.<br />
38 No primeiro semestre de <strong>20</strong>15, o presidente Barack Obama utilizou argumentos semelhantes em<br />
pelo menos duas ocasiões: no National Prayer Breakfast, em 5 de fevereiro, e no Easter Prayer Breakfast,<br />
na Casa Branca, em 7 de abril.<br />
39 KAZMI, An essay on the place of tolerance in Islam, p. 34s.<br />
75
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
Embora o Antigo Testamento tenha passagens muito contundentes em relação a<br />
outros povos, nem os judeus de hoje e muito menos os cristãos as utilizam para<br />
justificar qualquer beligerância contra os que não creem como eles. Existe uma<br />
série de fatores exegéticos e históricos que atenuam ou afastam por completo<br />
a aplicação literal daqueles textos para hoje.<br />
No islã, a dinâmica é diferente. A altíssima devoção pelos elementos<br />
fundantes dessa religião faz com que os valores, méto<strong>do</strong>s e práticas originais<br />
continuem a ser legitima<strong>do</strong>s no presente. 40 Os muçulmanos gostam de citar uma<br />
conhecida frase <strong>do</strong> Corão que declara: “Não pode haver coação na religião”<br />
(2:256). Porém, existem outras partes <strong>do</strong> livro sagra<strong>do</strong> que não são assim tão<br />
condescendentes. Isso fica particularmente claro no que diz respeito à noção<br />
fundamental de jihad.<br />
5.2 O conceito de jihad<br />
Como foi visto, a <strong>do</strong>utrina islâmica aceita três formas relativamente<br />
pacíficas de jihad ou esforço em prol da fé: <strong>do</strong> coração, da boca/da pena e da<br />
mão. Porém existe uma quarta modalidade, a jihad da espada, que <strong>do</strong>mina a<br />
história e a jurisprudência islâmica. Em muitas de suas ocorrências no Corão,<br />
ela significa um apelo ao combate físico em favor <strong>do</strong> islã. O conceito tem<br />
quatro estágios de desenvolvimento no livro sagra<strong>do</strong>. 41 Quan<strong>do</strong> o islã era um<br />
movimento incipiente, Maomé aconselhou uma política de persuasão pacífica<br />
(16:125-126). Posteriormente decretou que a luta era permissível somente para<br />
repelir a agressão e resgatar bens confisca<strong>do</strong>s por infiéis (22:39). Em novo<br />
estágio, essa permissão para lutar em autodefesa logo se tornou uma obrigação<br />
religiosa de combater aqueles que iniciassem hostilidades contra a comunidade<br />
islâmica (2:190-194). À medida que a <strong>do</strong>utrina se desenvolveu, o funda<strong>do</strong>r<br />
ensinou que aqueles que sacrificassem suas vidas em batalha pela causa de<br />
Alá seriam recebi<strong>do</strong>s no nível mais eleva<strong>do</strong> <strong>do</strong> céu (9:38-39).<br />
O terceiro estágio levou a jihad da defesa para o ataque, exceto nos quatro<br />
meses de peregrinação religiosa:<br />
Passa<strong>do</strong>s os meses sagra<strong>do</strong>s, combatei e matai os idólatras onde os encontrardes,<br />
aprisionai-os, cercai-os e armai-lhes emboscadas. Porém, caso se arrependam,<br />
observem as orações e deem esmolas, deixai-os em paz no seu caminho, porque<br />
Deus é indulgente e misericordioso (9:5).<br />
40 Um autor mostra como a rigidez <strong>do</strong> Corão conflita com a ideia de tolerância: HYSENI, Nezir.<br />
Tolerance and the Qur’an: understanding the unavoidable Islam. Disponível em: www.answering-islam.<br />
org/Quran/Themes/tolerance.html. Acesso em: 31/05/<strong>20</strong>15.<br />
41 ELASS, Four jihads, p. 36-38.<br />
76
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
A evolução final <strong>do</strong> conceito afastou quaisquer limitações quanto à época<br />
de batalhar pela causa de Alá. Quan<strong>do</strong> comanda<strong>do</strong>s por um líder reconheci<strong>do</strong>,<br />
os muçulmanos podiam atacar os incrédulos em qualquer época e em qualquer<br />
lugar que ainda não havia se rendi<strong>do</strong> aos exércitos <strong>do</strong> islã: “Combatei os que<br />
não creem em Deus e no Dia <strong>do</strong> Juízo Final, não se abstêm <strong>do</strong> que Deus e o seu<br />
profeta proibiram, não professam a verdadeira religião daqueles que receberam<br />
o Livro, até que eles, submissos, paguem o tributo” (9:29).<br />
De acor<strong>do</strong> com a jurisprudência islâmica, este último estágio é normativo<br />
para o islã. A prática desse princípio – jihad como “guerra santa” – explica boa<br />
parte da expansão muçulmana ao longo da história, pelo menos em regiões<br />
anteriormente cristãs. O islã é a única das grandes religiões que, principalmente<br />
nos primeiros séculos de sua história, utilizou sistematicamente a conquista<br />
militar como meio de expandir a fé. Quan<strong>do</strong> confronta<strong>do</strong>s com essa história<br />
de coerção e expansão, ao invés de se sentirem constrangi<strong>do</strong>s, os muçulmanos<br />
se orgulham dessa herança. 42<br />
5.3 O islã e os outros<br />
É verdade que, ainda em seus primórdios, os muçulmanos não obrigavam<br />
os não segui<strong>do</strong>res que viviam entre eles a ser converter, principalmente<br />
judeus e cristãos, os chama<strong>do</strong>s “povos <strong>do</strong> livro”. Tecnicamente, os dhimmis<br />
eram comunidades protegidas no seio <strong>do</strong> islã; contu<strong>do</strong>, sofriam uma série de<br />
limitações. Tinham de usar vestes diferentes, deviam pagar um imposto e não<br />
usufruíam <strong>do</strong>s mesmos direitos políticos. Assim, experimentavam claramente<br />
uma situação de inferioridade e dependiam a cada momento da indulgência da<br />
maioria. Essa condição não lhes dava nenhuma segurança e com frequência<br />
eram persegui<strong>do</strong>s. 43<br />
Infelizmente, o próprio Maomé estabeleceu um monstruoso precedente de<br />
intolerância fatal. Quan<strong>do</strong> ele fugiu de Meca para Medina, havia nessa região<br />
três tribos judaicas. Pelo fato de não o aceitarem como profeta, ele expulsou<br />
duas delas, apossan<strong>do</strong>-se de suas terras e bens. A terceira, <strong>do</strong>s Banu Qurayza,<br />
teve um destino muito pior. Como eles se mantiveram neutros num ataque das<br />
forças de Meca contra Maomé, este os condenou à morte. À beira de uma vala<br />
aberta na ocasião, cerca de 800 homens e meninos foram decapita<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong><br />
as mulheres e crianças escravizadas. Esse horren<strong>do</strong> episódio é narra<strong>do</strong> com<br />
detalhes pelo biógrafo <strong>do</strong> profeta, Ibn Ishaq. 44<br />
42 Ibid., p. 38.<br />
43 Ver as severas estipulações <strong>do</strong> Pacto de Umar: Christian History, v. XXI, n. 2, p. 18.<br />
44 BEVERLEY, Muhammad amid the faiths, p. 15. Para uma narrativa detalhada, ver: www.<br />
thereligionofpeace.com/Muhammad/myths-mu-qurayza.htm. Acesso em: 31/05/<strong>20</strong>15. Há uma breve<br />
referência ao fato no Corão (33:26).<br />
77
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
Nos séculos seguintes, multiplicaram-se os casos de agressão contra as<br />
minorias, especialmente cristãs. Por exemplo, em 717 o califa Umar II iniciou a<br />
primeira perseguição geral de não muçulmanos; em 807, o califa Harun al-Rashid<br />
ordenou a destruição de igrejas novas; em 850, o califa Mutawakill forçou os<br />
cristãos a usarem distintivos amarelos; em 1009, o califa fatímida Hakim destruiu<br />
a Igreja <strong>do</strong> Santo Sepulcro, em Jerusalém, e em 1091, na véspera <strong>do</strong> início das<br />
Cruzadas, os turcos seljúcidas expulsaram os sacer<strong>do</strong>tes cristãos de Jerusalém. 45<br />
Outro problema para a apologética islâmica é o que ocorre com um grande<br />
grupo interno – as mulheres. Embora se alegue que o islã inicial representou<br />
uma elevação <strong>do</strong> status feminino em comparação com práticas anteriores, o<br />
fato é que persistem, em maior ou menor grau, muitas atitudes discriminatórias<br />
contra as mulheres sancionadas pela sharia: os homens têm direito à poligamia,<br />
as mulheres herdam só a metade <strong>do</strong> que os homens, seu testemunho em juízo é<br />
limita<strong>do</strong> ou não aceito, quan<strong>do</strong> acusadas de adultério são castigadas com maior<br />
severidade <strong>do</strong> que os homens, o mari<strong>do</strong> tem o direito de punir fisicamente a<br />
esposa. Em muitos países, elas nada podem fazer quan<strong>do</strong> são rejeitadas ou<br />
quan<strong>do</strong> seus filhos lhes são tira<strong>do</strong>s após um divórcio. 46 Outros sérios problemas<br />
são os casamentos força<strong>do</strong>s e os assassinatos em defesa da honra. 47<br />
Quan<strong>do</strong> se avalia a questão da tolerância no islã não é suficiente olhar<br />
para situações da história passada, nem para os exemplos de moderação existentes<br />
em alguns países islâmicos e na conduta de muitos fiéis que vivem no<br />
Ocidente. É preciso considerar o que ocorre hoje nas nações que compõem a<br />
vasta maioria <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> islâmico. Ao se fazer isso, o que se constata é uma<br />
realidade de cruel discriminação e repressão contra as populações cristãs que<br />
vivem pacificamente nessas regiões.<br />
5.4 A perseguição <strong>do</strong>s cristãos<br />
Um <strong>do</strong>s fatos mais desconcertantes da atualidade é o recrudescimento<br />
da violência contra os cristãos em muitas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Um livro recente<br />
sobre o assunto, depois de declarar que “os cristãos são o grupo religioso mais<br />
amplamente persegui<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> hoje”, apresenta uma estimativa segun<strong>do</strong><br />
a qual 75% <strong>do</strong>s atos de intolerância religiosa são direciona<strong>do</strong>s contra eles. 48<br />
45 Ver: Three phases of Christian-Muslim interaction. Christian History, v. XXI, n. 2 (<strong>20</strong>02), p. 26.<br />
46 SCHIRRMACHER, Christine. The Sharia: law and order in Islam. WEA World of Theology<br />
Series 7. Bonn: Verlag für Kultur und Wissenschaft, <strong>20</strong>13, p. 30-35.<br />
47 SCHIRRMACHER, Christine. Muslim immigration to Europe. Martin Bucer Seminar Texte<br />
106. Bonn, <strong>20</strong>08, p. 4, 7. Uma conhecida crítica <strong>do</strong> islã é a ativista somali-holandesa-americana Ayaan<br />
Hirsi Ali. Ver: KWON, Lillian. Ex-muslim: proposal that Islam is tolerant is fallacious, dangerous.<br />
<strong>20</strong>10. Disponível em: http://www.christianpost. com/news/ex-muslim-proposal-that-islam-is-tolerant-<br />
-is-fallacious-dangerous-47349/. Acesso em: 31/05/<strong>20</strong>15.<br />
48 MARSHALL, Paul; GILBERT, Lela; SHEA, Nina. Persegui<strong>do</strong>s: o ataque global aos cristãos.<br />
São Paulo: Mun<strong>do</strong> Cristão, <strong>20</strong>14, p. <strong>20</strong>.<br />
78
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
Os mesmos autores informam que “os cristãos sofrem assédio estatal ou da<br />
sociedade em 133 países – 2/3 <strong>do</strong>s países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – e em mais lugares <strong>do</strong><br />
que qualquer outro grupo religioso”. 49<br />
Embora diversos <strong>do</strong>s países que se destacam na violação <strong>do</strong>s direitos humanos<br />
no âmbito religioso sejam comunistas ou pós-comunistas, como China,<br />
Coreia <strong>do</strong> Norte, Vietnã, Laos, Cuba, Rússia e as antigas repúblicas soviéticas,<br />
ou então budistas e hindus, como Índia, Sri Lanka, Nepal, Butão e Mianmar,<br />
o grosso da perseguição se concentra nos países islâmicos <strong>do</strong> Oriente Médio,<br />
norte da África e sudeste asiático. A organização Portas Abertas mantém uma<br />
lista atualizada <strong>do</strong>s 50 países mais opressores <strong>do</strong> cristianismo e da liberdade<br />
religiosa. 50 Destes, cerca de 35 são países muçulmanos, a começar da Somália,<br />
Iraque, Síria, Afeganistão, Sudão, Irã, Paquistão, Maldivas e Arábia Saudita.<br />
A perseguição nesses países pode ser efetuada por governos, grupos radicais<br />
ou pela sociedade em geral. As formas que essa intolerância assume são<br />
muitas: proibição de cultos e reuniões, de distribuição de literatura religiosa e<br />
de conversão à fé cristã; exigências arbitrárias para a construção de edifícios<br />
religiosos ou o registro de igrejas; discriminação em áreas como emprego,<br />
habitação e educação; multas onerosas, detenção arbitrária, interrogatório e,<br />
nos casos mais graves, destruição de templos, saques, espancamentos, tortura,<br />
estupro, assassinato e execução. Em suma, são desrespeita<strong>do</strong>s os direitos à vida,<br />
integridade física, liberdade e segurança <strong>do</strong>s indivíduos, ou seja, os direitos<br />
humanos mais elementares. 51<br />
A consequência dessas ações é não só o sofrimento indescritível de indivíduos,<br />
famílias e comunidades, mas a progressiva eliminação <strong>do</strong> cristianismo<br />
em muitas dessas sociedades. As estimativas apontam para o fato de que, nos<br />
últimos cem anos, a presença cristã declinou de 35% para 1,5% no Iraque; de<br />
15% para 2% no Irã; de 40% para 10% na Síria e de 32% para 0,15% na Turquia.<br />
52 Igrejas ancestrais, como as da Caldeia e da Assíria, no Irã, e a Copta,<br />
no Egito, sofrem intensa ameaça. Mas nada se compara a situação <strong>do</strong>s cristãos<br />
da Síria e <strong>do</strong> Iraque desde o surgimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Islâmico. Um articulista<br />
observa que <strong>20</strong>14 foi uma catástrofe para os cristãos <strong>do</strong> Oriente Médio. 53<br />
49 Ibid., p. 24.<br />
50 Disponível em: https://www.portasabertas.org.br/cristaospersegui<strong>do</strong>s/perfil/. Acesso em:<br />
28/05/<strong>20</strong>15. Desde 1988, Portas Abertas promove no final de maio o Domingo da Igreja Perseguida.<br />
Ver: https://www.<strong>do</strong>mingodaigrejaperseguida.org.br/o-que-e.<br />
51 A organização Anistia Internacional também denuncia ano após ano as extensas violações de<br />
direitos humanos cometidas por esses e outros países. Ver: https://www.amnesty.org/en/countries/. Acesso<br />
em: 31/05/<strong>20</strong>15.<br />
52 MARSHALL et al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 21.<br />
53 JENKINS, Philip. Is this the end for Mideast Christianity? Christianity Today. Disponível em:<br />
http://www.christianitytoday.com/ct/<strong>20</strong>14/november/on-edge-of-extinction.html. Acesso em: 28/05/<strong>20</strong>15.<br />
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Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
O Esta<strong>do</strong> Islâmico, conheci<strong>do</strong> em árabe pela sigla Daesh, reivindica ser<br />
um califa<strong>do</strong> e, como tal, ter autoridade religiosa, política e militar sobre to<strong>do</strong>s<br />
os muçulmanos. Essa organização de linha sunita foi criada há vários anos,<br />
mas só alcançou notoriedade internacional em junho de <strong>20</strong>14 ao declarar a<br />
criação <strong>do</strong> califa<strong>do</strong>. Controla vastas regiões <strong>do</strong> Iraque e da Síria e entre seus<br />
alvos estão todas as minorias religiosas: xiitas, yazidis, shabaks, mandeus e<br />
cristãos. Estes últimos incluem assírios, caldeus, orto<strong>do</strong>xos, católicos e protestantes.<br />
A organização terrorista ocupou importantes cidades, como Mosul e<br />
Qaraqosh, dan<strong>do</strong> aos cristãos três opções para não serem mortos: converter-se,<br />
fugir ou pagar um imposto. Além de destruir valiosos bens culturais e edifícios<br />
religiosos históricos, o Esta<strong>do</strong> Islâmico tem cometi<strong>do</strong> assassinatos cruéis na<br />
forma de crucificações e decapitações. Uma das consequências é a drástica<br />
redução da população cristã. 54<br />
Todavia, é preciso ir além. Também é importante considerar o que ocorre<br />
em nações que não enfrentam situações tão extremas como o Iraque e a Síria.<br />
A título de ilustração da gravidade <strong>do</strong> problema, são destaca<strong>do</strong>s a seguir vários<br />
países <strong>do</strong> Oriente Médio, da África e da Ásia, alguns <strong>do</strong>s quais estão entre os<br />
mais representativos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> islâmico.<br />
5.4.1 Arábia Saudita<br />
O berço <strong>do</strong> islã e sede de seus locais mais sagra<strong>do</strong>s é um país notório por<br />
sua supressão da liberdade religiosa. Domina<strong>do</strong> por uma forma ultraconserva<strong>do</strong>ra<br />
da tradição sunita, o wahabismo, 55 esse reino não permite a existência<br />
de nenhum local de culto não islâmico em seu território, além de exigir que<br />
to<strong>do</strong>s os sauditas sejam muçulmanos. Os únicos cristãos são trabalha<strong>do</strong>res<br />
estrangeiros e diplomatas, que só podem se reunir para o culto às escondidas.<br />
Em março de <strong>20</strong>12, o grande mufti saudita, Abdul-Aziz ibn Abdullah<br />
Al ash-Sheikh, promulgou uma decisão jurídica (fatwa) segun<strong>do</strong> a qual “é<br />
necessário destruir todas as igrejas da região”, ou seja, mesmo as que estão<br />
fora da Arábia Saudita. 56<br />
O país se define como um esta<strong>do</strong> islâmico, ten<strong>do</strong> como lei a sharia e como<br />
constituição o Corão. Muitos prega<strong>do</strong>res das mesquitas regularmente incitam<br />
a violência contra cristãos e judeus. As escolas públicas ensinam os alunos a<br />
odiar os cristãos, consideran<strong>do</strong>-os infiéis e inimigos. Existe uma polícia religiosa<br />
(mutawwa’in) que controla a conduta e as manifestações de pensamento.<br />
54 Ver: http://veja.abril.com.br/noticia/mun<strong>do</strong>/jihadistas-proclamam-um-esta<strong>do</strong>-islamico-entre-<br />
-o-iraque-e-a-siria/ (30/06/<strong>20</strong>14); http://veja.abril.com.br/noticia/mun<strong>do</strong>/avanco-jihadista-ameaca-<br />
-extinguir-a-lingua-falada-por-jesus/ (28/08/<strong>20</strong>14). Acesso em: 03/09/<strong>20</strong>14.<br />
55 Deriva<strong>do</strong> de Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792), rigoroso prega<strong>do</strong>r da Península<br />
Arábica.<br />
56 MARSHALL et al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 27, 160.<br />
80
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
Os poucos converti<strong>do</strong>s cristãos são considera<strong>do</strong>s apóstatas e correm o risco<br />
de ser presos, tortura<strong>do</strong>s e mortos. O reino saudita utiliza seus grandes lucros<br />
com o petróleo para exportar sua versão fundamentalista <strong>do</strong> islã para outros<br />
países, financian<strong>do</strong> mesquitas, escolas, livrarias e atividades sociais. 57 Apesar<br />
de tu<strong>do</strong>, é considera<strong>do</strong> pelo governo americano como um importante alia<strong>do</strong><br />
estratégico, o que limita os protestos contra a violação de direitos humanos.<br />
5.4.2 Irã<br />
Esse país, a antiga Pérsia, é a principal expressão <strong>do</strong> islã xiita, sen<strong>do</strong> um<br />
forte adversário da Arábia Saudita. Possui em seu território antigas confissões<br />
cristãs como a Igreja Apostólica Armênia (cerca de 300 mil adeptos dessa etnia),<br />
a Igreja Assíria <strong>do</strong> Oriente (11 mil) e a Igreja Católica da Caldeia (7 mil), além<br />
de pequenos grupos protestantes. Só reconhece oficialmente o zoroastrismo,<br />
o judaísmo e o cristianismo, os quais, no entanto, enfrentam muitas formas de<br />
discriminação. Grupos não reconheci<strong>do</strong>s, como os bahais, estão em situação<br />
ainda mais difícil. A República Islâmica <strong>do</strong> Irã impõe fortes restrições aos<br />
grupos religiosos minoritários, que têm declina<strong>do</strong> rapidamente nas últimas<br />
décadas. Em anos recentes, tem cresci<strong>do</strong> o número de atos repressivos como<br />
invasão de igrejas, prisões, torturas e queima de Bíblias. O número crescente<br />
de iranianos que se convertem ao cristianismo enfrenta o risco de execução.<br />
Foi muito divulga<strong>do</strong> há alguns anos o caso <strong>do</strong> pastor Youcef Nadarkhani, condena<strong>do</strong><br />
à morte por ter se converti<strong>do</strong> à fé cristã, que só escapou da execução,<br />
em <strong>20</strong>12, devi<strong>do</strong> à forte pressão internacional em seu favor. 58<br />
5.4.3 Egito<br />
País árabe mais populoso, o Egito é o lar da maior e mais antiga comunidade<br />
cristã <strong>do</strong> Oriente Médio, a Igreja Copta, com cerca de 8 milhões de<br />
adeptos (10% da população e 90% <strong>do</strong>s cristãos egípcios). Outros grupos cristãos<br />
são orto<strong>do</strong>xos gregos, católicos romanos e evangélicos. Após a queda <strong>do</strong><br />
dita<strong>do</strong>r Hosni Mubarak e a tomada <strong>do</strong> poder pelos militares em <strong>20</strong>11, foram<br />
realizadas eleições parlamentares, ten<strong>do</strong> a Irmandade Muçulmana conquista<strong>do</strong><br />
quase metade das cadeiras, e os salafistas, semelhantes aos wahabitas da<br />
57 Ibid., p. 159-169. Uma missionária que trabalha em um pequeno país africano disse no início<br />
de <strong>20</strong>15: “Nos últimos dias, temos ti<strong>do</strong> certas dificuldades quanto ao crescimento absur<strong>do</strong> <strong>do</strong> islamismo.<br />
Há um projeto deles de que a cada 45 dias seja construída uma mesquita. E é verdade. A cada dia somos<br />
surpreendi<strong>do</strong>s com elas por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s... Nossos vizinhos são animistas. Estão para atraí-los, eles<br />
estão servin<strong>do</strong> lanche to<strong>do</strong>s os dias na mesquita, e nas sextas-feiras, depois das orações das 14h00, servem<br />
almoço e dão um quilo de açúcar para levar para casa (coisa que é cara e que os nacionais apreciam<br />
muito). Também está sen<strong>do</strong> preparada aqui na capital uma conferência de líderes islâmicos de vários<br />
países da África Ocidental... Está em debate na Assembleia Nacional Popular uma proposta para que o<br />
governo pague os professores das escolas alcorânicas”.<br />
58 MARSHALL et al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 172-180. Ver também: BAUMANN, Dan. O amor venceu<br />
o me<strong>do</strong>: o impressionante testemunho de um cristão prisioneiro no Irã. São Paulo: Vida, <strong>20</strong>04.<br />
81
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
Arábia Saudita, outras 26%. Poucos meses depois, Mohamed Morsi, liga<strong>do</strong><br />
à Fraternidade Muçulmana, foi eleito presidente com pouco mais da metade<br />
<strong>do</strong>s votos. Seu governo crescentemente autoritário chegou ao fim em julho<br />
de <strong>20</strong>13, mediante nova intervenção militar, que também resultou em violenta<br />
repressão contra seus partidários.<br />
Desde a “primavera árabe”, a situação <strong>do</strong>s coptas se agravou consideravelmente<br />
e muitos começaram a deixar o país. Além das leis discriminatórias<br />
quanto à reforma ou construção de templos cristãos, desde a renúncia de Mubarak<br />
aumentaram os ataques de extremistas, forças de segurança e multidões<br />
insufladas pelo fanatismo, com muitas vítimas fatais. Multiplicam-se os incêndios<br />
de igrejas e cresce o rapto de meninas coptas com fins de conversão forçada ao<br />
islã. Os egípcios que deixam o islã e se convertem a outra fé são passíveis de<br />
morte. Uma pesquisa da organização Pew Research Center em <strong>20</strong>10 revelou<br />
que 84% <strong>do</strong>s egípcios são favoráveis à execução de muçulmanos que mudam<br />
de religião. 59 O governo se recusa a alterar a filiação religiosa nas carteiras de<br />
identidade <strong>do</strong>s converti<strong>do</strong>s. 60<br />
5.4.4 Sudão<br />
A situação <strong>do</strong>s cristãos no país ao sul <strong>do</strong> Egito é ainda pior. A fé cristã<br />
chegou à antiga Núbia nos primeiros séculos da era cristã, mas desde a chegada<br />
<strong>do</strong> islã a igreja sudanesa tem sofri<strong>do</strong> continuamente. O cristianismo foi<br />
revitaliza<strong>do</strong> no século 19 e difundiu-se amplamente no sul <strong>do</strong> país no século <strong>20</strong>.<br />
Com o passar <strong>do</strong> tempo, a repressão <strong>do</strong> governo islâmico de Cartum contra<br />
os cristãos, mediante a imposição da sharia em to<strong>do</strong> o território, resultou em<br />
1983 numa guerra civil que, após muito sofrimento, levou à divisão <strong>do</strong> país.<br />
Em 9 de julho de <strong>20</strong>11 foi oficialmente criada a República <strong>do</strong> Sudão <strong>do</strong> Sul,<br />
a mais nova nação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Mesmo assim, a provação continua mediante ataques de simpatizantes<br />
<strong>do</strong> norte ao longo da fronteira <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países na forma de bombardeios, sequestros,<br />
estupros e assassinatos. Os motivos para a continuação da violência<br />
são o petróleo <strong>do</strong> sul e o desejo de islamizar a região. Além disso, o general<br />
Omar al-Bashir, que governa desde 1989 e foi acusa<strong>do</strong> de crimes de guerra em<br />
uma corte internacional, continua a atacar o povo nuba, no centro <strong>do</strong> Sudão,<br />
composto de cristãos e muçulmanos modera<strong>do</strong>s. Desde que o sul se separou,<br />
os poucos cristãos da capital, Cartum, também vivem sob a sombra <strong>do</strong> me<strong>do</strong>,<br />
devi<strong>do</strong> aos grupos muçulmanos que ameaçam destruir igrejas, matar os fiéis<br />
e eliminar o cristianismo <strong>do</strong> país. 61<br />
59 MARSHALL et al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 189. Ver: http://www.pewglobal.org/<strong>20</strong>10/12/02/muslimsaround-the-world-divided-on-hamas-and-hezbollah/.<br />
Acesso em: 29/05/<strong>20</strong>15.<br />
60 MARSHALL et al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 184-195.<br />
61 Ibid., p. 213-221.<br />
82
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
5.4.5 Nigéria<br />
O país mais populoso da África, com cerca de 170 milhões de habitantes<br />
e mais de 250 grupos étnicos, também vem sen<strong>do</strong> esfacela<strong>do</strong> pelos conflitos<br />
religiosos. A população está quase totalmente dividida entre cristãos no sul<br />
e muçulmanos no norte, sen<strong>do</strong> que outros 10% seguem crenças tradicionais<br />
africanas. Nas últimas décadas, a violência entre os <strong>do</strong>is grupos tem custa<strong>do</strong><br />
milhares de vidas. Desde 1999, 11 <strong>do</strong>s 36 esta<strong>do</strong>s introduziram uma versão<br />
da sharia. Ao mesmo tempo, crescem as milícias islâmicas, a mais célebre das<br />
quais é o grupo conheci<strong>do</strong> como Boko Haram, que trata como infiéis to<strong>do</strong>s –<br />
cristãos e muçulmanos – que não se harmonizam com suas ideias. Seus repeti<strong>do</strong>s<br />
ataques têm deixa<strong>do</strong> um rastro de destruição e morte em cidades e vilas. São<br />
raros os <strong>do</strong>mingos em que não ocorrem ataques contra igrejas.<br />
Depois de se aliar à al-Qaeda, o Boko Haram declarou a sua adesão ao<br />
Esta<strong>do</strong> Islâmico <strong>do</strong> Iraque e da Síria. Um de seus principais objetivos é lutar<br />
contra os cristãos e impor a lei islâmica em to<strong>do</strong> o país. A oposição deste e de<br />
outros grupos à “educação ocidental” faz com que os pais muçulmanos não<br />
enviem seus filhos à escola, perpetuan<strong>do</strong> a pobreza e o fanatismo. 62<br />
5.4.6 In<strong>do</strong>nésia<br />
Esse arquipélago asiático é considera<strong>do</strong> a maior democracia de maioria<br />
muçulmana <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, com cerca de 250 milhões de habitantes. O país é celebra<strong>do</strong><br />
por sua ampla tolerância religiosa, mas organizações extremistas como<br />
a Frente de Defensores Islâmicos estão crescen<strong>do</strong> e se tornan<strong>do</strong> mais ativas e<br />
violentas. Para os cristãos, de 10 a 13% da população, os maiores desafios à<br />
liberdade religiosa vêm da pressão social e de justiceiros, milícias e governos<br />
locais. Em algumas localidades, os cristãos têm si<strong>do</strong> objeto de ações agressivas<br />
que incluem processos judiciais, destruição de templos, espancamentos e até<br />
mesmo assassinatos. 63 Todavia, o trabalho de organizações islâmicas moderadas<br />
tem da<strong>do</strong> um novo alento à minoria cristã. 64 Infelizmente, a In<strong>do</strong>nésia<br />
é uma exceção, visto que a imensa maioria das nações muçulmanas rejeita a<br />
democracia e os valores associa<strong>do</strong>s a ela.<br />
5.4.7 Turquia<br />
A antiga Ásia Menor da época <strong>do</strong> Novo Testamento, palco das viagens<br />
missionárias <strong>do</strong> apóstolo Paulo, foi uma das regiões com mais forte presença<br />
62 MARSHALL et al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 235-239.<br />
63 Ver: INTAM, Benyamin F. Religious violence in In<strong>do</strong>nesia: the role of state and civil society.<br />
International Journal for Religious Free<strong>do</strong>m 5, n. 2 (<strong>20</strong>12), p. 63-77.<br />
64 MARSHALL et. al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 240-245. Esse clima mais favorável permite o trabalho<br />
de líderes cristãos como o Rev. Stephen Tong, pastor de uma grande e próspera igreja reformada em<br />
Jakarta.<br />
83
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
cristã ao longo <strong>do</strong>s séculos. A situação mu<strong>do</strong>u devi<strong>do</strong> à contínua pressão <strong>do</strong>s<br />
turcos converti<strong>do</strong>s ao islamismo, culminan<strong>do</strong> com a queda de Constantinopla<br />
em 1453. O Império Otomano foi o mais poderoso que já surgiu no Oriente<br />
Médio e só chegou ao fim com a 1ª Guerra Mundial, após a qual foi criada, em<br />
1923, a moderna República da Turquia. Esse perío<strong>do</strong> de transição representou<br />
uma imensa tragédia para várias minorias cristãs, especialmente os armênios,<br />
submeti<strong>do</strong>s a massacres e deportações.<br />
Conhecida como uma república secular e interessada em ser admitida<br />
na União Europeia, a Turquia começou a mudar de direção em <strong>20</strong>02 com a<br />
chegada ao poder <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Justiça e Desenvolvimento, de orientação islâmica,<br />
funda<strong>do</strong> por Recep Er<strong>do</strong>gan. Com isso, aumentaram as dificuldades para<br />
os grupos cristãos, que representam apenas 0,15% da população <strong>do</strong> país e se<br />
encontram sob o risco de ser totalmente extintos. O controle estatal da religião<br />
é exerci<strong>do</strong> por meio da poderosa Diretoria de Assuntos Religiosos (Diyanet).<br />
Vistas como inimigas da “identidade turca”, as igrejas sofrem inúmeras ameaças,<br />
como sufocantes restrições legais de suas atividades, proibição <strong>do</strong> treinamento<br />
local de religiosos (seminários não são permiti<strong>do</strong>s), bem como propaganda<br />
negativa na imprensa, escolas e mesquitas. Somente são reconheci<strong>do</strong>s oficialmente<br />
os orto<strong>do</strong>xos gregos, armênios e judeus. Os protestantes, considera<strong>do</strong>s<br />
uma presença estrangeira, sofrem restrições ainda maiores. Em anos recentes<br />
ocorreram brutais assassinatos de cristãos. 65<br />
5.5 Problemas de uma cosmovisão<br />
Apesar das alegações enfáticas de seus apologistas, existem peculiaridades<br />
no ethos, na lógica interna ou na autocompreensão <strong>do</strong> islã que tornam<br />
difícil a convivência com outros grupos. Quan<strong>do</strong> se fala em tolerância na religião<br />
islâmica, o que se tem em mente não é uma aceitação mútua de iguais,<br />
mas uma atitude de condescendência <strong>do</strong> superior para com o inferior, atitude<br />
essa que pode ser modificada a qualquer momento. Quan<strong>do</strong> se fala em paz,<br />
é a paz que irá resultar <strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mínio final <strong>do</strong> islã, não uma ausência de animosidade<br />
para com os outros. Em última análise, o que se espera e deseja é<br />
a submissão de to<strong>do</strong>s ao islã. 66<br />
Esse sentimento de superioridade está acompanha<strong>do</strong> de uma hipersensibilidade<br />
que faz os muçulmanos reagirem de maneira desproporcional ao<br />
65 MARSHALL et al., Persegui<strong>do</strong>s, p. 134-145. Ver também: UPHOFF, Petra. Islam and toleration:<br />
what <strong>do</strong>es religion teach? Islam and Christianity 8, n. 1 (<strong>20</strong>08), p. 30s.<br />
66 SCHIRRMACHER, Christine. Islam and society: sharia law – jihad – women in Islam. WEA<br />
Global Issues Series 4. Bonn: Verlag für Kultur und Wissenschaft, <strong>20</strong>08, p. 45-54. Outras obras dessa<br />
autora são: The Islamic view of major Christian teachings (<strong>20</strong>08), Apostasy and sharia (<strong>20</strong>09). É editora<br />
<strong>do</strong> periódico Islam and Christianity, <strong>do</strong> Instituto de Estu<strong>do</strong>s Islâmicos (Alianças Evangélicas de<br />
Língua Alemã).<br />
84
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
que entendem como ameaça e desrespeito à sua religião. Por exemplo, uma<br />
hadith afirma que Maomé desaconselhou a reprodução da sua figura para que<br />
não se tornasse um objeto de culto. Isso não impediu que pintores islâmicos<br />
medievais o retratassem em muitas obras de arte. Hoje, se uma publicação<br />
ostenta um desenho <strong>do</strong> profeta, mesmo que inocente e não desrespeitoso, tal<br />
fato desperta acusações de blasfêmia e reações muitas vezes letais de multidões<br />
ensandecidas, pelo mun<strong>do</strong> afora. 67 Este sentimento de ofensa não está presente<br />
com tal intensidade em outras religiões.<br />
Outro problema <strong>do</strong> islã é a incapacidade de compreender que o cristianismo<br />
não pode ser responsabiliza<strong>do</strong> por tu<strong>do</strong> de mau que ocorre no Ocidente e<br />
pelas ações negativas de países ocidentais em relação ao mun<strong>do</strong> muçulmano.<br />
Além de haver no hemisfério norte a plena separação entre igreja e esta<strong>do</strong>, as<br />
sociedades europeias e norte-americanas são fortemente secularizadas, ten<strong>do</strong><br />
há muito aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> as melhores convicções e valores <strong>do</strong> cristianismo. É<br />
igualmente injusto despejar reações de frustração e fúria sobre as pacíficas<br />
comunidades cristãs que sobrevivem com tanta dificuldade no mun<strong>do</strong> islâmico.<br />
Quanto à alegação de que o extremismo é uma distorção perversa <strong>do</strong><br />
verdadeiro islã, é importante lembrar que, no cristianismo, mesmo os grupos<br />
mais aberrantes <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong>utrinário ou ético jamais a<strong>do</strong>taram práticas<br />
tão violentas. Que adeptos de outras religiões bradam “Deus é grande!” (Allahu<br />
Akbar) enquanto cometem os maiores atos de crueldade? A agressividade latente<br />
no islã desde os seus primórdios e externada nas muitas situações mencionadas<br />
acima leva a concluir que a diferença entre o radicalismo islâmico e o islã<br />
majoritário não é tanto de natureza, e sim de grau. 68 A diferenciação que se faz<br />
entre Dar al-islam (“a casa <strong>do</strong> islã”) e Dar al-harb (“a casa da guerra”), esta<br />
última sen<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> não muçulmano a ser conquista<strong>do</strong>, não é indicativa de<br />
uma atitude pacífica e tolerante.<br />
conclusão<br />
A interação entre os mun<strong>do</strong>s cristão e muçulmano é uma realidade inevitável<br />
na contemporaneidade. Assim como os muçulmanos, os cristãos também<br />
creem na plena veracidade da sua fé e desejam compartilhá-la com to<strong>do</strong>s os<br />
povos e culturas. Eles querem dialogar e debater com os adeptos de outras<br />
religiões num ambiente de liberdade, respeito e convivência cordial. 69 Se o<br />
67 Foi o que ocorreu no Níger a partir <strong>do</strong> dia 16 de janeiro de <strong>20</strong>15, depois que o jornal Charlie<br />
Heb<strong>do</strong> publicou em sua capa uma charge de Maomé.<br />
68 Ver: BRASIL, Felipe Moura. O mito da minoria radical muçulmana. Disponível em: http://veja.<br />
abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/<strong>20</strong>15/01/07/o-mito-da-minoria-radical-muculmana/.<br />
69 O Seminário Teológico Reforma<strong>do</strong>, em Jackson, Mississipi, é um <strong>do</strong>s poucos que têm um<br />
programa volta<strong>do</strong> especificamente para o estu<strong>do</strong> e ministério a esse grupo, denomina<strong>do</strong> “Our Muslim<br />
Neighbors” (nossos vizinhos muçulmanos).<br />
85
Alderi Souza de Matos, Islã e Tolerância: Discurso Apologético e Realidade Histórica<br />
islã está seguro de suas crenças, não precisa temer que seus fiéis mantenham<br />
contato com a fé cristã.<br />
Existem valores no islã que podem ser utiliza<strong>do</strong>s para criar uma nova atitude<br />
em relação aos demais grupos religiosos. Porém, isso exigirá uma mudança<br />
de mentalidade <strong>do</strong>s juristas, <strong>do</strong>s exegetas, <strong>do</strong>s prega<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>s governantes<br />
islâmicos, para que exerçam um novo tipo de influência sobre as suas populações.<br />
Peter Demant, autor nitidamente simpático ao islã, propõe uma reforma<br />
dessa religião em torno de alguns pontos essenciais: reinterpretação mais<br />
flexível de suas fontes, nova valorização da diversidade, reconciliação com a<br />
modernidade, valorização da democracia e atuação decisiva <strong>do</strong> islã ocidental. 70<br />
Os cristãos reconhecem a legitimidade de muitas críticas <strong>do</strong>s muçulmanos<br />
em relação ao Ocidente. O materialismo, a corrupção moral, o he<strong>do</strong>nismo e<br />
a atitude imperialista são merece<strong>do</strong>res de censura. 71 O fervor e a intensidade<br />
<strong>do</strong> islã também contrastam com o comodismo e a superficialidade de muitos<br />
cristãos ocidentais. Porém, o cristianismo entende que a violência, o espírito<br />
de vingança e a imposição de uma visão religiosa são igualmente condenáveis<br />
e pecaminosos. Eles não podem ficar passivos diante das agressões brutais que<br />
os seus irmãos sofrem em muitas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Não se trata de islamofobia,<br />
mas de uma questão de justiça e solidariedade.<br />
Ao contrário de outros líderes ocidentais, que preferem um silêncio<br />
cúmplice sobre esse tema, o primeiro-ministro inglês David Cameron falou<br />
claramente <strong>do</strong> assunto em sua mensagem de Páscoa de <strong>20</strong>15. Depois de apontar<br />
o significa<strong>do</strong> da data, mostrar a relevância <strong>do</strong> cristianismo na vida inglesa e<br />
declarar que a Inglaterra é um país cristão, ele acrescentou:<br />
Temos o dever de falar sobre a perseguição de cristãos ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. É<br />
realmente chocante que, em <strong>20</strong>15, ainda existam cristãos sen<strong>do</strong> ameaça<strong>do</strong>s,<br />
tortura<strong>do</strong>s e até mortos por causa de sua fé, <strong>do</strong> Egito à Nigéria, da Líbia à Coréia<br />
<strong>do</strong> Norte. Por to<strong>do</strong> o Oriente Médio cristãos têm si<strong>do</strong> arrasta<strong>do</strong>s de suas casas,<br />
obriga<strong>do</strong>s a fugir de vila em vila, muitos deles força<strong>do</strong>s a renunciar à sua fé<br />
ou sen<strong>do</strong> brutalmente assassina<strong>do</strong>s. A to<strong>do</strong>s esses corajosos cristãos no Iraque<br />
e na Síria que praticam a sua fé ou oferecem refúgio a outros, devemos dizer:<br />
“Nós estamos com vocês”. 72<br />
70 DEMANT, O mun<strong>do</strong> muçulmano, p. 357-364.<br />
71 Ver YANCEY, Philip. Por que os muçulmanos nos odeiam? In: WINTER, Ralph et al. Perspectivas<br />
no movimento cristão mundial. São Paulo: Vida Nova, <strong>20</strong>09, p. 481-483. No romance ficcional<br />
Submissão, publica<strong>do</strong> recentemente em português, o escritor Michel Houellebecq imagina a ascensão<br />
ao poder de um parti<strong>do</strong> político muçulmano na França e as consequências desse fato. Visto como uma<br />
crítica ao islã, o livro na realidade aponta para a decadência cultural e espiritual da Europa.<br />
72 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=A6JzlUwnSWw&feature=youtu.be. Acesso<br />
em: 22/05/<strong>20</strong>15.<br />
86
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 61-87<br />
Os imigrantes muçulmanos e seus descendentes desfrutam, no mun<strong>do</strong><br />
ocidental, <strong>do</strong> pleno direito de cultivar a sua religiosidade. Ainda que, por vezes,<br />
sejam objeto de manifestações de antipatia por parte de alguns indivíduos,<br />
isso em nada se compara ao que os cristãos e outras minorias experimentam<br />
nos países islâmicos. Existe a necessidade de uma transformação na religião<br />
islâmica conforme entendida e praticada na atualidade, de um retorno à atitude<br />
mais flexível, aberta e coerente de outros tempos. Num mun<strong>do</strong> que se depara<br />
com tantos problemas angustiosos como a superpopulação, o esgotamento <strong>do</strong>s<br />
recursos naturais, o desequilíbrio ecológico, a fome e a miséria, a religião não<br />
pode ser mais uma fonte de me<strong>do</strong> e insegurança.<br />
abstract<br />
The beginning of the 21 st century is witnessing events in the realm of<br />
religion with great historical significance. Islamic radicalism is haunting the<br />
world with its persistent aggressiveness and broad scope. The Middle East,<br />
North Africa, and parts of Asia, Europe and North America have been the<br />
stage of extremist fanaticism and violence. In special, Christian communities<br />
living peacefully in Muslim countries are being the targets of horrible cruelty.<br />
In several regions, the remaining Christianity is on its way to extinction. Many<br />
observers and scholars assert that such actions represent a grotesque distortion<br />
of Islam and are not in harmony with the true spirit of that religion. Time after<br />
time, internal and external apologists state that historically the Muslim faith has<br />
fostered tolerance and peace. The aim of this article is to reexamine this issue<br />
by looking at Islam’s sources, its history, and the developments in recent years.<br />
keywords<br />
Islam; Islamism; Muslims; Mohammed; Coran; Hadith; Sharia; Tolerance;<br />
Multi-culturalism; Christianity; Fundamentalism; Persecution; Human rights.<br />
87
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
Covenant Theology in the Thought of<br />
John Calvin: From the Covenant of Works<br />
to the Abrahamic Covenant<br />
Breno Mace<strong>do</strong> *<br />
Abstract<br />
Covenant theology has always had a special place in the Reformed branch<br />
of theology. It is the ground for several other <strong>do</strong>ctrines and also functions as a<br />
hermeneutical key to reading and interpreting the Scriptures. Although the great<br />
systematizations of this <strong>do</strong>ctrine only appeared in the seventeenth-century and<br />
onward, it is possible to find it present in the thought of the early Reformers.<br />
This article investigates some of the main works of John Calvin in the attempt to<br />
organize his thought regarding this <strong>do</strong>ctrine and aims to formulate what would<br />
be the view of the Genevan reformer on each dispensation of the divine covenant<br />
with man. The article analyses the following covenants: works, Noahic,<br />
and Abrahamic. Several articles have been published investigating Calvin’s<br />
covenantal thought as a whole, in terms of the covenant of grace in general. It<br />
was not possible to find an academic contribution that would investigate each<br />
of the dispensations in Calvin’s thought.<br />
Keywords<br />
John Calvin; Theology; Covenant; Works; Noahic; Abrahamic.<br />
Introduction<br />
John Calvin certainly is one of the most influential theologians of the Reformation,<br />
if not the most influential. His commentaries on the Bible, his letters,<br />
* The author earned a M.Div. from Greenville Presbyterian Theological Seminary, a Th.M. from<br />
Puritan Reformed Theological Seminary, and is a <strong>do</strong>ctoral candidate (Ph.D.) at the University of Free<br />
State, South Africa, with concentration in historical theology. He teaches at Seminário Teológico <strong>Presbiteriano</strong><br />
<strong>do</strong> Nordeste (Northeast Presbyterian Theological Seminary), in Teresina, Brazil.<br />
89
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
and his magnum opus, the Institutes, are still read, researched, and analyzed by<br />
many today. His influence not only in theology, but in society and economy,<br />
is widely recognized. Regardless of one’s love or hate for him, all ought to<br />
acknowledge the historical reality of this man’s achievements.<br />
When it comes to understanding Calvin’s thought, many have tried to<br />
identify the central <strong>do</strong>gma, the structural principle of Calvin’s theology. Several<br />
have been proposed, but there is still no positive consensus among scholars. 1<br />
From the debate at least one certainty seems to have emerged and become an<br />
accepted position in scholarly circles: if there is a central <strong>do</strong>gma <strong>do</strong>minating<br />
Calvin’s thought, most certainly it is not covenant theology. Everett H. Emerson<br />
explains that “Calvin himself, like many other Christian theologians, spoke<br />
of a divine covenant, but because the covenant is not a basic element for his<br />
system, he is not regarded as a covenant theologian.” 2 However, as Emerson<br />
affirms, no one would deny that the <strong>do</strong>ctrine of the covenant is present in all<br />
of Calvin’s works from the Institutes to his commentaries. It may not be the<br />
center of his system, if he has a system at all, but as a fruit of his exegetical<br />
genius and of his Sola Scriptura, the covenant is found in crucial topics of<br />
Calvin’s theology like creation, predestination, justification, sanctification,<br />
sacraments, and church discipline.<br />
The goal of this article is to investigate Calvin’s writings in search for<br />
the reformer’s views on the divine covenants and to organize them in the generally<br />
accepted division of the <strong>do</strong>ctrine: works and grace. Calvin’s <strong>do</strong>ctrine<br />
of the covenant of grace will be analyzed in terms of its five most accepted<br />
dispensations: Noahic, Abrahamic, Mosaic, Davidic, and New Covenant. The<br />
article will systematize Calvin’s thought in terms of the basic elements of a<br />
covenantal relationship: the existence of a covenant, its parties, characteristics,<br />
1 The central <strong>do</strong>gma metho<strong>do</strong>logy is one of the most common approaches to the study of Calvin’s<br />
thought. Cornelis Venema explains that the method consists of finding “the key to Calvin’s theology in<br />
one <strong>do</strong>minant theme. A central idea or motif in Calvin’s though is regarded as the basis for its various subthemes.<br />
Implicit in this approach is the conviction that Calvin was, in contrast to the other reformers and<br />
Luther in particular, the author of a theological system whose various aspects constitute an inter-related<br />
and inter-connected pattern of ideas.” Cornelis P. Venema, Accepted and Renewed in Christ: The Twofold<br />
Grace of God and the Interpretation of Calvin’s Theology (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, <strong>20</strong>07),<br />
14. While Luther dedicated more attention to the <strong>do</strong>gma of justification by faith, several theologians<br />
believe that the central theme in Calvin’s theology is the <strong>do</strong>ctrine of God, with special focus on God’s<br />
sovereignty and predestination. For more on this subject, see Charles Partee, “Calvin’s Central Dogma<br />
Again,” The Sixteenth Century Journal 18, n. 2 (July 1987): 191-<strong>20</strong>0; Richard A. Muller, “Calvin and<br />
the ‘Calvinists’: Assessing Continuities and Discontinuities between the Reformation and Ortho<strong>do</strong>xy,”<br />
Calvin Theological Journal 30, n. 2 (November 1995): 345-375; Richard A. Muller, Calvin and the<br />
Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation (Grand Rapids, MI: Baker Academic,<br />
<strong>20</strong>12), 13-50; François Wendel, Calvin: Origins and Development of His Religious Thought, trans.<br />
Philip Mairet, first Labyrinth Press edition (Grand Rapids, Mich.: Baker Academic, 1995), 263-284.<br />
2 Everett H. Emerson, “Calvin and Covenant Theology,” Church History 25, n. 2 (June 1956): 136.<br />
90
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
promises, and threats. At the end, it will demonstrate that, although the Reformer<br />
himself did not produce a systematic approach to covenant theology, it is<br />
possible to formulate a “Calvinian” system through his theological writings.<br />
1. covenant of works in the thought of john<br />
calvin<br />
The presence of a covenant of works in Calvin’s theology has long been<br />
a debated issue. Donald J. Bruggink in a controversial article published in<br />
1959 boldly affirmed that there was a complete absence of any intimation of<br />
a covenant of works made with Adam in Calvin’s writings. 3 Leonard Trinterud<br />
is another scholar who placed <strong>do</strong>ubt concerning the presence of a covenant<br />
of works in Calvin’s thought, at least as expressed in later works on federal<br />
theology like those of Ursinus, Olevianus, and the English Puritans. Although<br />
acknowledging Calvin’s frequent use of the word “covenant” in his works,<br />
Trinterud affirms that Calvin’s meaning and interpretation of the covenant was<br />
very different from his successors. 4 For him, Calvin viewed the covenant as a<br />
gracious act of God in which the burden of fulfillment was placed upon God<br />
alone, while for later theologians the covenant meant a mutual compact dependent<br />
on man’s response in obedience. 5 If Trinterud is right, than there is really<br />
no space in Calvin’s theology for a covenant of works which, by definition, is<br />
dependent on man’s faithfulness to God’s terms of covenant in order to enjoy<br />
its benefits.<br />
In spite of the contrary positions, an unbiased look at Calvin’s writings<br />
seems to point to the presence of a mutual contract between God and Adam<br />
before the Fall, at least in seminal form. The first evidence clearly found in<br />
Calvin’s writings is that Adam’s relationship with God was conditioned by the<br />
Creator’s commands. The tree of life was to be a reminder of Adam’s source<br />
of life. “Man, as often as he tasted the fruit of that tree, should remember<br />
whence he received his life, in order that he might acknowledge that he lives<br />
not by his own power, but by the kindness of God alone.” 6 The tree of the<br />
knowledge of good and evil served as an instrument to test Adam’s obedience<br />
3 Peter A. Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation: a Debt to Melanchthon<br />
or Calvin?,” Westminster Theological Journal 43, n. 2 (March 1981): 274.<br />
4 “For Calvin… the covenant of God is God’s promise to man, which obligates God to fulfill…<br />
In the covenant theory of the Rhineland and of the English reformers, the covenant is a conditional<br />
promise on God’s part, which has the effect of drawing out of man a responding promise of obedience,<br />
thus creating a mutual pact or treaty. The burden of fulfillment rests upon man, for he must first obey in<br />
order to bring God’s reciprocal obligation into force.” Leonard J. Trinterud, “The Origins of Puritanism,”<br />
Church History <strong>20</strong>, n. 1 (March 1951): 45.<br />
5 Trinterud, “The Origins of Puritanism,” 56n27.<br />
6 John Calvin, Commentaries on the First Book of Moses Called Genesis, trans. John King, v. 1<br />
(Grand Rapids, MI: Baker Book House, <strong>20</strong>05), 117.<br />
91
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
to God and to teach him subjection. “A law is imposed upon him in token of<br />
his subjection… Therefore, the prohibition of one tree was a test of obedience.”<br />
Being successful in his test, Adam would enjoy a blessed state yet unknown<br />
to him. “His earthly life truly would have been temporal; yet he would have<br />
passed into heaven without death, and without injury.” 7 “Truly the first man<br />
would have passed to a better life, had he remained upright; but there would<br />
have been no separation of the soul from the body, no corruption, no kind of<br />
destruction, and, in short, no violent change.” 8 Calvin understands, therefore,<br />
that the relationship between God and Adam is a sort of probation based on<br />
man’s obedience. 9 This, in spite of the absence of the word “covenant”, is a<br />
fundamental element in the <strong>do</strong>ctrine of the covenant of works. 10 Paul Helm<br />
rightly affirms: “Calvin teaches that the relation of Adam to his creator was<br />
that of a probationer.” 11<br />
It is important to note that, for Calvin, the condition imposed upon Adam<br />
was a legal arrangement. The reformer refers to the condition of Adam’s probation<br />
as “a law”. But it would be wrong to limit the definition of law in Calvin’s<br />
theology to the single command of abstinence of the forbidden fruit without<br />
considering Calvin’s writings as a whole. In his commentary of Leviticus 18:5,<br />
Calvin recognizes the salvific power of the Law of Moses (the moral law)<br />
although “salvation is not to be expected from the Law unless its precepts be<br />
in every respect complied with.” 12 After the Fall, the law continues to provide<br />
life to all those who can perfectly obey it. 13<br />
In other words, Calvin sees continuity between Eden and Sinai. In both<br />
circumstances life was promised and death was threatened under the same<br />
condition: perfect obedience to the Law. The Edenic single condition of perfect<br />
7 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:127.<br />
8 Ibid., 1:180.<br />
9 Calvin expressed the same view of a probationary relationship between God and Adam in his<br />
Institutes. There, one finds him affirming: “But the promise by which he was biden to hope for eternal<br />
life, and, conversely, the terrible threat of death once he tasted of the tree of the knowledge of good and<br />
evil, served to prove and exercise his faith.” Jean Calvin, Institutes of the Christian Religion, ed. John T.<br />
McNeill, trans. Ford Lewis Battles, v. 1 (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 1960), 245, II.I.4.<br />
10 Westminster Confession of Faith, Chapter 7, Section 2.<br />
11 Paul Helm, “Calvin and the Covenant: Unity and Continuity,” Evangelical Quarterly 55 (April<br />
1983): 74.<br />
12 John Calvin, Commentaries on the Four last Books of Moses Arranged in the Form of a Harmony,<br />
trans. Charles William Bingham, vol. 2 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, <strong>20</strong>05), <strong>20</strong>4.<br />
13 “…he [Moses] considers the Law as connected with promises and threatening. Whence it follows,<br />
that salvation can only be procured by it if its precepts be exactly fulfilled. Life is indeed promised in<br />
it, but only if whatever its commands be complied with; whilst, on the other hand, it denounces death<br />
against its transgressors, so that to have offended in the slightest point is enough to condemn and destroy<br />
a person; and thus it overwhelms all men with despair.” Calvin, Commentaries on the Four last Books<br />
of Moses, 2:<strong>20</strong>0.<br />
92
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
obedience is fully revealed at Sinai as the Decalogue. 14 The legal element is, therefore,<br />
present in the Adamic administration along with all the other elements that<br />
characterize a covenantal relationship. The covenant of works may not be clearly<br />
systematized and spelled out in Calvin’s writings, but it is there in seed form. 15<br />
As mentioned above, several are the arguments against the idea that a<br />
pre-lapsarian covenant is present in Calvin. 16 One of the arguments used is<br />
that unlike the common interpretation covenant theologians give to Hosea 6:7,<br />
Calvin rejects the idea that this text speaks of a covenant with Adam. 17 In spite<br />
of its immediate appearance, it is necessary to interpret Calvin’s statement in<br />
its local context. What Calvin rejects here is the attempt to translate the word<br />
~֭d"a'B. from the Hebrew text as “Adam” and to understand from this translation<br />
that Hosea is referring to the first man created, the father of humanity. In other<br />
words, Calvin refuses to use Hosea 6:7 as a reference to the covenant with Adam<br />
but he <strong>do</strong>es not deny the <strong>do</strong>ctrine of covenant itself. This, on the other hand, is<br />
extremely significant. As observed by Lillback, Calvin is used to expressing<br />
his disapproval of the illegitimate use of biblical passages in order to support<br />
<strong>do</strong>gmatic assertions. 18 In his commentary of Genesis 1:1, Calvin recognizes the<br />
plural form of ~yh+Il{a/ and even affirms that one might infer from it a plurality<br />
in the godhead. Nevertheless, he refuses to use this exegetical evidence as a<br />
proof for such an important <strong>do</strong>ctrine and even condemns those who <strong>do</strong> so. 19<br />
14 The same line of thought and conclusion are present in the works of Lillback, “Ursinus’ Development<br />
of the Covenant of Creation,” 282-283, and Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics (Eugene, OR:<br />
Wipf and Stock Publishers, <strong>20</strong>08), 288-292.<br />
15 Paul Helms comes to the same conclusion when he affirms that “it is clear that Calvin presents<br />
all the elements of the later-developed covenant of nature, and that he denies nothing that the later, more<br />
elaborate <strong>do</strong>ctrine affirms: the probation of the federal head Adam, by being given a divine command or<br />
law; the threat of punishment for disobedience and the promise of reward for obedience.” Helm, “Calvin<br />
and the Covenant,” 75.<br />
16 A good summary of the most popular arguments against a covenant of works in Calvin’s theology<br />
is found in Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 274-281.<br />
17 “Other explains the words thus, “They have transgressed as Adam the covenant.” But the<br />
word, Adam, we know, is taken indefinitely for men. This exposition is frigid and diluted, “They have<br />
transgressed as Adam the covenant;” that is, they have followed or imitated the example of their father<br />
Adam, who had immediately at the beginning transgressed God’s commandment. I <strong>do</strong> not stop to refute<br />
this comment; for we see that it is in itself vapid.” John Calvin, Commentaries on the Twelve Minor<br />
Prophets, trans. John Owen, v. 1 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, <strong>20</strong>05), 235.<br />
18 Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 281.<br />
19 “They think that they have testimony against the Arians, to prove the Deity of the Son and of the<br />
Spirit, but in the meantime they involve themselves in the error of Sabellius, because Moses afterwards<br />
subjoins that the Elohim had spoken, and that the Spirit of the Elohim rested upon the waters. If we<br />
suppose three persons to be here denoted, there will be no distinction between them. For it will follow,<br />
both that the Son is begotten by himself, and that the Spirit is not of the Father, but of himself. For me it<br />
is sufficient that the plural number expresses those powers which God exercised in creating the world.”<br />
Calvin, Commentaries on Genesis, 1:71-72.<br />
93
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
Another argument against a covenant of works in Calvin is drawn from<br />
his understanding of the imputation of Adam’s sin. Some would argue that a<br />
pre-lapsarian covenant demands a representative view of the imputation of<br />
the original sin. The representative position affirms that Adam was chosen<br />
(appointed) by God as humanity’s federal head and it is this appointment that<br />
makes every man responsible for Adam’s transgression. This perspective<br />
was developed by later Reformed theologians. <strong>20</strong> In contrast, it is affirmed that<br />
Calvin, influenced by Augustine and Anselm, was a realist. Calvin believed, it<br />
is affirmed, that because Adam is the source of all the human race, in Adam’s<br />
“loins” all mankind also sinned, coming into existence in an already fallen state. 21<br />
It is indeed true that Calvin held the realistic position. This is verified in<br />
a statement found in the Institutes. 22 But it is false to affirm that Calvin held<br />
to this particular position alone. Texts that point to a representative view are<br />
also found in Calvin. 23 The attempt to identify Calvin in one of the two schools<br />
concerning the nature of the imputation of Adam’s sin is, at least, inconclusive.<br />
And regardless of Calvin’s position on this issue, Reformed theologians have<br />
already agreed that the <strong>do</strong>ctrine of the covenant of works is compatible with<br />
either view. 24 The simple fact that Calvin adheres to one of them is an actual<br />
indication that a pre-lapsarian covenant is present in Calvin’s thought.<br />
The presence of the covenant of works in Calvin’s theology seems very<br />
clear. It is correct to affirm that the theologian of Geneva did not produce a<br />
systematic treatise on the subject compared to the works of famous covenant<br />
theologians like Ursinus, Olevianus, Musculus, Perkins, Ball, and the Westminster<br />
divines. Actually, the contrary is what seems to be true. The theologians<br />
of the post-Reformation, “drinking” from Calvin and others, elaborated a more<br />
sophisticated system in order to explain a biblical <strong>do</strong>gma. Regardless of how<br />
<strong>20</strong> Helm, “Calvin and the Covenant,” 72.<br />
21 According to Lillback it was the great southern Presbyterian James H. Thornwell who held to<br />
this position. Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 278n99.<br />
22 “Adam, by sinning, not only took upon himself misfortune and ruin but also plunged our nature<br />
into like destruction. This was not due to the guilt of himself alone, which would not pertain to us at<br />
all, but was because he infected all his posterity with that corruption in to which he had fallen.” Calvin,<br />
Institutes, 1:249.<br />
23 “…the beginning of corruption in Adam was such that it was conveyed in a perpetual stream<br />
from the ancestors into their descendants. For the contagion <strong>do</strong>es not take its origins from the substance<br />
of the flesh or soul, but because it had been so ordained that the first man should at one and the same<br />
time have and love, both for himself and for his descendants, the gifts that God had bestowed upon him.”<br />
Calvin, Institutes, 1:250.<br />
24 Shedd, another Presbyterian theologian, affirmed: “Since the idea of representation by Adam is<br />
incompatible with that of specific existence in Adam, the choice must be made between representative<br />
union and natural union. A combination of the two views is illogical. But the <strong>do</strong>ctrine of the covenant<br />
of works is consistent with either theory of the Adamic connection.” William G. T. Shedd, Dogmatic<br />
Theology (Nashville, TN: Thomas Nelson Publishers, 1980), II, 39-40.<br />
94
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
and whom later theologians are indebted to for their theology of a covenant of<br />
works, it seems clear that this <strong>do</strong>ctrine is already present in Calvin in seminal<br />
form. Lillback concludes: “The arguments affirming that Calvin taught a covenant<br />
of works in an inchoative sense appear conclusive.” 25<br />
2. the beginning of the administration of the<br />
covenant of grace and the noahic covenant<br />
For Calvin, all true believers after the Fall are under the covenant of<br />
grace. In the two most important chapters in the Institutes regarding Calvin’s<br />
views on the <strong>do</strong>ctrine of the covenant, chapters 10 and 11 of Book II, the reformer<br />
affirms that to Adam was given the first promise of salvation. 26 Calvin<br />
was referring to the text of Genesis 3:15, which later became known among<br />
covenant theologians as the protoeuangelion. 27 This certainly explains why<br />
Calvin frequently uses the following sequence of persons when dealing with<br />
redemption in its revelation, accomplishment and application: “Adam, Noah,<br />
Abraham.” In his argument in the commentary on the book of Genesis, Calvin<br />
affirms that the covenant between God and his people dates back long before<br />
Moses. Those whom he would free had already been informed through their<br />
fathers about the covenantal relation between Yahweh and Israel and this was<br />
a knowledge “entirely uncontroverted among them.” 28 For Calvin, salvation<br />
after the Fall begins to be revealed to Adam and progressively passes on to<br />
other patriarchs until its full consummation in Christ. 29<br />
25 Lillback, “Ursinus’ Development of the Covenant of Creation,” 288.<br />
26 For an excellent summary on the importance of these two chapters in the understanding of<br />
Calvin’s covenantal thought see Calvin, Institutes, 1:428n1.<br />
27 Calvin, Institutes, 1:446. It is important to note that while Calvin interprets Genesis 3:15 as<br />
pointing to the salvation of sinners, he rejects the association of the word “seed” with the Lord Jesus<br />
Christ. Such interpretation for Calvin is a violent distortion. His reasons are two: one exegetical and<br />
another historical. He identifies the term as a collective noun and simply cannot understand how it can<br />
be applied to one man only as such. Moreover, throughout human history as revealed in Scripture Calvin<br />
sees that victory over Satan (who used the serpent to tempt Adam and Eve) is promised to elect humankind.<br />
Calvin concludes: “I explain, therefore, the seed to mean the posterity of the woman generally.<br />
But since experience teaches that not all sons of Adam by far, arise as conquerors of the devil, we must<br />
necessarily come to one head, that we may find to whom the victory belongs.” Calvin, Commentaries on<br />
Genesis, 1:170. In his sermon on this text Calvin uses Genesis 3:15 as an encouragement to Christians in<br />
their battle against Satan. After explaining from the pulpit the same opinion present in his commentary,<br />
he affirms: “Now, since we have the natural meaning of this passage, let us think seriously about taking<br />
advantage of it. In the first place, as I have already said, let us be thoroughly convinced that we must<br />
fight against Satan if we want to serve God and be considered among the number of his children.” John<br />
Calvin, Sermons on Genesis 1:1 - 11:4. Forty-nine Sermons Delivered in Geneva between 4 September<br />
1559 and 23 January 1560, trans Rob Roy McGregor (Carlisle, PA: Banner of Truth, <strong>20</strong>09), 289.<br />
28 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:59, 65-66.<br />
29 For the occurrences of the expression see Calvin, Institutes, 1:70, 434. It also appears in Book 4,<br />
viii, 5 as he deals with the Church and its possession of divine revelation. For Calvin, Adam and Noah<br />
were also to be regarded as patriarchs just like Abraham, Isaac and Jacob.<br />
95
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
Calvin sees Yahweh’s promise of preservation and deliverance to Noah<br />
as the Noahic covenant. The promise is a strengthener to Noah’s faith, who<br />
certainly needed it to face the difficult construction of the ark and the many<br />
terrors which were ahead of him, although he was a man of incomparable<br />
faith. 30 The covenant, therefore, is above all a means for Noah to live by faith.<br />
It is an instrument to entice Noah’s trust in the word of God and to help him<br />
“discriminate between life and death.” 31 The Noahic covenant is in general<br />
terms a promise of preservation directed to Noah alone. 32<br />
Calvin uses certain terms in ways different from how they came to be used<br />
in more careful and elaborated views of the covenant. When talking about the<br />
preservation of Noah’s family and of the animals, Calvin calls it a “condition<br />
annexed” to the covenant to encourage Noah in reference to the “replenishing<br />
of the new world.” 33 It is clear by Calvin’s own interpretation that this condition<br />
is not to be fulfilled by Noah but by Yahweh. In seventeenth-century<br />
thought, the condition of the covenant is that part of the divine agreement must<br />
be performed by man, not by God. 34 In light of the later use of the term, what<br />
Calvin means here is an annex to the covenant’s divine promise of life. Another<br />
30 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:258, 296.<br />
31 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:259. Calvin <strong>do</strong>es not identify the threats of the covenant.<br />
But since the promise of the covenant should assist Noah’s faith to obedience, it seems reasonable to<br />
conclude that for Calvin the threat of the covenant would be to drawn with the rest of the disobedient<br />
human race. Similar to the Adamic Covenant, which promised life upon obedience and death upon disobedience,<br />
so <strong>do</strong>es the Noahic covenant. The clear difference in Calvin’s thought is that the obedience<br />
of Noah to the covenant is only by faith and the object of faith is the promise of the covenant itself.<br />
Calvin will later call this covenant “the covenant of life.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:310.<br />
32 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:259. “For there is an understood antithesis, that the whole<br />
world being rejected, the Lord would establish a peculiar covenant with Noah alone.” Emphasis mine.<br />
33 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:259.<br />
34 Zacharias Ursinus in regard to the covenant teaches that “this agreement, or reconciliation, is<br />
called a Covenant, because God promises to us certain blessings, and demands from us in return our<br />
obedience, employing also certain solemn ceremonies for the confirmation thereof.” For Ursinus,<br />
covenant promises derive from God and covenant conditions are for men. The conditions of a covenant<br />
are its substance and they are repentance and faith. This element is what leads Ursinus to the conclusion<br />
that “there is but one covenant.” See Zacharias Ursinus, The Commentary of Dr. Zacharias Ursinus on<br />
the Heidelberg Catechism, trans G. W. Williard (Phillipsburg, N.J.: Presbyterian & Reformed Pub. Co.,<br />
1985), 97-100. In a similar fashion Thomas Watson, preaching on question 12 of the Westminster Shorter<br />
Catechism which affirms that God, after creating man, entered into a covenant of life with him upon<br />
condition of perfect obedience, affirms that “the form of the first covenant in innocence was working;<br />
‘Do this and live.’ Working was the ground and condition of man’s justification.” Thomas Watson, Body<br />
of Divinity: Contained in Sermons upon the Assembly’s Catechism, ed. George Rogers (Grand Rapids,<br />
MI: Baker Book House, 1979), 90. Preaching on question <strong>20</strong> of the same catechism, this time on the<br />
covenant of grace, he explains that “it is a covenant of grace, because it is a royal charter, all made up<br />
of terms of grace; that ‘God will cast our sins behind his back;’ that ‘he will love us freely;’ Hos 14:4;<br />
that he will give us a will to accept the mercy of the covenant, and strength to perform the conditions<br />
of the covenant. Ezek 36:67. All this is pure grace.” Watson, Body of Divinity, 107.<br />
96
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
instance of different terminology is when Calvin calls Noah “the stipulator<br />
of the covenant.” 35 He uses this term to describe Noah as the subject with whom<br />
the covenant is being made and that his sons are incorporated to the agreement<br />
by association. Although the word can be used in reference to one who accepts<br />
a deal without requiring any kind of guarantee, in later developments of the<br />
<strong>do</strong>ctrine of the covenant the word was used mainly in reference to Yahweh’s<br />
role of setting up the details of the agreement. 36<br />
The parties of the Noahic Covenant, for Calvin, are God and Noah. As<br />
already noted, Noah’s family and the animals are part of God’s promise (or,<br />
using Calvin’s terminology, condition) to Noah in order to encourage him to<br />
present obedience and future hope. This is why this covenant results in both<br />
human and cosmic preservation. 37 But Calvin observes that the entrance of<br />
Noah’s family into the covenant has a “subordinated place.” Noah’s sons and<br />
their wives are “joined with their father” and are “associated with him.” 38 It<br />
seems that Calvin considers Noah as the federal head of his family, like Adam,<br />
and his posterity, both near and far, participate with him in the covenant. Calvin<br />
uses this conclusion in order to refute the Anabaptists, who reject infant baptism<br />
35 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:297.<br />
36 One of the first Reformed creeds to give attention to the <strong>do</strong>ctrine of the covenant was the<br />
Erlauthaler Confession of 1562. It expresses in concise but precise form what was understood by a divine<br />
covenant. According to Peter De Jong, in it “God the Father is recognized as ‘stipulator et promissor.’<br />
However, since in all covenant there are two parts, so too in the new covenant of God with man there<br />
are obligations which must be met. Recognizing and elaborating upon this the confession states: ‘In<br />
nove foedere Deus stipulator est, Christus autem factor obligator nostro nomine.’” Peter Y. De Jong, The<br />
Covenant Idea in New England Theology, 16<strong>20</strong>-1847 (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1945),<br />
30. In this sense, stipulator means the one who begins the arrangement and set its requirements. In<br />
the seventeenth-century, Johannes Cocceius seems to be the one who, using Roman law terminology,<br />
applies the term stipulator only to God meaning “the initiator, the one who lays <strong>do</strong>wn the conditions<br />
of the agreement.” And to man he applies the term astipulator, who consents to the conditions laid<br />
<strong>do</strong>wn by the stipulator. Charles S. McCoy, “The Covenant Theology of Johannes Cocceius” (PhD<br />
diss., Yale University, 1957), 157-194. See particularly 169n2. Calvin uses to term in reference to God<br />
in his commentary to the prophecy of Malachi. There he explains the divine covenant in terms of the<br />
marriage covenant. He affirms that “God is as it were the stipulator, who by his authority joins the man<br />
to the woman, and sanctions the alliance.” John Calvin, Commentaries on the Twelve Minor Prophets,<br />
trans. John Owen, vol. 5 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, <strong>20</strong>05), 553. It seems that here Calvin<br />
acknowledges God’s role as one who officially unites and bonds a couple in their marital vows. The notion<br />
of an initiator and one who dictates obligations seems to be absent here. In his excellent historical<br />
study of covenant theology, <strong>Andrew</strong> Woolsey explains that there was in Calvin’s covenantal thought<br />
the idea of “mutual stipulations.” But, used in this sense, the word means condition instead of initiation.<br />
<strong>Andrew</strong> A. Woolsey, Unity and Continuity in Covenantal Thought: a Study in the Reformed Tradition<br />
to the Westminster Assembly (Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, <strong>20</strong>12), 306-317.<br />
37 “In other words, the world today <strong>do</strong>es not survive apart from the power of that covenant God<br />
placed between men and himself…he wants to preserve us and all living creatures because of his infinite<br />
goodness even though we deserve to be exterminated.” Calvin, Sermons on Genesis 1 to 11, 752.<br />
38 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:297.<br />
97
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
on the basis that “they are destitute of present faith.” Appling the implications<br />
of the nature of the Noahic Covenant, Calvin concludes that God’s promise<br />
to Noah and his thousand generations is legitimate; in this case, however,<br />
parents <strong>do</strong> not function as mediators but as teachers who pass on the words<br />
of the covenant to those after them and incite them to believe those words. 39<br />
Ultimately, again, salvation is by faith.<br />
Similar to the covenant of works that had the tree of life as its sacrament,<br />
the arch over the clouds becomes the sacrament of the Noahic Covenant. By<br />
sacrament Calvin means a “mark [in which] God placed his sign and seal on.” 40<br />
The rainbow, he explains, has always existed, but at the moment that God<br />
impressed upon it his Word, it became a sign of his promise to all those who<br />
believe. Such belief is not the automatic product of the sight of the sacrament,<br />
or the rational association of the phenomenon with its divine meaning. It is<br />
the fruit of the power of the Holy Spirit working in the believer through the<br />
sacrament. 41 Every time the bow shows up in the sky the believer should be<br />
encouraged in his faith in God as the preserver and provider of life. It seems<br />
that here resides for Calvin the redemptive aspect of the Noahic Covenant. It<br />
is not simply a promise of preservation of material life, but of life. He explains<br />
that when the rainbow appears it is always in a circumstance of rain and it<br />
should bring fear and dread to the believer’s heart. But since God’s Word of<br />
promise is now impressed upon it, when it appears, even in a circumstance<br />
of threat, it awakens in the believer the assurance of salvation. The Word engraved<br />
in the sacrament encourages and boosts the Christian’s faith in God’s<br />
provision of salvation. In the New Covenant, this provision is clearly and<br />
totally revealed in the sacrament of the Lord’s Supper, which points to God’s<br />
life in Christ’s death. 42 Thus, the covenant with Noah is not simply a generic<br />
covenant of preservation; it is principally a covenant that promises life, life<br />
eternal, life abundant. The source of this life will be revealed progressively in<br />
the subsequent covenants.<br />
3. Abrahamic Covenant in the thought of<br />
John Calvin<br />
For Calvin, the Abrahamic covenant is the formal establishment of the<br />
covenant of grace. In Abraham, the gathering of a particular people begins to<br />
whom salvation will be granted. Abraham did not conquer or merit this great<br />
39 “…When God promised salvation to a thousand generations, the fathers were not intermediate<br />
parties between God and their children, whose office it is to deliver to their children (so to speak) from<br />
hand to hand, the promise received from God.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:297-298.<br />
40 Calvin, Sermons on Genesis 1 to 11, 760.<br />
41 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:298-299.<br />
42 Calvin, Sermons on Genesis 1 to 11, 760-761.<br />
98
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
privilege in any sort of way; it is the fruit only of God’s grace, an element<br />
which characterizes the covenantal dealing in all its administrations. 43<br />
In his commentaries on Genesis 17, Calvin thoroughly elaborates on<br />
some characteristics of this dispensation. He identifies in this chapter the<br />
presence of a summary of the divine covenant. Concerning the content of<br />
Abraham’s vision, he writes: “Now that word summarily contains this declaration,<br />
that God enters into covenant with Abram: it then unfolds the nature<br />
of the covenant itself, and finally puts to it the seal, with the accompanying<br />
attestations.” 44<br />
The first element of the nature of the covenant clearly observed in Calvin’s<br />
teaching is its mutuality. In paraphrasing God’s words to Abraham, he writes:<br />
“See how kindly I indulge thee: for I <strong>do</strong> not require integrity from thee simply<br />
on account of my authority, which I might justly <strong>do</strong>; but whereas I owe thee<br />
nothing, I condescend graciously to engage in a mutual covenant.” 45 Peter<br />
Lillback explains that “mutuality acknowledges that both parties of the covenant<br />
have responsibilities.” 46 God, in Genesis 17, obligates himself to bless<br />
Abraham by means of promises. Those promises are, nevertheless, gratuitous,<br />
not depending on Abraham’s merit, character, or efforts. In this sense of God’s<br />
grace, the covenant is unilateral; it is the fruit only of God’s condescension.<br />
But, as a contract, the covenant also establishes obligations for Abraham. God<br />
demands from him devotion, servitude, and commitment to the righteousness<br />
of God. In Calvin’s words, the patriarch’s responsibility in the covenant was<br />
that “Abraham should be upright.” 47<br />
A second element Calvin identifies in the Abrahamic covenant is that<br />
of conditionality. Lillback explains that “conditionality outlines the responsibilities<br />
that each as party has toward the other.” 48 Commenting on the words<br />
“walk before me” in Genesis 17:1, Calvin affirms Abraham’s responsibility:<br />
43 “He (God) designs to open his sacred mouth, that he may show to one, deceived by Satan’s<br />
wiles, the way of salvation. And it is wonderful, that a man, miserable and lost, should have the preference<br />
given to him, over so many holy worshippers of God, that the covenant of life should be placed in his<br />
possession; that the Church should be revived in him, and he himself constituted the father of all the<br />
faithful. But this is <strong>do</strong>ne designedly, in order that the manifestation of the grace of God might become<br />
the more conspicuous in his person.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:343.<br />
44 Ibid., 1:442.<br />
45 Ibid., 1:444.<br />
46 Peter A. Lillback, The Binding of God: Calvin’s Role in the Development of Covenant Theology<br />
(Grand Rapids, MI: Baker Academic, <strong>20</strong>01), 169.<br />
47 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:444. For a complete exposition of Calvin’s understanding<br />
of the mutuality of the Abrahamic covenant, read in full his comments on verses 1 and 2 of his commentary<br />
on Genesis 17. For several other places in Calvin’s writings where the concept of mutuality is<br />
developed, see Lillback, The Binding of God, 166-168.<br />
48 Lillback, The Binding of God, 169.<br />
99
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
“In making the covenant, God stipulates for obedience, on the part of his<br />
servant.” 49 The reformer obviously recognizes that the first patriarch would<br />
receive the blessings of the covenant upon his faithfulness in keeping its<br />
conditions. In the Institutes, Calvin explains the exclusion of Ishmael and<br />
Esau from the Abrahamic covenant due to their disobedience to the terms<br />
of the pact. He affirms: “By their own defect and guilt, I admit, Ishmael,<br />
Esau, and the like were cut off from a<strong>do</strong>ption. For the condition had been<br />
laid <strong>do</strong>wn that they should faithfully keep God’s covenant, which they<br />
faithlessly violated.” 50 It is important to note that the idea of condition in<br />
the covenant of grace has not always been accepted in the reformed camp.<br />
Anthony Hoekema explains that the theologian Herman Hoeksema and the<br />
historian Perry Miller insisted in the absence of this concept in Reformed<br />
and Puritan theology. Hoekema confirms, nonetheless, the presence of this<br />
element in Calvin’s thought and explains:<br />
Calvin insists that man has conditions to keep in the covenant of grace; but<br />
holds that we can only keep these conditions through God’s strength, and that<br />
keeping these conditions involves no merits on our part, since our works are<br />
always imperfect. 51<br />
The existence of a conditional element in the Abrahamic covenant demands<br />
an explanation of Calvin’s view of justification in this particular dispensation.<br />
Calvin elaborates on Abraham’s faith and justification in his comments on<br />
Genesis 15. In his explanation of the expression “and he believed in the Lord”,<br />
Calvin affirms that righteousness is imputed to Abraham apart from his personal<br />
justice. 52 But why is righteousness imputed to Abram? Because of his<br />
faith, Calvin explains. He affirms that “the righteousness of the most perfect<br />
characters perpetually consists in faith; since Abram, with all the excellency<br />
of his virtues, after his daily and ever remarkable service of God, was, nevertheless,<br />
justified by faith.” At this point, Calvin associates becoming righteous<br />
with justification, and describes it in terms of a<strong>do</strong>ption and reconciliation. 53<br />
49 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:443.<br />
50 Calvin, Institutes, 1:929.<br />
51 Anthony A. Hoekema, “Calvin’s Doctrine of the Covenant of Grace,” Reformed Review 15, n. 4<br />
(May 1962): 9.<br />
52 “Just as we understand that they to whom iniquity is imputed are guilty before God; so those<br />
to whom he imputes righteousness are approved by him as just persons; wherefore Abram was received<br />
into the number and rank of just persons, by the imputation of righteousness… Therefore, they foolishly<br />
trifle who apply this term to his character as an honest man; as if it meant that Abram was personally held<br />
to be a just and righteous man.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:405-406.<br />
53 “Therefore, we <strong>do</strong> no say that Abram was justified because he laid hold of a single word,<br />
respecting the offspring to be brought forth, but because he embraced God as his Father. And truly faith<br />
100
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
And in what did Abraham had faith? In the fulfillment of the words of the<br />
covenant, Calvin affirms. God bound himself by promise to bless Abraham<br />
and all the nations by means of a seed which would come from him. The<br />
object of Abraham’s faith is in the promise of the covenant. This seed <strong>do</strong>es<br />
not represent Abram descendancy as a whole, but that particular blessed seed<br />
in which reconciliation would be achieved. 54 Veninga rightly summarizes the<br />
subject of justification and faith affirming that<br />
[...] the import of this discussion is that God freely called Abraham and offered<br />
to him and his posterity eternal salvation; Abraham was justified because he<br />
believed the Father, not because of personal merit. The clue to Abraham’s spiritual<br />
success is that he believed in the promise, and from this belief he gained<br />
courage for a life of obedience. 55<br />
The association of the Abrahamic covenant with circumcision and participation<br />
in the covenant is inevitable. In his comments on Genesis 17:7, Calvin<br />
insists that God’s covenant with Abraham is not only immediately with him alone<br />
but also includes his natural descendants. “There is no <strong>do</strong>ubt,” Calvin affirms,<br />
“that the Lord distinguishes the race of Abraham from the rest of the world.”<br />
By the expression “race of Abraham”, Calvin means those who are biologically<br />
related to Abraham: “Nothing is more certain, that God made his covenant with<br />
those sons of Abraham who were naturally to be born of him.” 56 Nevertheless,<br />
Abraham’s descendants are not to be differentiated from the Church; in fact, Israel<br />
is the Old Testament Church in the body of a nation separated from all others.<br />
In the beginning, antecedently to this covenant, the condition of the whole world<br />
was one and the same. But as soon as it was said, “I will be a God to thee and<br />
to thy seed after thee,” the Church was separated from other nations; just as in<br />
the creation of the world, the light emerged out of the darkness. 57<br />
<strong>do</strong>es not justify us for any other reason, than that is reconciles us unto God; and that it <strong>do</strong>es so, not by its<br />
own merit; but because we receive the face offered to us in the promises, and have no <strong>do</strong>ubt of eternal<br />
life, being fully persuaded that we are loved by God as sons.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:407.<br />
54 “It seems, however, to be absurd, that Abram should be justified by believing that his seed would<br />
be as numerous as the stars of heaven; for this could be nothing but a particular faith, which would but<br />
no means suffice for the complete righteousness of man. Besides, what could an earthly and temporal<br />
promise avail for eternal salvation? I answer, first, the believing of which Moses speaks, is not to be<br />
restricted to a single clause of the promise here referred to, but embraces the whole; secondly, Abram did<br />
not form his estimate of the promised seed from this oracle alone, but also from others, where a special<br />
benediction is added. Whence we infer that he did not expect some common or undefined seed, but that<br />
in which the world was to be blessed.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:406.<br />
55 James Frank Veninga, “Covenant Theology and Ethics in the Thought of John Calvin and John<br />
Preston” (PhD diss., Houston, TX: Rice University, 1980), 49.<br />
56 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:447-448.<br />
57 Ibid., 1:448.<br />
101
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
However, being a natural descendent from Abraham did not guarantee<br />
one’s participation in the promise of covenant. Calvin affirms that “…not all<br />
who are from Abraham are to be esteemed legitimate children; because they<br />
are not the children of the promise, but only of the flesh.” 58 Calvin, therefore,<br />
creates a dichotomy between promise and covenant in such a way that one<br />
may be participant of the covenant but not of its promises. To participate in the<br />
covenant alone is to be recipient only of its words, but to be participant of<br />
the promises is to share the inner effects of the covenant.<br />
For there, the promise is not taken generally for the outward word, by which<br />
God conferred his favor as well upon the reprobate as upon the elect; but must<br />
be restricted to that efficacious calling, which he inwardly seals by his Spirit. 59<br />
This dichotomy between participation in the covenant and participation<br />
in the promises provides the setting for Calvin to elaborate a concept of<br />
election in the Abrahamic covenant. He speaks of a “twofold class of sons”<br />
present in the Church. The first refers to the whole group of people who are<br />
identified as the Church. They are publicly recognized as members of the<br />
covenant and are accounted as children of God. The second class refers to<br />
those whom “the promise of the covenant is ratified by faith.” This dichotomy<br />
Calvin attributes to the “fountain of gratuitous election, whence also<br />
faith itself springs.” 60 Hoekema’s explanation of this dichotomy in Calvin<br />
is most enlightening:<br />
You could say that covenant membership is here pictured as a circle wider<br />
than particular election, but narrower than mankind as a whole. Covenant<br />
membership thus by no means guarantees one’s salvation; one like Esau<br />
and Saul may be lost despite one’s covenant membership…The covenant of<br />
grace, therefore, is here pictured, not as identical with particular election, but<br />
as a visible image of it…Calvin distinguished between two types of election:<br />
election in the wider sense, illustrated in the choice of Abraham’s seed to be<br />
his people, and therefore equivalent to the a<strong>do</strong>ption of individuals into his<br />
covenant of grace; and election in the narrower sense, which means predestination<br />
to eternal life. 61<br />
One last aspect of the Abrahamic covenant present in Calvin’s writings<br />
deserves attention: the sacrament of circumcision and its meaning. Calvin<br />
affirms circumcision to be the inscription of the covenant in Abraham’s<br />
58 Ibid., 1:448-449.<br />
59 Ibid., 1:449.<br />
60 Ibid., 1:449.<br />
61 Hoekema, “Calvin’s Doctrine of the Covenant of Grace,” 7.<br />
102
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
body in order that, through that register, the patriarch’s new status would be<br />
remembered. 62 In the mind of Calvin, the memorial aspect of circumcision is<br />
associated with the fact that it is called “the covenant of God.” Calvin explains<br />
that the association of the word of God (present here in the covenant concept)<br />
and the symbol is what makes it a sacrament. “A sacrament is nothing else that<br />
a visible word, or sculpture and image of that grace of God which the word<br />
more fully illustrates.” 63 Calvin, then, moves on to place upon the sacrament<br />
a particular function as a result of this relationship between word, sacrament,<br />
and faith: “It follows that the proposed end and use of sacraments is to help,<br />
promote and confirm faith.” 64 Calvin emphasizes this amazing role of the sacrament<br />
without destroying the power and authority of the word. Both must be<br />
present. He affirms: “And although we must maintain the distinction between<br />
the word and the sign; yet let us know, that as soon as the sign itself meets our<br />
eyes, the word ought to sound in our ears.” 65<br />
Concerning the significance of the sacrament, Calvin recognizes the<br />
necessity of an analogy between the thing signified and the sign. Due to this<br />
recognition, he initially expresses amazement for the choice of such unusual<br />
sign. His amazement, however, <strong>do</strong>es not hinder the great theologian to find an<br />
answer to the meaning for circumcision. He attributes to it two significances:<br />
the declaration of the corruption of the human race and the confirmation that<br />
such tragic state would be reverted by one belonging to the descendancy of<br />
Abraham. 66 In other words, the sign represents both removal of uncleanness<br />
and redemption. Such reasoning opens the <strong>do</strong>ors for Calvin’s later association<br />
of circumcision and baptism.<br />
Concerning the participants of the covenant, Calvin affirms the participation<br />
of both genders, male and female, in it, in spite of the administration<br />
of the sign being restricted only to males. He attributes the participation of<br />
women into the covenant to the necessity that both sexes have of its blessed<br />
62 “As formerly, covenants were not only committed to public records, but were also wont to<br />
be engraven in brass, or sculptured on stones, in order that the memory of them might be more fully<br />
recorded, and more highly celebrated; so in the present instance, God inscribes his covenant in the flesh<br />
of Abraham. For circumcision was a solemn memorial of that a<strong>do</strong>ption, by which the family of Abraham<br />
had been elected to be the peculiar people of God.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:451.<br />
63 Calvin, Commentaries on Genesis, 1:451. Calvin affirms the same even more emphatically:<br />
“By the figure metonymy, the name of covenant is transferred to circumcision, which is so conjoined<br />
with the word, that it could not be separated from it.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:453.<br />
64 Ibid., 1:452.<br />
65 Ibid.<br />
66 “Moreover, it is probable that the Lord commanded circumcision for two reasons: first, to show<br />
that whatever is born of man is polluted; then, that salvation would proceed from the blessed seed of<br />
Abraham.” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:453-454.<br />
103
Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />
promise. 67 The administration of the sign of the covenant in babies <strong>do</strong>es not<br />
guarantee their salvation. Calvin makes a strong case against the false belief<br />
that those infants who die before the opportunity of being baptized are <strong>do</strong>omed<br />
to perdition. The sign, according to Calvin, shall not overpower the promise of<br />
God. 68 However, the reformer raises a strong case against those who willingly<br />
hinder their children from receiving the sign of the sacrament. Calvin affirms<br />
it to be a demonstration of ingratitude and contempt for the grace of God. The<br />
willful rejection of the sign God himself established as part of his covenant<br />
must be avoided at all costs on the threat of one’s suffering God’s divine punishment.<br />
69 In the Institutes, Calvin emphasizes five different practical aspects<br />
of the Abrahamic covenant regarding membership in it and the spiritual profit of<br />
its members from it. They are, according to Peter Lillback: (1) this covenant is<br />
the means by which God separates believers and non-believers in the world;<br />
(2) it is where Israel, the natural descendants of Abraham, finds salvation;<br />
(3) this covenant continues to be valid until today; (4) Christ is center of this<br />
dispensation; (5) justification and sanctification are its two great benefits. 70<br />
conclusion<br />
Although Calvin was not concerned to leave behind him a systematic<br />
approach to the <strong>do</strong>ctrine of the divine covenants, it is clear that not only was<br />
his mind immersed in this precious <strong>do</strong>ctrine but that a careful, logical, and<br />
systematical approach to his writings enables one to extract and organize,<br />
in systematic form, his thoughts. Calvin was not too far from the other scholars<br />
after him who developed <strong>do</strong>gmatics having the covenant as their central<br />
structural principle. Such a harmony between Calvin and later theologians<br />
demonstrates what takes place when the Sola Scriptura is taken seriously:<br />
harmony in the midst of diversity. In spite of diverging in non-essentials like<br />
specific terminology, the theologians of the reformation and post-reformation<br />
periods believed in general in the same <strong>do</strong>gmas. The Church <strong>do</strong>es well in<br />
keeping and studying their teachings.<br />
67 “For the covenant of God was graven on the bodies of the males, with this condition annexed,<br />
that the females also should as their associates be partakers of the same sign” Calvin, Commentaries on<br />
Genesis, 1:453.<br />
68 “To consign to destruction those infants whom a sudden death has not allowed to be presented<br />
for baptism, before any neglect of parents could intervene, is a cruelty originating in superstition. But<br />
that the promise belongs to such children, is nothing the least <strong>do</strong>ubtful. For what can be more absurd<br />
than that the symbol, which is added for the sake of confirming the promise, should really enervate its<br />
force?” Calvin, Commentaries on Genesis, 1:458.<br />
69 “But because it is not in the power of man to sever what God has joined together; no one could<br />
despise or neglect the sign, without both rejecting the word itself, and depriving himself of the benefit<br />
therein offered. And therefore the Lord punished bare neglect with such severity.” Calvin, Commentaries<br />
on Genesis, 1:457-458.<br />
70 Lillback, The Binding of God, 145-146.<br />
104
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 89-105<br />
resumo<br />
A teologia <strong>do</strong> pacto sempre teve um lugar de destaque no ramo reforma<strong>do</strong>.<br />
Ela serve de base para várias outras <strong>do</strong>utrinas e também se constitui em uma<br />
chave hermenêutica para ler e compreender as Escrituras. Apesar de as grandes<br />
sistematizações dessa <strong>do</strong>utrina terem apareci<strong>do</strong> somente a partir <strong>do</strong> século 17,<br />
é possível encontrá-la presente no pensamento <strong>do</strong>s primeiros reforma<strong>do</strong>res.<br />
Este artigo visa investigar algumas das principais obras de João Calvino na<br />
tentativa de organizar o seu pensamento no que diz respeito a essa <strong>do</strong>utrina e<br />
de construir o que seria a visão <strong>do</strong> reforma<strong>do</strong>r de Genebra sobre cada uma<br />
das dispensações <strong>do</strong> pacto divino com o homem. Neste primeiro artigo são<br />
analisa<strong>do</strong>s os seguintes pactos: das obras, noaico e abraâmico. Vários artigos já<br />
foram publica<strong>do</strong>s analisan<strong>do</strong> o pensamento pactual de Calvino como um to<strong>do</strong>,<br />
em termos <strong>do</strong> pacto da graça de maneira geral. Entretanto, não foi encontrada<br />
nenhuma contribuição acadêmica que investigasse cada pacto sucessivamente<br />
no pensamento de Calvino.<br />
palavras-chave<br />
João Calvino; Teologia; Pacto; Obras; Noaico; Abraâmico.<br />
105
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 107-110<br />
Resenha<br />
Allen Porto *<br />
SCHAEFFER, Francis. Gênesis no espaço-tempo. Brasília, DF: Editora<br />
Monergismo, <strong>20</strong>14. <strong>20</strong>8 p.<br />
O pastor presbiteriano Francis Schaeffer não é desconheci<strong>do</strong> no Brasil.<br />
Funda<strong>do</strong>r da Comunidade L’Abri e da International Presbyterian Church, é<br />
considera<strong>do</strong>, por alguns, o líder evangélico mais importante <strong>do</strong> século <strong>20</strong>. 1<br />
Suas obras completas trazem 22 títulos, embora tenha publica<strong>do</strong> mais que<br />
isso. 2 Dentre tais volumes, pelo menos 16 foram traduzi<strong>do</strong>s para o português.<br />
Nasci<strong>do</strong> em 1912, Schaeffer se tornou conheci<strong>do</strong> pelo tipo de ministério<br />
que desenvolveu, aplican<strong>do</strong> o evangelho às demandas da cultura irracionalista<br />
<strong>do</strong> seu tempo. L’Abri, um conjunto de chalés nos Alpes Suíços, abrigava<br />
diversos tipos de pessoas, em sua maioria jovens em busca existencial, para<br />
“demonstrar a existência de Deus” e fornecer “respostas honestas a questões<br />
honestas”. 3 Diferente de muitos em seu tempo, Schaeffer interagiu com a<br />
produção cultural para interpretar o homem e anunciar os problemas da cosmovisão<br />
da época, apontan<strong>do</strong> para a fé da Reforma – o evangelho – como a<br />
única resposta consistente para o dilema humano. Assim, ganhou notoriedade<br />
por dialogar com o cinema, a pintura, a ciência e a filosofia, enquanto trazia a<br />
Bíblia para a discussão. Faleceu em 1984, ten<strong>do</strong> deixa<strong>do</strong> um ministério que se<br />
* Aluno <strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> em Teologia Filosófica no <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong><br />
<strong>Jumper</strong>. Pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Renascença, em São Luís, Maranhão. Está envolvi<strong>do</strong><br />
em um projeto de plantação de igreja na mesma cidade.<br />
1 Conforme a revista First Things, Schaeffer é um <strong>do</strong>s 50 líderes religiosos mais importantes da<br />
história <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Disponível em: < http://www.firstthings.com/blogs/firstthoughts/<strong>20</strong>10/08/50-<br />
-most-influential-religious-figures-in-american-history>.<br />
2 O livro “A obra consumada de Cristo”, por exemplo, não está presente na coletânea.<br />
3 Schaeffer utiliza a expressão em muitas de suas obras. Em Gênesis no Espaço-Tempo, é utilizada<br />
na p. 178.<br />
107
Gênesis no espaço-tempo<br />
espalhou pelo mun<strong>do</strong>, com unidades de L’Abri na Suíça, Holanda, Inglaterra,<br />
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Austrália, Japão e Brasil.<br />
Gênesis no Espaço-Tempo deve ser percebi<strong>do</strong> no contexto desse tipo<br />
de compreensão e abordagem. Schaeffer está situa<strong>do</strong> no campo reforma<strong>do</strong>,<br />
manifestan<strong>do</strong> uma apreciação pela cultura que aponta para Abraham Kuyper.<br />
Sua discussão não apenas no âmbito de “fatos”, mas também de pressupostos<br />
e cosmovisões, indica a influência de Cornelius Van Til, de quem foi aluno no<br />
Westminster Theological Seminary. Sua firmeza <strong>do</strong>utrinária, aliada às reivindicações<br />
<strong>do</strong> impacto <strong>do</strong> cristianismo para o to<strong>do</strong> da vida, revela a absorção <strong>do</strong><br />
que há de melhor nas tradições reformadas anglo-saxãs e continentais.<br />
O livro trata, em suma, <strong>do</strong>s primeiros onze capítulos <strong>do</strong> Gênesis, buscan<strong>do</strong><br />
nos relatos das origens o fundamento da realidade e as respostas a algumas<br />
das perguntas mais básicas da humanidade. Em seus oito capítulos, Schaeffer<br />
discute a criação e o ser de Deus; a criação <strong>do</strong> homem e sua singularidade<br />
no mun<strong>do</strong>; a estrutura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; a escolha humana; a queda humana e suas<br />
implicações para a vida; o desenvolvimento de duas linhagens e culturas; o<br />
dilúvio e as percepções acerca <strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> universo; e Noé, Babel,<br />
Abraão e o relacionamento pactual entre Deus e o homem.<br />
O interesse <strong>do</strong> autor, como a leitura demonstrará, não está em discutir cada<br />
fenômeno de maneira excessivamente detalhada, mas em identificar, por meio<br />
de contornos abrangentes, o “fluxo da história”. 4 Essa, aliás, é a declaração<br />
inicial <strong>do</strong> texto. Tal aproximação é a força e a fraqueza de Schaeffer. Alguns<br />
o considerarão superficial, por não aprofundar tanto a discussão de palavras e<br />
cláusulas, ou por não dedicar mais tempo ao aprofundamento <strong>do</strong>s conceitos<br />
trata<strong>do</strong>s, enquanto outros notarão que esta abordagem é mais adequada para<br />
lidar com os temas em foco, sem se perder em minúcias. O tema <strong>do</strong> fluxo da<br />
história perpassa o pensamento de Schaeffer, delinean<strong>do</strong> também a sua maneira<br />
de fazer teologia bíblica e análise histórica. Caso semelhante acontece<br />
na obra Josué e o Fluxo da História Bíblica 5 e em Como Viveremos?. 6<br />
Além da noção de fluxo da história, outros temas caros ao autor são encontra<strong>do</strong>s<br />
na obra. É o caso da crítica sobre a “divisão da realidade em patamares<br />
distintos”: o superior, da “verdade religiosa” e o inferior, da “verdade histórica”<br />
(cf. p. 19, 24-26). Tal crítica é forte em obras como O Deus que Intervém 7 e<br />
A Morte da Razão, 8 e é devidamente retomada nesta, que busca apresentar<br />
uma percepção <strong>do</strong> relato bíblico das origens conectada à vida humana em sua<br />
4 O termo é usa<strong>do</strong> generosamente por Schaeffer. Cf. p. 21, 43, 65, 68, 73, 87, 100, 113, 1<strong>20</strong>, 135,<br />
142, 151, 155, 157, 179, 180, 190, 192, 197, <strong>20</strong>0, <strong>20</strong>3.<br />
5 SCHAEFFER, Francis. Josué e o fluxo da história bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>05.<br />
6 SCHAEFFER, Francis. Como viveremos? São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>03.<br />
7 SCHAEFFER, Francis. O Deus que intervém. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>02.<br />
8 SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>02.<br />
108
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 107-110<br />
realidade imediata. Conforme a apresentação <strong>do</strong> autor, notar a realidade fragmentada<br />
implica em perder a força da mensagem de Deus para a vida humana.<br />
Também se faz presente em Gênesis no Espaço-Tempo o tema da “comunicação<br />
verdadeira e comunicação exaustiva” (cf. p. 49-53), trata<strong>do</strong> em O Deus<br />
Que Se Revela. 9 Para Schaeffer, a Bíblia fornece conhecimento verdadeiro,<br />
embora não total. Ela é verdade proposicional, mesmo não tratan<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s<br />
os temas <strong>do</strong> conhecimento humano. Tal noção deveria garantir a integridade<br />
da Escritura, bem como promover uma aproximação adequada de seu texto.<br />
Conforme o autor, a Bíblia pode ser tratada como texto científico no senti<strong>do</strong><br />
de que suas afirmações sobre o mun<strong>do</strong> são verdadeiras. Porém, não pode ser<br />
tratada como livro de ciências caso se pretenda encontrar nela verdade científica<br />
exaustiva, ou mesmo tal tema como o seu assunto central.<br />
A noção de um “Deus infinito e pessoal” também é apresentada nessa<br />
obra. Já havia si<strong>do</strong> abordada em livros anteriores, 10 mas é necessária para o<br />
contexto das origens. A chave para a compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> homem é<br />
o Deus infinito, o princípio absoluto e também pessoal, sua marca relacional<br />
evidenciada na Trindade. Conforme Schaeffer, sem tais noções, o mun<strong>do</strong> cai<br />
no abismo da irrelevância – o universo não passa de “um punha<strong>do</strong> de pedrinhas<br />
jogadas por aí” (p. 31) – e não há explicações apropriadas para a estrutura presente<br />
na realidade. A pessoalidade <strong>do</strong> homem também não pode ser explicada<br />
fora de tal compreensão: os relacionamentos humanos, os empreendimentos<br />
culturais e a prática da justiça se tornam insignificantes.<br />
Para além <strong>do</strong>s temas recorrentes, tal obra também responde diretamente<br />
aos dilemas da compreensão bíblica e às questões <strong>do</strong> homem no limiar<br />
da pós-modernidade. É assim que o título se mostra sugestivo: Gênesis no<br />
Espaço-Tempo é a tentativa de demonstrar que tais eventos estão ancora<strong>do</strong>s na<br />
realidade e de sustentar a veracidade de tais histórias, que conferem identidade,<br />
significa<strong>do</strong> e propósito ao ser humano. Enquanto cresce a difusão de ideias<br />
acerca de uma origem impessoal e da falta de senti<strong>do</strong> para a existência, uma<br />
alternativa racional e mais consistente é apresentada.<br />
O lugar <strong>do</strong> homem no mun<strong>do</strong> é explica<strong>do</strong> pelas distinções estabelecidas<br />
por Deus. Primeiramente, a diferença entre a criação e o homem: somente este<br />
possui a imagem de Deus. Em segun<strong>do</strong> lugar, a diferença entre homem e mulher.<br />
A base para o <strong>do</strong>mínio e trabalho, bem como para os relacionamentos, é<br />
apresentada. A distinção que orienta todas as outras, contu<strong>do</strong>, é a que separa o<br />
Cria<strong>do</strong>r da criação. Schaeffer ecoa Cornelius Van Til ao ressaltar a importância<br />
desse ponto. Tal separação, no entanto, ainda permite a comunicação.<br />
9 SCHAEFFER, Francis. O Deus que se revela. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>02, p. 113.<br />
10 Cf. A noção está presente em O Deus que intervém, A morte da razão e O Deus que se revela,<br />
a trilogia que orienta e dá senti<strong>do</strong> a todas as demais obras de Schaeffer.<br />
109
Gênesis no espaço-tempo<br />
Deus cria segun<strong>do</strong> o seu caráter, estabelece a sua autoridade, mas não se<br />
relaciona com o homem como com uma máquina. A criatura possui decisão, e<br />
a exerce efetivamente, como o peca<strong>do</strong> veio a ilustrar. Cria<strong>do</strong> para amar a Deus,<br />
o homem utilizou o seu poder de decisão para desobedecer ao Cria<strong>do</strong>r. A essa<br />
altura, Schaeffer manifesta sua compreensão aliancista, descreven<strong>do</strong> as partes,<br />
a condição e a promessa <strong>do</strong> pacto das obras (p. 97). Surge, então, a Queda.<br />
Alimentada por Satanás, cuja mentira caminha conforme a teologia liberal<br />
(p. 101), a Queda histórica trouxe ao homem o conhecimento experimental<br />
da morte. Com ela, a humanidade sofreu os resulta<strong>do</strong>s: culpa real, além da<br />
ruptura no relacionamento com Deus, consigo, com o seu semelhante e com<br />
a natureza. Duas linhagens, então, são formadas, exemplificadas em Caim e<br />
Abel. A cultura humanista sem Deus produz a partir de egoísmo e orgulho<br />
centra<strong>do</strong>s no homem, enquanto que a cultura da linhagem pie<strong>do</strong>sa, a partir de<br />
Sete, identifica-se pela centralidade em Deus.<br />
A separação entre tais culturas se torna clara no episódio <strong>do</strong> Dilúvio. É<br />
importante entender que as genealogias não servem para a contagem cronológica<br />
exata, pois não é esse o seu propósito. A figura de Noé, portanto, surge<br />
em um momento histórico que não pode ser conta<strong>do</strong> a partir da genealogia<br />
descrita. Schaeffer não tem problema em harmonizar a história bíblica com<br />
os relatos antropológicos e sugerir uma data anterior a <strong>20</strong>.000 a.C. (p. 172).<br />
No relato <strong>do</strong> dilúvio encontra-se a percepção da maldade humana, <strong>do</strong> juízo de<br />
Deus, e questiona-se o fundamento <strong>do</strong> naturalismo, a saber, a visão <strong>do</strong> universo<br />
como um sistema fecha<strong>do</strong> de causa e efeito. O fluxo da história aponta para a<br />
intervenção e o juízo divino.<br />
Após o dilúvio, Deus reafirma o valor <strong>do</strong> ser humano e estabelece uma<br />
nova etapa no relacionamento pactual — uma aliança eterna estabelecida com<br />
Noé e seus descendentes. Dessa descendência, tem origem a história de Babel.<br />
Trata-se <strong>do</strong> clamor humanista revela<strong>do</strong>: fazer um nome para si. Deus exerce<br />
juízo e uma nova separação é estabelecida: agora entre nações, com línguas<br />
e culturas distintas.<br />
Da linhagem de Sem, filho de Noé, aparece Abraão. A resposta final ao<br />
dilema humano será apresentada por meio dele, em quem todas as famílias<br />
da Terra serão abençoadas (cf. Gn 12.1-3). A partir da aliança de Deus com<br />
Abraão, o evangelho é apresenta<strong>do</strong>. Este é o fluxo definitivo da história.<br />
Aspectos técnicos <strong>do</strong> livro, como a boa diagramação e o espaçamento das<br />
margens também tornam a experiência da leitura agradável e auxiliam o estudante<br />
que deseja tomar notas nas páginas. A tradução <strong>do</strong> Josaías Car<strong>do</strong>so é impecável,<br />
embora alguns ajustes na revisão precisem ser feitos. A obra é recomendada aos<br />
interessa<strong>do</strong>s em uma abordagem que discuta teologia bíblica em diálogo com<br />
os questionamentos culturais levanta<strong>do</strong>s. Pastores, professores e conselheiros<br />
bíblicos poderão fazer bom uso dela.<br />
110
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 111-114<br />
Resenha<br />
Gildásio Jesus Barbosa <strong>do</strong>s Reis *<br />
KELLER, Timothy. Igreja centrada: desenvolven<strong>do</strong> em sua cidade<br />
um ministério equilibra<strong>do</strong> e centra<strong>do</strong> no evangelho. São Paulo: Vida Nova,<br />
<strong>20</strong>14. 464 p.<br />
O autor, reconheci<strong>do</strong> como uma das grandes expressões contemporâneas<br />
em plantação e revitalização de igrejas, produziu várias outras obras que têm<br />
servi<strong>do</strong> de bênção e instrução espiritual para muitos. Pastor da Redeemer<br />
Presbyterian Church, uma das igrejas mais importantes de Nova York, e com<br />
mais de vinte anos de experiência ministerial em Manhatan, oferece em Igreja<br />
Centrada uma proposta desafia<strong>do</strong>ra para aqueles que desejam desenvolver<br />
eficazmente um ministério urbano.<br />
Keller é o mentor da rede “Redeemer City to City”, projeto que já plantou<br />
mais de <strong>20</strong>0 igrejas em 35 importantes cidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Boa parte <strong>do</strong><br />
conteú<strong>do</strong> de Igreja Centrada é resulta<strong>do</strong> da experiência vivida na Redeemer<br />
desde 1989, ano de sua fundação, bem como de uma série de palestras feitas<br />
pelo autor em <strong>20</strong>08 e <strong>20</strong>09, num encontro internacional realiza<strong>do</strong> na cidade<br />
de Londres.<br />
Tim Keller defende, com cuida<strong>do</strong>so equilíbrio, uma teologia sobre o<br />
crescimento da igreja, evitan<strong>do</strong> por um la<strong>do</strong> o pragmatismo tão comum em<br />
nossos dias, que enfatiza apenas o crescimento quantificável, e, por outro la<strong>do</strong>,<br />
reage à acomodação das igrejas, que embora fiéis ao evangelho não conseguem<br />
crescer. Para o autor, além da fidelidade, precisamos de algo mais para<br />
avaliar se estamos sen<strong>do</strong> ministros segun<strong>do</strong> o coração de Deus. Ele afirma<br />
que “é uma simplificação exagerada achar que fidelidade é o que realmente<br />
* Mestre em Educação Cristã pelo CPAJ, mestre em Ciências da Religião pela Universidade<br />
Presbiteriana Mackenzie e <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> em Ministério pelo CPAJ. É professor no Seminário <strong>Presbiteriano</strong><br />
Rev. José Manoel da Conceição, Capelão Universitário na UPM e pastor efetivo da Igreja Presbiteriana <strong>do</strong><br />
Parque São Domingos, em São Paulo.<br />
111
Igreja centrada<br />
importa” (p. 15). Para o autor, uma igreja fiel também precisa produzir frutos.<br />
É isso que ele tem em mente com o vocábulo “centrada”.<br />
Conforme ele define, Igreja Centrada descreve uma visão teológica, um<br />
conjunto específico de ênfases e posturas de ministério, no qual o evangelho<br />
tem implicações valiosas para a vida, para o ministério e para a missão da igreja<br />
em determinada cultura e em certo momento da história. Ele pontua o seguinte:<br />
Neste livro, falaremos muito sobre a necessidade de buscarmos o equilíbrio,<br />
como faz a Escritura, entre um ministério de palavra e um ministério de obras,<br />
entre desafiar e apoiar a cultura, entre engajamento cultural e distanciamento<br />
contracultural, entre compromisso com a verdade e generosidade para com os<br />
que não partilham das mesmas crenças, entre tradição e prática inova<strong>do</strong>ra (p. 25).<br />
Sen<strong>do</strong> assim, essa igreja centrada ou equilibrada deve assumir três eixos<br />
ou compromissos básicos: evangelho, cidade e movimento.<br />
O primeiro eixo é a Centralidade <strong>do</strong> Evangelho. Keller defende que, se<br />
queremos transformar a cultura ao nosso re<strong>do</strong>r, precisamos pregar o evangelho<br />
genuíno. Devemos evitar os extremos, tanto a hetero<strong>do</strong>xia liberal quanto a<br />
orto<strong>do</strong>xia morta que nada produz. Keller cita o moderno puritano D. Martyn<br />
Lloyd-Jones para exemplicar esse equilibrio quanto ao evangelho:<br />
D. Martyn Lloyd-Jones argumenta que, assim como claramente perdemos o<br />
evangelho sempre que caímos na hetero<strong>do</strong>xia, da mesma forma também deixamos,<br />
na prática, de pregar e aplicar o evangelho à nossa própria vida em razão<br />
de uma orto<strong>do</strong>xia morta ou de ênfases <strong>do</strong>utrinárias desequilibradas (p. 26).<br />
Está claro em toda a obra que Tim Keller procura caracterizar seu ministério<br />
pela profundidade <strong>do</strong>utrinária e teológica em relação ao evangelho, e não<br />
pelo pragmatismo ou por uma filosofia orientada ou motivada por méto<strong>do</strong>s.<br />
Essa centralidade pode ser expressa de outra maneira. Ou seja, o evangelho<br />
da graça de Jesus Cristo não comunga com o legalismo e muito menos com<br />
o relativismo. O evangelho verdadeiro sempre muda o coração <strong>do</strong> homem e<br />
transforma a sociedade. A igreja centrada coloca o evangelho no centro e o<br />
centro é o lugar <strong>do</strong> equilíbrio. Keller gasta três capítulos falan<strong>do</strong> sobre a renovação<br />
<strong>do</strong> evangelho, fazen<strong>do</strong> algumas críticas ao avivamento de Finney. A<br />
perspectiva de Keller é a mesma vista em Jonathan Edwards sobre o reavivamento<br />
(p. 65-73). Além disso, o autor reafirma a importância <strong>do</strong>s meios ordinários de<br />
graça <strong>do</strong> Espírito em trazer o verdadeiro avivamento.<br />
Centralidade da Cidade. Neste segun<strong>do</strong> eixo o autor mostra como o<br />
mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong> e os grandes centros urbanos influenciam cada vez mais<br />
a nossa cultura e definem, negativamente ou positivamente, a maneira como<br />
o trabalho pastoral é desenvolvi<strong>do</strong>. A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> uma maneira positiva de enxergar<br />
a cultura, Keller dedica quase <strong>20</strong>0 páginas da obra para mostrar como as<br />
112
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 111-114<br />
cidades representam uma das maiores oportunidades da história como lugares<br />
estratégicos para o serviço cristão e a proclamação <strong>do</strong> evangelho.<br />
Cada igreja, esteja ela localizada na cidade, nos bairros mais afasta<strong>do</strong>s de<br />
classe média alta ou na zona rural (e existem muitos elementos que se alteram<br />
ou se combinam entre um e outro desses ambientes), deve familiarizar-se com<br />
as características da vida humana nessas regiões e passar a ser versada nessas<br />
questões (p. 27).<br />
Keller divide este eixo em três partes: contextualização <strong>do</strong> evangelho,<br />
visão para a cidade e engajamento cultural. Em contextualização <strong>do</strong> evangelho<br />
ele analisa as bases bíblicas da contextualização equilibrada, seguin<strong>do</strong> uma<br />
abordagem de como a cidade é vista na Escritura Sagrada. Segun<strong>do</strong> Keller,<br />
enxergar a cidade sob o ponto de vista bíblico nos ajuda a olhar para a mesma<br />
sem indiferença e hostilidade. Na parte seguinte, ao falar de engajamento na<br />
cidade, o autor analisa historicamente o surgimento de quatro modelos de engajamento<br />
cultural (modelo transformacionista, modelo da relevância, modelo<br />
transcultural e modelo <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is reinos), concluin<strong>do</strong> com o modelo que ele<br />
entende ser o melhor para a igreja alcançar a cidade, ou seja, o Modelo <strong>do</strong>s<br />
Dois Reinos. Keller dedica algumas páginas mostran<strong>do</strong> esta dupla estrutura da<br />
natureza da regência de Deus, que é o que impulsiona este quarto modelo. No<br />
entanto, ele entende que os quatros modelos apresentam tanto pontos positivos<br />
quanto negativos. A proposta <strong>do</strong> autor é que a igreja centrada procure mesclar<br />
as perspectivas culturais e bíblicas de to<strong>do</strong>s os modelos em suas atividades<br />
e ministério e assim aprender a discernir a atual situação da igreja e buscar o<br />
melhor de cada um <strong>do</strong>s modelos.<br />
Centralidade <strong>do</strong> Movimento. Neste terceiro eixo, que é a parte mais prática<br />
da obra e também pode ser a mais controversa, Keller inclui três capítulos nos<br />
quais desenvolve uma filosofia prática para o ministério da igreja. Três temas<br />
principais são aqui aborda<strong>do</strong>s: o debate sobre a igreja missionária; mobilizan<strong>do</strong><br />
a igreja numa cultura “perdida”; e a natureza de “movimentos” de plantação<br />
de igrejas. A melhor palavra para resumir este ponto é colaboração. A igreja<br />
centrada deve ser uma igreja que evita criar sua própria tribo. Ela não deve<br />
se isolar, mas, guiada pelo Espírito Santo, deve buscar através <strong>do</strong>s seus mais<br />
diversos ministérios a prosperidade e a paz da sociedade. A proposta de igrejas<br />
de diferentes vertentes denominacionais que se unem em colaboração para<br />
evangelizar a cidade pode parecer estranha e ofensiva para alguns líderes mais<br />
conserva<strong>do</strong>res, mas o apelo de Keller à expressão <strong>do</strong> Cre<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Apóstolos “santa<br />
igreja católica” nos parece uma base sólida para esta colaboração (p. 433-439).<br />
Keller afirma que o sectarismo e o racismo negam a catolicidade e critica<br />
a postura das igrejas que “identificam-se tanto com sua tradição teológica, que<br />
não conseguem se unir a outras igrejas evangélicas ou a outras instituições para<br />
alcançar a cidade ou trabalhar para o bem comum” (p. 29).<br />
113
Igreja centrada<br />
A igreja centrada deve ser uma igreja que busca ser missional, preparan<strong>do</strong><br />
pessoas para desenvolverem seus ministérios onde quer que elas estejam. Keller<br />
sugere diversos movimentos ou diversas ações que a igreja pode desenvolver<br />
dentro da cidade ou dentro da cultura. Para um ministério bem-sucedi<strong>do</strong>, a liderança<br />
da igreja precisa valorizar as vocações e fazer uso das diversas metáforas<br />
e imagens que a Bíblia usa para descrever a igreja, levan<strong>do</strong>-a a se engajar na<br />
sociedade para transformá-la. Para o autor, devemos fugir <strong>do</strong> tradicionalismo;<br />
caso contrário, a igreja pode estagnar e morrer. Keller critica as igrejas que se<br />
fecham em tribos e ideologias denominacionais, e por isso não aprendem com<br />
outros movimentos eclesiásticos que também fazem parte <strong>do</strong> Reino de Deus.<br />
Nesse ponto reconhecemos uma lógica estratégica na argumentação <strong>do</strong> autor,<br />
mas sentimos falta de fundamentação bíblica, o que daria maior sustentação<br />
para sua proposta. Para ele, uma igreja centrada deve fazer parcerias com outras<br />
tradições históricas ou características teológicas diferentes das suas, a fim de<br />
alcançar a comunidade.<br />
Ele afirma que<br />
Quanto mais esse ministério vier “<strong>do</strong> centro” de to<strong>do</strong>s os eixos, mais dinâmico e<br />
frutífero ele será. O ministério que pende para qualquer extremidade <strong>do</strong> espectro<br />
ou eixo extinguirá seu poder de transformar a vida das pessoas que estão dentro<br />
dele ou que o cercam (p. 29).<br />
Igreja Centrada é uma obra acadêmica e prática. Certamente será uma<br />
ferramenta útil para pastores, líderes e cristãos em geral que amam o Reino<br />
de Deus e desejam a expansão e crescimento da igreja. Recomendamos sua<br />
leitura. Por certo, ela haverá de fortalecer as convicções teológicas <strong>do</strong> leitor,<br />
além de oferecer uma filosofia de ministério com diretrizes bíblicas, antes de<br />
propor modelos e méto<strong>do</strong>s de multiplicação para o desenvolvimento de um<br />
ministério urbano eficaz.<br />
114
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 115-1<strong>20</strong><br />
Resenha<br />
Breno Mace<strong>do</strong> *<br />
GOHEEN, MICHAEL W. A igreja missional na Bíblia: luz para as<br />
nações. São Paulo: Vida Nova, <strong>20</strong>14. 286 p.<br />
Mais um manual de como a igreja pode fazer missões. Foi o que pensei ao<br />
começar a ler esse livro. Entretanto, para minha surpresa, o autor entende que<br />
ser uma igreja missional não é simplesmente ser um grupo de indivíduos<br />
que crêem em Cristo e buscam cultivar a prática de comunicar o evangelho. De<br />
acor<strong>do</strong> com Goheen, ser missional faz parte da essência e da identidadade da<br />
igreja. A igreja não simplesmente faz missões, ela é missional em sua própria<br />
natureza. Goheen é professor de cosmovisão e estu<strong>do</strong>s religiosos na Trinity<br />
Western University e sua dissertação de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> foi na área de missiologia.<br />
Ele também é coautor, junto com Craig Bloomber, de um livro entitula<strong>do</strong><br />
The Drama of Scripture: Finding Our Place in the Biblical Story, onde as<br />
Escrituras são vistas como uma grande narrativa (metanarrativa) que serve<br />
de fundamento para o desenvolvimento de uma cosmovisão cristã. A Igreja<br />
Missional na Bíblia é um excelente estu<strong>do</strong> bíblico-teológico da relação entre<br />
a igreja e missões. A habilidade exegética de Goheen e sua visão da história<br />
bíblica como o desenvoltimento progressivo de uma narrativa da redenção<br />
fazem com que o livro seja um cuida<strong>do</strong>so estu<strong>do</strong> canônico da relação entre a<br />
igreja e missões nas Escrituras.<br />
A estrutura <strong>do</strong> livro em si já demonstra sua unidade e progressividade.<br />
Ele é composto de 9 capítulos que poderiam ser dividi<strong>do</strong>s em quatro grupos.<br />
O capítulo 1 é a introdução ao livro. Nele encontra-se o argumento central,<br />
os objetivos e importantes definições que guiarão o leitor na compreensão<br />
* Mestre em Divindade (M.Div.) pelo Greenville Presbyterian Theological Seminary, Mestre em<br />
Teologia (Th.M.) pelo Puritan Reformed Theological Seminary e candidato ao <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> (Ph.D.), na<br />
área de teologia histórica, pela University of Free State, África <strong>do</strong> Sul. Leciona no Seminário Teológico<br />
<strong>Presbiteriano</strong> <strong>do</strong> Nordeste, em Teresina.<br />
115
A igreja missional na Bíblia<br />
<strong>do</strong>s capítulos subsequentes. Os capítulos 2 e 3 analisam o Antigo Testamento<br />
e buscam fundamentar a tese <strong>do</strong> autor na dispensação da Antiga Aliança. Os<br />
capítulos 4 a 7 visam fazer no Novo Testamento aquilo que os anteriores fizeram<br />
no Antigo. O capítulo 8 é um apanha<strong>do</strong> geral, um tipo de resumo daquilo<br />
que o autor encontrou na Escritura como um to<strong>do</strong> sobre o assunto. O capítulo<br />
final é um exemplo <strong>do</strong> que para Goheen seria uma igreja missonal hoje. Aqui<br />
ele descreve sua própria experiência e sugere 13 maneiras para se desenvolver<br />
e experimentar igrejas missionais hoje.<br />
Para Goheen a palavra “missão” lembra à igreja que ela existe não para<br />
ser uma comunidade voltada para si mesma, mas “orientada para o mun<strong>do</strong>”<br />
(p. <strong>20</strong>). A crítica <strong>do</strong> autor é que se discute muito meto<strong>do</strong>logia e prática quan<strong>do</strong><br />
missões deveriam ser encaradas como o que a igreja é enquanto grupo, daí<br />
o termo “missional”. Quan<strong>do</strong> a igreja entende que precisa estar orientada para o<br />
mun<strong>do</strong>, ela então passa a ser um agente ativo na história de Deus, interagin<strong>do</strong><br />
críticamente com a cultura e a sociedade. Para Goheen,<br />
[...] somente quan<strong>do</strong> a igreja é uma encarnação fiel <strong>do</strong> reino como parte da cultura<br />
ao seu re<strong>do</strong>r – mas em contraposição à sua i<strong>do</strong>latria – é que sua vida e suas<br />
palavras produzirão um testemunho atraente e convincente a favor das boas-novas<br />
de que em Jesus Cristo um novo mun<strong>do</strong> é chega<strong>do</strong> e está chegan<strong>do</strong> (p. 21).<br />
O autor parte então para uma análise histórica da interação da igreja<br />
com o mun<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r. Ele inicia com a igreja primitiva, que compreendia<br />
sua identidade missional e cujo papel foi genuinamente testemunhar para<br />
sua sociedade que o reino de Deus havia chega<strong>do</strong>, argumentan<strong>do</strong> que a partir<br />
<strong>do</strong> momento que o cristianismo passou a ser uma religião reconhecida pelo<br />
Esta<strong>do</strong>, sua identidade missional começou a desaparecer (p. 26). A realidade<br />
atual, explica Goheen, é que a igreja permitiu-se moldar pelo pós-iluminismo<br />
e o consumismo enquanto história cultural, tornan<strong>do</strong>-se então uma “mera<br />
vende<strong>do</strong>ra de bens e serviços religiosos” (p. 32).<br />
Na busca de compreender corretamente a igreja, o autor inicia sua investigação<br />
no Antigo Testamento. “O relacionamento <strong>do</strong> povo de Deus com<br />
os de fora de sua comunidade é desenvolvi<strong>do</strong> na narrativa de Israel e de seu<br />
chama<strong>do</strong> em meio das nações” (p. 41). Aqui, Goheen enfoca as alianças que<br />
Javé faz progressivamente com Israel, primeiro com os patriarcas no livro<br />
de Gênesis e finalmente com o povo, então se tornan<strong>do</strong> uma nação, no livro de<br />
Êxo<strong>do</strong>. Em Abraão, Javé elege uma família para participar de uma missão:<br />
“desfrutar da bênção redentora de Deus e andar nos caminhos <strong>do</strong> Senhor a fim<br />
de que as nações possam participar dessa bênção” (p. 51). Mas enquanto em<br />
Gênesis Deus promete a Abraão o surgimento de uma grande nação a partir<br />
dele, em Êxo<strong>do</strong> surge essa nação e sua função é levar às outras nações a bênção<br />
prometida. Enquanto nação, a forma como Israel executará sua missão é<br />
116
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 115-1<strong>20</strong><br />
descrita por meio de duas imagens: “reino de sacer<strong>do</strong>tes” e “nação santa”. A<br />
primeira imagem diz respeito a Israel viven<strong>do</strong> uma vida “em favor das nações”<br />
(p. 59). A segunda diz respeito ao mo<strong>do</strong> de vida de Israel, uma nação que vive<br />
no meio de outras evidencian<strong>do</strong> padrões éticos transforma<strong>do</strong>s por Javé. Assim,<br />
Goheen conclue que o chama<strong>do</strong> missional de Israel é centrípeto. “Israel deve<br />
encarnar a intenção que Deus tinha com a criação de toda a humanidade em<br />
favor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, viven<strong>do</strong> de tal maneira que atraia as nações à aliança com<br />
Deus” (p. 60).<br />
Após analisar a fundação de Israel enquanto nação e o recebimento de sua<br />
missão entre as nações, Goheen segue a história veterotestamentária e investiga<br />
os diferentes contextos nos quais Israel viveu enquanto nação missional. Ele<br />
divide esses contextos em quatro situações: tribal, monárquico, exílico e intertestamentário.<br />
“Em cada situação, eles deveriam ser o povo de Deus em favor das<br />
nações, fosse como uma livre confederação de tribos, ou como uma monarquia<br />
unida e forte, ou como um povo disperso entre as nações” (p. 71, ênfase minha).<br />
Durante a situação tribal, os principais temas missionais relaciona<strong>do</strong>s a Israel<br />
são o confronto com a i<strong>do</strong>latria das nações vizinhas e a instrução de gerações<br />
subsequentes nos padrões de Javé. A situação monárquica é inaugurada em<br />
um momento no qual a identidade de Israel, tanto missional quanto nacional,<br />
havia se perdi<strong>do</strong>. Um rei é então estabeleci<strong>do</strong> para “derrotar nações idólatras<br />
que ameaçam Israel”, para promover uma vida de retidão nacional ligada ao<br />
templo e para servir como “símbolo <strong>do</strong> generoso governo universal futuro de<br />
Deus sobre as nações” (p. 79). É também nesse perío<strong>do</strong> que outra dávida, os<br />
profetas, surgem para fortalecer o papel e a identidade missional de Israel.<br />
Sua tarefa principal é questionar Israel quan<strong>do</strong> sua identidade é esquecida e<br />
sua missão é negligenciada. A negligência e infidelidade de Israel leva a nação<br />
ao exílio, guian<strong>do</strong>-a também a um novo formato de execução <strong>do</strong> seu papel<br />
missional: “viver como uma minoria em meio às culturas pagãs” (p. 84). Nesse<br />
novo contexto, o principal problema é a assimilação cultural. Ao comparar a<br />
cultura judaica com as demais, as novas gerações poderiam rejeitar sua própria<br />
herança cultural por ser exigente e difícil demais de ser vivida. Para combater<br />
esse perigos, <strong>do</strong>is mecanismos surgiram: o papel <strong>do</strong>s anciãos e a literatura<br />
exílica. Por último, no perío<strong>do</strong> intertestamentário, enquanto Israel alimenta<br />
a esperança de um futuro no qual Javé é o monarca absoluto sobre todas as<br />
nações, os missinários de Deus fecham-se num casulo de ódio contra as nações<br />
pagãs que detêm sobre eles governo e poder.<br />
O fracasso de Israel em viver como luz para as nações é completamente<br />
remedia<strong>do</strong> e transforma<strong>do</strong> pela obra salvífica de Cristo. Segun<strong>do</strong> Goheen, é<br />
em Jesus que as espectativas de um reino divino escatológico finalmente são<br />
cumpridas. A messagen da chegada <strong>do</strong> reino é uma das características de sua<br />
pregação. Goheen explica que, apesar de Jesus não ter explica<strong>do</strong> exatamente<br />
o que quer dizer por “reino”, duas características podem ser deduzidas de seus<br />
117
A igreja missional na Bíblia<br />
ensinamentos: o reino é a presença de Deus para a derrota <strong>do</strong>s inimigos <strong>do</strong><br />
seu povo e a chegada da salvação escatológica como um evento <strong>do</strong> qual os<br />
ouvintes podem participar (p. 101). Dessa forma, “a vinda <strong>do</strong> reino significa<br />
um encontro missionário entre o poder <strong>do</strong> reino e os poderes demoníacos e<br />
idólatras que distorcem as estruturas da sociedade humana”, afirma Goheen<br />
(p. 104). Em Cristo, as expectativas de reunião e restauração de Israel para dar<br />
continuidade à sua missão entre as nações também são cumpridas. A seleção,<br />
treinamento e envio de <strong>do</strong>ze discípulos simboliza essa restauração da antiga<br />
nação. Entretanto, nesse reino escatológico, Israel é composto por muito mais<br />
que descendentes de Abraão, já que os gentios também são chama<strong>do</strong>s a fazer<br />
parte dele. Os membros <strong>do</strong> reino, o Israel restaura<strong>do</strong>, são, portanto, chama<strong>do</strong>s<br />
a viver como luz para as nações e são divinamente capacita<strong>do</strong>s para cumprir<br />
sua missão. A eles é concedida a restauração de seu relacionamento com Javé<br />
em Cristo, o perdão de peca<strong>do</strong>s, o <strong>do</strong>m <strong>do</strong> Espírito e um novo coração, tu<strong>do</strong><br />
isso para que eles vivam como luz no meio das nações.<br />
Após a ressurreição e ascenção de Cristo, Goheen observa que o livro<br />
de Atos trata da Igreja dan<strong>do</strong> continuidade à missão de Jesus. Seguin<strong>do</strong> o<br />
padrão veterotestamentário a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo próprio Jesus, a Igreja é agora uma<br />
comunidade integrada na qual o testemunho servirá de luz para as nações e as<br />
atrairá para uma aliança com Deus. Aqui, Goheen identifica quatro maneiras<br />
pelas quais Lucas conecta a missão da Igreja com a missão de Jesus conforme<br />
relatada no evangelho: a histórico-redentora, os paralelos literários, a obra <strong>do</strong><br />
Espírito e a expansão geográfica. Quan<strong>do</strong> esses quatro fatores são compara<strong>do</strong>s<br />
entre Cristo e a igreja, Goheen percebe um padrão no qual a igreja repete a<br />
característica <strong>do</strong> ministério de Cristo (p. 152-155). Na formação dessa comunidade<br />
escatológica que leva adiante a missão de Jesus, há três des<strong>do</strong>bramentos<br />
notáveis: sua reunião em uma localidade geográfica, a exclusão <strong>do</strong> povo de<br />
Deus daqueles que rejeitam Cristo como o Messias e o acréscimo <strong>do</strong>s gentios<br />
a essa comunidade. Em Jerusalém, a igreja experimenta o padrão da missão<br />
<strong>do</strong> antigo Israel primeiro pela dedicação ao ensino apostólico, no culto e na<br />
administração <strong>do</strong>s sacramentos. Além disso, eles vivem publicamente a vida<br />
<strong>do</strong> reino, evidencian<strong>do</strong> experimentalmente o que é ser membros dessa comunidade<br />
escatológica. Por fim, ela atrai para si outros que se unirão na mesma<br />
tarefa. Em Antioquia, onde os cristãos recebem esse nome pela primeira vez,<br />
surge uma igreja com várias diferenças daquela em Jerusalém. Seus membros,<br />
judeus e gentios, vivem em harmonia, rompen<strong>do</strong> todas as barreiras sociais.<br />
Também é de lá que surge o primeiro ímpeto missionário, no qual a igreja<br />
enxerga “além de seus limites geográficos e pergunta-se como pode participar<br />
na propagação <strong>do</strong> evangelho até os confins da terra” (p. 182).<br />
Depois de fazer uma análise exaustiva da igreja missional tanto no<br />
Antigo quanto no Novo Testamento, Goheen propõe o que seria uma igreja<br />
missional hoje. Com o que ela se parece no século 21 e como implementá-la.<br />
118
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 115-1<strong>20</strong><br />
Dentre as várias características propostas por Goheen, destacam-se o uso <strong>do</strong><br />
culto público como instrumento de cultivo de uma identidade missional, a<br />
necessidade de se entender o contexto cultural da igreja, o treinamento para<br />
o confronto missionário e pais prepara<strong>do</strong>s para fortalecer a fé de seus filhos.<br />
Segun<strong>do</strong> Goheen, uma igreja missional é preparada e estimulada quan<strong>do</strong> ela se<br />
reúne para cultuar. Uma das maneiras pelas quais o culto pode ter esse efeito na<br />
igreja é utilizar a metanarrativa bíblica ao longo <strong>do</strong> culto. Uma outra maneira<br />
é utilizar os elementos de culto para reorientar e redirecionar os membros da<br />
igreja “para o mun<strong>do</strong> incrédulo como a perspectiva suprema de nossa vocação”<br />
(p. 242). Com relação ao contexto cultural da igreja, Goheen sugere que ela<br />
precisa entender profundamente as diferentes cosmovisões que a cercam e não<br />
se deixar iludir pelo desejo de que a cultura seja algo que ela não é. Quanto<br />
ao confronto missionário, Goheen refere-se à prática evangelística associada<br />
à vida no reino. Ele se refere “à maneira que os leigos encarnam o senhorio<br />
de Jesus Cristo no seu trabalho, nos negócios, na vida cadêmica, no trabalho<br />
social, nos tribunais, e na construção civil” (p. 254). Ele alerta para o sofrimento<br />
inevitável que surgirá desse confronto missionário. Por último, Goheen lembra<br />
que em Deuteronômio uma das ameaças que o povo de Deus enfrenta em sua<br />
tarefa missional é “o fracasso em transmitir a fé à geração seguinte” (p. 263).<br />
Goheen descreve os passos que deu para implementar em sua própria família<br />
esse objetivo. Cultos familiares (<strong>do</strong>mésticos), educação cristã, moderação no<br />
uso de tecnologia, compreensão <strong>do</strong> contexto cultural, treinamento <strong>do</strong>s filhos<br />
para serem bons membros da comunidade da aliança.<br />
A Igreja Missional na Bíblia é um excelente exemplo de aplicação de<br />
teologia e cosmovisão bíblicas para entender um assunto extremamente relevante<br />
para a vida da igreja: sua identidade enquanto agente de conversão de<br />
almas. Ele utiliza de maneira magistral a metanarrativa bíblica transforman<strong>do</strong>-a<br />
no fundamento para uma teologia de missões. Mas será que esse livro é sobre<br />
eclesiologia? Goheen frequentemente destaca a importância da eclesiologia<br />
para a identidade missional da igreja, sem oferecer uma definição precisa <strong>do</strong><br />
termo. Em um momento de elucidação sobre o assunto, ele explica de forma<br />
breve que “eclesiologia tem a ver com a compreensão de nossa identidade,<br />
quem somos e por que Deus nos escolheu – a quem pertencemos” (p. 21). Enquanto<br />
Goheen de maneira alguma está erra<strong>do</strong>, a eclesiologia não está limitada<br />
ao que a igreja é, mas também ao que a igreja faz e como faz. Na <strong>do</strong>gmática<br />
clássica, a eclesiologia engloba, além da identidade da igreja, outros assuntos<br />
como marcas, autoridade, governo, culto e meios de graça.<br />
A impressão é que Goheen associa desnecessáriamente a ideia de eclesiologia<br />
à sua teologia de missões. Talvez outra dificuldade encontrada em Goheen<br />
é um fato que ocorre frequentemente com teólogos bíblicos que desejam encontrar<br />
um tema central em toda a Escritura: a identificação forçada de sua matriz<br />
teológica em textos que não oferecem claro suporte para elas. Por exemplo: ao<br />
119
A igreja missional na Bíblia<br />
expor a importância simbólica <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ze apóstolos como representação <strong>do</strong> povo<br />
de Deus em conjunto engajan<strong>do</strong>-se na atividade missionária, Goheen parece<br />
esquecer <strong>do</strong>s esforços individuais de homens como Filipe e de duplas como<br />
Paulo e Barnabé. Ele também parece esquecer que após a ascenção de Cristo<br />
os <strong>do</strong>ze se espalharam pelo mun<strong>do</strong> ao invés de executar a obrigação missional<br />
como um grupo. Por último, na seção sobre a prática da igreja missional, a<br />
insistência de Goheen em um movimento missional centrípeto leva-o a sugerir<br />
a mudança da ênfase introvertida na utilização <strong>do</strong>s sacramentos para uma ênfase<br />
mais extramuros, mais focada na vocação da igreja para com o mun<strong>do</strong>. “Os<br />
<strong>do</strong>is sacramentos devem ser escatológicos e missionais e a nossa celebração<br />
litúrgica de ambos deve promover essa visão” (p. 242). Mas Goheen não oferece<br />
suporte algum para tão corajoso imperativo. Não é o próprio Cristo quem diz<br />
qual deve ser a ênfase <strong>do</strong>s sacramentos? Não são as palavras da administração<br />
ordenada por Cristo “esse é o meu corpo que é da<strong>do</strong> por vós” e “este é cálice da<br />
nova aliança no meu sangue derrama<strong>do</strong> em favor de vós”? Como então mudar<br />
a ênfase introvertida (para a igreja) <strong>do</strong>s sacramentos quan<strong>do</strong> parece ter si<strong>do</strong><br />
exatamente essa a função para a qual Cristo os deu à sua noiva?<br />
Se você está buscan<strong>do</strong> um bom livro sobre teologia de missões que evita<br />
as soluções enlatadas e interage com a grande história da redenção bíblica, então<br />
Goheen é uma excelente opção. Apenas leve com você alguns grãozinhos de sal.<br />
1<strong>20</strong>
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 121-126<br />
Resenha<br />
Dario de Araujo Car<strong>do</strong>so *<br />
OHLER, Annemarie (Org.); MENZEL, Tom; LÖHNDORF, Jan-Martin.<br />
Atlas da Bíblia. Trad. Celiz Elaine Sayão. São Paulo: Hagnos, <strong>20</strong>13. 495p.<br />
Publica<strong>do</strong> originalmente em alemão no ano de <strong>20</strong>04, como parte de uma<br />
biblioteca produzida pela Deutscher Taschenbuch Verlag (DTV), o Atlas da<br />
Bíblia é um compêndio organiza<strong>do</strong> por Annemarie Ohler e ilustra<strong>do</strong> por Tom<br />
Menzel e Jan-Martin Löhn<strong>do</strong>rf. Somente os <strong>do</strong>is primeiros são apresenta<strong>do</strong>s<br />
como autores na edição em português e não há nenhuma informação sobre<br />
outros colabora<strong>do</strong>res. Por essa razão, em nossa análise nos referiremos a Ohler<br />
como autora.<br />
Annemarie Ohler é <strong>do</strong>utora em teologia católica e professora de alemão,<br />
religião e hebraico com especialidade em Antigo Testamento, conhecida por<br />
seu interesse em temas feministas, 1 ainda que esta característica pouco se manifeste<br />
na obra. Essa é a primeira obra da autora disponibilizada ao público<br />
brasileiro. Além deste volume, a autora publicou: Mythologische Elemente im<br />
Alten Testament: Eine motivgeschichtliche Untersuchung (1969); Gattungen<br />
im Alten Testament (1972-73), publica<strong>do</strong> em inglês como Studying the Old<br />
Testament: From Tradition to Canon (1985) 2 e The Bible Looks at Fathers<br />
(1999), bem como artigos acadêmicos.<br />
Os dicionários da língua portuguesa definem atlas como “coleção de<br />
mapas ou cartas cartográficas em volume”. O termo deriva de um personagem<br />
* Mestre em Teologia (Antigo Testamento) pelo CPAJ, em Ciências da Religião pela Universidade<br />
Presbiteriana Mackenzie e <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> no Programa de Semiótica e Linguística Geral das FFLCH/USP.<br />
Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ e professor de Teologia Exegética no Seminário Rev.<br />
José Manoel da Conceição, em São Paulo.<br />
1 Cf. BENJAMIN, Don C. Resenha. The Bible Looks at Fathers. Catholic Biblical Quarterly 64,<br />
1 (Jan. 1, <strong>20</strong>02), 140-141.<br />
2 Cf. WATTS, John W. Resenha. Studying the Old Testament: From Tradition to Canon. Review<br />
& Expositor 84, 1 (Dec. 1, 1987), 121.<br />
121
Atlas da Bíblia<br />
mitológico que tinha esse nome e que era “representa<strong>do</strong> por um gigante carregan<strong>do</strong><br />
sobre os ombros a abóbada celeste”. 3 Por extensão, o termo é utiliza<strong>do</strong><br />
para livros compostos como “coleção de gravuras, gráficos, etc., relativos a uma<br />
dada ciência”. 4 Assim, o propósito da obra é fazer uma exposição abrangente<br />
de temas e tópicos liga<strong>do</strong>s à Bíblia. Ela se divide em 24 partes. A primeira é<br />
uma introdução geral, nove tratam <strong>do</strong> Antigo Testamento, dez <strong>do</strong> Novo Testamento,<br />
uma trata <strong>do</strong> cânon, uma da interpretação bíblica, as duas finais são<br />
uma cronologia e há uma bibliografia.<br />
A introdução trata <strong>do</strong>s aspectos culturais concernentes ao contexto em<br />
que se formou o texto bíblico como história, ambiente religioso, línguas, etc.<br />
Em seguida, o Antigo Testamento é estuda<strong>do</strong> por meio de uma introdução que<br />
foca em questões de conceito e conteú<strong>do</strong>, e de uma exposição em blocos assim<br />
denomina<strong>do</strong>s: O Pentateuco, A obra histórica deuteronomista, Os profetas,<br />
Literatura apocalíptica, Os salmos, A literatura sapiencial, A literatura narrativa<br />
posterior, A época <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> templo.<br />
Na sequência, o Novo Testamento é estuda<strong>do</strong> a partir de uma introdução<br />
geral, uma introdução aos evangelhos, um estu<strong>do</strong> sobre os evangelhos sinóticos,<br />
sobre Atos <strong>do</strong>s Apóstolos e sobre os textos joaninos. Após uma introdução<br />
acerca da vida e ministério de Paulo, são estudadas as suas cartas e aquilo que a<br />
autora chama de repercussão das cartas de Paulo 5 e textos <strong>do</strong>utrinários tardios<br />
e, por fim, uma exposição de Apocalipse.<br />
A seção sobre o cânon retoma e amplia alguns conceitos já trata<strong>do</strong>s na<br />
introdução geral e buscar dar conta de como a comunidade cristã tratou os<br />
testamentos. Por sua vez, a seção sobre interpretação bíblica faz um apanha<strong>do</strong><br />
muito panorâmico da história da interpretação bíblica e foca na descrição e<br />
justificativa das meto<strong>do</strong>logias de interpretações contemporâneas.<br />
A edição é primorosa, feita em cores, em papel couchê, o que, além de<br />
embelezar, diminui o volume <strong>do</strong> livro, embora prejudique a leitura em ambientes<br />
muito ilumina<strong>do</strong>s. Os gráficos em grande quantidade são muito bem<br />
produzi<strong>do</strong>s e diversas vezes realizam aquilo que as informações e os argumentos<br />
não conseguiram estabelecer (e.g., p. 13).<br />
Ainda no aspecto editorial, a grande maioria das páginas apresenta um<br />
parágrafo levemente desloca<strong>do</strong> na margem direita que se confunde com o texto,<br />
mas o interrompe com informações avulsas que várias vezes nem correspondem<br />
ao assunto em discussão. Essa interrupção prejudica a fluência da leitura<br />
3 CUNHA, Antonio Geral<strong>do</strong> da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª ed. rev. e amp.<br />
Rio de Janeiro: Lexicon, <strong>20</strong>10, p. 67.<br />
4 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.<br />
Rio de Janeiro: Objetiva, <strong>20</strong>01, p. 335.<br />
5 2 Tessalonicenses, Colossenses, Efésios e as pastorais, <strong>do</strong>cumentos que a autora afirma não<br />
terem si<strong>do</strong> escritos por Paulo, mas por seus discípulos.<br />
122
FIDES REFORMATA XX, Nº 1 (<strong>20</strong>15): 121-126<br />
e distrai o leitor, que se vê força<strong>do</strong> a tentar estabelecer a relação entre aquele<br />
parágrafo com o restante <strong>do</strong> texto. Quadros explicativos, que são utiliza<strong>do</strong>s em<br />
outros momentos, também seriam mais apropria<strong>do</strong>s tanto <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong><br />
conteú<strong>do</strong>, quanto da estética.<br />
O lugar dedica<strong>do</strong> aos ilustra<strong>do</strong>res na produção da obra indica que a criatividade<br />
e a construção de imagens são bases em que se fundamenta o livro. É<br />
curiosa a completa ausência de referências bibliográficas para as afirmações. A<br />
inclusão de uma extensa bibliografia ao final da obra não supre a necessidade<br />
de apresentar fundamentos e principalmente evidências <strong>do</strong> que está sen<strong>do</strong><br />
afirma<strong>do</strong>. Além <strong>do</strong> mais, por vezes uma consulta a obras de referência evitaria<br />
deslizes como a crassa confusão entre as datas e as propostas <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s<br />
fariseus e <strong>do</strong>s saduceus (p. 14).<br />
A perspectiva da obra é abertamente contrária aos padrões da tradição<br />
evangélica conserva<strong>do</strong>ra. O constrangimento é tamanho que os editores se<br />
viram obriga<strong>do</strong>s a adicionar uma nota, logo após o sumário, tentan<strong>do</strong> justificar<br />
a leitura da obra, a despeito <strong>do</strong> ataque à historicidade e à autenticidade da<br />
Bíblia, com base num suposto “aperfeiçoamento <strong>do</strong> pensar cristão” (p. 7) que<br />
permitiria aos cristãos a aquisição de subsídios para “defender a sua fé com<br />
argumentos inteligentes e teci<strong>do</strong>s por meio de um estu<strong>do</strong> sério <strong>do</strong>s relatos bíblicos”,<br />
deixan<strong>do</strong> entender que as defesas da fé não têm si<strong>do</strong> feitas assim. Isso<br />
não impede, digamos desde já, que, a despeito <strong>do</strong> desprezo pela historicidade<br />
<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, boas observações e aplicações sobre o texto sejam encontradas<br />
em certos momentos.<br />
Logo no primeiro parágrafo (p. 8) a comparação <strong>do</strong>s Vedas com a Bíblia<br />
chama a atenção. Estes escritos hinduístas, data<strong>do</strong>s <strong>do</strong> 2º milênio antes de<br />
Cristo, são apresenta<strong>do</strong>s como modelo de referência para a “noção de que a<br />
Bíblia é a ‘palavra de Deus’”. Essa comparação é muito infeliz. Primeiro, num<br />
senti<strong>do</strong> mais básico, porque os Vedas não são considera<strong>do</strong>s palavra de Deus;<br />
os hinduístas nem creem em um deus pessoal. Segun<strong>do</strong>, por ser francamente<br />
improdutiva, porque pouquíssimas pessoas sabem o que são os Vedas. Terceiro,<br />
porque a comparação nem de longe ilustra o conceito teológico de revelação<br />
em que se baseia a noção de Palavra de Deus (com letras maiúsculas e sem<br />
aspas). Igualmente infeliz é a equiparação de Jesus com Buda e Maomé (p. 288).<br />
Situações falaciosas como estas, que criam falsos silogismos, assolarão o leitor<br />
por to<strong>do</strong> o livro. Não haverá espaço suficiente para rebater contradições (e.g.,<br />
p. 16), incorreções (e.g., p. 64), imprecisões (e.g., p. 42), falsas pressuposições<br />
(e.g., p. 24) e até mesmo fantasias (e.g., p. 159) espalhadas ao longo de toda<br />
a obra.<br />
É impressionante observar que em pleno século 21 ainda haja pessoas<br />
que sustentam a Hipótese Documental de Julius Wellhausen, conhecida como<br />
JEDP. A descrença na veracidade da Bíblia existirá até o retorno de Jesus, mas<br />
é incompreensível como um pesquisa<strong>do</strong>r contemporâneo possa, após to<strong>do</strong>s os<br />
123
Atlas da Bíblia<br />
avanços da arqueologia bíblica, sustentar, sem qualquer evidência, que o texto<br />
bíblico se originou na confluência de quatro <strong>do</strong>cumentos cria<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong><br />
século 8º a.C. Tal proposta só se sustentou sob os auspícios <strong>do</strong> racionalismo<br />
<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> moderno que transformava em verdade as concepções da mente<br />
humana decaída. Por conta dessa realidade, a autora oscila admitin<strong>do</strong> a proposta<br />
de que o texto <strong>do</strong> Antigo Testamento se formou por camadas (p. 24), de<br />
que foi compila<strong>do</strong> no tempo de Esdras (p. 40, 436), de que foi altera<strong>do</strong> pelos<br />
rabinos judeus (p. 438), uma sopa de propostas contraditórias entre si. Fica<br />
claro que a autora está mais preocupada em fazer interpretações agradáveis<br />
à sua comunidade <strong>do</strong> que em manter a coerência de seus posicionamentos. E<br />
mesmo reconhecen<strong>do</strong> que as reconstruções <strong>do</strong>cumentárias permanecem incertas<br />
(p. 48ss) e que o projeto da crítica das fontes fracassou (p. 63), mantém<br />
sua proposta e reluta em aceitar os elementos arqueológicos que confirmam a<br />
história bíblica (p. 26-27).<br />
Sem qualquer pu<strong>do</strong>r, ela chama o contexto de Deuteronômio de ficção<br />
(p. 91) e afirma que as narrativas <strong>do</strong> Êxo<strong>do</strong> não tem a “ideia de relatar tu<strong>do</strong> da<br />
maneira como deve ter aconteci<strong>do</strong>” (p. 82). Rejeita qualquer possibilidade de<br />
Moisés ser autor de qualquer parte <strong>do</strong> texto bíblico, pois identifica o cântico<br />
de Débora como o texto mais remoto <strong>do</strong> Antigo Testamento (p. 108). Por outro<br />
la<strong>do</strong>, usa de ampla liberdade criativa para descrever a vida de Israel na terra<br />
(p. 114). Por fim, a inclusão e tratamento igualitário da<strong>do</strong> aos livros apócrifos<br />
e deuterocanônicos é inconcebível para uma editora evangélica.<br />
Quanto ao Novo Testamento, ao defender que os discípulos não poderiam<br />
ter inventa<strong>do</strong> a história de que João Batista batizou Jesus (p. 288), deixa<br />
aberta a sugestão de que outros episódios podem ter si<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>s. Defende que<br />
os evangelhos são fruto de uma revisão <strong>do</strong>s ensinos de Jesus em virtude das<br />
Guerras Judaicas contra Roma. Até então os discípulos teriam entendi<strong>do</strong> que<br />
Jesus ensinara que o seu reino deveria fixar-se em Jerusalém (p. 302).<br />
Na questão da autoridade <strong>do</strong> Novo Testamento, defende que os autores<br />
cristãos até o 2º século consideravam somente os livros <strong>do</strong> Antigo Testamento<br />
como Escritura Sagrada (p. 303). Desconsidera assim o testemunho de 2Pe<br />
3.15-16, a evidência bíblica de que os escritos neotestamentários eram li<strong>do</strong>s<br />
publicamente nas reuniões da igreja (Cl 4.16; 1Ts 5.27; 1Tm 4.11; Ap 1.3,<br />
2.7,11,17,29; 3.6,13,22) e esconde o fato de que não há <strong>do</strong>cumentos cristãos,<br />
exceto os <strong>do</strong> texto bíblico, anteriores ao 2º século, e que os primeiros <strong>do</strong>cumentos<br />
escritos já reconhecem a autoridade espiritual <strong>do</strong>s evangelhos e das<br />
cartas de Paulo, como, por exemplo, a carta de Clemente de Roma aos Coríntios<br />
(47.1-3), que afirma a inspiração de 1 Coríntios. 6 O mesmo erro será cometi<strong>do</strong><br />
6 Cf. COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A inspiração e inerrância das Escrituras: uma perspectiva<br />
reformada. São Paulo: Cultura Cristã, <strong>20</strong>08, p. 28-29.<br />
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na p. 311, quan<strong>do</strong> a autora considera que os evangelhos foram os primeiros<br />
escritos cristãos utiliza<strong>do</strong>s para leitura nos cultos.<br />
Além disso, a relação entre a “perda” <strong>do</strong>s originais e a não consideração<br />
<strong>do</strong>s textos como imutáveis (p. 304) é falaciosa. O texto valia pelo seu conteú<strong>do</strong><br />
e não por sua originalidade <strong>do</strong>cumental. Até mesmo a pequena quantidade de<br />
<strong>do</strong>cumentos disponíveis impossibilita a presunção de que os textos podiam<br />
ser modifica<strong>do</strong>s, pois a maior parte das diferenças apontadas nessa época<br />
decorre de erros de cópia e transcrição. O argumento de que Mateus e Lucas<br />
reescreveram Marcos chega a ser ridículo, pois na verdade o que se supõe (com<br />
grande debate) é que eles escreveram seus evangelhos basea<strong>do</strong>s em Marcos,<br />
não que reescreveram o livro.<br />
Algumas propostas são tão absurdas que várias vezes os editores são<br />
obriga<strong>do</strong>s a inserir notas contesta<strong>do</strong> as afirmações <strong>do</strong> texto. Na pág. 106, há<br />
uma nota contestan<strong>do</strong> a afirmação de que o relato da conquista é fictício.<br />
Na p. 192, outra nota rebate a afirmação de que única previsão autêntica <strong>do</strong><br />
livro de Daniel não se cumpriu. Nas p. 412 e 414, os editores são novamente<br />
obriga<strong>do</strong>s a inserir notas contestan<strong>do</strong> a autora ao afirmar que 2 Tessalonicenses<br />
não é de autoria paulina, mas produção pseu<strong>do</strong>epígrafa de um discípulo.<br />
Acrescente-se que o mesmo é afirma<strong>do</strong> sobre as cartas de Colossenses, Efésios,<br />
1 e 2 Timóteo e Tito. A autora nega também a autoria joanina das cartas de<br />
João atribuin<strong>do</strong>-as a um discípulo <strong>do</strong> apóstolo autodenomina<strong>do</strong> “ancião”. E<br />
nem se dá ao trabalho de justificar a negação da autoria das cartas de Pedro,<br />
Tiago e Judas. Para a autora, Paulo é como Sócrates ou Rabi Aquiva, que se<br />
torna alvo de veneração em textos e histórias criadas por seus discípulos.<br />
Afirma que, ao chamar seus auxiliares de ministros, Paulo legitimava essa<br />
prática (p. 414-415). Ao que parece, a mesma compreensão é assumida em<br />
relação às cartas de Tiago, Pedro, Judas e João. A partir daí, qualquer análise<br />
sobre essas cartas torna-se descartável.<br />
A obra tem um manifesto compromisso com a destruição <strong>do</strong>s fundamentos<br />
da fé. Por vezes, ela faz isso até mesmo de mo<strong>do</strong> desonesto. Por exemplo, ao<br />
descrever o trabalho de Jerônimo em traduzir a Bíblia para o latim, valen<strong>do</strong>-se<br />
<strong>do</strong> hebraico e <strong>do</strong> grego para fazer seus comentários, a autora, sem qualquer<br />
argumento, afirma: “Depreende-se disso a ideia de que os textos bíblicos não<br />
são a palavra de Deus em si, mas testificam a respeito dela” (p. 443). Pode-se<br />
afirmar exatamente o contrário: a preocupação de Jerônimo em comparar os<br />
textos disponíveis atesta a grande importância que ele dava em seguir o texto<br />
o mais fielmente possível.<br />
Ao abrir a seção de interpretação bíblica (p. 448), a autora critica a<br />
proposta de uma única interpretação correta e defende uma diversidade de<br />
significa<strong>do</strong>s váli<strong>do</strong>s, incluin<strong>do</strong> aqueles <strong>do</strong> judaísmo. Adiante põe em questão a<br />
validade <strong>do</strong> ensino bíblico para os nossos dias. Ao falar da interpretação moderna,<br />
defende novamente os múltiplos significa<strong>do</strong>s a partir das teorias da recepção<br />
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Atlas da Bíblia<br />
(p. 462), mas propõe como instrumento de controle as várias propostas de<br />
exegese histórico-críticas, como forma de prevenção contra interpretações<br />
arbitrárias (p. 463). Tal prevenção é descrita, de forma anacrônica, com um<br />
esvaziamento da autoridade bíblica: “Quan<strong>do</strong> se conhece o contexto no qual<br />
sugiram alguns textos antissemitas no NT ou trechos que exaltam a violência<br />
no AT fica impossível ouvir ali a palavra eternamente válida de Deus, que<br />
demanda obediência” (p. 464). Por fim, combate a leitura <strong>do</strong>s “textos bíblicos<br />
como parte de uma história que vai da Criação até o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>” (p. 465).<br />
Sua cristologia é frontalmente contrária à orto<strong>do</strong>xia cristã. É, no mínimo,<br />
estranha a expressão de que, por causa de suas adversidades, os indivíduos<br />
“pensavam estar <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s, ‘possessos’ por forças malignas”, e que Jesus<br />
pensava isso também (p. 3<strong>20</strong>). Torna assim a possessão demoníaca uma avaliação,<br />
uma impressão de Jesus e das pessoas, e não uma realidade espiritual<br />
vencida por Jesus. O mesmo se dá na p. 331, onde a autora afirma que talvez<br />
Jesus “tivesse entendi<strong>do</strong> o seu sofrimento como parte <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s tempos”,<br />
e na p. 344, onde se diz que Jesus fracassou na missão para com o seu povo.<br />
Igualmente absur<strong>do</strong> é sugerir que Jesus, num ato de covardia, se escondeu na<br />
hora de sua morte (p. 372), deturpan<strong>do</strong> completamente o senti<strong>do</strong> de João 12.36.<br />
Quan<strong>do</strong> trata da ressurreição (p. 332-335), a questão se complica sensivelmente.<br />
Ainda que admita que algo sui generis está acontecen<strong>do</strong> na comunidade cristã<br />
(p. 334), a autora trata a ressurreição como uma crença, e não como um acontecimento.<br />
Ignora inexplicavelmente os relatos da ressurreição ambienta<strong>do</strong>s<br />
em Jerusalém, ao afirmar que os discípulos foram para a Galileia frustra<strong>do</strong>s,<br />
e não, como indica o texto bíblico (Mt 28.10), para atender ao coman<strong>do</strong> de<br />
Jesus de se encontrarem ali com ele. Estranhamente, usa aspas para se referir<br />
à aparição de Jesus e afirma que Paulo não apresenta provas da ressurreição de<br />
Jesus, apenas testemunhas que poderiam ser consultadas. Deixa assim, a ressurreição<br />
na zona cinzenta de uma forte convicção da igreja primitiva. Na p. 370,<br />
a autora contraria frontalmente a teologia cristã ao afirmar que, para João, Jesus<br />
era deus somente no senti<strong>do</strong> de ser divino, diferencian<strong>do</strong>-o <strong>do</strong> único Deus de<br />
Israel. Na p. 424, descreve Jesus como o ser mais próximo de Deus. Não há<br />
dúvida de que tal posicionamento é herético.<br />
Conhecida por sua história de publicações de eleva<strong>do</strong> nível teológico e<br />
de compromisso com a fé cristã, a Editora Hagnos infelizmente publicou uma<br />
obra que não se harmoniza com a orto<strong>do</strong>xia evangélica e dificulta uma saudável<br />
compreensão da Escritura. Esperamos que a editora retome seu bem-sucedi<strong>do</strong><br />
caminho de fornecer ao público brasileiro obras teológicas de qualidade e que,<br />
ao mesmo tempo, contribuam para o crescimento na fé e a promoção da causa<br />
de Cristo em nossa sociedade.<br />
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Excelência e Piedade a Serviço <strong>do</strong> Reino de Deus<br />
CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO<br />
ANDREW JUMPER<br />
Venha estudar conosco!<br />
Cursos modulares, corpo <strong>do</strong>cente pós-gradua<strong>do</strong>, convênio com instituições internacionais,<br />
biblioteca teológica com mais de 40.000 volumes, acervo bibliográfico<br />
atualiza<strong>do</strong> e informatiza<strong>do</strong>.<br />
Especialização à Distância (EAD)<br />
São três cursos totalmente online: Especialização em Estu<strong>do</strong>s Teológicos (EET), Especialização<br />
em Teologia Bíblica (ETB) e Especialização em Teologia Prática (ETP).<br />
Revitalização e Multiplicação de Igrejas (RMI)<br />
O RMI objetiva capacitar pastores e líderes na condução <strong>do</strong> processo de restauração<br />
<strong>do</strong> ministério pastoral, da oração e da expansão da igreja por meio de missões, usan<strong>do</strong><br />
ferramentas bíblico-teológicas e de outras áreas das ciências.<br />
Mestra<strong>do</strong> em Divindade (Magister Divinitatis – MDiv)<br />
Trata-se <strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> eclesiástico <strong>do</strong> CPAJ. É análogo aos já tradicionais mestra<strong>do</strong>s<br />
profissionalizantes, diferin<strong>do</strong>, entretanto, <strong>do</strong> Master of Divinity norte-americano<br />
apenas no fato de que não constitui e nem pretende oferecer a formação básica para<br />
o ministério pastoral. O MDiv <strong>do</strong> CPAJ não é submeti<strong>do</strong> à avaliação e não possui<br />
credenciamento da CAPES.<br />
Mestra<strong>do</strong> em Teologia (Sacrae Theologiae Magister – STM)<br />
Esse mestra<strong>do</strong> acadêmico difere <strong>do</strong> Magister Divinitatis por sua ênfase na pesquisa<br />
e sua harmonização com os mestra<strong>do</strong>s acadêmicos em teologia ofereci<strong>do</strong>s em universidades<br />
e escolas de teologia internacionais. O STM <strong>do</strong> CPAJ não é submeti<strong>do</strong> à<br />
avaliação e não possui credenciamento da CAPES.<br />
Doutora<strong>do</strong> em Ministério (DMin)<br />
O Doutora<strong>do</strong> em Ministério (DMin) é um curso ofereci<strong>do</strong> em parceria com o Reformed<br />
Theological Seminary (RTS), de Jackson, Mississippi. O programa possui o reconhecimento<br />
da JET/IPB e da Association of Theological Schools (ATS), nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />
O corpo <strong>do</strong>cente inclui acadêmicos brasileiros, americanos e de outras nacionalidades,<br />
com sólida formação em suas respectivas áreas.<br />
<strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong><br />
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Editoração eletrônica<br />
LIBRO Comunicação<br />
Impressão e acabamento<br />
HRosa