100% Corrida - julho 2017
100 % Corrida DESCANSO O treino invisível... CORRER NA VÉSPERA Talvez não o deva fazer... Julho 2017 Mensal № 5 www.corredoresanonimos.pt MUNDIAL DE TRAIL A FLORESTA SAGRADA DE TIAGO ROMÃO
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100 % <strong>Corrida</strong><br />
DESCANSO<br />
O treino invisível...<br />
CORRER NA VÉSPERA<br />
Talvez não o deva fazer...<br />
Julho <strong>2017</strong><br />
Mensal<br />
№ 5<br />
www.corredoresanonimos.pt<br />
MUNDIAL DE TRAIL<br />
A FLORESTA SAGRADA<br />
DE TIAGO ROMÃO
PLAY IN ALL<br />
PLAYGROUNDS<br />
SPEEDCROSS SERIES<br />
©SALOMON SA. All Rights Reserved.
SUMÁRIO<br />
NÃO DEIXE QUE<br />
O VERÃO ESTRAGUE<br />
O OUTONO/INVERNO<br />
CORRER NA VÉSPERA<br />
DA PROVA<br />
SIM OU NÃO?<br />
MUNDIAL DE TRAIL<br />
A FLORESTA SAGRADA<br />
DE TIAGO ROMÃO<br />
FICHA TÉCNICA<br />
CORRER<br />
OU NÃO CORRER?<br />
EIS A QUESTÃO!<br />
A MAGIA<br />
DA FLORESTA SAGRADA<br />
Diretor<br />
Pedro Justino Alves<br />
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Belino Coelho<br />
Colaboradores da presente edição<br />
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para a Comunicação Social: -<br />
O ADORADO ZÉ NINGUÉM<br />
DE GEORGE E WEEDON<br />
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4<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
AQUECIMENTO<br />
NÃO DEIXE<br />
QUE O VERÃO<br />
ESTRAGUE<br />
A SUA PREPARAÇÃO<br />
PARA O<br />
OUTONO/INVERNO<br />
Chegou a época mais desejada do ano, o Verão, sinónimo de momentos<br />
em família, praia e descanso. No entanto, e devido às provas de setembro<br />
em diante, muitos são os corredores que continuam os seus treinos,<br />
acordando cedo mesmo em férias para não prejudicarem o tempo<br />
passado com os familiares e amigos. Apesar dos dias serem mais<br />
longos, é necessário ter cuidado com o Sol…<br />
Texto: Pedro Justino Alves
AQUECIMENTO CORREDORES ANÓNIMOS 5<br />
Há alguns anos, o treinador de Caroline<br />
Rotish, vencedora da Maratona de Boston<br />
em 2015, ressaltou os “perigos” do Verão<br />
na preparação de um atleta, seja ele<br />
profissional ou amador. Na altura, Ryan<br />
Bolton referiu o seguinte:<br />
«Há muitas distrações para os atletas<br />
durante o Verão e nos meses mais<br />
quentes. Por isso é necessário criar<br />
“tempo de antecedência” para os treinos.»<br />
E o que entende Bolton por “tempo de<br />
antecedência”? Simplesmente criar<br />
pequenas metas/tarefas que garantam a<br />
conclusão dos objetivos propostos pelos<br />
corredores para o Outono/Inverno. A<br />
verdade é que, se não houver uma cuidada<br />
preparação para a estação mais quente<br />
do ano, todo o trabalho que foi realizado<br />
nos meses anteriores provavelmente<br />
não servirá para nada, defraudando o<br />
atleta, que ficará desiludido com a sua<br />
performance nas provas agendadas para<br />
depois do Verão.<br />
Ou seja, é essencial evitar a estagnação,<br />
embora isso não signifique “abdicar”<br />
dos principais meses da estação mais<br />
desejada por todos, <strong>julho</strong> e agosto. O<br />
essencial é encontrar o equilíbrio, já que<br />
Verão não significa deixar de fazer praia<br />
ou renunciar a conversa de fim de noite<br />
com os amigos devido aos treinos. Há<br />
tempo para tudo!
6 CORREDORES ANÓNIMOS AQUECIMENTO<br />
Siga, estes quatro conselhos:<br />
PARTICIPE DE UMA CORRIDA<br />
Não é por acaso que as corridas de 5<br />
e 10 km são tão populares durante a<br />
temporada de Verão. Na estação mais quente<br />
do ano, as pessoas não estão dispostas a<br />
correr provas 1com grandes distâncias, não<br />
só devido ao calor, mas por “roubar” tempo<br />
a família (que aliás já é roubado durante o<br />
ano...). Para essas corridas, o ideal é treinar<br />
no mínimo entre 3 e 4 vezes por semana.<br />
Estas duas distâncias são ideias para<br />
aprimorarmos a velocidade. Os iniciantes<br />
nos 5 e nos 10 km podem fazer o seguinte<br />
exercício nos treinos, uma vez por semana:<br />
adicionar uma escala de velocidade entre<br />
5 (velocidade de corrida) e 10 (máxima<br />
velocidade alcançada), com duração entre 30<br />
e 60 segundos num intervalo de 2 minutos.<br />
Para os mais rápidos, Bolton sugere um<br />
exercício de curta duração, uma a duas<br />
vezes por semana. O objetivo é fazer<br />
repetições fortes de 200m em distâncias de<br />
600m. No intervalo entre as séries, trabalho<br />
de recuperação para desenvolver a força<br />
física, mental e o descanso. No entanto, os<br />
corredores que pretendem alcançar novos<br />
recordes pessoais nos 5 e nos 10 km não<br />
podem descurar o treino longo semanal<br />
tendo em vista a manutenção da capacidade<br />
aeróbica. Por exemplo, Bolton 2coloca os seus<br />
atletas a correrem entre 85%-90% da FCmáx<br />
durante 5-7 km num treino de 13-16 km.<br />
REDUZIR A CARGA<br />
O Verão é provavelmente o melhor momento<br />
para perder peso, muito devido ao consumo<br />
de muitas frutas e vegetais, as atividades<br />
ao ar livre são inúmeras e o calor reduz<br />
muitas vezes o apetite. Além disso, um<br />
estudo publicado na revista Medicine &<br />
Science revelou que treinar a temperaturas<br />
relativamente altas ajuda a queimar mais<br />
gordura corporal.<br />
Devido a redução da carga, os especialistas<br />
recomendam o HIIT (Treino Intervalado<br />
de Alta Intensidade) como treino perfeito<br />
para esta época específica do ano, sendo<br />
que a velocidade de execução e o tempo de<br />
recuperação dos exercícios não deve exceder<br />
um minuto. O ideal é treinar de manhã, já<br />
que os benefícios do treino intervalado são<br />
prolongados a nível metabólico ao longo do<br />
dia. Outra solução é treinar de manhã e ao fim<br />
da tarde, embora de forma não tão intensa<br />
como se tivéssemos apenas uma sessão.<br />
MANTER O FOCO<br />
É complicado e difícil 3manter o foco quando<br />
estamos em viagem com os amigos e a<br />
família. Mas a verdade é que podemos<br />
assegurar dignamente a nossa forma<br />
com um número mínimo de quilómetros.<br />
Bolton defende que continuamos onde<br />
estávamos se corrermos 40% do nosso<br />
volume habitual semanal em 15 dias. O<br />
treinador de Caroline Rotish defende também<br />
que não podemos cair na armadilha de que<br />
não há tempo para treinar. Mesmo que sejam<br />
20 minutos, temos de ir treinar, embora<br />
aumentando a intensidade do mesmo.<br />
Pranchas, burpees, agachamentos, etc. Há<br />
inúmeras soluções para ativarmos os nossos<br />
músculos, obrigando o coração a trabalhar. O<br />
importante é não estarmos parados durante<br />
15 dias, algo fatal na preparação dos nossos<br />
treinos tendo em vista as provas futuras.
AQUECIMENTO<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
7<br />
RESISTÊNCIA AO CALOR<br />
Há corredores que reagem bem a<br />
“quentura”. A verdade é que estes serão<br />
recompensados no Outono, já que, ao<br />
estarmos climatizados ao calor, o corpo<br />
produz mais sangue tendo em vista a<br />
redução da temperatura corporal durante<br />
o exercício, melhorando deste modo o<br />
fornecimento de nutrientes aos grupos<br />
musculares, mesmo quando a temperatura<br />
desce. No entanto, devemos salientar que<br />
há um limite corporal para treinar devido ao<br />
excesso de calor, que varia de pessoa para<br />
pessoa. Bolton salienta que os seus atletas<br />
trabalham numa passadeira quando sente<br />
que os treinos serão sacrificados pelo calor.<br />
Evidentemente que os exercícios exteriores,<br />
na maioria das vezes, não correspondem<br />
em termos de rendimento aos mesmos dos<br />
realizados durante o Outono/Primavera. Por<br />
isso, é essencial “baixar as expetativas”, é<br />
primordial muitas vezes reduzir o volume<br />
se o “osciloscópio” e o nosso esforço não<br />
estiverem em harmonia.<br />
No Verão também é essencial 4procurar<br />
correr no início da manhã ou ao fim da<br />
tarde ou noite, sempre com roupas leves<br />
e de cores claras. Evidentemente que a<br />
hidratação também é essencial durante<br />
os treinos. Bolton sugere inclusive que<br />
os mesmos devem decorrer num raio<br />
relativamente médio da nossa casa para<br />
podermos assim hidratar do melhor modo.
8<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
PREPARAÇÃO<br />
CORRER UM DIA ANTES<br />
DA PROVA AJUDA<br />
OU ATRAPALHA?<br />
OR<br />
tipo leva em torno de seis a oito horas<br />
Um dos rituais obrigatórios do Mundo Running é a famosa “corridinha” na<br />
véspera da prova. É raro encontrar um atleta que não “estique as pernas”,<br />
uma forma de descontração e ativação dos músculos. Mas será realmente<br />
necessário esse ritual implementado no ADN do corredor? Com a palavra,<br />
Belino Coelho, diretor técnico da Elite Assessoria Esportiva, do Brasil,<br />
e responsável pelo treino e orientação de mais de 150 atletas.<br />
Texto: Belino Coelho<br />
Ponto número um e fulcral do tema que<br />
estamos a abordar na edição de <strong>julho</strong> da<br />
revista <strong>100%</strong> <strong>Corrida</strong>: para saber se é valido<br />
treinar na véspera de uma competição é<br />
preciso antes de tudo analisar o histórico<br />
do corredor, conhecer o seu ciclo de treino,<br />
saber quantas sessões costuma realizar<br />
durante a semana, contabilizar o seu<br />
volume de treino e descobrir como foi o seu<br />
comportamento em provas anteriores após<br />
treinar na véspera. Só assim poderemos<br />
chegar a uma conclusão “científica”, ou<br />
seja, se a “corridinha” no dia anterior é<br />
ou não é benéfica para o caso específico.<br />
para recuperar) ou um treino mais leve,<br />
regenerativo, caso o corredor tipo tenha<br />
realizado um treino forte no dia precedente<br />
ou esteja com sintomas de cansaço.<br />
Neste último caso, treinar na véspera será<br />
bastante benéfico, visto que, com o treino<br />
mais leve, haverá um aumento da oferta<br />
de oxigénio e nutrientes aos músculos,<br />
permitindo a recuperação de alguma<br />
fibra “lesada” além da recomposição<br />
do glicogénio muscular e a retirada e<br />
diminuição das toxinas provenientes<br />
do metabolismo.<br />
Se o corredor já treina há muito tempo<br />
e está acostumado a fazer entre quatro<br />
e seis sessões de treinos por semana,<br />
provavelmente não haverá problema<br />
algum em treinar na véspera, já que a sua<br />
recuperação pós-treino é muito rápida.<br />
Neste caso em concreto, no dia anterior<br />
ao grande dia, esse atleta vai realizar uma<br />
“rodagem” normal (respeitando sempre<br />
o volume de treino programado, já que,<br />
habitualmente, o organismo desse atleta<br />
No entanto, se é um corredor que<br />
habitualmente treina menos de quatro<br />
sessões semanais, independentemente de<br />
quanto tempo já corre, o treino na véspera<br />
provavelmente poderá atrapalhar o seu<br />
rendimento na prova. Isso acontece devido<br />
ao organismo desse atleta em particular se<br />
recuperar de forma mais lenta por não estar<br />
acostumado às quatros sessões de treino<br />
ou a correr dois dias seguidos, acarretando<br />
um maior tempo para a recuperação. No
PREPARAÇÃO CORREDORES ANÓNIMOS 9<br />
*<br />
dia da prova, em função do treino da véspera,<br />
mesmo que tenha sido curto e leve, houve uma<br />
depleção de glicogénio e outros nutrientes,<br />
uma contração muscular que gerou fadiga nas<br />
fibras musculares, acarretou uma libertação<br />
de toxinas e diminuição da água corporal,<br />
deixando o corpo mais pesado (diminuição<br />
da força muscular), fazendo com que o seu<br />
rendimento seja abaixo do esperado.<br />
RER<br />
Resumindo: se um atleta costuma realizar três<br />
sessões de treinos por semana, o melhor é<br />
evitar correr no dia anterior a uma competição<br />
para deste modo ter o rendimento esperado<br />
no dia da corrida. No entanto, se o desejo é<br />
correr na véspera (e muitos corredores fazem<br />
questão desse “ritual”, principalmente para<br />
descontrair e conhecer um pouco do percurso<br />
da prova), o conselho que posso deixar aqui<br />
é incluir o quarto dia de treino no ciclo de<br />
trabalho programado, embora com certa<br />
antecedência, tudo para que o organismo<br />
comece a processar de forma mais rápida<br />
a recuperação.<br />
Um último conselho: depois da competição,<br />
e para aqueles corredores que treinaram na<br />
véspera, é necessário fazer uma avaliação<br />
de como se sentiram e de como foi o<br />
rendimento durante a prova, retirando as<br />
necessárias conclusões quanto a manter ou<br />
excluir o treino à véspera das competições.<br />
Em caso de dúvida, a melhor solução é<br />
consultar o treinador ou um profissional,<br />
que, evidentemnte, terão a resposta mais<br />
apropriada para o caso.
10<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
ENTREVISTA<br />
A FLORESTA<br />
SAGRADA DE<br />
TIAGO<br />
CANTANTE<br />
ROMÃO<br />
Tiago Cantante Romão fez a sua estreia<br />
num Mundial de Trail no mês passado,<br />
sendo o terceiro português a terminar o<br />
Trail Sacred Forests, em Itália, “fechando”<br />
a classificação de Portugal na prova<br />
(sexto lugar na classificação coletiva<br />
masculina). No entanto, o português já<br />
tinha representado o nosso país num<br />
Mundial de Orientação. O futuro médico<br />
aborda nesta entrevista as diferenças<br />
entre os campeonatos do mundo das duas<br />
modalidades, a sua prova, a dor que foi<br />
obrigado a suportar ao longo da corrida,<br />
a estratégia utilizada, a diferença que foi<br />
ver a família, a namorada e os amigos em<br />
determinado momento, o momento em que<br />
esteve muito próximo de desistir, a emoção<br />
da chegada, o comportamento dos seus<br />
companheiros de seleção, o desejo<br />
de correr distâncias maiores, etc.<br />
Texto: Pedro Justino Alves<br />
Fotos: Miro Cerqueira / Prozis
ENTREVISTA CORREDORES ANÓNIMOS 11
12<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
ENTREVISTA<br />
Ao olhar para trás, o que<br />
recorda do Mundial de Trail?<br />
Recordo o momento da<br />
chegada à meta em Badia<br />
Prataglia, depois de todas<br />
as dificuldades antes e<br />
especialmente durante<br />
a prova. O término foi<br />
realmente um momento<br />
único, especialmente<br />
quando prontamente fui<br />
abraçado pelo Luís Duarte<br />
e Hélio Fumo, mas também<br />
recebido com muita alegria<br />
e entusiasmo pela equipa<br />
técnica, pela minha família<br />
e pela minha namorada.<br />
Participou pela primeira<br />
vez num Mundial de<br />
Trail, embora já tenha<br />
representado Portugal num<br />
Mundial de Orientação. As<br />
emoções foram as mesmas?<br />
Para mim, representar o<br />
país é uma das maiores<br />
ambições e, ao mesmo<br />
tempo, responsabilidades<br />
que um atleta pode ter,<br />
independentemente da<br />
modalidade. Por esse ponto<br />
considero que as sensações<br />
são semelhantes, mas<br />
por outro lado não. Na<br />
Orientação acabamos<br />
quase sempre por participar<br />
em mais do que uma<br />
prova durante o Mundial,<br />
o que faz com que a nossa<br />
preparação, concentração<br />
e motivação acabe por ser<br />
um pouco dividida; no Trail<br />
Running tudo se resume<br />
a uma única prova. Nesse<br />
aspeto foi uma experiência<br />
completamente nova e<br />
um despertar de novas<br />
emoções. Numa atmosfera<br />
diferente, o excelente grupo<br />
de atletas e equipa técnica,<br />
liderada pelo selecionador<br />
José Carlos Santos, fez-me<br />
voltar a ter emoções só<br />
comparáveis às minhas<br />
primeiras participações<br />
na seleção nacional de<br />
Orientação com o então<br />
selecionador Bruno Nazário.<br />
Ter uma equipa técnica que<br />
nos faz sentir verdadeiros<br />
atletas, que está disponível<br />
para ajudar e motivar, são<br />
pormenores que fazem toda<br />
a diferença.<br />
É possível fazer uma<br />
comparação entre os dois<br />
Mundiais? Semelhanças,<br />
diferenças, popularidade,<br />
organização, etc.?<br />
Essa é uma tarefa muito<br />
complicada pois são dois<br />
eventos completamente<br />
distintos. Neste momento,<br />
um Mundial de Orientação<br />
é constituído por seis<br />
provas distribuídas por oito<br />
dias, o que faz com que a<br />
logística seja incomparável.<br />
O primeiro Campeonato do<br />
Mundo de Orientação teve<br />
lugar em 1966, na Finlândia,<br />
e a Federação Internacional<br />
de Orientação existe<br />
desde 1961, enquanto o<br />
primeiro Mundial de Trail<br />
Running enquanto disciplina<br />
reconhecida pela IAAF teve<br />
lugar no ano passado, em<br />
Portugal. Na Orientação,<br />
o Mundial é realmente o<br />
grande evento do ano e para<br />
o qual todos os atletas se<br />
preparam, enquanto no Trail<br />
Running sinto que o Mundial<br />
ainda está a tentar ganhar<br />
o seu espaço e notoriedade<br />
como evento, ainda existem<br />
muitos atletas de grande<br />
valia que não consideram<br />
o Mundial como uma prova<br />
apetecível. O Mundial de<br />
Orientação tem atualmente<br />
transmissão televisiva<br />
em direto, passando em<br />
canal aberto nos países<br />
escandinavos devido à<br />
grande popularidade da<br />
modalidade nesses países,<br />
enquanto o Mundial de Trail<br />
Running teve este ano pela<br />
primeira vez a possibilidade<br />
de algum acompanhamento<br />
com imagens online. Em<br />
suma, é impossível fazer<br />
uma comparação dada a<br />
incomparável experiência<br />
entre as duas modalidades,<br />
mas sinto que o Trail<br />
Running está a caminhar<br />
no bom sentido e a passos<br />
largos para obter um<br />
Mundial cada vez melhor<br />
e mais atrativo para atletas<br />
e espetadores.
ENTREVISTA<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
13<br />
« O Trail nacional tem tido um<br />
grande desenvolvimento<br />
nos últimos anos e isso<br />
tem sido fantástico,<br />
mas penso que ainda é escassa<br />
a cultura desportiva em Portugal<br />
e isso é por demais evidente<br />
quando, no dia-a-dia, perdem-se<br />
imensas energias a identificar<br />
coisas erradas, arranjar<br />
culpados e competir por objetivos<br />
individuais, muitos deles egoístas,<br />
em vez de debatermos as coisas de<br />
forma saudável e procurarmos<br />
soluções para melhorar a<br />
modalidade como um todo.<br />
Por vezes temos de abdicar<br />
do nosso bem-estar pessoal<br />
por um bem maior e isso poucas<br />
pessoas o fazem »
14<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
ENTREVISTA<br />
contribuir para a classificação coletiva e esse<br />
ponto foi inteiramente alcançado.<br />
Foi o terceiro melhor de Portugal, obtendo<br />
a 35.ª posição da geral masculina. Ficou<br />
satisfeito com o resultado?<br />
Ficar em 35.º lugar na geral masculina no<br />
primeiro Mundial da modalidade em que<br />
participo tem de ser sempre motivo de orgulho,<br />
mas, devido à forma como a prova decorreu,<br />
com as dificuldades físicas face a uma<br />
pequena lesão que me surgiu após o último<br />
treino de intensidade na semana anterior ao<br />
Mundial, é óbvio que fica um pequeno sabor<br />
amargo. Ser o terceiro português em prova<br />
não tem um grande significado para mim, pois<br />
nunca encarei essa competição interna, nunca<br />
considerei qualquer um dos companheiros de<br />
seleção como um adversário, mas sim como<br />
um aliado. Não poderia ficar assim satisfeito<br />
por ficar à frente de um companheiro.<br />
Mas concretamente o que esperava do<br />
Mundial?<br />
Para este Mundial esperava sobretudo<br />
aprender e ter uma primeira experiência<br />
internacional, pois nunca tinha participado<br />
numa prova internacional de Trail Running.<br />
Desta forma, o objetivo foi inteiramente<br />
conseguido e agora já consigo ter mais<br />
noção do valor dos atletas internacionais,<br />
assim como aprendi muito em termos de<br />
gestão de hidratação e alimentação com a<br />
equipa técnica. Relativamente a objetivos<br />
competitivos, passava sobretudo por<br />
Como descreveria a sua prova? Poderia fazer<br />
um pequeno resumo da sua corrida?<br />
Comecei a minha prova a tentar encontrar<br />
o meu ritmo na primeira subida longa,<br />
procurando abstrair-me ao máximo da<br />
pequena dor que ainda sentia na coxa direita.<br />
Mas, logo aos três quilómetros, durante<br />
uma pequena descida mais rápida, senti<br />
uma picada forte na coxa e o movimento a<br />
ficar preso. Senti que tudo poderia ficar por<br />
ali… No entanto, rapidamente veio o resto<br />
da primeira subida e não senti dor. Nesse<br />
momento íamos cinco portugueses juntos e<br />
as coisas em termos de equipa pareciam estar<br />
controladas. A seguir veio uma longa descida<br />
e as coisas começaram a ficar um pouco<br />
claras na minha cabeça: descer era mesmo um<br />
sacrilégio, especialmente descidas rolantes.<br />
Não conseguia de todo abstrair-me da dor e<br />
fazer um movimento de corrida normal. Perdi<br />
contacto com os outros portugueses e tentei<br />
seguir no meu ritmo até ao abastecimento dos<br />
23 km, onde estava a equipa técnica. Estava a<br />
dizer a mim próprio que a participação teria de<br />
ficar por ali mas, quando começo a chegar ao<br />
abastecimento, vi a minha família, namorada<br />
e alguns amigos. Foi então que pensei: «Eles<br />
vieram todos de propósito a Itália para me ver e<br />
nem sequer vou terminar a prova?» Entretanto<br />
chego ao abastecimento e queixo-me ao Dr.<br />
Miguel Reis e Silva, que, enquanto me coloca<br />
os géis e os soft flasks cheios na mochila e<br />
me passa os bastões para a mão, me diz algo<br />
do tipo: «Isso não é nada, vamos lá, segue… O<br />
Hélio, o Luís e o André estão bem, a equipa está<br />
bem, acaba isto”». Acho que nem pensei no<br />
que ele me disse, apenas assimilei e acreditei<br />
naquilo como uma verdade absoluta.<br />
Desci a escadaria até ao fundo da barragem<br />
bastante limitado mas depois, na longa<br />
subida, comecei a “bastonar” e lá fui subindo.<br />
A meio encontrei o André Rodrigues, que me<br />
disse que não aguentava mais. Perguntou-me<br />
se precisava de alguma coisa e disse para<br />
continuar porque o Ricardo ia um pouco à<br />
minha frente e não parecia muito bem. Nessa<br />
altura percebi que aquela “teoria” de que o
ENTREVISTA CORREDORES ANÓNIMOS 15<br />
Hélio, o Luís e o André estava<br />
bem lá na frente estava<br />
errada... Mas a verdade é<br />
que sentia-me bastante<br />
esgotado naquele momento<br />
para forçar o ritmo. Lá segui,<br />
tentando não perder mais<br />
tempo. A faltar cerca de 2 km<br />
para o abastecimento dos<br />
35 km passei pelo meu pior<br />
momento na prova. Estava<br />
muito calor e uma descida<br />
bastante íngreme que nunca<br />
mais acabava foi um autêntico<br />
suplício.<br />
Cheguei ao abastecimento<br />
completamente esgotado,<br />
mas ciente de que só<br />
poderia sair de lá quando me<br />
sentisse bem. Bebi, comi,<br />
refresquei-me com água<br />
sobre o corpo. Quando saí<br />
do abastecimento senti-me<br />
realmente revigorado e<br />
comecei a ganhar intensidade<br />
a cada passada. Comecei<br />
a apanhar atletas que há<br />
algum tempo me haviam<br />
ultrapassado até que cheguei<br />
junto do Ricardo. Senti que<br />
ele também não estava bem<br />
e a partir daquele momento<br />
o resultado da equipa estava<br />
nas minhas mãos, já que<br />
seria eu a “fechar” a equipa na<br />
classificação coletiva, coisa<br />
que até aquele momento da<br />
prova não me passava pela<br />
cabeça. Foi quando veio o<br />
de cima todo o querer e fui<br />
passando atletas durante<br />
toda a subida final, além de<br />
passar por mais um sector<br />
de sofrimento na descida<br />
final para a meta. Depois foi<br />
a chegada, quando a emoção<br />
tomou conta de mim…<br />
E qual foi a estratégia para<br />
a prova? Tinha alguma em<br />
concreto?<br />
A estratégia era um pouco<br />
seguir em ritmo moderado<br />
sem forçar muito até ao<br />
abastecimento dos 23 km e<br />
então atacar um pouco na<br />
última parte do percurso,<br />
que já sabia ser muito dura:<br />
No entanto, face à lesão,<br />
tudo acabou por ir por água<br />
abaixo e fui ao sabor dos<br />
acontecimentos.
16<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
ENTREVISTA<br />
O que mudaria hoje se pudesse correr<br />
novamente a prova?<br />
Uma vez que a lesão acabou por condicionar<br />
bastante a minha prova, é complicado responder<br />
a esta pergunta. De qualquer forma, podendo,<br />
era isso que mudava! De resto, penso que a<br />
estratégia seria a mais correta para a corrida.<br />
Terminou pouco tempo depois da primeira<br />
mulher. Como analisa a prestação da vencedora,<br />
a gaulesa Adeline Roche (5h00m44)?<br />
Considero que fez uma prova bastante sólida<br />
e de grande nível. Desconhecia por completo o<br />
nível competitivo das mulheres a nível mundial,<br />
mas considero que são bastante fortes. Ela<br />
passou-me logo depois do abastecimento dos<br />
23 km, numa fase bastante má da minha prova.<br />
Foi impossível acompanhá-la.<br />
O Mundial de Trail decorreu na Floresta<br />
Sagrada? O que há de sagrado na floresta?<br />
O Trail Sacred Forest decorreu no Parque<br />
Nazionale delle Foreste Casentinesi, um<br />
parque nacional entre os dois lados da bacia<br />
hidrográfica dos Apeninos, entre a região<br />
Romagna e a Toscana. Esta floresta está<br />
recheada de monumentos históricos, entre<br />
os quais o Sagrado Ermitério e o Mosteiro de<br />
Camaldoli, ou seja, um local cheio de história<br />
religiosa.<br />
Como definiria o percurso? Gostou do mesmo?<br />
O percurso era realmente muito bom, não só<br />
pela extraordinária floresta onde decorreu,<br />
mas principalmente por ser muito variado,<br />
com uma primeira parte mais rolante e uma<br />
segunda parte bastante mais técnica e dura.<br />
Resumidamente, um percurso muito bem<br />
equilibrado e pensado.<br />
O percurso deste ano promoveu a velocidade,<br />
já que a prova teve um percurso de 50 km (o<br />
Mundial realizado em Portugal, no Gerês, no<br />
ano passado, o percurso foi de 86 km). O que<br />
prefere e porquê?<br />
Se é verdade que este ano a prova de 50 km<br />
acabou por levar a ritmos mais elevados em<br />
relação à prova de 85 km do ano passado, isso<br />
não é necessariamente uma verdade absoluta,<br />
pois muitas provas mais curtas conseguem<br />
ser bem mais lentas e técnicas do que muitas<br />
provas mais longas. Relativamente à minha<br />
preferência, é-me impossível saber. Nunca<br />
fiz uma prova de distância superior a 50 km e<br />
mesmo o Campeonato do Mundo foi apenas a<br />
minha terceira prova nesta distância. Sinto, no<br />
entanto, vontade de experimentar distâncias<br />
maiores porque considero ser uma evolução<br />
natural e tenho terminado as provas de 50 km<br />
com a sensação de que ainda conseguiria<br />
continuar mais um pouco. No entanto, o<br />
que acontecerá após os 50 km ainda são<br />
sensações completamente desconhecidas<br />
para mim.<br />
Sentiste mais competitividade no Mundial do<br />
que em outras corridas que participaste? A<br />
diferença é realmente muito grande?<br />
Como já referi, esta foi a minha primeira<br />
experiência numa prova internacional em Trail<br />
Running, até então apenas tinha participado
ENTREVISTA CORREDORES ANÓNIMOS 17
18<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
ENTREVISTA<br />
em duas provas dessa<br />
distância em Portugal.<br />
Nessa relação comparativa,<br />
a competitividade é<br />
imensuravelmente superior,<br />
sendo esse facto ainda<br />
agravado pelo facto de,<br />
mesmo no Campeonato<br />
Nacional de Ultra, serem<br />
muito poucas, ou mesmo<br />
inexistentes, as provas onde<br />
estão presentes todos os<br />
melhores atletas nacionais.<br />
Como analisas o pelotão<br />
do Trail? Há grandes<br />
diferenças entre os países<br />
ou, de certo modo, há um<br />
equilíbrio aceitável para<br />
o desenvolvimento da<br />
modalidade?<br />
Considero que ainda é muito<br />
prematuro poder comparar o<br />
pelotão do Trail nacional com<br />
o de outros países com muito<br />
maior cultura de floresta<br />
como a Espanha, França<br />
ou Itália. No entanto, face a<br />
um panorama mais global,<br />
considero que estamos<br />
no excelente caminho. O<br />
Trail nacional tem tido um<br />
grande desenvolvimento<br />
nos últimos anos e isso<br />
tem sido fantástico, mas<br />
penso que ainda é escassa<br />
a cultura desportiva em<br />
Portugal e isso é por demais<br />
evidente quando, no dia-a-dia,<br />
perdem-se imensas energias<br />
a identificar coisas erradas,<br />
arranjar culpados e competir<br />
por objetivos individuais,<br />
muitos deles egoístas, em vez<br />
de debatermos as coisas de<br />
forma saudável e procurarmos<br />
soluções para melhorar a<br />
modalidade como um todo.<br />
Por vezes temos de abdicar do<br />
nosso bem-estar pessoal por<br />
um bem maior e isso poucas<br />
pessoas o fazem.<br />
Como foi correr ao lado dos<br />
principais nomes do Trail?<br />
Teve algum nome que fez<br />
questão de cumprimentar ou<br />
pedir um autógrafo?<br />
Foi sem dúvida uma<br />
extraordinária experiência, da<br />
qual retirei muitos dados para<br />
o futuro. Devido a minha curta<br />
história no Trail, confesso<br />
que ainda não tenho presente<br />
todos os nomes das maiores<br />
estrelas. As minhas principais<br />
referências ainda são atletas<br />
da Orientação, alguns deles<br />
também com algum peso<br />
no Trail, como o suíço Marc<br />
Lauenstein (recentemente<br />
terceiro em Zegama-Aizkorri).
ENTREVISTA CORREDORES ANÓNIMOS 19<br />
« Estava a dizer a mim próprio<br />
que a participação teria de ficar<br />
por ali mas, quando começo a chegar<br />
ao abastecimento, vi a minha família,<br />
namorada e alguns amigos. Foi então<br />
que pensei: “Eles vieram todos de<br />
propósito a Itália para me ver e nem<br />
sequer vou terminar a prova?” »<br />
Talvez por isso não tenha<br />
sentido demasiado o peso da<br />
concorrência…<br />
E em relação a prestação<br />
da seleção masculina e<br />
feminina? Como analisa a<br />
performance da seleção<br />
nacional?<br />
Considero que estivemos<br />
todos de parabéns e estou<br />
muito orgulhoso de pertencer<br />
a este grupo. Como é óbvio,<br />
quase todos queríamos<br />
ter conseguido um pouco<br />
melhor. Isso é muito bom,<br />
pois demonstra uma grande<br />
ambição. Nos masculinos<br />
fomos sextos e falhámos o<br />
objetivo de pelo menos igualar<br />
o quinto lugar do ano passado;<br />
no feminino esteve-se ainda<br />
um pouco mais longe, mas<br />
penso que foi notório o<br />
aumento da competitividade<br />
face ao ano anterior, não só<br />
por ser o segundo ano do<br />
Mundial, mas principalmente<br />
por ser uma distância mais<br />
curta, o que faz com que<br />
apareçam alguns atletas de<br />
distâncias menores a tentar a<br />
sua sorte.<br />
Da comitiva portuguesa,<br />
teve algum(a) atleta que o<br />
surpreendeu?<br />
Para mim ninguém me<br />
surpreendeu, pois já<br />
esperava uma seleção muito<br />
equilibrada e competitiva.<br />
Todavia, tenho de realçar a<br />
atitude no capitão da equipa,<br />
o Armando Teixeira, um atleta<br />
consagrado do Trail mundial<br />
que, face a um problema<br />
que lhe prejudicou a sua<br />
preparação para o Mundial,<br />
não teve qualquer problema<br />
em abdicar do seu resultado<br />
individual em prol da equipa. A<br />
ele, o devido reconhecimento<br />
e obrigado.<br />
E como analisa a preparação<br />
da seleção nacional? Foi a<br />
ideal, o que faltou?<br />
Considero que a foi na<br />
preparação da equipa que<br />
esteve a chave para o sucesso<br />
no Mundial, não só em<br />
termos de resultados, mas<br />
também de espírito de grupo.<br />
A ATRP foi verdadeiramente<br />
incansável em proporcionar<br />
a melhor preparação a todos,<br />
conseguindo inclusive realizar<br />
um estágio no mesmo local<br />
onde decorreu o Mundial. Este<br />
estágio foi verdadeiramente<br />
importante para fazermos o<br />
reconhecimento do percurso
20<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
ENTREVISTA<br />
e prepararmos toda a estratégia de prova. De<br />
realçar que fomos umas das muito poucas<br />
seleções a ir fazer este reconhecimento<br />
enquanto equipa completa. Existiram muitos<br />
mais atletas a fazer o mesmo, mas a maioria<br />
título individual.<br />
Quais os seus planos futuros para o Trail?<br />
Neste momento, e após o Mundial, vou<br />
fazer uma pausa competitiva e focar-me<br />
inteiramente na vida académica, pois<br />
terei a Prova Nacional de Seriação para a<br />
especialidade médica a 16 de novembro<br />
deste ano. No entanto, já penso no próximo<br />
ano e quero consolidar-me enquanto atleta<br />
de Ultra Trail. Espero também realizar uma ou<br />
duas provas internacionais na distância da<br />
Maratona, mas para tal terei de reunir apoios<br />
que mo permitam.<br />
Ao longo do mês<br />
de <strong>julho</strong>, no site<br />
corredoresanonimos.pt,<br />
publicaremos a opinião de<br />
Tiago Cantante Romão sobre<br />
o Trail nacional e 10 conselhos<br />
para quem sonha correr<br />
o Trail Sacred Forests, uma das<br />
provas mais emblemáticas<br />
da modalidade na Europa
ENTREVISTA CORREDORES ANÓNIMOS 21
22<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
RECORDAÇÃO<br />
A MAGIA<br />
DA FLORESTA<br />
SAGRADA<br />
Fotos: Miro Cerqueira / Prozis
RECORDAÇÃO CORREDORES ANÓNIMOS 23
24<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
RECORDAÇÃO
RECORDAÇÃO CORREDORES ANÓNIMOS 25
26<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
RECORDAÇÃO
RECORDAÇÃO CORREDORES ANÓNIMOS 27
28<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
ENQUANTO CORRO<br />
Correr ou<br />
não correr?<br />
Eis a questão!<br />
Tiago Marto<br />
Fisioterapeuta e ex-atleta de Alta Competição de Atletismo<br />
São frequentes as situações em que sou questionado, em âmbito<br />
profissional, acerca do repouso que um atleta deve ter.<br />
Muitas das vezes as dúvidas prendem-se com questões simples,<br />
como se um atleta deve descansar a seguir a uma competição, se<br />
deve repousar quando sente o corpo fatigado ou se deve insistir no<br />
treino, o que deve fazer após um treino mais intenso, etc. Todas estas<br />
dúvidas são válidas e têm uma razão de ser, já que muitas das vezes<br />
melhoramos a componente do treino, o equipamento desportivo e a<br />
suplementação. No entanto, esquecemos o descanso!<br />
O repouso é parte fundamental do treino,<br />
sem ele não há espaço para a evolução. Não<br />
podemos esquecer que, afinal de contas, o<br />
treino existe para nos dar a possibilidade de<br />
evoluirmos e nos tornarmos mais resistentes,<br />
mais rápidos e resilientes. Muitas das vezes<br />
incorremos no erro de não descansarmos o<br />
suficiente e também não o fazemos da forma<br />
mais correta. Expressões como "No Pain,<br />
No Gain" fazem parte do nosso quotidiano e<br />
fazem-nos acreditar que o descanso é para os<br />
fracos e que precisamos sempre de "carregar"<br />
um pouco mais. Eu acredito que os melhores<br />
atletas conseguem encontrar o equilíbrio<br />
ótimo entre a carga de treino, a competição e<br />
a recuperação. E isto, muitas vezes, significa<br />
que têm semanas inteiras em que o treino<br />
específico tem muito pouca expressão.<br />
Há dias tive a oportunidade de perguntar ao<br />
treinador de umas das melhores maratonistas<br />
portuguesas da atualidade qual o período de<br />
repouso que ele aconselhava à sua atleta após<br />
uma Maratona mais importante. Ele revelou<br />
que esse era um ponto que considerava<br />
sagrado, pois só assim poderia esperar uma<br />
melhoria nos resultados da atleta, bem como<br />
tinha a certeza de que atuava também na<br />
prevenção de lesões. Revelou-me, então,<br />
que a sua atleta estava cerca de um mês sem<br />
fazer treino específico após a Maratona mais<br />
importante, dando lugar a treino livre (andar<br />
de bicicleta, nadar, corrida esporádica).<br />
Mesmo o treinador de Usain Bolt, Glenn<br />
Mills, revelou que um dos segredos do seu
ENQUANTO CORRO CORREDORES ANÓNIMOS 29<br />
- antes de pensarmos em meios<br />
complementares de recuperação,<br />
devemos analisar primeiro o nosso<br />
sono e perceber se estamos a<br />
dormir em quantidade e qualidade<br />
adequadas ao nosso esforço.<br />
Muitas das vezes, as queixas<br />
físicas derivam de processos de<br />
sono ineficazes<br />
treino é dar bastante importância<br />
a recuperação, o que significa dias<br />
dedicados apenas ao descanso no<br />
espaço semanal.<br />
Dessa forma, e tentado responder às<br />
perguntas mais específicas…<br />
- o descanso é das componentes<br />
mais importantes do processo<br />
de treino (desde que se treine<br />
corretamente)<br />
- mantendo o respeito pelo plano<br />
de treino, o mesmo não se deve<br />
manter estanque. Se houver<br />
necessidade de descanso, por<br />
vezes o melhor treino é o repouso<br />
- após competição, a recuperação<br />
é sempre mais eficaz se tiver uma<br />
componente ativa (exercício de<br />
intensidade e duração reduzida)<br />
- as dores musculares que surgem<br />
após um treino (chamadas<br />
DOMS) são normais e fazem<br />
parte do processo de adaptação<br />
do organismo ao esforço. Nestas<br />
situações, a recuperação deve<br />
ser ainda mais ativa e não deve<br />
envolver meios complementares<br />
como o gelo ou anti-inflamatórios,<br />
pois comprometem o processo<br />
adaptativo.<br />
- devemos sempre adaptar<br />
os processos de recuperação<br />
(massagem, banhos de gelo,<br />
contraste, pressoterapia,<br />
alongamento) ao treino que<br />
realizamos e não fazer de forma<br />
aleatória.<br />
Há muitas mais questões que<br />
frequentemente são colocadas e, da<br />
mesma forma que o plano de treino<br />
deve ser individualizado, o processo<br />
de recuperação também deve ser<br />
desenhado à medida do esforço e<br />
características de cada atleta.<br />
Dessa forma, com<br />
o treino e recuperação<br />
adequados, os<br />
resultados irão melhorar<br />
exponencialmente e, ao<br />
mesmo tempo, protegeremos<br />
o nosso organismo de<br />
possíveis lesões!
30<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA<br />
EU,<br />
A MINHA BICICLETA<br />
E A ISLÂNDIA<br />
EM 1000 KM<br />
Falta pouco tempo para<br />
Rodrigo Machado começar<br />
literalmente um sonho<br />
que já tem cinco anos.<br />
O projeto «1000 km na<br />
Islândia de bicicleta»<br />
começa em <strong>julho</strong> e o site<br />
corredoresanonimos.pt vai<br />
acompanhar esta incrível<br />
aventura. Neste texto,<br />
o protagonista da viagem<br />
solitária responde a uma<br />
questão que todos lhe<br />
colocam: «Sozinho? Mas<br />
porque vais sozinho?»<br />
Texto: Rodrigo Machado
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA CORREDORES ANÓNIMOS 31<br />
Sozinho? Mas porque vais sozinho?<br />
Esta a questão mais frequente desde<br />
que fui tornando público o meu projeto.<br />
Na verdade, a ideia de pedalar pela<br />
Islândia surge logo após ter desistido<br />
de fazer uma travessia, também de<br />
bicicleta, de Lassa, capital do Tibete,<br />
até Kathmandu, capital do Nepal,<br />
devido ao Governo chinês impor um<br />
acompanhamento permanente de um<br />
guia local acompanhando-me de jeep,<br />
o que considerei que desvirtuava a<br />
minha aventura.<br />
E, ao ir pensando em todos os fatores,<br />
no porquê, na viabilidade, etc., sempre<br />
me vinha à ideia de ir sozinho. A certa<br />
altura não tinha dúvidas
32<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA<br />
de que o sentido que eu procurava<br />
estava diretamente relacionado com<br />
o facto de ir em modo solitário. Estava<br />
decidido: quando fosse seria só eu e a<br />
minha bicicleta!<br />
Já realizei viagens e aventuras<br />
sozinho, tanto de bicicleta como de<br />
outras formas, e em situação alguma<br />
senti solidão. Desta forma, descobri<br />
que a minha predisposição para<br />
socializar e interagir com a população<br />
local e outros viajantes é muito maior.<br />
Li algures uma frase mais ou menos<br />
assim: «Se viajares sozinho vais<br />
conhecer muitas pessoas; se viajares<br />
com alguém vais conhecer algumas<br />
pessoas; se viajares com vários vão se<br />
conhecer bem uns aos outros.»
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA CORREDORES ANÓNIMOS 33<br />
Tenho por gosto e creio que<br />
sempre fez parte de mim<br />
efetuar viagens em que os<br />
fatores Desporto, Natureza<br />
e Aventura estivessem<br />
sempre presentes. Já<br />
atravessei cordilheiras a<br />
pé, subi montanhas, desci<br />
rios em kayak e de bicicleta;<br />
conheci locais lindos em<br />
Portugal; pedalei pela Europa<br />
Central numa viagem que se<br />
iniciou em Munique, passou<br />
por Viena, por Bratislava e<br />
terminou em Budapeste,<br />
800km depois sempre,<br />
acompanhando o rio Danúbio;<br />
por Espanha também por<br />
lá andei, tendo ficado na<br />
memória para sempre os<br />
850 km do Caminho Francês<br />
de Santiago; em família<br />
percorremos de bicicleta o<br />
norte da Holanda e ilhas com<br />
um atrelado próprio, levando<br />
o nosso filho de 17 meses<br />
na altura; e, no ano passado,<br />
agora já com 4 anos, fizemos<br />
também questão de o levar<br />
numa viagem de bicicleta<br />
em que saímos de Berlim e<br />
só parámos de pedalar em<br />
Copenhaga, mais de 700 km<br />
depois…<br />
A Islândia, como destino<br />
para uma viagem de mais<br />
de 1000 km em solitário e<br />
total autonomia, percorrendo<br />
zonas remotas e desérticas,<br />
surge precisamente por<br />
todo o esplendor que esta<br />
Ilha/país nos oferece. As<br />
paisagens vulcânicas,<br />
glaciares, os cursos de águas<br />
e suas cascatas, a fauna,<br />
a flora e a baixa densidade<br />
populacional com o mar<br />
sempre ali faz com que seja<br />
considerado por muitos<br />
viajantes um dos países<br />
mais bonitos do mundo. Com<br />
uma meteorologia bastante<br />
agreste, com predominância<br />
para baixas temperaturas<br />
e ventos fortes, faz com<br />
que a época anualmente<br />
considerada possível para<br />
este tipo de aventura seja<br />
muito curta. Na teoria, apenas<br />
entre meio de Julho e final de<br />
Agosto.<br />
Assim, decidi partir<br />
precisamente nesta altura<br />
para apanhar o início do<br />
Verão, de forma a aumentar<br />
substancialmente as chances<br />
de sucesso da rota que<br />
desenhei e pretendo efetuar. O<br />
plano é partir precisamente da<br />
capital, Reykjavik, em direção<br />
ao Norte da ilha, até atingir o<br />
mar, seguindo depois a orla<br />
marítima até Husavic, cidade<br />
piscatória onde, no passado,<br />
partiram os barcos de caça<br />
à baleia e onde hoje em dia é<br />
possível<br />
«Se viajares<br />
sozinho vais<br />
conhecer<br />
muitas pessoas;<br />
se viajares<br />
com alguém<br />
vais conhecer<br />
algumas<br />
pessoas; se<br />
viajares com<br />
vários vão se<br />
conhecer bem<br />
uns aos outros.»<br />
observar estes cetáceos.<br />
Daqui rumo ao Sul, efetuando<br />
uma travessia precisamente<br />
pelo centro da ilha, por<br />
uma rota praticamente<br />
desértica apelidada de<br />
Sprengisandur Route e onde<br />
o apoio e abastecimentos<br />
serão inexistentes, o que<br />
me obrigará a iniciar com<br />
mantimentos para num<br />
mínimo de cinco dias. Nesta<br />
rota, a travessia a vau de<br />
cursos de água será uma<br />
constante e um fator a ter em<br />
muita atenção. Atingido o Sul<br />
da ilha, rumarei em direção<br />
ao ponto de início, onde conto<br />
chegar entre três a quatro<br />
semanas.
34<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA CORREDORES ANÓNIMOS 35<br />
«Sendo também<br />
um corredor<br />
de Trail, com<br />
participação regular<br />
nas provas mais<br />
emblemáticas do<br />
país e obrigando-me<br />
assim a manter<br />
uma preparação<br />
constante e um nível<br />
físico adequado,<br />
conto estar apto<br />
fisicamente para<br />
enfrentar as duras<br />
e longas subidas<br />
que por vezes serei<br />
brindado nas etapas<br />
e, principalmente,<br />
poder reagir e<br />
enfrentar os tão<br />
famosos ventos do<br />
Atlântico Norte, que<br />
poderão mesmo<br />
obrigar a alterações<br />
ao plano inicial.»<br />
Sendo também um corredor de Trail, com participação<br />
regular nas provas mais emblemáticas do país e<br />
obrigando-me assim a manter uma preparação<br />
constante e um nível físico adequado, conto estar<br />
apto fisicamente para enfrentar as duras e longas<br />
subidas que por vezes serei brindado nas etapas<br />
e, principalmente, poder reagir e enfrentar os tão<br />
famosos ventos do Atlântico Norte, que poderão<br />
mesmo obrigar a alterações ao plano inicial.<br />
Este sonho já leva mais de 5 anos e de sonho<br />
transformei em projeto e de projeto em realidade.<br />
Existiu sempre fatores e questões que muitas vezes<br />
fizeram-me vacilar, mesmo recuar na decisão, fatores<br />
económicos, profissionais, familiares e logísticos.<br />
Mas a vida já me mostrou diversas vezes que, se<br />
estamos à espera de ter as condições ideias para<br />
realizar algo, o mais certo é mesmo nunca fazermos<br />
nada na vida. Não tenho todas as condições que<br />
idealizei e queria, mas a vontade de partir hoje é<br />
imensa, mais forte que tudo e felizmente venceu<br />
todos os obstáculos até aqui.<br />
A vida é uma intensa busca e muitas vezes nós não<br />
sabemos bem aquilo que buscamos. No entanto,<br />
nunca deixamos de acreditar e, acreditando, tudo nos<br />
é e sempre será possível.
36<br />
CORREDORES ANÓNIMOS<br />
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA<br />
O ADORADO ZÉ<br />
NINGUÉM DE GEORGE<br />
E WEEDON GROSSMITH<br />
Considerada uma das<br />
principais obras do<br />
género humorístico<br />
em inglês, a Tintada-China<br />
editou<br />
recentemente «Diário<br />
de um Zé Ninguém»,<br />
de George e Weedon<br />
Grossmith, o novo<br />
título da coleção de<br />
literatura de humor de<br />
Ricardo Araújo Pereira.<br />
Prepare-se para sorrir<br />
neste Verão.<br />
Texto: Pedro Justino Alves
HÁ VIDA ALÉM DA CORRIDA CORREDORES ANÓNIMOS 37<br />
Antes de tudo, é de referir que<br />
o livro poderá causar alguma<br />
frustração em leitores que<br />
procuram encontrar uma obra<br />
de “humor brejeiro”, já que uma<br />
leitura menos atenta terá como<br />
consequência a impossibilidade<br />
de captar o fino e quase<br />
impercetível humor de G. & W.<br />
Grossmith. E é precisamente<br />
esse “pormenor” que transforma<br />
esta obra numa das referências<br />
do género.<br />
Na realidade, estamos perante<br />
uma espécie de crónica social,<br />
com os autores a aproveitarem o<br />
personagem Sr. Charles Pooter,<br />
o Zé Ninguém do título, para<br />
apresentarem uma sátira voraz<br />
contra a classe média suburbana<br />
inglesa de finais do século<br />
XIX. No fundo, o que deseja o<br />
protagonista é apenas paz e<br />
desfrutar da sua nova casa, nos<br />
subúrbios de Londres, ao lado da<br />
sua mulher, Carry. Mas a verdade<br />
é que acaba por ser importunado<br />
por vorazes comerciantes,<br />
funcionários administrativos que<br />
ficam aquém do esperado e pelos<br />
inconvenientes “amigos”, mas<br />
também pelo Lupin, que regressa<br />
ao lar após ser despedido (e leva<br />
consigo as suas amizades mais<br />
do que questionáveis…). Ou seja,<br />
definitivamente a vida não está<br />
fácil para Pooter, como podemos<br />
verificar através do seu diário…<br />
«Diário de um Zé Ninguém»<br />
apresenta assim uma deliciosa<br />
comédia de costumes na qual<br />
a crítica é colocada de forma<br />
elegante e inteligente. As<br />
maneiras e os hábitos vitorianos<br />
são olhados aos milímetros pelos<br />
autores, que fazem questão de<br />
oferecerem um leque memorável<br />
de personagens bastante<br />
díspares entre si, o que aumenta<br />
a riqueza do livro.<br />
A ironia ao longo das páginas<br />
é constante, com George e<br />
Weedon Grossmith a controlarem<br />
com grande segurança a história,<br />
preenchida de pequenas histórias,<br />
uma mais rica do que a outra, fruto<br />
das mais absurdas situações<br />
criadas pelos autores. Deste<br />
modo, «Diário de um Zé Ninguém»<br />
consegue a proeza de manter o<br />
frenético ritmo ao longo das cerca<br />
de 200 páginas, com a ironia a<br />
ser algo constante em todos os<br />
momentos. Os autores controlam<br />
por completo a intensidade do<br />
texto, sendo a escolha do “diário”<br />
para relatar a história uma decisão<br />
mais do que acertada. A verdade<br />
é que dificilmente teríamos a<br />
riqueza que temos se a opção<br />
escolhida fosse, por exemplo,<br />
um texto narrativo.<br />
Por último, de referir que<br />
George Grossmith (Londres,<br />
1847 – Folkstone, 1912) foi um<br />
comediante inglês, escritor,<br />
compositor, ator e músico. Já<br />
o seu irmão, Weedon (Londres,<br />
1854 – 1919), foi escritor, pintor,<br />
ator e dramaturgo. São aliás<br />
das suas mãos que saíram<br />
as ilustrações que podemos<br />
encontrar no interior do livro.<br />
No entanto, pelo menos neste<br />
caso, as imagens não valem<br />
as palavras…
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