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Cristalizações – Cesário Verde<br />
Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,<br />
Vibra uma imensa claridade crua.<br />
De cócoras, em linha os calceteiros,<br />
Com lentidão, terrosos e grosseiros,<br />
Calçam de lado a lado a longa rua.<br />
Como as elevações secaram do relento,<br />
E o descoberto Sol abafa e cria!<br />
A frialdade exige o movimento;<br />
E as poças de água, como um chão vidrento,<br />
Reflectem a molhada casaria.<br />
Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,<br />
Disseminadas, gritam as peixeiras;<br />
Luzem, aquecem na manhã,<br />
Uns barracões de gente pobrezita<br />
E uns quintalórios velhos, com parreiras.<br />
Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!<br />
Tomam por outra parte os viandantes;<br />
E o ferro e a pedra - que união sonora! -<br />
Retinem alto pelo espaço fora,<br />
Com choques rijos, ásperos, cantantes.<br />
Ao percorrer o espaço descrito, o sujeito procura captar<br />
as impressões dos diversos aspetos das paisagens<br />
naturais e humanas que o rodeiam (poetização do real),<br />
dando largas a uma pulsão descritiva que joga<br />
magistralmente com recortes de luz e de sombra, de<br />
claridade e de penumbra (impressionismo literário), de<br />
imagens de objetos e de figuras humanas que se movem<br />
como se estivéssemos perante quadros vivos.<br />
Impressionismo – importância da luz/sombra<br />
Diminutivo – valor pejorativo<br />
Tripla adjetivação e sinestesia – reforça o facto dos<br />
calceteiros partirem as pedras com o martelo com muita<br />
força e desse trabalho provém um som desagradável, mas<br />
simultaneamente ritmado.<br />
Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros , baços,<br />
Cuja coluna nunca se endireita,<br />
Partem penedos. Cruzam-se estilhaços.<br />
Pesam enormemente os grossos maços,<br />
Com que outros batem a calçada feita.<br />
A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!<br />
Que espessos forros! Numa das regueiras<br />
Acamam-se as japonas, os coletes;<br />
E eles descalçam com os picaretes<br />
Que ferem lume sobre pederneiras.<br />
E nesse rude mês, que não consente flores,<br />
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,<br />
As árvores despidas. Sóbrias cores!<br />
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores<br />
Atiram terra com largas pás.<br />
Caracterização dos calceteiros –<br />
“rapagões” grosseiros, baços,<br />
realizam um trabalho muito duro,<br />
mal encarados, sujos, cospem nas<br />
mãos, ossudos, másculos, de<br />
vestuário simples e rude, sempre<br />
com a coluna vergada, comparados<br />
a “bestas” de “carga”.<br />
A cidade forçou-os a uma vida dura<br />
e privou-os do contacto com a<br />
natureza. Também lhes deformou os<br />
corpos e os condenou à pobreza.<br />
Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -<br />
Carros de mão, que chiam carregados,<br />
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:<br />
Madeiras, águas, multidões, telhados!<br />
Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;<br />
Em arco, sem as nuvens flutuantes,<br />
O céu renova a tinta corredia;<br />
E os charcos brilham tanto, que eu diria<br />
Ter ante mim lagoas de brilhantes!<br />
Contraste entre o povo e a classe<br />
mais favorecida – os primeiros têm<br />
uma vida dura e os segundos vivem<br />
contentes e felizes.<br />
Impressionismo – importância da luz/sombra<br />
E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,<br />
Eu tudo encontro alegremente exacto.<br />
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.<br />
E tangem-me, excitados, sacudidos,<br />
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!<br />
A importância dos sentidos em Cesário Verde<br />
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem<br />
De tão lavada e igual temperatura!<br />
Os ares, o caminho, a luz reagem;<br />
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;<br />
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.<br />
Mal-encarado e negro, um pára enquanto eu passo,<br />
Dois assobiam, altas marretas<br />
Possantes, grossas, temperadas de aço;<br />
E um gordo, o mestre, com um ar ralasso<br />
E manso, tira o nível das valetas.<br />
Impressão do eu-poético - Revela<br />
simpatia pelos trabalhadores<br />
enaltecendo o seu esforço físico.<br />
Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!<br />
Que vida tão custosa! Que diabo!<br />
E os cavadores descansam as enxadas,<br />
E cospem nas calosas mãos gretadas,<br />
Para que não lhes escorregue o cabo.<br />
Povo! No pano cru rasgado das camisas<br />
Uma bandeira penso que transluz!<br />
Com ela sofres, bebes, agonizas;<br />
Listrões de vinho lançam-lhe divisas,<br />
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!<br />
De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,<br />
Surge um perfil direito que se aguça;<br />
E ar matinal de quem saiu da toca,<br />
Uma figura fina, desemboca,<br />
Toda abafada num casaco à russa.<br />
Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento<br />
E a quem, à noite, na plateia, atraio<br />
Os olhos lisos como polimento!<br />
Transfiguração do real – o sofrimento,<br />
sacrifício do povo trabalhador.<br />
Transfiguração do real – os calceteiros vistos<br />
como animais.<br />
Caracterização da “Actrizita” – figura fina, perfil<br />
perfeito, rosto pequeno, olhar frio, bonita, vestida<br />
com casaco quente de peles, com botas de salto<br />
alto, pretensiosa, receosa e impaciente.<br />
Reações que ela provoca:<br />
Nos calceteiros – admiração masculina, pois eles são<br />
homens grosseiros, trabalhadores do povo e ela é uma<br />
mulher bonita;<br />
No eu-poético – espanto, pois já a conhecia do teatro que<br />
costumava frequentar e não esperava que ela habitasse<br />
nos subúrbios. Ao mesmo tempo revela sentir um certo<br />
desprezo, porquanto considera que a mulher tem uma<br />
atitude de superioridade em relação aos calceteiros. O<br />
desdém com que é caracterizada revela o artificialismo e<br />
novo-riquismo daqueles que querem ascender<br />
socialmente. Assim, valoriza o trabalho útil dos calceteiros,<br />
em detrimento do da “actrizita”.
Com seu rostinho estreito, friorento,<br />
Caminha agora para o seu ensaio.<br />
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados<br />
Como lajões. Os bons trabalhadores!<br />
Os filhos das lezírias, dos montados:<br />
Os das planícies, altos, aprumados;<br />
Os das montanhas, baixos, trepadores!<br />
Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,<br />
Furtiva a tiritar em suas peles,<br />
Espanta-me a actrizita que hoje pinto,<br />
Neste Dezembro enérgico, sucinto,<br />
E nestes sítios suburbanos, reles!<br />
Adjetivação antitética – reforça a impressão do<br />
eu-poético em relação à atriz que, apesar de<br />
distinta, se revela “hostil” na sua postura.<br />
Hipálage – reforça a impressão do eu-poético em<br />
relação à atriz que se revela “reles”.<br />
Como animais comuns, que uma picada esquente,<br />
Eles, bovinos, másculos, ossudos,<br />
Encaram-na, sanguínea, brutamente:<br />
E ela vacila, hesita, impaciente<br />
Sobre as botinas de tacões agudos.<br />
Porém, desempenhando o seu papel na peça,<br />
Sem que inda o público a passagem abra,<br />
O demonico arrisca-se, atravessa<br />
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,<br />
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!<br />
Atriz<br />
cidade<br />
fragilidade<br />
Oposição<br />
Calceteiros<br />
campo<br />
força bruta,<br />
agressividade<br />
Um dos temas deste poema é a vida na cidade, pois este centra-se nas condições<br />
de trabalho e no modo da existência dos desfavorecidos que vivem no espaço<br />
urbano, como os calceteiros e as peixeiras, que padecem e se sacrificam pela<br />
sobrevivência.<br />
Outro tema é a injustiça social (ou desigualdades sociais), visto que se<br />
representam no poema as dificuldades dos mais necessitados em contraste com a<br />
abundância e o conforto dos mais favorecidos (como é o caso da atriz).