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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>207</strong> Junho de 2015<br />
Conversa no Céu
Fruto da<br />
santidade da Igreja<br />
N<br />
a história da Inglaterra, vemos<br />
os grandes processos de atonia, de<br />
tibieza, de indiferentismo que preparam<br />
depois toda a massa católica para as maiores<br />
defecções que deram no protestantismo.<br />
Mas, ao lado disso, nos deparamos com<br />
uma coisa bonita: a permanência da nota da<br />
santidade da Igreja. Porque, apesar de todas<br />
essas tristezas, é na Igreja que se vão encontrar<br />
os mártires, os homens de um caráter<br />
admirável, que preferem tudo a ceder diante<br />
do adversário, e que expõem tudo quanto<br />
têm, e até a própria vida, para se manterem<br />
fiéis à verdadeira tradição e à continuidade<br />
eclesiástica.<br />
Quer dizer, mesmo quando a putrefação<br />
invade os meios católicos, a santidade da<br />
Igreja produz frutos excepcionais e tão<br />
maravilhosos como fora da Igreja não se<br />
encontram.<br />
Assim, ao mesmo tempo em que a Igreja é<br />
traída, renegada, vemo-la deitar uns lampejos<br />
memoráveis que provam a divindade dela. Nisto<br />
está uma espécie de afirmação contínua da<br />
assistência do Divino Espírito Santo na Igreja.<br />
Esta me parece ser a reflexão mais oportuna<br />
que podemos fazer sobre o martírio de São<br />
João Fisher.<br />
(Extraído de conferência de 22/6/1965)<br />
São João Fisher<br />
Igreja de Santa Maria,<br />
Oxfordshire, Inglaterra<br />
Dario Iallorenzi<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>207</strong> Junho de 2015<br />
Ano XVIII - Nº <strong>207</strong> Junho de 2015<br />
Conversa no Céu<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
durante uma conversa<br />
em sua residência.<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 130,00<br />
Colaborador .......... R$ 180,00<br />
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Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Editorial<br />
4 A arte de conversar e o<br />
cântico dos Bem-aventurados<br />
Dona Lucilia<br />
6 Dor e seriedade<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
8 O Divino Interlocutor<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
16 A organicidade do Brasil<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
22 A conversa e a cruz<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
26 O tesouro da vida<br />
Calendário dos Santos<br />
30 Santos de Junho<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Roma sparita<br />
Última página<br />
36 Superexcelente misericórdia<br />
3
Editorial<br />
A arte de conversar<br />
e o cântico dos<br />
Bem-aventurados<br />
Como será a vida no Céu? Que fazem eternamente os Anjos e os Bem-aventurados? Existirá<br />
entre eles alguma forma de relacionamento, ou a visão de Deus os absorve por completo? São<br />
essas algumas perguntas que costumam surgir quando se medita sobre as maravilhas do Paraíso<br />
Celeste.<br />
A este respeito, ensina-nos a Doutrina Católica que cada um dos Santos e dos espíritos angélicos,<br />
enquanto vê a Deus face a face, comunica aos demais aquele aspecto do Altíssimo que lhe é dado<br />
contemplar. Esta comunicação mútua constitui um como que cântico das excelências divinas, um sublime<br />
ato de louvor e adoração.<br />
Para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> este cântico celestial bem poderia ser comparado, nesta Terra, à boa conversa, na<br />
qual os homens não só se relacionam, mas trocam ideias, comentários, percepções, pontos de vista e<br />
assim, enriquecem o espírito. Por isso, a conversa tem grande importância para o bem viver.<br />
Entretanto, cada vez mais nota-se na humanidade a extinção da arte de conversar. Hoje ninguém<br />
se assombra ao encontrar uma família cujos membros não convivem entre si. Caso se reúnam, para<br />
uma festa de Natal, por exemplo, não raro é que as pessoas prefiram estar à frente da televisão, apenas<br />
trocando uma palavra de vez em quando. Os mais jovens, hipnotizados pelo mundo virtual, nem<br />
sequer piscam os olhos diante do computador ou dos cada vez mais multifuncionais aparelhos de celular...<br />
E o patriarca, o avô, que deveria atrair para si a atenção de todos, contando interessantes histórias<br />
de seu passado, egoisticamente mergulha no jornal, pouco se importando com o que se passa<br />
ao seu redor. Analisando essa situação, tão diferente do ambiente de sua infância, comentava certa<br />
vez <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />
“Houve um hiato, uma queda, um vácuo entre a geração dos meus avós e a minha. Aquela ainda<br />
conversava, a dos meus pais se achava numa transição e a dos seus filhos já não sabia fazê-lo. Com<br />
muito pesar eu notava essa decadência, pois a conversa estimula a vontade de pensar e comunicar.<br />
Ela é um intercâmbio mental respirado, tonificante e verdadeiramente humano, um meio insubstituível<br />
para viver, pensar.” 1<br />
A conversa “não é apenas uma troca de informações nem de impressões, mas também de cognições<br />
mútuas dos interlocutores, cujas personalidades se manifestam pelo olhar, tom de voz, gestos,<br />
etc., [...] é um intercâmbio de duas personalidades que falam sobre matéria atraente e que interessa<br />
a ambas. Será ainda mais autêntica se o meu interlocutor puser certa nota pessoal em suas palavras,<br />
fazendo com que eu goste de ouvi-lo. Isso é um elemento fundamental da conversa.” 2 Numa conver-<br />
4
sa as mentalidades se visitam, e entram em harmoniosa consonância, evoluindo pouco a pouco, como<br />
uma melodia.<br />
Daí a analogia que pode ter uma conversa nesta Terra com o cântico dos Bem-aventurados no<br />
Reino dos Céus.<br />
A arte de conversar, muito mais do que um ato social ou uma necessidade da natureza humana,<br />
exige também certo discernimento dos espíritos e uma aguda percepção do ambiente e do interlocutor,<br />
a fim de tornar-se agradável àquele com quem se fala. “Na procura desse objetivo, é preciso ter<br />
em vista que a arte de conversar supõe uma primeira disposição de espírito, sem a qual ela não existe:<br />
devemos nos interessar pelos outros para saber conversar.” 3<br />
“Observando essa atitude cumpriremos na conversa a síntese de todos os Mandamentos: amar a Deus<br />
sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, por amor a Deus” 4 , deixando o campo meramente<br />
terreno e ingressando no celestial. Por isso, para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a conversa tem seu ponto de convergência no<br />
Sagrado Coração de Jesus, e as mais frutuosas conversas são aquelas em que o Divino Interlocutor faz-se<br />
presente 5 . “A boa e verdadeira conversa deve brotar de pensamentos elevados, daquilo que se meditou,<br />
analisou; quem não cogita em assuntos elevados é incapaz de manter uma conversa.” 6<br />
“Quando conversamos animados pelo amor de Deus e do próximo, o convívio é agradável. Do<br />
contrário, o trato será detestável, sem afabilidade, marcado por um cunho revolucionário. Pois imaginemos<br />
uma conversa com determinada pessoa em estado habitual de violar, ao mesmo tempo, todos<br />
os Mandamentos. Ela mata, rouba, calunia, etc. O estar com essa pessoa se torna insuportável,<br />
um pesadelo. Não há o que conversar com ela. Por outro lado, suponhamos um colóquio entre duas<br />
pessoas que se esforçam por cumprir de modo exímio os dez Mandamentos. É um Céu. Sublime<br />
exemplo foi o célebre diálogo de Santo Agostinho com Santa Mônica, na hospedaria de Óstia. Em<br />
suma, a ótima conversa é aquela iluminada pelo Divino Espírito Santo, realizada aos pés da Santíssima<br />
Virgem, em cujo Coração vive Nosso Senhor Jesus Cristo. O resto, no fundo, é fraude, vaidade<br />
e aflição de espírito...” 7<br />
Participando desse estado de espírito, as coisas mais comezinhas, os fatos mais simples do dia a<br />
dia, podem se tornar uma prece nos lábios daqueles que conversam, e que não deixam faltar em sua<br />
conversação o transcendente, o maravilhoso e a presença divina. Mesmo quando estes elementos<br />
estejam presentes de modo implícito — e é o que se passa na maior parte das vezes —, a conversa<br />
dá-nos uma pálida ideia do cântico dos Bem-aventurados no Paraíso.<br />
1) Conferência de 5/5/1979.<br />
2) Idem.<br />
3) Conferência de 14/2/1987.<br />
4) Conferência de 5/5/1979.<br />
5) Ver páginas 13 a 15 neste número.<br />
6) <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 82, p. 25.<br />
7) Conferência de 5/5/1979.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Dor e seriedade<br />
A seriedade causa dor, mas o pior sofrimento é o produzido<br />
pela falta de seriedade, a qual faz com que a pessoa se sinta<br />
vazia, sem ideias, sem ideais, sem vontade.<br />
Osofrimento era algo tão ligado à vida de Dona<br />
Lucilia e a todo o ser dela, que eu em pequeno<br />
às vezes notava que ela estava sofrendo, porém<br />
não sabia por quê. Ficava olhando para ela e contemplando<br />
o sofrimento, mas sem compreender o que a fazia<br />
sofrer.<br />
Pequenos sofrimentos que originavam<br />
um sofrimento global<br />
Mais tarde, quando me tornei um pouco mais velho, fui<br />
compreendendo uma ou outra razão de um ou outro sofrimento.<br />
Depois, compreendi que os sofrimentos dela formavam<br />
um como que edifício. Era um conjunto de razões<br />
que a faziam sofrer e que constituíam um grande sofrimento<br />
global, o qual era o sofrimento geral da vida dela. Então<br />
comecei a ter uma ideia global do que era o sofrimento.<br />
Quando pequeno, eu notava, sobretudo, que mamãe<br />
tinha restos de enfermidade devido àquela operação da<br />
vesícula, que ela fez na Alemanha em 1912, e percebia<br />
que tinha muita dificuldade em caminhar.<br />
Eu notava que, às vezes, meu pai voltava cedo do escritório,<br />
passava por casa, pegava-a e saíam os dois a fazerem<br />
uma volta a pé. Ele, tendo terminado seu serviço durante<br />
o dia, contente com a tarefa, com saúde e vida, um homem<br />
muito feliz. Ela, uma pessoa na qual cada passo era uma<br />
dor, ao mesmo tempo entendia que não poderia irradiar<br />
seu sofrimento sobre o esposo, ser uma causa contínua de<br />
dores para ele. Ela deveria fingir que não estava sofrendo,<br />
ou contar sorrindo: “Hoje, como estão me doendo os<br />
pés!”, e continuar a andar, todos os dias, a extensão recomendada<br />
pelos médicos. Nunca terminar antes porque lhe<br />
estavam doendo muito, porque essa extensão era necessária<br />
para habituar os pés ao esforço adequado.<br />
O sofrimento produz a seriedade<br />
Então, eu percebia que mamãe tinha uma compreensão<br />
muito profunda dessa situação. Ela sentia esse sofrimento,<br />
e sentia na alma a dor que tem esta quando o corpo<br />
sofre dor física. Não é uma dor superficial, mas uma<br />
dor profunda. O corpo padece e a alma com isso sofre.<br />
Quando voltava para casa, ela descansava, e nesse momento<br />
eu entendia tudo quanto sofrera durante o passeio,<br />
porque, sorrindo, mamãe se deitava numa espécie<br />
de divã e ficava com os pés imobilizados até que a dor<br />
passasse. Ela às vezes gemia sorrindo; então se formava<br />
uma roda de pessoas conversando coisas do dia, e por<br />
amabilidade perguntavam-lhe:<br />
— Você está melhor, Lucilia?<br />
— Sim, sim, estou melhorando.<br />
Eu estava vendo que era todo o dia a mesma coisa,<br />
não acabava mais. E compreendia bem que aquilo trazia<br />
para seu espírito um reflexo, que era a seriedade, porque<br />
o sofrimento produz a seriedade.<br />
A pior dor que o homem pode ter não é a causada pela<br />
seriedade, é a produzida pela falta de seriedade. Sentir-se<br />
não sério, vazio, sem ideias, sem ideais, sem querer<br />
nada, sem dizer algo que valha qualquer coisa, isto causa<br />
um sofrimento pior do que o pior dos sofrimentos.<br />
Um dos melhores dons que Deus pode dar a uma<br />
criança é o sofrimento. Não nos queixemos, portanto,<br />
dos sofrimentos que tenhamos tido. Pelo contrário, agradeçamos<br />
a Nossa Senhora e compreendamos que Ela,<br />
assim, nos destinou para a seriedade.<br />
Atitudes das pessoas perante a<br />
Primeira Guerra Mundial<br />
Pouco tempo depois desses primeiros fatos da minha<br />
infância terem se passado, arrebentou a Guerra Mundial.<br />
Entendi mais ou menos o que era essa guerra, mas<br />
tinha a noção da distância enorme que havia entre o<br />
Brasil e a Europa. Portanto, era impossível que a guerra<br />
chegasse até aqui; enquanto a Europa passava por todo<br />
aquele sofrimento, no Brasil havia a boa vida tranquila<br />
e folgada; o Brasil não entraria em guerra, e por isso as<br />
pessoas aqui gostavam de celebrar a tranquilidade bra-<br />
6
sileira. Não só apreciavam isso os brasileiros,<br />
mas os estrangeiros oriundos de países<br />
que estavam na conflagração, mas<br />
que tinham vindo para o Brasil antes<br />
da guerra. Eles tinham pais, irmãos,<br />
filhos, netos, metidos na conflagração.<br />
Isso lhes interessava, mas, sobretudo,<br />
o que eles possuíam era<br />
um bem-estar de pessoalmente<br />
não participar da guerra.<br />
Quando chegava a tardinha,<br />
era frequente verem-se nas ruas<br />
da São Paulinho rodas formadas<br />
na calçada por famílias de imigrantes.<br />
As donas de casa faziam pratos<br />
do tempo em que viviam em seus países<br />
de origem, os homens conversavam,<br />
davam risadas, as crianças brincavam,<br />
todos se preparando para comer e<br />
depois comendo valorosamente, comentando<br />
como era bom eles não estarem na guerra.<br />
Comecei a observar isso e percebi que havia duas atitudes<br />
perante a conflagração: uma, a daqueles a quem<br />
era, sobretudo, agradável estar longe dela; a outra, a dos<br />
que admiravam a guerra, compreendiam sua beleza. Estes<br />
últimos não podiam ir à guerra porque tinham compromissos<br />
aqui no Brasil para manter a família; se eles<br />
fossem poderiam morrer, e a família ficava abandonada.<br />
Mas acompanhavam os jornais com o espírito de lutadores:<br />
seu país avançou ou recuou, os aliados deles avançaram<br />
ou recuaram, os meios de destruição se acentuaram.<br />
Aparece o aeroplano, então o grande perigo são os voos.<br />
Depois surgem os gases asfixiantes, os bombardeios em<br />
massa das grandes cidades. E no fim, coisa talvez pior do<br />
que tudo, as epidemias que contagiavam às vezes um país<br />
inteiro e que constituíam uma tristeza, uma coisa horrível.<br />
Atrozes ferimentos causados<br />
pela conflagração<br />
Eu tive uma governanta austríaca que era solteira e<br />
ofereceu-se para, durante o dia, trabalhar num hospital<br />
de feridos de guerra.<br />
Ela disse que os ferimentos eram atrozes. Por exemplo,<br />
um jovem que tinha ido para combater e voltou<br />
com um ferimento que de si não era mortal, mas ele não<br />
podia falar porque um projétil lhe arrancara o queixo.<br />
Quando ele precisava de alguma coisa, tocava uma sineta<br />
e escrevia, com letra trêmula de alguém que está gravemente<br />
doente, aquilo de que precisava. Às vezes não<br />
conseguia escrever por inteiro, deixava cair sobre a cama<br />
a caneta e o papel, e ficava esperando um<br />
momento em que um pouquinho mais de<br />
força lhe permitisse fazer o pedido.<br />
Minha governanta contava que,<br />
pelo regulamento do hospital, as<br />
enfermeiras tinham horários determinados<br />
para descansar, porque<br />
se elas ficassem doentes também,<br />
o hospital tornava-se inoperante.<br />
As enfermeiras precisavam<br />
ter uma defesa contra a epidemia,<br />
então o hospital mandava-as<br />
repousar. Mas quando minha<br />
governanta estava descansando<br />
e se lembrava de que talvez o<br />
homem sem queixo precisasse de alguma<br />
coisa, ela se levantava às escondidas<br />
e ia verificar se ele queria algo.<br />
Quem censuraria uma atitude como essa?<br />
Só poderia aplaudir. Mas que condições de<br />
vida, que horrores, que monstruosidades!<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Reflexão sobre o magnífico tema da dor<br />
Tudo isso representava o sofrimento, e eu notava que<br />
Dona Lucilia tinha em face desses fatos uma atitude<br />
muito mais pensativa e mais séria do que as outras pessoas.<br />
Estas comentavam, como ela, as notícias que os jornais<br />
publicavam, por vezes com sensacionalismo que impressionava<br />
muito o público, é natural.<br />
Por exemplo, acabava o almoço de domingo, todos se<br />
espalhavam pela sala de jantar e começavam a conversar<br />
sobre esses assuntos. Lembro-me até hoje de que quando<br />
um velho relógio de parede, com um bonito som,<br />
marcava duas horas da tarde, havia sempre um espírito<br />
mais leviano e superficial que dizia com uma voz que dominava<br />
a todos: “Meus caros, agora chegou a vez de nos<br />
divertirmos. Você vai para onde? E você? Vamos fazer os<br />
nossos programas.” Então, uns iam passear nos arredores<br />
da cidade, outros faziam visitas, enfim, essa vida leve<br />
dos domingos.<br />
Eu percebia que Dona Lucilia acompanhava, mas que<br />
o espírito dela ia para a compaixão por aqueles que tinham<br />
sofrido, fazia oração por eles para Nossa Senhora<br />
aliviar ou até para evitar esse sofrimento. Mas, sobretudo,<br />
fazia a reflexão sobre o grande, o nobre, o magnífico<br />
tema da dor. E dentro deste tema, outro ainda mais bonito:<br />
o heroísmo, a coragem.<br />
Isto ia formando a alma de um menino...<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 26/7/1995)<br />
7
Sagrado Coração de Jesus<br />
O Divino Interlocutor<br />
Em sua concepção sacral da existência, no processo de seu<br />
pensamento e até na elaboração de uma arte de conversar,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tinha como fonte de inspiração e ponto de<br />
convergência o Sagrado Coração de Jesus.<br />
Um tema que daria para um estudo muito interessante<br />
é a exposição analítica de todos os<br />
modos pelos quais as coisas na Criação crescem.<br />
Elas têm modos diferentes de crescer e de evoluir<br />
para chegar até a morte; e nesta há também um processo,<br />
que não é sempre análogo. Então há o crescimento,<br />
depois uma fase de expansão e o deperecimento.<br />
Início, expansão e morte<br />
E isso é tão diferente nas várias espécies de vegetais, e<br />
em cada planta em particular! É diverso nos bichos e nas<br />
velocidades materiais. E também em todo o processo de<br />
pensamento e de desenvolvimento<br />
do homem.<br />
Nesse crescer, expandir-se e<br />
morrer, Deus Nosso Senhor fez um<br />
verdadeiro jogo de maravilhas, que<br />
evidentemente as pessoas que cultuam<br />
a natureza não se dão o trabalho<br />
de apreciar. Porque isso supõe<br />
um mínimo de pensamento, de<br />
contemplação e de meditação. E esse<br />
tipo de meditação, em geral, elas<br />
não querem fazer.<br />
Tudo isso — nas plantas, nos animais<br />
e nas velocidades materiais —<br />
é simbólico, de um modo ou de outro,<br />
do processo do homem; é simbólico<br />
da vida terrena de Nosso Senhor<br />
e da trajetória da História, do<br />
curso dos acontecimentos.<br />
Até mesmo certas coisas que<br />
são feitas para matar e não para viver<br />
— por exemplo, uma batalha —<br />
têm seu começo, seu crescimento,<br />
Rui Ornelas (CC 3.0)<br />
depois seu murchamento, e caem. Um dos aspectos bonitos<br />
desse estudo é a questão dos recrudescimentos: quais<br />
são suas origens, que forças têm, como se faz um recrudescimento.<br />
Só o tema dos recrudescimentos daria para<br />
uma doutrina interessantíssima da Contra-Revolução.<br />
Até os fogos de artifício podem ter uma trajetória<br />
muito bonita nesse sentido.<br />
Um universo de belezas<br />
Uma das coisas que eu gosto de apreciar no mar é exatamente<br />
o nascimento da onda, depois o sistema de ondas,<br />
quando elas arrebentam ou expiram na praia.<br />
8
Também, a ilusória perpetuidade da calmaria… Como,<br />
dentro da calmaria, o primeiro elementozinho indica<br />
uma mudança completa das coisas que vão se acumulando.<br />
É um processo muito bonito!<br />
Isto tudo é uma verdadeira maravilha que depois tem<br />
sua transposição para os processos políticos, para a história<br />
das instituições, das correntes de espiritualidade, etc.<br />
Há um universo de belezas aí, que ao homem foi dado<br />
contemplar com olho rápido, furtivo e atento, porque<br />
não tem tempo para pensar nisso. Mas que é uma coisa<br />
lindíssima!<br />
Por exemplo, há mortes que são como um Amazonas<br />
desembocando na eternidade; quase que empurra a eternidade<br />
um pouco para fora. Mas existem outras mortes<br />
como um riozinho pequenininho, humildezinho, que vai<br />
dar diretamente no mar e se perde, envergonhadinho,<br />
com um sussurro que o mar incorpora a si…<br />
Há uma porção de coisas bonitas, interessantes, para<br />
ver dentro disso. E isso se aplica muito à história de um<br />
homem.<br />
Por temperamento, sou muito estável e gosto das coisas<br />
estáveis, que duram na calmaria.<br />
Não concebo o Céu num perpétuo movimento, mas<br />
com diferentes modos de ser da estabilidade. Não é a instabilidade;<br />
é a mutação dentro da estabilidade.<br />
Processo de pensamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Todas as doutrinas e temas — portanto, também o<br />
conceito de sacralidade — têm um modo de se desenvolver<br />
peculiar de cada indivíduo. Em mim, essa peculiaridade<br />
é assim:<br />
Primeiro, um nascimento cheio de intuições, de graças,<br />
ultra-alcandorado, em que entra de um modo especial<br />
uma visão confusa do ultramaravilhoso e do ponto<br />
terminal bom, do ponto supremo, do auge; e o encantamento<br />
por esse auge.<br />
Depois do auge bem visto, e de dar a ele tudo quanto<br />
naquele estágio da vida espiritual ele merece que se dê,<br />
então vem um período de aparente estabilidade; mas de<br />
fato é um período em que se vai “cozinhando” lentamente<br />
a explicitação.<br />
Ao mesmo tempo — é como se dá concretamente comigo<br />
— um período de luta, em que a explicitação é ajudada<br />
possantemente pela contestação. Porque aquele<br />
conhecimento confuso, primeiro, vem acompanhado de<br />
uma implícita rejeição do que não é aquilo. E quando alguém<br />
afirma o contrário, vem a repulsa.<br />
Na repulsa implicitamente fica mais conhecido aquilo<br />
que foi negado. E, ao mesmo tempo em que se prepara a<br />
apologética, elabora-se a explicitação. A apologética e a<br />
explicitação são fenômenos reversíveis um no outro. De<br />
maneira que eu me torno conhecedor das coisas por dois<br />
dados: por uma espécie de conaturalidade, e por uma espécie<br />
de repulsa daquilo que é contrário.<br />
Num determinado momento, tudo o que se podia conhecer<br />
a respeito daquilo está conhecido, com os próprios<br />
recursos e com a observação concreta da vida. Aí<br />
chega a hora da leitura. Não antes.<br />
Podem percorrer todos os livros de minha biblioteca,<br />
e encontrarão sinais disso. A leitura veio exatamente depois<br />
para ajudar esse processo, dando mais informações,<br />
fazendo com que a pessoa se situe ante o que diz o escritor<br />
e, portanto, julgue: é “sim”, é “não”, é “talvez”, é<br />
“conforme”, etc.<br />
Depois de tudo isso feito, há mais uma vez uma nova<br />
aparente estagnação, em que todos esses elementos recolhidos<br />
são objetos de uma nova síntese. E vem uma visão<br />
final que depois cresce pouco, na aparência, mas que<br />
de fato tem muita intensidade. E prepara o ato de amor<br />
terminal.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
9
Sagrado Coração de Jesus<br />
Jean-Pierre Lavoie (CC 3.0)`<br />
Carcassone, França<br />
Eu não sei se isso será assim em outros. Desconfio<br />
muito que não, e que varia muito de acordo com o caminho<br />
de Deus para cada pessoa.<br />
A inocência é o princípio da sabedoria<br />
Graças a Nossa Senhora, há nesse processo muita inocência.<br />
Porque não é só conhecendo a coisa em si, mas é<br />
conferindo os dados externos com a inocência. A inocência,<br />
nesse sentido, é um começar de sabedoria. Ela constitui<br />
uma espécie de ortodoxia.<br />
O que eu disse agora, há um ano eu não teria tão claro<br />
a ponto de explicitar; neste momento estou explicitando<br />
com facilidade.<br />
Na aparência, isso em mim se encontrava parado;<br />
mas, de fato, estava sendo preparada esta explicitação.<br />
O que indica que havia uma ação profunda —<br />
muito silenciosa, tranquila, discreta, mas não pouco<br />
ativa — para passar do último estágio de um conhecimento<br />
confuso para o conhecimento inteiramente<br />
definido.<br />
Seria um crescimento contínuo sob a forma de estabilidade,<br />
mas na realidade trata-se de uma ação em profundidade.<br />
Mais ou menos como o desenvolvimento da<br />
árvore já crescida, que não cresce mais, mas suga da terra<br />
coisas que dão ao processo vital da árvore o meio de ir<br />
vivendo. Examinando bem, a árvore pode, durante muito<br />
tempo ainda, crescer em força e em volume por esse<br />
processo.<br />
Então, o conhecimento da transcendência de Deus,<br />
por exemplo, depois de chegar a certo estágio, entra nessa<br />
fase de elaboração profunda, pouco perceptiva, que<br />
de repente dá um fruto muito mais sutil e melhor, que<br />
é fazer as correlações entre os conjuntos que se têm na<br />
mente, e daí nasce um determinado unum.<br />
E esse é o píncaro do processo intelectual e moral.<br />
Porque esse píncaro já é a primeira nota, é a antífona do<br />
cântico que nós devemos entoar no Céu.<br />
Procura do mundo dos possíveis<br />
Esse é o processo de conhecimento das coisas que poderiam<br />
ou deveriam existir, algumas das quais existem.<br />
Por exemplo, quando vejo um belo castelo. Ele corresponde<br />
a ideias que todos tivemos na mente sobre um castelo<br />
inexistente. Então, minha primeira reflexão é: “Aqui<br />
está o inexistente que eu procurava!”<br />
Muita coisa, que parece estar no mero mundo dos<br />
possíveis, existe. É questão de saber procurar. Em última<br />
análise, se fosse bem ordenado, o turismo perfeito seria<br />
uma procura pelo mundo dos possíveis que a pessoa<br />
não conheceu.<br />
Essa procura é um pouco o que vai dando ânimo e<br />
movimentação à vida. O contrário é o tipo de velho que,<br />
no domingo, às três horas da tarde, junto com sua esposa,<br />
acabou de almoçar; ele está bem satisfeito e ela está<br />
aliviada porque o marido almoçou bem e gostou da refeição.<br />
Ele se senta numa cadeira e fica ruminando, com<br />
desapontamento, porque ele acha que não há mais possíveis.<br />
Propriamente, a substância dessa velhice mal concebida<br />
é crer pouco nos meramente possíveis do Céu, e achar<br />
que na Terra não adianta conhecê-los, porque já se viu<br />
que todas essas coisas fanam. Então o velho fica sentado<br />
na cadeira, ruminando sua bronquite. Essa é a substância<br />
desse conceito de velhice.<br />
Antigamente, como a senhora — de modo habitual,<br />
não necessariamente — era melhor do que o homem, ela<br />
ficava pensando um pouquinho no Céu e nas saudades<br />
do tempo que se foi.<br />
O homem, pouco sujeito a saudades, não pensava no<br />
Céu, mas de vez em quando o relâmpago do Inferno lhe<br />
aparecia pela mente. E isso o levava a fazer a sua Confissão<br />
e Comunhão pascais. Assim era a velhice.<br />
Havia uma casa — creio que não existe mais — na esquina<br />
da Rua Imaculada Conceição com a Rua Martim<br />
Francisco 1 . Eu percebia, pela conformação do prédio,<br />
10
que existiam muitos quartos de dormir vazios; donde se<br />
deduz terem morado filhos ali, que depois tinham se mudado,<br />
e o casal residia sozinho.<br />
Eu, então, imaginava o velho e a velha possível no nível<br />
daquela residência, que era uma casa mediana. Esse<br />
velho e essa velha eu os construía de vários velhos e velhas<br />
que tinha conhecido.<br />
Como a ideia da Contra-Revolução foi<br />
elaborada no espírito de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Estou explicitando agora. Mas a explicitação é fruto<br />
de um trabalho lento, que a mim me dá a impressão de<br />
que não estou trabalhando, mas simplesmente vivendo.<br />
Eu diria que parei. Mas, de repente, saio com uma enxurrada<br />
de coisas que, assim, nunca pensei. É o lento trabalho<br />
terminal que deve aprontar na mente.<br />
A Contra-Revolução, considerada no seu conjunto,<br />
teve exatamente esse papel no meu espírito.<br />
Primeiro formei impressões, observei fatos, tomei<br />
conhecimento pela leitura de alguns tantos acontecimentos<br />
históricos, e também conheci muito pelas narrações,<br />
mais ou menos à Alexandre Dumas, que circulavam<br />
no ambiente familiar, a respeito desse ou daquele<br />
caso.<br />
Por exemplo, Maria Antonieta. Na minha geração, o<br />
preconceito contra Maria Antonieta era uma coisa atroz:<br />
“Mulher dura, má, traidora, favorecia os austríacos! De<br />
uma beleza esplendorosa — era vista assim — que fazia<br />
com que todas as mulheres feias ficassem complexadas,<br />
pensando nela!”<br />
Mas contavam que o povo faminto chegou a Versailles,<br />
e ela estava tão alheia às verdadeiras necessidades do povo<br />
que disse: “Então, se vocês não têm pão, comam brioche.”<br />
E ela nem sabia bem que brioche era mais caro que<br />
o pão; porque problema de dinheiro não existia para ela.<br />
Então deu um conselho que provava — assim diziam —<br />
como ela vivia alheia ao sofrimento do povo.<br />
Eu me lembro de, ainda pequeno, perguntando para<br />
Dona Lucilia:<br />
— Mas, mamãe, o que é brioche?<br />
— Uns bolinhos excelentes.<br />
Não cheguei a me perguntar por que ela não fazia<br />
brioche para eu comer. Até lá a gula não chegou… Mas<br />
vejam a provação para uma criança que ainda não sabe o<br />
que é brioche:<br />
“Então as pessoas bonitas, alinhadas, estiladas, superiores<br />
não têm coração porque seguem demais regras e<br />
se endurecem com essas regras? Por que seguir a regra<br />
endurece e cega para a compaixão com os que não conseguiram<br />
seguir a regra? Então, seguir as regras é mau?”<br />
Minha resposta interior:<br />
“Não pode ser. Porque entre bem e bem não pode haver<br />
incompatibilidade.”<br />
A doutrina não é o ponto de<br />
partida, mas o de chegada<br />
A importância que dou ao raciocínio faz com que eu<br />
não considere nada por acabado se não foi raciocinado.<br />
Porque todo esse processo de intuição tem que chegar a<br />
raciocínios que provem ou não provem aquilo que foi antes<br />
intuído, apalpado, pressentido.<br />
Podem, então, imaginar o meu encantamento lendo o<br />
“Tratado de Direito Natural”, de Taparelli d’Azeglio, o<br />
“Tratado de Sociologia Católica”, de Albéric Belliot, um<br />
franciscano; enfim, uma flotilha de coisas que eu li e me<br />
provaram, por exemplo, a legitimidade do direito de propriedade,<br />
que era uma coisa instintiva, mas cuja legitimidade<br />
eu apanhei aí.<br />
Quando vi que o direito de propriedade, a instituição<br />
da família, a indissolubilidade do vínculo matrimonial, a<br />
autoridade paterna — cuja liceidade era intuída por mim<br />
— se baseavam num raciocínio claro, límpido, perfeito,<br />
tive um entusiasmo enorme!<br />
Ostensório da Igreja de Santa<br />
Maria - Cracóvia, Polônia<br />
Gustavo Kralj<br />
11
Sagrado Coração de Jesus<br />
Isso deu ao meu pensamento uma estrutura que veio<br />
depois de mil apalpações.<br />
Essa é uma característica do meu espírito: não começar<br />
por ler a doutrina, mas por pegar a realidade. Depois<br />
de ter intuído na realidade, ir ver a doutrina. E aí ter um<br />
contentamento, um gáudio enorme.<br />
Estou longe de ser daqueles que julgam dever prescindir<br />
da doutrina, mas a questão é que para muitos a doutrina<br />
é o ponto de partida, e na conformação do<br />
meu espírito é o ponto de chegada.<br />
Todas essas coisas com o tempo acabam formando<br />
um depósito primeiro de impressões<br />
maturadas, para raciocinar. E enquanto já<br />
vou raciocinando algumas de minhas impressões,<br />
continuo a maturar ou explicitar<br />
outras. Então, nós poderíamos dizer<br />
que esse processo é:<br />
Primeiro: observar, captando e classificando<br />
subconscientemente.<br />
Segundo: estabelecendo oposições, e começando<br />
por aí a explicitação.<br />
Terceiro: fazer os primeiros raciocínios<br />
que constituem pontas de trilho para<br />
que, daí para diante, em contato com<br />
qualquer coisa nova o processo inteiro<br />
vai se movendo.<br />
Concepção sacral da vida<br />
Isso forma inclusive o progresso<br />
na vida espiritual.<br />
Por exemplo, a noção<br />
de sacralidade, no começo,<br />
é muito mais vívida em relação<br />
à Igreja. Depois menos<br />
em referência à autoridade<br />
paterna dentro<br />
da família como entidade<br />
toda ela sacral, num<br />
certo sentido especial<br />
da palavra “sacral”. E<br />
também em relação ao mito<br />
monárquico dentro do Estado,<br />
que pode ser sacral se o indivíduo quiser<br />
vê-lo assim, oferecê-lo à Igreja e pedir<br />
as bênçãos dela a fim de sacralizá-lo.<br />
Isso acaba dando lugar a uma noção de<br />
sacralidade adequada às coisas temporais,<br />
que é um desdobramento da noção do sacral<br />
— própria das coisas estritamente espirituais<br />
e sobrenaturais — e formando no espírito<br />
vários degraus e modos de ser da sacralidade,<br />
Gustavo Kralj<br />
cujo auge sempre me pareceu como sendo a Consagração<br />
durante a Missa, mais do que a minha Comunhão.<br />
Agora, uma coisa que é pessoal: sou mais sensível à<br />
sacralidade do ato da Consagração, enquanto considerado<br />
na Consagração do vinho e a apresentação do cálice<br />
para o povo adorar, do que na Consagração do pão e<br />
a apresentação para ser adorado.<br />
Eu tinha a impressão — que soube, depois, não corresponder<br />
à realidade — de que a transubstanciação<br />
se dava no momento da elevação. E<br />
daí aquele respeito e aquela veneração!<br />
Porque nos fiéis há um redobrar de respeito<br />
e veneração, quando o Santíssimo<br />
é elevado. Compreende-se, porque<br />
é exposto para eles adorarem, então<br />
fazerem um ato interior que corresponde<br />
a essa exposição. Mas eu achava<br />
que era porque a transubstanciação estava<br />
se dando naquele momento.<br />
A forma material do cálice é tão evocativa<br />
do que é o oferecimento da sacralidade!<br />
Uma alma que se oferece, ou<br />
oferece alguma coisa de dentro de<br />
si, é tão bem representada por um<br />
cálice que se abre e que dá tudo<br />
o que tem! Por outro lado, o vinho<br />
é tão mais parecido com<br />
o sangue, do que o pão o é<br />
com o corpo, que tudo<br />
isso me dava mais sensação<br />
— puramente física<br />
e analógica — de<br />
sacralidade.<br />
A simples presença<br />
do Santíssimo Sacramento<br />
exposto me<br />
dava uma sensação<br />
de sacralidade colossal.<br />
Muito mais do que<br />
o Santíssimo guardado<br />
na capela-mor. Poder<br />
chegar perto d’Ele,<br />
adorá-Lo, produz em<br />
mim impressões de sacralidade<br />
que eu acho que<br />
possuem qualquer coisa de<br />
místico, muito maiores do<br />
que as que se têm em contato<br />
com a sociedade temporal.<br />
Sagrado Coração de<br />
Jesus - Igreja Imaculada<br />
Conceição, Goa, Índia<br />
12
Mas por esse progresso de alma de que estou falando,<br />
a pessoa vai compreendendo que em formas, termos<br />
e modos diferentes, a sociedade temporal inteira acaba<br />
tendo qualquer coisa de sacral. E, então, uma concepção<br />
toda ela sacral da vida vai se maturando lentamente,<br />
ao longo das décadas, para depois fazer uma conferição<br />
com os autores especializados.<br />
Porque a palavra definitiva é deles. Eles representam<br />
a Igreja, que é infalível e, portanto, vamos ouvir o que a<br />
Santa Mãe Igreja ensina a esse respeito. E ensina, na força<br />
da palavra “ensinar”: quer dizer, ela é a Mestra infalível,<br />
eu sou o aluno bobo que posso ter feito um engano, e<br />
apresento a ela aquilo que pensei.<br />
No princípio não estava<br />
o livro, mas o pensamento<br />
É um processo que, em certo momento, entra numa aparente<br />
estagnação, e continua a elaboração em profundidade.<br />
De maneira que quem me conhece há muito tempo, é possível<br />
que tenha tido ideia de que em algumas coisas eu estou<br />
me repetindo indefinidamente. Mas se forem examinar<br />
de perto notarão que tem sempre alguma coisinha nova, que<br />
corresponde em profundidade a esse processo lento.<br />
Mas isso levanta um problema: Esse não é — em suas<br />
linhas gerais, não nos seus pormenores — o próprio método<br />
de pensar legítimo do espírito humano?<br />
Vamos formular a coisa assim: O primeiro livro foi escrito<br />
por um homem que não teve livros. Então, a cultura nasceu<br />
de um pensamento anterior ao livro. Logo, no processo intelectual,<br />
no princípio não estava o livro, mas o pensamento.<br />
Então, eu volto ao ponto de partida.<br />
O unum é o Sagrado Coração de Jesus, de uma majestade<br />
infinita, doçura infinita, sabedoria infinita, de um<br />
poder infinito e de uma bondade infinita; para dizer só<br />
alguns atributos. Tudo isso é uma síntese para chegar até<br />
Ele, compreendê-Lo.<br />
A teoria geral das várias formas de crescimento, de desenvolvimento,<br />
que apresentei no começo da reunião, parece não<br />
ter relação alguma com Ele. Mas, no fundo, é a Ele que visamos.<br />
Ele é o alfa e o ômega; o unum é Ele! Ele é o começo e o<br />
fim de tudo. E se de algum modo todas essas reflexões não visassem<br />
o melhor conhecimento d’Ele, não teriam valor.<br />
Numa conversa os espíritos vão evoluindo<br />
juntos, como num dueto musical<br />
Em toda essa teoria, a conversa tem um papel enorme,<br />
porque ela, no fundo, requer certo discernimento<br />
dos espíritos e uma percepção do que convém ou não ser<br />
dito. Quando não convém, deve-se ter o suficiente desapego<br />
para não tratar.<br />
Muita gente conversa sobre aquilo que tem vontade<br />
de conversar. Isso é a morte da conversação. A conversa<br />
boa nem é sobre aquilo que tenho, ou meu interlocutor<br />
tem, vontade de conversar; mas sim tratar daquilo em<br />
que nós dois podemos igualmente gostar de conversar. O<br />
resto é a morte da conversação.<br />
À medida que uma conversa está bem travada, os espíritos<br />
vão evoluindo juntos, como num dueto musical. E<br />
quando se entendem bem, vão mudando de tema igualmente,<br />
muito mais por apetências do que por nexos lógicos.<br />
Entra em algo o nexo lógico, mas são nexos psicológicos,<br />
mudanças de temas vizinhos, que vão fazendo com<br />
que as duas pessoas gostem das mesmas coisas. Então a<br />
conversa aí se torna deliciosa.<br />
É mais ou menos como, por exemplo, duas pessoas<br />
que passeiam juntas no centro de Roma, a caminho das<br />
catacumbas. Passam por uma loja qualquer que tem gravatas<br />
bonitas; os dois estão precisando comprar gravatas;<br />
param, olham, gostam, conversam. Depois transitam em<br />
frente a uma confeitaria, e comem algum doce. E assim<br />
chegam à catacumba.<br />
A conversa só pega mesmo — ao menos é a impressão<br />
que eu tenho — quando na pontinha do que está sendo conversado<br />
há qualquer coisa que é uma graça de Deus, sobre<br />
alguma coisa de transcendente, maravilhoso, que, por uma<br />
pontinha de consolação sensível, ambos estão sentindo.<br />
Pode ser o unum ou não. Pode ser uma consolação,<br />
que todos têm juntos, sobre um ponto que Nossa Senhora<br />
quer glorificar. Então, a conversa em geral tem um<br />
fundinho comum de supremo. E quanto mais esse fundinho<br />
é sentido por todos, mais a conversa é animada.<br />
Donde se tira uma conclusão linda: o principal interlocutor<br />
é o Interlocutor Divino, presente em nossa conversa,<br />
falando dentro das nossas almas e elogiando-se a<br />
Si próprio por nossos lábios.<br />
A conversa, em sua natureza,<br />
tem algo de uma prece<br />
Isso dá uma elevação ao conceito de conversa, em que<br />
Deus está sempre presente; não só — e já é muito! — através<br />
da Fé, mas também, no fundo, por alguma coisa comunicada<br />
diretamente pela graça, que se torna sensível e causa<br />
alegria. Esse é o sal da conversa, e que a Providência dá<br />
quando quer. É certa forma de sensível. Não é uma mera<br />
troca de ideias teórica, mas algo que vai mais alto.<br />
Eu volto a dizer: pasma, mas é fato, o Divino Interlocutor<br />
é propriamente Aquele que fala. Ele fala pela boca<br />
de um, responde pela boca de outro e Se alegra pelo coração<br />
de todos. É uma coisa muito bonita!<br />
Pode-se dar um fato parecido com esse, na ordem meramente<br />
natural. O exemplo mais característico disso é<br />
13
Sagrado Coração de Jesus<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
este: quando se está muito longe do país em que se nasceu,<br />
e vários conacionais se encontram inesperadamente<br />
em algum lugar, sai uma conversa animada.<br />
O que há no gáudio de, por exemplo, vários brasileiros<br />
se encontrarem na Tailândia, inesperadamente, formarem<br />
uma conversa animada e serem capazes até de ir<br />
almoçar juntos?<br />
Há um fato natural meio parecido com o sobrenatural<br />
— porque há muita analogia entre certos fenômenos naturais<br />
e outros sobrenaturais —, que é um ponto comum<br />
da alma do brasileiro e do ambiente do Brasil; o brasileiro,<br />
que se sente muito isolado quando está na Tailândia sem ter<br />
com quem conversar, quando encontra outros com o mesmo<br />
ponto comum, aquilo aflora com uma veemência extraordinária,<br />
e faz na conversação o papel natural, semelhante<br />
ao que a graça opera no tipo de conversa de que falávamos.<br />
Outra coisa se dá quando alguns dos interlocutores,<br />
por serem bons católicos, são objetos de uma graça<br />
por onde os demais podem ficar deslumbrados. Isso pode<br />
ocorrer até no relacionamento entre um jovenzinho e<br />
seus colegas.<br />
O que se passou nesse caso? É algo de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora enquanto canal necessário<br />
do Redentor, porque foi dita alguma coisa da Doutrina<br />
Católica, ou qualquer outra matéria por onde eles<br />
percebem, por um discernimento de espíritos que lhes<br />
foi dado no momento alguma coisa de maravilhoso e de<br />
celeste.<br />
E isso pode determinar dois rumos diferentes: a conversão<br />
dos que estão ouvindo ou a perversão de quem está<br />
falando. Porque este fica sujeito ao seguinte raciocínio:<br />
“Aqui me compreendem mais do que nos meios católicos<br />
que frequento. Portanto, vou frequentar mais este<br />
ambiente porque aqui faço apostolado…” Mas, de fato,<br />
ele vai se atolando naquele ambiente mundano.<br />
A conversa, em sua natureza, tem algo de uma prece.<br />
Quando está presente esse lado sobrenatural, é uma oração,<br />
uma coletiva elevação da mente a Deus.<br />
Porém naqueles salões do período do Ancien Régime 2<br />
— era uma coisa medonha! — havia uma graça propriamente<br />
sobrenatural, católica, de caridade fraterna, que<br />
dava na douceur de vivre 3 , manifestamente presente lá,<br />
misturada com a frivolidade mais escandalosa e com a irreligião<br />
categórica.<br />
Desde que o Divino Interlocutor<br />
esteja presente, a conversa é o<br />
verdadeiro prazer da vida<br />
Uma pessoa frívola costumava dizer, na minha presença,<br />
que o verdadeiro prazer da vida era uma boa conversa.<br />
Também acho que conversar, desde que o Divino<br />
Interlocutor esteja presente, é o gosto da vida. E nenhuma<br />
outra coisa tem o valor da conversa.<br />
E daí entra outro tema que quase justificaria uma conversa:<br />
não é compreensível a felicidade do Céu se não se<br />
admite o que estamos dizendo. Aquele colouvor no Céu<br />
é uma conversa sumamente bem-aventurada, porque o<br />
Divino Interlocutor está presente, dando uma animação<br />
incomparável ao que dizem a respeito d’Ele, de si próprios,<br />
da História e do universo — sempre com vistas a<br />
Ele — todos os que estão ali participando.<br />
Mesmo assim, é preciso tomar em consideração que o<br />
modo de ser apresentado o Céu por certas escolas espirituais<br />
deturpa-o e torna-o menos apetecível. Tenho a impressão<br />
— que é quase uma certeza, mas se a Igreja ensinar<br />
o contrário, no mesmo instante mudo de opinião —<br />
de que no Paraíso cada bem-aventurado conserva todas<br />
as características legítimas que teve na Terra.<br />
E, no Céu, é interessante o fato de almas com personalidades<br />
tão diferentes estarem todas unidas na conversa,<br />
na interlocução a mais agradável, a mais amável, a<br />
mais nobre, a mais gentil, a mais elevada, a mais distinta,<br />
a mais recolhida e ao mesmo tempo a mais pseudodissipada<br />
que se possa imaginar.<br />
De maneira que cada um ama muito que o outro seja<br />
de outro modo, e todos sentem as respectivas harmonias.<br />
E a presença de Deus se tornando continuamente<br />
sensível, conhecida e apreciável a todos, e sendo Ele, no<br />
fundo, o Divino Interlocutor dentro da alma de todos,<br />
há um tipo de conversa que é do gênero das conversações<br />
abençoadas aqui na Terra, mas com qualquer<br />
coisa que vai infinitamente além.<br />
14
Reprodução<br />
“Apoteose de São Tomás de Aquino” (por Zurbarán)<br />
Museu de Belas Artes de Sevilha, Espanha<br />
A conversa no Céu será como<br />
uma contínua oração<br />
E aí compreendemos todo o gáudio que o Céu pode<br />
trazer, a partir do primado da conversa sobre todos os<br />
outros prazeres.<br />
É uma coisa que nos é dada de vez em quando na Terra,<br />
um pouquinho, e que nos deixa fora de nós de contentamento.<br />
E no Céu nos é concedida contínua e plenamente,<br />
e com uma intensidade inimaginável. Donde a felicidade<br />
celeste.<br />
Considerem as almas que certos estilos artísticos pintam<br />
como estando no Céu, todas elas têm a mesma personalidade,<br />
as mesmas características, e o colouvor perde<br />
o sabor. Fica meio inimaginável um Céu saboroso.<br />
Porém, imaginar que no Paraíso se está conversando,<br />
por exemplo, com um grande historiador e vemos São<br />
Tomás de Aquino que está passando, e lhe perguntamos:<br />
— São Tomás, o que dizeis sobre este assunto?<br />
Ele para extasiado, fica contente e responde<br />
com aquela simplicidade que lhe é<br />
característica:<br />
— Olhe aqui, isso é assim...<br />
Grande alegria! Ele passa, e ainda durante<br />
algum “tempo” — para usar nossa linguagem<br />
aqui da Terra — aqueles a quem ele ensinou<br />
ficam contentes por causa disso.<br />
No “fim” do “dia” vão levar de presente<br />
para ele uma pedra linda que encontraram<br />
no Céu empíreo. Ele pega-a, fica encantado,<br />
e faz uma reflexão ultrassubstanciosa<br />
sobre aquilo…<br />
É a vida do Céu, vista com base na conversa<br />
tida como uma oração.<br />
A conversa é uma coisa continuamente<br />
móvel. E como as perfeições de Deus são<br />
infinitas — Deus é insondável! — Ele é para<br />
nós, no fim de milhões, de trilhões de<br />
anos, tão novo como no primeiro instante.<br />
Além disso, há o Céu empíreo, onde suponho<br />
que é dado ao homem fazer obras de<br />
arte, construir, organizar, arranjar, etc., e<br />
assim ter o gosto de realizar. Eu não acredito<br />
que um contemplativo tenha um verdadeiro<br />
gosto de contemplação se não tiver<br />
também o gosto da contemplação transformada<br />
em obra e deixada para outros.<br />
Nesse sentido, por exemplo, quando li<br />
pela primeira vez aquelas palavras de São<br />
Paulo: “Combati o bom combate, etc.” 4 ,<br />
que ele pronunciou próximo da hora de morrer, aquilo<br />
me pareceu a morte por excelência, magnífica: “Eu pensei,<br />
eu fiz, eu deixei!” Quer dizer: “Aqui está!” E o ter feito<br />
é uma grande coisa.<br />
Carlos Magno morrendo com a consciência de que ele<br />
fez um império, que coisa magnífica!<br />
Bem, tivemos uma ótima conversa. Assim foi, porque<br />
o Interlocutor Divino estava presente.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 19/4/1989)<br />
1) Em São Paulo, bairro Santa Cecília.<br />
2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político<br />
aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e<br />
XVIII.<br />
3) Do francês: doçura de viver.<br />
4) Cf. 2Tm 4, 7.<br />
15
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A organicidade do Brasil<br />
GabrielFontes (CC 3.0)<br />
Parque Estadual do Caracol<br />
Rio Grande do Sul, Brasil<br />
As diferenças de psicologias existentes entre as várias<br />
regiões do Brasil não causam fricções devido ao bom<br />
gênio brasileiro. A expansão populacional do país deu-se<br />
por um processo natural, mas sobretudo providencial<br />
em que Deus foi pondo em ordem todas as coisas.<br />
P<br />
ara exemplificar as teorias sobre organicidade<br />
que vimos desenvolvendo, tomemos o Brasil como<br />
ele é constituído hoje em dia.<br />
Interpenetração por osmose<br />
Um bom observador notará haver mais diferenças de<br />
psicologias entre os Estados brasileiros do que parece à<br />
16
primeira vista. E que se essas diferenças não se transformam<br />
em fricções, ou, quando ocorrem, constituem atritos<br />
mínimos, é por causa do bom gênio brasileiro.<br />
No que resultam essas diferenças? Há, por exemplo,<br />
um Rio Grande do Sul que difunde sua própria influência<br />
sobre os dois outros Estados vizinhos, que são, em ordem<br />
geográfica, Santa Catarina e Paraná. Esses três Estados,<br />
no seu conjunto, têm uma espécie de mentalidade<br />
e modo de ser que vão se tornando menos parecidos com<br />
o Rio Grande e mais parecidos com São Paulo, à medida<br />
que se aproximam deste último Estado. Mas, até o momento<br />
de entrarem 100 ou 150 quilômetros em São Paulo,<br />
ainda se sente certo “cheiro” de Rio Grande do Sul.<br />
Depois, avança-se em São Paulo e toca-se nos Estados<br />
do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Mato Grosso. Nota-se<br />
que Rio de Janeiro e Minas Gerais têm, em alguns<br />
pontos, uma interinfluência muito grande. Por exemplo,<br />
entre o campista e o mineiro existe uma interinfluência<br />
enorme, que eu poderia mostrar no que consiste, mas<br />
não o faço por brevidade.<br />
Nos limites entre Minas e Espírito Santo notaremos<br />
haver sempre um fenômeno semelhante ao existente, por<br />
exemplo, nos limites da Alemanha com a França: cidades<br />
da Alemanha que falam francês, cidades da França<br />
que falam alemão; nomes franceses na Alemanha, nomes<br />
alemães na França. É uma espécie de interpenetração,<br />
por osmose, ao longo de toda a fronteira, mas depois,<br />
em certo momento, começa propriamente a Alemanha<br />
e a França. Isso se dá mais ou menos com todos os<br />
Estados brasileiros.<br />
Mentalidade una<br />
O que determinou essas circunstâncias diferenciadoras?<br />
Poderíamos alinhar mil fatores, e quando se alinham<br />
mil, quer dizer que nada é decisivo. Mas há uma<br />
resultante daí chamada Brasil. Esta resultante constitui<br />
um unum, há uma mentalidade una, e um todo que seria<br />
simplificador chamar de síntese, pela seguinte razão:<br />
Vemos se abrirem novos Estados no Brasil, lá na zona<br />
da Amazônia. O Acre, por exemplo, foi antigamente<br />
um território dependente do Governo Federal, hoje é<br />
Selva amazônica, Brasil<br />
Todo o jogo planetário tem a sua<br />
vida natural, mas existem Anjos<br />
que o regem, sem que deixe de ser<br />
um fenômeno natural, porém com<br />
intercorrências e apoios sobrenaturais<br />
que entram para completar isso.<br />
CIAT (CC 3.0)<br />
Pedra Furada<br />
Santa Catarina, Brasil<br />
Marcos Bonfim (CC 3.0)<br />
17
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
junionpetjua (CC 3.0)<br />
Olinda - Pernambuco, Brasil<br />
Thuresson (CC 3.0)<br />
um Estado. Há outras regiões assim, que ficam pelo Norte<br />
do país, onde se nota uma coisa curiosa: são povoados<br />
por adventícios de outros lugares, mas que chegam nessas<br />
regiões e formam um conjunto capaz de “esticar” psicologicamente<br />
o Brasil até lá, e é o mesmo Brasil com<br />
outra mentalidade; é um fenômeno muito parecido, em<br />
ponto republicano, com o processo de fundação que se<br />
deu, em ponto feudal e monárquico, com os vários reinos<br />
que constituíram a Espanha. Muito mais parecido ainda<br />
Coroação de Luís VIII e Branca de Castela<br />
Biblioteca Nacional, França, Paris<br />
com as várias regiões de Portugal: cada região forma um<br />
paisinho, e assim se compõe Portugal.<br />
Como cada coisa dessas se constitui e como o todo<br />
se forma? Creio que é um processo natural, mas especialmente<br />
providencial, que a Providência teve em vista<br />
quando ordenou as coisas de maneira que as causas segundas<br />
rolassem nesse sentido, e que há nisso uma espécie<br />
de superior sabedoria como a que põe em ordem, por<br />
exemplo, o reino vegetal, o reino animal, etc., uma manifestação<br />
do poder de Deus que excede a inteligência<br />
humana e onde entra um plano muito<br />
superior.<br />
A meu ver, quando a unidade das nações<br />
regionalizadas é feita sem apego e nas proporções<br />
devidas, é tocada por forças e instintos<br />
naturais dos homens, que convém descrever<br />
e explicar em alguma medida, mas não<br />
até ao fim, porque há uma ordem superior<br />
dentro disso.<br />
O processo natural unido<br />
ao sobrenatural<br />
Há nos vegetais uma força pela qual a<br />
planta puxa os nutrientes da terra que chegam,<br />
por diversas transformações, até as capilaridades<br />
do vegetal.<br />
Assim também na formação das elites há<br />
uma pressão para cima que faz com que o nobre<br />
vá aparecendo e, depois do convívio dos<br />
nobres, vai surgindo no mais alto grau o rei.<br />
Para usar outra metáfora, as nações produzem<br />
seu rei como as abelhas, o mel.<br />
Contudo, como na sociedade orgânica<br />
os fenômenos se passam com homens e não<br />
com bichos nem com plantas, entra também,<br />
na ponta do processo natural — não é sem-<br />
18
pre, mas com alguma frequência —, algo que é uma interferência<br />
de Deus, com uma gota de sobrenatural em<br />
que há uma instauração de Deus. Daí a necessidade da<br />
intervenção da Igreja.<br />
Porque para agir conforme a natureza, portanto de<br />
acordo com a vontade de Deus, o homem concebido no<br />
pecado original tem cem tendências contra; e se a graça<br />
não está continuamente amparando-o, bem sabemos que<br />
besteiras ele faz.<br />
Então, para esse próprio processo natural correr segundo<br />
a natureza, o Anjo da Guarda, o sobrenatural, a<br />
graça estão juntos, mais ou menos como há Anjos regendo<br />
cada corpo celeste. Todo o jogo planetário tem a sua<br />
vida natural, mas existem Anjos que o regem, sem que<br />
deixe de ser um fenômeno natural, porém com intercorrências<br />
e apoios sobrenaturais que entram para completar<br />
isso.<br />
Assim, quando desce uma bênção sobre uma dinastia,<br />
por exemplo, a tendência geral de todos para o bem produz<br />
um movimento subconsciente, que destila uma família<br />
que a ordem natural indicou. Mas por detrás da ordem<br />
natural está a Providência.<br />
Quando desce uma<br />
bênção sobre uma dinastia, a<br />
tendência geral<br />
de todos para o bem produz<br />
um movimento subconsciente,<br />
que destila uma família que<br />
a ordem natural indicou.<br />
Mas por detrás<br />
da ordem natural está<br />
a Providência.<br />
Chin tin (CC 3.0)<br />
Humildade e flexibilidade<br />
A dinastia é, no alto de um país, mais ou menos como<br />
as duas torres de Notre-Dame, tendo ao fundo aquela<br />
espécie de flecha. Elas ordenam e explicam a catedral,<br />
e a levam à sua mais alta expressão, mas não são propriamente<br />
o edifício. Também não são estranhas a ele; elas<br />
são uma magnífica protuberância do edifício.<br />
Assim também, o rei é uma magnífica protuberância<br />
da nação.<br />
Vou dizer uma coisa um tanto ousada, mas que parece<br />
deduzir-se do até aqui exposto. A situação do rei é, de-<br />
Benh (CC 3.0)<br />
Aspectos da Catedral Notre-Dame - Paris, França<br />
19
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Thesupermat (CC 3.0)<br />
baixo de vários pontos de vista,<br />
parecida com a do religioso:<br />
ou ele tende continuamente<br />
para a perfeição, ou é um demolidor<br />
da ordem da qual ele<br />
é, ao mesmo tempo, o princípio<br />
ordenador e explicador perfeito,<br />
e o símbolo máximo. De onde,<br />
então, a necessidade de haver<br />
muitos reis santos para que<br />
todo esse prédio não caia no<br />
chão.<br />
Dou um exemplo que pode<br />
ajudar-nos a compreender a<br />
humildade e a flexibilidade exigidas<br />
de um monarca.<br />
Um professor pode ser tão<br />
plenamente um mestre, que ele<br />
estimule todas as energias intelectuais<br />
dos discípulos a produzirem tudo quanto podiam<br />
e até mais. O problema seria encontrar um professor<br />
que tivesse este talento, mas seria também de conseguir<br />
que o professor não incentivasse no aluno uma ambição<br />
maior do que a capacidade dele. De maneira que<br />
em nenhum momento da formação quisesse que o menino<br />
fosse um mocinho, que o moço fosse um homem<br />
maduro, etc., mas respeitasse os limites naturais de cada<br />
etapa. Do contrário, esgotaria o sujeito e o transformaria<br />
em fogo de artifício gasto, não valendo mais nada.<br />
Briséis~commonswiki (CC 3.0)<br />
Luís XV, Luís XVI<br />
são fenômenos<br />
de cansaço desse<br />
arquiprofessor<br />
que foi Luís XIV<br />
Acima, Marcha do Rei<br />
com seus guardas<br />
Biblioteca Nacional,<br />
Haia, Holanda.<br />
Ao lado, estátua equestre<br />
de Luís XIV - Palácio de<br />
Versailles, França<br />
Quando um homem que lidera uma nação consegue<br />
levá-la a dar tudo, mas não procura fazê-la dar demais,<br />
deixa “gasolina” para os séculos futuros. Mas quando o<br />
líder a faz andar demais, ela decai durante o governo dos<br />
sucessores dele.<br />
A meu ver, um dos grandes erros de Luís XIV foi que<br />
ele quis fazer a França progredir demasiadamente rápido.<br />
Versailles deveria ter sido construído cem ou duzentos<br />
anos mais tarde. Ele procurou esticar a França e, como<br />
resultado, veio o cansaço. Luís XV, Luís XVI são fe-<br />
20
nômenos de cansaço desse arquiprofessor que<br />
foi Luís XIV.<br />
O “vovosão” Dom Pedro II<br />
No Brasil deu-se um fenômeno diverso. A família<br />
imperial brasileira estava colocada numa<br />
posição muito singular, porque tomava um país<br />
muito atrasado que se encontrava sob a direção<br />
de uma nação decadente, e com a influência<br />
da luta contra uma selva habitada por índios<br />
e dotada de uma natureza tão pujante que<br />
o homem, em certos momentos, fica semidesnorteado,<br />
sentindo-se meio pequenino. Tanto<br />
mais que se a pujança fosse sempre a do belo,<br />
seria uma coisa; mas muitas vezes é a pujança<br />
do grotesco.<br />
Então, parece-me que sob esse ponto de vista,<br />
D. Pedro II e Dona Teresa Cristina foram<br />
de um ajuste muito profundo e acertado, não<br />
intencional, porque o intencional nunca acerta<br />
tanto. Creio que D. Pedro II conseguiu ser o<br />
que o Brasil queria: o “vovosão” do país; e Dona<br />
Teresa Cristina a avó bem-amada do Brasil,<br />
querida e respeitada por todos. Havia uma espécie<br />
de ligação que, numa monarquia europeia,<br />
pessoas da mesma dinastia não teriam.<br />
Por exemplo, a cena que Dona Lucilia contava:<br />
D. Pedro II, visitando o interior, parou em<br />
Pirassununga, desceu do trem e foi para a casa<br />
de meu avô, onde estava preparada a recepção<br />
municipal. O Imperador sentou-se no sofá<br />
e minha mãe, muito menina ainda, foi-lhe apresentada<br />
por meu avô como sua filha mais velha.<br />
D. Pedro II olhou-a e disse-lhe: “Vem cá.”<br />
Ela foi, e ele colocou-a junto de si. Ela ficou muito<br />
agradada por estar sendo assim tratada pelo Imperador.<br />
Mas a mãe dela tinha-lhe feito um penteado ultracuidadoso,<br />
daqueles que, segundo o estilo do século XIX,<br />
se faziam para meninas, com cachos, fita e toda espécie<br />
de coisas. E enquanto conversava com senhores que estavam<br />
ali, todos de pé, o Imperador, distraidamente, começou<br />
a passar a mão nos cabelos da pequena Lucilia.<br />
Meu avô percebeu imediatamente qual seria a reação<br />
de menina: “Estão estragando meu penteado!” Ela<br />
olhou para ele como pedindo socorro. E ele fitou-a, como<br />
quem diz: “Não se mova...” Várias vezes saiu esse<br />
S.O.S. de parte a parte.<br />
No fim, quando o Imperador terminou a visita, o penteado<br />
estava uma ruína. Mas ela nunca mais se esqueceu<br />
desse episódio, que ela gostava de contar.<br />
D. Pedro II na abertura da Assembleia Geral<br />
Museu Imperial, Petrópolis, Brasil<br />
Notem a familiaridade do Imperador alisando assim a<br />
cabeça de uma menina. Isso não aconteceria em outros<br />
países. Mas ele sentia que ali era preciso, e deve ter feito<br />
isso em vários outros lugares. É o Brasil!<br />
Vamos dizer que tivesse entrado ali Luís XIV, sublime<br />
e irrepreensível: “Monsieurs et Dames, le roi va s’asseoir” 1<br />
O rei se senta… Poderia ocasionar uma frieza geral, é<br />
outra questão. Todos sabem quanto admiro a etiqueta<br />
francesa, a um grau paroxístico. Pois bem, mas tem o seu<br />
lugar, não é para cá. Por quê? Porque precisaria levar<br />
muito tempo até ela ser possível aqui, e teria de ser à maneira<br />
do Brasil. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 12/11/1991)<br />
1) Do francês: Senhores e Senhoras, o rei vai se sentar.<br />
Centpacrr (CC 3.0)<br />
21
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
A conversa e a cruz<br />
Mestre na arte da conversa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> explica como ela pode<br />
nascer do sofrimento.<br />
P<br />
ediram-me para falar a respeito da relação existente<br />
entre a conversa e a cruz. Vamos, então,<br />
conversar um pouquinho sobre isso.<br />
Antes de conversar, falar consigo mesmo<br />
A pessoa recolhida fala consigo mesma e só então começa<br />
a conversar. Porque só tem uma boa prosa quem<br />
antes falou consigo mesmo. Não é o doido que fala sozinho,<br />
evidentemente, mas é aquele que pensa e, nas reações<br />
de sua própria alma, encontra o preâmbulo necessário<br />
para conversar. Quem não é assim, é uma caixa de<br />
repetição das sensações, das impressões dos outros, um<br />
papagaio que recompõe colchas de retalhos daquilo que<br />
ouviu. Não é um homem capaz de pensar e, portanto, de<br />
conversar.<br />
Dou um exemplo concreto. Imaginem que alguns dos<br />
senhores vão, por exemplo, deste auditório às sedes onde<br />
residem, guardando o silêncio dentro dos respectivos veículos.<br />
Não havendo conversa, prestam atenção nas coisas<br />
mais díspares pelas quais vão passando pelo caminho<br />
e que vão, assim, sendo captadas pelo intelecto.<br />
Chegando à sede, passam pela capela e vão quietos<br />
para os quartos de dormir. Ao se recostarem, aquilo que<br />
viram vem à memória. Não como se fosse uma fita de cinema,<br />
mas, sem os senhores perceberem, voltam à cabeça<br />
— um pouco mais acentuadas, trabalhadas e analisadas<br />
— aquelas coisas que lhes chamaram mais a atenção.<br />
Se os senhores percorrerem aquele trajeto, em silêncio,<br />
várias vezes numa semana, terão feito de cada viagem,<br />
sem se darem conta, um livro cujas páginas estão<br />
cheias de vida e realidade, não de tipografia.<br />
Em determinado momento, alguém comenta: “Viram,<br />
em tal casa, tal coisa assim?” Vários intervêm: “Não, não é<br />
isso, é de outro modo, etc.” Sem perceber, formaram uma<br />
ideia inteiramente pessoal sobre a qual ninguém conversou.<br />
Assim, quando forem trocar aquelas impressões, permutam<br />
algo que vale a pena tratar, porque cada um dá<br />
àquela imagem uma característica que é a projeção de sua<br />
personalidade naquilo. Nasce, então, uma conversa suculenta,<br />
pois cada um ajuda o outro a ver melhor as coisas.<br />
A conversa e a espuma da champagne<br />
Ficaria uma coisa artificial se todos se sentassem juntos<br />
e decidissem: “Vamos conversar a respeito do trajeto?”<br />
O agradável está em não ser uma combinação, surgir<br />
no improviso e, de repente, a conversa começar a ferver,<br />
porque todos sentem que cada um está pondo o seu<br />
contributo.<br />
A melhor comparação é com a efervescência da espuma<br />
da champagne.<br />
Ao dar este exemplo, algo do que estou expondo se<br />
passou. Todos nós vimos a espuma da champagne e participamos<br />
de conversas. Certamente alguns dos presentes<br />
não se terão lembrado de comparar uma com outra.<br />
Entretanto, depois que um fez essa analogia, tirada de<br />
uma observação pessoal e corriqueira da vida contemporânea,<br />
é possível que, a primeira vez em que tomem<br />
champagne, se lembrem de uma conversa; ou a primeira<br />
vez em que saia uma boa conversa, se lembrem da espuma<br />
da champagne.<br />
Quer dizer, o contributo de um ajudou vários a notarem<br />
na conversa e na espuma de champagne uma relação<br />
que todos tinham visto, mas não tinham explicitado. A<br />
conversa foi boa porque trouxe uma explicitação.<br />
A torcida impede a boa conversa<br />
Imaginem, pelo contrário, que vão conversando durante<br />
o percurso. Começa a conversa durante a qual a pessoa<br />
precisa ter uma virtude — que raramente alguém aos<br />
vinte e poucos anos tem — bastante grande para não ser<br />
imediatamente tomado por uma espécie de “bolsa de valores”<br />
do amor-próprio: quem disse a coisa mais engraçada,<br />
a mais interessante, se prestaram ou não atenção…<br />
Depois, fica uma feira de torcida: alguém diz algo para<br />
provocar excitação, e os demais torcem para degustar<br />
22
aquela sensação. Porém, a torcida é uma coisa inteiramente<br />
diferente da impressão. Ela é uma espécie de torção<br />
que provocamos em nós para tomar um determinado<br />
gosto do que foi observado, mas não é o sabor normal da<br />
impressão que aquilo causaria.<br />
Lembro-me de que havia, quando eu era menino, crianças<br />
que faziam brincadeira com os próprios olhos, apertando<br />
ligeiramente o globo ocular para verem mais fundo,<br />
menos fundo, etc. Eu nunca quis saber dessa brincadeira<br />
comigo, mas admito que pudesse ser engraçada. Entretanto,<br />
é uma coisa muito singular, porque não dá a visão da<br />
realidade que dá o globo ocular na sua posição normal.<br />
A torcida é uma pressão que fazemos em nós para tirar<br />
uma emoção que a coisa, de si, não daria, vendo-a<br />
meio disformemente para gozá-la. Não é a visão séria,<br />
que dá a verdade, mas é uma visão mentirosa.<br />
Essa torcida é um modo de esporear os próprios nervos,<br />
com uma vontade de querer algo nervosamente, pela<br />
ideia de que calmamente não se tira o sabor daquilo.<br />
Alguém talvez já tenha passado por isso: durante os<br />
cinco ou dez primeiros minutos de uma reunião, não<br />
conseguir prestar atenção no assunto tratado, porque estava<br />
torcendo, por exemplo, para conseguir um bom lugar.<br />
Depois, quando vai tentar pegar o tema, a reunião já<br />
embalou e não se acompanha bem o curso.<br />
Resultado: a observação da realidade foi-se embora.<br />
A pessoa para viver aquilo, torceu, deformou seus nervos<br />
e não tomou o sabor exato das coisas. Fez como aquele<br />
que brinca com os olhos.<br />
Na hora de conversar sobre aquilo, como a pessoa<br />
sente que tem um comentário vazio a fazer, fala de modo<br />
excitado para ver se chama a atenção. Sai daí uma conversa<br />
excitada, rasa, onde há risco de se dizer bobagens.<br />
Os benefícios da solidão<br />
Agora, prestem atenção na fisionomia de alguém<br />
quando está sozinho. O isolamento põe o indivíduo nos<br />
eixos. Ele não tem para quem fazer graça, com quem se<br />
excitar. Ele cai nos seus próprios gonzos e começa a ver<br />
as coisas na normalidade de seu ser.<br />
Como me alegra notar, naqueles que vivem um tanto<br />
isolados, olhares que refletem a pessoa na sua autenticidade!<br />
Quando se está sozinho, fica-se sério; e, vivendo numa<br />
tranquilidade séria, o indivíduo vai se formando, abrindo<br />
os olhos para as verdades. É, aliás, uma das razões pelas<br />
quais se tem tanto medo de ficar sozinho: é porque se torna<br />
sério; e as pessoas têm pavor da seriedade, pois ela diz<br />
coisas que nossa frivolidade não quer ouvir.<br />
Ficando sério, o homem começa a ouvir a voz das profundidades<br />
de sua alma, que ele percebe corresponder às<br />
altitudes da ordem do ser. O espírito solitário, ao cabo de<br />
algum tempo, começa a ficar profundo. Porque do fundo<br />
dele nascem os problemas, as questões, o interesse, as<br />
indagações, as leituras… O que ele tem de melhor vai se<br />
definindo e adquirindo vida e curiosidade.<br />
Mas também, o que ele tem de mais sério leva-o a discriminar,<br />
classificar, julgar, e ele vai tomando uma relação<br />
pessoal com aquilo que leu. Ao cabo de algum tempo,<br />
está em condições de florescer num comentário. Mas<br />
este vem dessa espécie de profundidade que a solidão dá.<br />
O pensamento nasce da dor como<br />
o som de um instrumento<br />
Alguém poderia objetar: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o senhor está<br />
desviando o tema da exposição. Nós pedimos para o senhor<br />
falar sobre a conversa e a cruz, e o senhor está tratando<br />
da conversa e da seriedade!”<br />
É que há uma identidade profunda entre o amor à seriedade<br />
e o amor à cruz, e eu não fiz senão preparar o<br />
terreno para falar do amor à cruz, e da conversa nascida<br />
da cruz.<br />
Assim como num instrumento de cordas o som nasce<br />
porque se passa o arco pelas cordas, ferem-se as cordas<br />
para que elas cantem; assim como um instrumento<br />
de percussão ressoa porque se bate naquela membrana,<br />
também é pela pressão que o homem reage. Quando algo<br />
o faz sofrer, ele pensa como nunca. O homem que sofre,<br />
este sim, pensa verdadeiramente e elabora um pensamento<br />
particularmente excelente.<br />
As dores do corpo...<br />
Há situações tremendas de sofrimento, como as amputações<br />
que se faziam antigamente, quando não havia<br />
anestésicos. Por exemplo, na Idade Média, em que para<br />
serrar uma perna, amarrava-se o paciente de cabeça para<br />
baixo para diminuir a hemorragia, e passava-se o serrote<br />
na perna dele. Havia casos de guerreiros que tinham suas<br />
duas pernas amputadas.<br />
Às pessoas de nosso século é difícil imaginar como alguém<br />
suportava uma dor como essa. Não estou muito<br />
longe de achar que um homem contemporâneo, a quem<br />
se tivesse que amputar uma perna, assim em cru, depois<br />
não ficasse meio louco o resto da vida.<br />
Depois, cauterizavam a ferida encostando brasas sobre<br />
a carne cortada para, queimando e secando, evitar a infecção.<br />
Quer dizer, depois de tudo cortado, ainda vinha isto!<br />
Podemos imaginar a dor do pós-operatório em um homem<br />
nessas condições. Durante quantos dias aquilo doeria?<br />
No ciclo normal da dor, primeiro dói muito; depois<br />
melhora um pouco e dói somente quando se movimenta;<br />
passa-se o tempo e melhora um pouquinho mais, doendo<br />
23
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
apenas quando se fazem alguns movimentos desajeitados;<br />
afinal, em certo momento, cicatriza e não dói mais.<br />
Aparecem, então, outros problemas: Como se deslocar?<br />
Como entrar em contato com os outros? Quem vai<br />
procurar um indivíduo nessas condições? Quem quererá<br />
conversar com ele? Começa a solidão, o abandono. Os<br />
cumprimentos amáveis, mas de longe, e acabou.<br />
O coitado serve-se de pequenas habilidades para<br />
atrair a si este ou aquele, para ter uma pequena conversa,<br />
mas não consegue. Então, arranja um livro para ler,<br />
e o livro distrai pouco, porque ele é muito extrovertido<br />
e só se alegra conversando. E lá vai toda aquela série de<br />
problemas...<br />
É ou não é verdade que nessas horas o indivíduo começa<br />
a pensar? “Como está tremendo este sofrimento!<br />
E agora, como será minha vida? Ainda sou moço, tenho<br />
muito tempo pela frente, como vai ser até o fim? Para o<br />
que eu nasci? Como se explica que eu esteja sofrendo isto?<br />
Ai, meu Deus!”<br />
...e as dores da alma<br />
Serrar as pernas é uma coisa bárbara, mas a alma sofre<br />
mais do que o corpo. Quantas coisas acontecem na<br />
alma e fazem sofrer mais do que uma amputação! A vida<br />
traz situações tremendas: a pessoa caluniada, que não<br />
encontra um meio de se reabilitar, por exemplo. E daí<br />
para fora, quantas situações a vida apresenta!<br />
Lembro-me de que um padre jesuíta, com quem tive<br />
muito contato, contava uma coisa tremenda que se deu<br />
em Berlim:<br />
Uma senhora, de pequena burguesia, morava num prédio<br />
de apartamentos e houve um incêndio. Ela saiu deixando<br />
em casa sua filhinha, e quando voltou, encontrou<br />
tudo em chamas. O único jeito de salvar a criança era enfrentar<br />
as labaredas, mas com o risco de morrer queimada<br />
ou ficar completamente desfigurada. Essa senhora enfrentou<br />
tudo, por amor à filhinha, e levou-a para fora.<br />
Porém, ficou a vida inteira com o rosto tão horrendo<br />
que ela não o mostrava para ninguém. Usava, até dentro<br />
de casa, um chapéu do qual pendia um véu leve que lhe<br />
cobria a face, cuja pele ficara medonha.<br />
Essa menina ficou mocinha e começou a frequentar<br />
maus lugares. A mãe, muito religiosa, se afligia naturalmente<br />
com isso. E quando ela sabia que a filha estava em<br />
algum lugar ruim, ia até lá e mandava chamá-la.<br />
Certa noite, ela soube que a mocinha estava num mau<br />
ambiente e mandou-a chamar, mas a filha não foi. A mãe<br />
ficou muito aflita, com medo de um desastre moral com<br />
a menina, e entrou para pegá-la.<br />
Ao falar com sua filha, que estava acompanhada, esta<br />
deu uma risada e disse:<br />
— Quem é você? Não a conheço!<br />
A mãe respondeu, levantando o véu que cobria seu<br />
rosto:<br />
— Não me conhece? Minha filha, olhe quem eu sou!<br />
A filha deu uma gargalhada e disse:<br />
— Monstro, não te conheço!<br />
A pobre senhora voltou sozinha para casa.<br />
Não era melhor ter levado um tiro? Não tem palavras!<br />
Pensar na maldade da filha que, vendo a mãe se afastar<br />
sozinha e triste, continuou no rega-bofe e na perdição!<br />
Qual foi a dor dessa mãe que, com certeza, a noite inteira<br />
não dormiu? Terá dormido nas noites seguintes?<br />
Pode haver ingratidão pior do que esta?<br />
Do sofrimento brota a reflexão<br />
São as dores da alma. Mas como elas fazem pensar,<br />
refletir!<br />
Talvez essa senhora tenha pensado: “Essa menina andou<br />
mal… que ingratidão! Eu me imolei por ela, e ela caçoa<br />
da hediondez que tomei por amor a ela! Minha filha<br />
esbofeteia, a bem dizer, o meu coração que lhe estendi, e<br />
pisa sobre o meu afeto do modo mais ignóbil… Lembro-<br />
-me dela quando era boazinha, quando me queria bem,<br />
quando me abraçou e me beijou… E quando eu contei<br />
para ela o que aconteceu, como ela ficou agradada e<br />
agradecida! Foi ao jardim, colheu uma flor, pôs num vaso,<br />
e eu pensei: ‘Estou paga!’ Agora, vejo o pagamento…<br />
Do que me adiantou ter feito isso? Mas sei que fiz bem.<br />
Entretanto, como se explica que eu tenha feito bem, se<br />
era para receber este pagamento?”<br />
E do fundo da alma vem a resposta:<br />
“É porque tu serviste a Deus!”<br />
Uma coisa é ter chegado a esta conclusão na dor, outra<br />
coisa é ler num tratado a teoria: o homem nasceu para<br />
amar, servir e dar glória a Deus, etc. Isto, na teoria, está<br />
muito bom, e é magnífico! Mas quem passou pela coisa,<br />
tomou o sabor amargo e o sabor deleitável do princípio,<br />
dirá:<br />
“Nunca mais um sofrimento vai me abater. Eu já vivi, a<br />
minha vida está para trás… — uma senhora assim é uma<br />
morta-viva — a minha vida está para trás. Seja qual for<br />
o sofrimento que eu receba, tudo isto acabou para mim.<br />
Eu agora vivo para Deus. Porque se eu vier a ter outra filha,<br />
olharei para essa criança no berço e me perguntarei:<br />
ela não repetirá o que fez a irmã? O que vale o afeto humano?<br />
O afeto de uma filha à sua mãe, coisa tão apreciável,<br />
do que vale, quando o homem é capaz de ingratidões<br />
como esta? Só um vale, porque Ele é eterno, perfeito, e<br />
me ama infinitamente; porque o Filho d’Ele Se encarnou<br />
e morreu na Cruz por amor a mim. Está tocando o sino<br />
da igreja, é hora da Via Sacra… Vou fazer minha Via Sa-<br />
24
cra e contemplar a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e<br />
aprender assim a carregar o peso da vida.”<br />
A dor católica perfuma a<br />
conversa como o incenso<br />
Considerem almas que tenham passado por situações<br />
dessas e que conversam entre si. Só isso não bastaria para<br />
perfumar um convívio durante uma tarde inteira?<br />
Quando se teve uma vida muito cheia de dores sofridas<br />
com paz e resignação, é agradável tomar<br />
as feridas cicatrizadas, as amputações<br />
espirituais pelas quais se passou — o<br />
que queria e não teve, ou desejava e<br />
perdeu, ou conquistou a duras penas<br />
e despencou sobre si — e pensar,<br />
pensar… Fica aquela doçura<br />
daquela paciência, da entrega a<br />
Deus e a Nossa Senhora. “Eles<br />
quiseram, Eles permitiram, sejam<br />
Eles benditos! Fizeram comigo<br />
o que se faz com o incenso:<br />
rasga-se a árvore e a resina<br />
sai para o fabrico do incenso.<br />
Assim também, o dedo dos fatos<br />
me rasgou, e de mim brotou a<br />
resina do bom sofrimento. Agora<br />
eu me lembro disso, e sobre isso eu<br />
filosofo e converso.”<br />
Ninguém pergunta a um gozador<br />
da vida qual foi o passado dele. Para<br />
quê? Não interessa. Quem abordaria um<br />
homem na saída de um clube para lhe<br />
dizer: “Conte-me quais foram as piadas<br />
que você ouviu e as distrações que você<br />
teve. Você ganhou no jogo?”<br />
Onde vamos procurar o perfume do<br />
passado? Onde esteve a dor católica.<br />
Não é uma dor qualquer, porque há dores das quais também<br />
não se tem vontade de ouvir contar: “Eu amanheci<br />
com uma dor aqui no joelho, mas depois me deu uma<br />
tossezinha…” Por que não se tem vontade de ouvir contar<br />
isso? Porque não estava ali a dor das dores: a dor de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Havia um tipo de relógio, que conheci em menino,<br />
com um mostrador onde vinha indicado o que aconteceu<br />
a cada hora da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Imaginemos um doente que, tendo diante de si esse<br />
relógio e sofrendo uma dor de cabeça muito forte, exatamente<br />
na hora em que Jesus foi apresentado ao povo<br />
por Pilatos, se lembrasse da divina fronte coroada de espinhos<br />
e pensasse: “Quanto a fronte d’Ele sofreu mais<br />
do que a minha! Ele sofreu isso por mim, e eu não oferecerei<br />
por Ele?”<br />
A esse doente sim, teríamos interesse de ouvir contar<br />
seus padecimentos, pois entra a resignação, a aceitação,<br />
e com elas uma qualidade na alma que é uma participação<br />
do sofrimento do Redentor. Isso faz com que, na hora<br />
de falar, a pessoa diga palavras cheias de néctar.<br />
É uma vantagem sabermos tirar proveito do bom convívio<br />
e da boa conversa dos que sofrem em união com<br />
Jesus Cristo na Cruz, porque a alma batida pelo sofrimento<br />
é como a árvore que começa a dar a<br />
resina ideal, a qual pode ser transformada<br />
em incenso.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Jesus coroado de espinhos<br />
Paróquia Nossa Senhora da<br />
Ajuda, Ilha Bela, Brasil<br />
Dor da qual floresce<br />
uma alegria prateada<br />
Esse é o padecimento que eleva<br />
a alma. Não é como o bicho<br />
por cima do qual passou um automóvel,<br />
e que fica ganindo<br />
na rua até expirar, mas é a dor<br />
do católico que se une à dor de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, às lágrimas<br />
de Nossa Senhora e aceita:<br />
“Eu vos ofereço isso. Adoramus<br />
te Christe et benedicimus tibi,<br />
quia per sanctam Crucem tuam redimisti<br />
mundum — Nós vos adoramos,<br />
ó Cristo, e vos bendizemos, porque pela<br />
vossa santa Cruz redimistes o mundo.<br />
Mater dolorosa, ora pro nobis 1 .”<br />
Essas almas assim, porque são resignadas,<br />
têm até momentos em que a<br />
alegria floresce nelas. Mas não é a alegria<br />
do gozador da vida; é a alegria pura,<br />
feita de prata, do inocente. Alegria<br />
casta do homem desprendido e que sabe<br />
conversar por amor desinteressado aos outros, contando-lhes<br />
coisas, falando para fazer-lhes bem, e com o<br />
desejo de ser bom para eles. E sentindo gáudio em ver<br />
que eles ficam alegres. A conversa chega ao seu apogeu!<br />
Com isso, fica explicado como as alegrias, as curiosidades,<br />
as bondades, as gentilezas da alma que aprendeu<br />
a sofrer tornam atraente o convívio e, consequentemente,<br />
encantadora a conversa. <br />
v<br />
1) Do latim: Mãe dolorosa, rogai por nós.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 27/10/1984)<br />
25
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
O tesouro da vida<br />
A Revolução, instigando a desordem nas almas, procurou destruir o<br />
verdadeiro vínculo entre os homens. A virtude da temperança cria<br />
o clima em que esse vínculo se afirma; onde há apegos surgem as<br />
fricções e inimizades.<br />
Apropósito da doutrina sobre a sustentação dos<br />
seres 1 , pediram-me que estabelecesse uma distinção<br />
entre os conceitos de causa, participação,<br />
sustentação e semelhança.<br />
Seres materiais e seres espirituais<br />
Tomando em seu sentido corrente — e não na acepção<br />
dos quatro tipos de causas classificados por Aristóteles —,<br />
a causa é aquilo em virtude de cuja ação algo existe.<br />
Poder-se-ia perguntar se a ação causadora não supõe<br />
certa sustentação, ou seja, se tal ação, ao produzir algo,<br />
não o faz de tal maneira que continua a sustentá-lo necessariamente.<br />
Em relação a Deus e os seres por Ele criados isso se<br />
pode dizer. Sendo perfeitíssimo, em princípio, ao criar<br />
os seres mais elevados, Ele os causa para sempre. Evidentemente,<br />
há muitas criaturas que Deus causa e, posteriormente,<br />
faz cessar ou deixa de sustentar. Na ordem<br />
da matéria há incontáveis exemplos. Toda matéria viva<br />
está nessa linha. Portanto, essa sustentação não se aplica<br />
necessariamente para todas as criaturas, mas está na<br />
ordem dos seres espirituais. Estes, sim, uma vez que Ele<br />
os criou, não poderia deixar de causar. Esta ação de causar<br />
reiteradamente se chama sustentação. Vista por este<br />
lado, a sustentação seria uma causação ininterrupta e<br />
eterna.<br />
A sustentação, entretanto, não é só um efeito da causa.<br />
Tomemos como exemplo uma cabra. A causa imediata<br />
dela foi o casal caprino que a gerou. Mas este morreu,<br />
desapareceu. Contudo, essa causação continua, a<br />
seu modo, por meio de uma sustentação da parte das outras<br />
cabras.<br />
Aqui já não se pode dizer que é a causa, senão num<br />
sentido mais remoto pelo qual aquilo que chamaríamos<br />
de “capricidade” — ou seja, um atributo exclusivo desta<br />
espécie — corresponde a um modelo ideal em Deus,<br />
criado para refleti-Lo e que Ele quer que se mantenha<br />
por uma espécie de ação a qual, enquanto produzida reciprocamente<br />
pelos vários seres, não é causada por Deus,<br />
mas que Ele deseja que os seres exerçam uns sobre os<br />
outros.<br />
Causa e sustentação colateral;<br />
semelhança e participação<br />
Nessa ação se dá o que nós poderíamos chamar de<br />
sustentação num sentido mais familiar, que é o por onde<br />
seres que não são causas uns dos outros, entretanto, pela<br />
participação numa mesma natureza, sustentam-se mutuamente.<br />
Naturalmente, há uma analogia entre causa e sustentação<br />
colateral, uma vez que a vida cessaria se tal sustentação<br />
desaparecesse. Contudo, enquanto a causa propriamente<br />
dita é prévia ao ser, a sustentação colateral é<br />
concomitante com ele, e nisto se distingue da causa.<br />
Aqui se vê bem um conceito acessível de participação,<br />
pois dessa “capricidade” todos participam. O que quer<br />
dizer aí participar? Evidentemente, é ter parte. Mas o<br />
que isso significa neste exemplo concreto?<br />
A “capricidade” pode ser concebida, de modo abstrato,<br />
distintamente de todos os seres, como um possível em<br />
Deus. Mas ela, criada, vive e se realiza nas cabras e nunca<br />
fora das cabras, em qualquer outro ser. O fato de o ser<br />
de todas elas ter em comum um mesmo princípio se chama<br />
“participação”.<br />
Essa participação torna os seres análogos e, ao mesmo<br />
tempo, a analogia ajuda a participação.<br />
Portanto, analogia não se confunde com participação,<br />
são conceitos distintos. A analogia, ou seja, a seme-<br />
26
Carlos Magno, de fato,<br />
no mais fundo de sua alma<br />
queria o que desabrochou.<br />
No consciente, ele queria o<br />
romano; no subconsciente<br />
ele tendia, germinativamente,<br />
para o feudal, e nisso<br />
ele foi original.<br />
Amalário de Metz (CC 3.0)<br />
lhança, é meio causa e<br />
meio efeito da participação.<br />
Como as cabras têm<br />
a mesma “capricidade”,<br />
tornam-se análogas. Então<br />
a analogia aparece como<br />
fruto da “capricidade”<br />
participada. Mas, enquanto<br />
auxiliar da participação,<br />
é meio causa desta.<br />
Entrelaçamento<br />
de almas<br />
Michail (CC3.0)<br />
Ao lado, coroação de Carlos Magno<br />
Museus Vaticanos.<br />
Abaixo, símbolo do Sacro Império<br />
Romano-Alemão com seus principados<br />
Para aplicar esta doutrina ao âmbito humano, consideremos<br />
a instituição do Sacro Império. Houve várias<br />
épocas em que ele esteve reduzido a um símbolo, porque<br />
tal era o tumulto entre aquelas nações que o constituíam,<br />
e, dentro dessas nações, entre os feudos e seus respectivos<br />
senhores feudais, que a autoridade imperial ficou<br />
um mero símbolo.<br />
Mas, assim que as circunstâncias o propiciavam, a autoridade<br />
imperial tomava novamente sua densidade para<br />
tender a ser aquilo que naturalmente todos sabiam,<br />
em tese, que ela deveria ser e que nunca se tentou abolir.<br />
Quem extinguiu o Sacro Império foi Napoleão, mas antes<br />
disso jamais se procurou aboli-lo, embora muitas vezes<br />
se tenha atentado, concretamente,<br />
contra a autoridade<br />
dos imperadores.<br />
Como se explica que esse<br />
símbolo tenha sobrenadado,<br />
quase sem razões explicáveis<br />
de sobrevivência, senão<br />
por esse entrelaçamento<br />
de almas que fazia com<br />
que todos compreendessem<br />
que esse símbolo representava<br />
uma união de<br />
fundo mais ou menos inefável,<br />
e que era necessário<br />
haver, pairando no ar,<br />
uma representação simbólica<br />
como uma esperança<br />
de dias melhores?<br />
Entretanto, isso só é possível por meio de vínculo<br />
de homem a homem que a Revolução, com suas desordens,<br />
procurou destruir, pois esse vínculo só existe onde<br />
há certa dose de temperança. Ele não é mero fruto<br />
da temperança, mas este é o clima no qual ele se afirma.<br />
Porque desde que comecem os apegos, surgem as fricções<br />
e inimizades.<br />
Na elaboração de um ideal de império cristão deu-se<br />
uma coisa muito curiosa: desde o tempo das catacumbas,<br />
os católicos começaram a ver o Império Romano — que<br />
tinha apenas uns traços de semelhança com essa representação<br />
simbólica — com o olhar imbuído de espírito<br />
católico. E a lembrança desse império foi sendo enriquecida<br />
pelos católicos com dados que ele não tinha.<br />
27
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Foi sendo composta, dessa forma, uma suprema ordem<br />
em que a graça, o sangue católico, por assim dizer,<br />
foram tecendo essa relação humana, de maneira que<br />
quando o Império do Ocidente caiu, o melhor dele estava<br />
de pé, que era o ideal de uma ordem perfeita de relacionamento<br />
entre os homens. E isto foi o que alimentou<br />
a esperança dos católicos e a sofreguidão com que o Papa<br />
São Leão III coroou Carlos Magno.<br />
Carlos Magno quis fazer o Império Romano e saiu o<br />
feudal, porque não distinguia bem uma coisa da outra.<br />
Ele, de fato, no mais fundo de sua alma queria o que desabrochou.<br />
No consciente, ele queria o romano; no subconsciente<br />
ele tendia, germinativamente, para o feudal, e<br />
nisso ele foi original.<br />
O pariato<br />
Encontram-se na Idade Média umas manifestações<br />
dessa vinculação de alma particularmente nobres, densas,<br />
como, por exemplo, a ideia do pariato. A noção de par<br />
tem alguma coisa disso. É uma determinada vinculação,<br />
um determinado comércio de almas que faz com que o<br />
par, sendo semelhante a outro, se deleita nessa semelhança,<br />
sem ter vontade de aproveitar-se do outro para subir,<br />
porque ele se deleita nessa semelhança e nessa paridade, e<br />
dela se nutre mais do que se ele fosse superior.<br />
Um político tipo César Borgia, do século XVI, já é um<br />
que quer subir, que não compreende o pariato a não ser<br />
como os cavalos numa corrida que estão todos juntos:<br />
abre aquela cancela e saem para a corrida. Tais políticos<br />
entendem o pariato como uma coisa destrutiva de si própria.<br />
E o pariato não é isto. É o deleite de ter comércio<br />
com seu igual, de sustentá-lo e sustentar-se na recíproca<br />
contemplação, sem ambição de destruição. E na subordinação<br />
a um superior, que era o suserano, que preenchia<br />
o vácuo e tornava a ambição da emulação impossível.<br />
Havia tal noção da força desse pariato, que, quando<br />
um dos pares fazia algo que superava os outros, todos<br />
se sentiam honrados e eram levados a empurrar para a<br />
frente a honra coletiva, dando outra contribuição e mantendo<br />
essa semelhança nutritiva.<br />
Isso foi destruído pela Revolução, e hoje não se compreende<br />
mais.<br />
Essa relação de pariato — estável, digna, uma flor do<br />
convívio humano — é o mútuo respeito entre iguais. É<br />
uma coisa que me deleita: ver iguais que se encontram<br />
e fazem reverência um para o outro. Em certo sentido, a<br />
mera reverência do inferior ao superior não tem a beleza<br />
da reverência entre iguais.<br />
Eu ainda peguei algo disso nas maneiras antigas, no<br />
trato entre amigos de uma geração que ficava entre a de<br />
meus pais e de meus avós. Encontravam-se na rua, por<br />
exemplo, cumprimentavam-se com certa solenidade.<br />
Exatamente tinha algo daquele mútuo apreço carregado<br />
de respeito, em que entrava uma das coisas mais nobres<br />
da alma do homem, que é o respeito por si mesmo, e<br />
que não é a visão vaidosa, não tem nada de comum com<br />
a vanglória. É o respeito de si por ser quem é. Dois iguais<br />
se encontram, se deleitam, se respeitam:<br />
é o festim da sustentação<br />
mútua.<br />
A compagnonnage<br />
Rick Morais (CC 3.0)<br />
Henrique de Borgonha recebe a investidura do Condado Portucalense, em<br />
1096, das mãos de Afonso VI de Leão e Castela - Palácio de Versailles, França<br />
Como eu dizia há pouco, não desejando<br />
romper isso para ser mais<br />
do que o outro — o que é fruto da<br />
Revolução —, mas querendo manter-se<br />
iguais; e um, elevando-se,<br />
procurar elevar o outro consigo.<br />
Quando alguém da categoria se<br />
sobressaía, todos se sentiam convidados<br />
a se elevar também. Assim<br />
se passava na classe nobre do pariato,<br />
mas que tinha na classe plebeia<br />
uma expressão muito bonita,<br />
que era a compagnonnage, que se<br />
traduz hoje inadequadamente por<br />
companheirismo, camaradagem.<br />
O termo, em português, se deteriorou<br />
ao máximo, mas a com-<br />
28
Reprodução<br />
Tomada de Beirute pelos Cruzados, em 1197 - Palácio de Versailles, França<br />
pagnonnage se verificava entre dois cujo gáudio mútuo<br />
era o de serem companheiros, iguais, e de se considerarem,<br />
embora sem tanta nobreza, com muita autenticidade,<br />
com muita amizade, com verdadeira fraternidade, e<br />
se apoiarem.<br />
Eis a grande virtude católica que se exprime no gáudio<br />
do pariato, no encontro cheio de respeito de dois que são<br />
iguais, na noção de que quando, numa classe de iguais,<br />
alguém sobe, tende a levar consigo toda a classe, não a<br />
usurpar a chefia dentro da classe porque subiu, e que se<br />
exprimia na nobreza pela lealdade feudal.<br />
Antecâmera do Céu<br />
Neste aspecto da vida da Igreja ou da Civilização Cristã<br />
vê-se uma fulguração: a santidade, a bondade, a verdade,<br />
a ordenação daquilo refulge com uma beleza extraordinária!<br />
Por exemplo, as Cruzadas de um modo geral, sobretudo<br />
no que elas têm mais de mítico do que de real, de histórico,<br />
quer dizer, como os cruzados imaginaram a Cruzada,<br />
como o medieval imaginou o cavaleiro, são ideais<br />
que têm um relampaguear próprio, uma beleza peculiar<br />
e fulgurante, e que faz a pessoa ver com muita clareza,<br />
em primeiro lugar, até que ponto a natureza humana se<br />
realiza inteiramente ali e é elevada acima de si mesma. É<br />
qualquer coisa que supera o homem.<br />
Isto produz um respeito, uma emoção e uma vontade<br />
de se colocar dentro daquele fluxo, daquele nexo, ser daquilo<br />
que a pessoa tem certa noção, sobretudo se alguém<br />
toma iniciativa de dizer, de fazer ver que resulta da Fé<br />
católica, do fato de ser católico e que é um influxo do espírito<br />
da Igreja, ou seja, do Espírito Santo naquela instituição.<br />
E a pessoa, vendo aquela instituição, compreende que<br />
é por uma carência explicável dela que ela não vê a Igreja<br />
inteira assim, mas que se ela se aplicar perceberá lampejos<br />
destes em tudo quanto é verdadeiramente da Igreja<br />
e da Civilização Cristã.<br />
Mas também fica habilitada a ver isso nas almas com<br />
que convive. E, de repente, vê numa alma ou noutra certo<br />
lampejo que produz um fenômeno de vinculação, e<br />
que às vezes até pode dar-se em relação a uma coisa não<br />
católica, mas que é da natureza, que ruma, aponta para a<br />
Religião católica.<br />
Esta forma de união que teríamos com um cruzado ideal<br />
que conhecêssemos, esse afeto cheio de veneração que temos<br />
por Godofredo de Bouillon, por Santa Joana d’Arc,<br />
são aperçus 2 desta vinculação de almas — então no terreno<br />
experimental, psicológico — que se entendêssemos bem validamente<br />
o que isso representa, compreenderíamos que é<br />
uma antecâmara do Céu e o tesouro da vida. v<br />
1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 206, p. 22-25.<br />
2) Do francês: visões de conjunto.<br />
(Extraído de conferência de 18/7/1984)<br />
29
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. São Justino,mártir (†c. 165).<br />
São Simeão de Siracusa, eremita (†1035). Nasceu em<br />
Siracusa, Itália, de pai grego. Depois de levar vida eremítica<br />
em Belém e no Monte Sinai, terminou seus dias recluso<br />
na torre da Porta Negra de Tréveris, Alemanha.<br />
7. X Domingo do Tempo Comum.<br />
Beata Maria Teresa de Soubiran La Louvière, virgem<br />
(†1889). Fundadora das Irmãs de Maria Auxiliadora, em<br />
Toulouse, França. Foi injustamente expulsa de sua obra e<br />
passou o resto de sua vida em profunda humildade.<br />
2. Santos Marcelino e Pedro, mártires (†304).<br />
Beato Sadoc, presbítero, e companheiros, mártires<br />
(†1250). Religioso dominicano de Sandomierz, Polônia, foi<br />
vítima dos tártaros, junto com mais 48 religiosos, enquanto<br />
cantavam a Salve Rainha.<br />
3. São Carlos Lwanga e companheiros, mártires (†1886).<br />
São Cono, monge (†séc. XIII). Monge do Convento de<br />
Santa Maria de Cadossa, na Lucânia, Itália, morto muito<br />
jovem.<br />
4. Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.<br />
São Francisco Caracciolo, presbítero (†1608). Fundador<br />
da Ordem de Clérigos Regulares Menores, morreu aos<br />
44 anos, em Agnone, Itália.<br />
5. São Bonifácio, bispo e mártir (†754).<br />
São Doroteu de Tiro, bispo e mártir (†séc. IV). Ainda<br />
presbítero, sofreu muitas perseguições no tempo de<br />
Diocleciano, mas conseguiu sobreviver até os 107 anos,<br />
quando foi martirizado em Tiro, Líbano, no tempo de<br />
Juliano.<br />
6. São Norberto, bispo (†1134).<br />
Beato Inocêncio Guz, presbítero e mártir (†1940). Sacerdote<br />
franciscano polonês, martirizado no campo de<br />
concentração de Sachsenhausen, Alemanha.<br />
8. Santo Efrém, diácono e Doutor da Igreja (†373).<br />
Beato Nicolau de Gestúri, religioso (†1958). Sacerdote<br />
capuchinho, do convento de Cagliari, Itália. Com muita<br />
humildade, dedicou-se aos enfermos e feridos durante a II<br />
Guerra Mundial.<br />
9. São José de Anchieta, presbítero (†1597).<br />
Beata Ana Maria Taigi, mãe de família (†1837). Suportou<br />
com paciência o caráter violento de seu marido e dedicou-se<br />
à educação de seus sete filhos. Favorecida pelo<br />
dom da profecia, tornou-se conselheira de Santos e ilustres<br />
eclesiásticos, em Roma.<br />
10. Beato Henrique de Bolzano, leigo (†1315). Carpinteiro,<br />
dava tudo aos pobres; reduzido à mendicância no final<br />
da vida, partilhava com outros mendigos a esmola que<br />
conseguia, em Treviso, Itália.<br />
11. São Barnabé, Apóstolo.<br />
Santa Rosa Francisca Maria das Dores, virgem<br />
(†1876). Transformou uma associação de mulheres piedosas<br />
na Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Consolação,<br />
em Tortosa, Espanha.<br />
12. Solenidade do Sagrado Coração de Jesus.<br />
São Gaspar Bertoni, presbítero (†1843). Fundador da<br />
Congregação das Santas Chagas de Cristo, em Verona, Itália.<br />
13. Imaculado Coração de Maria.<br />
Santo Antônio de Pádua, presbítero e<br />
Doutor da Igreja (†1231).<br />
São Fândila, presbítero e monge (†853).<br />
No tempo do rei Mohamed I, foi decapitado<br />
em Córdova, Espanha, por defender a Fé<br />
Católica.<br />
Beata Ana Maria Taigi<br />
14. XI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Metódio, bispo (†847). Antes de ser<br />
eleito Patriarca de Constantinopla, foi monge<br />
na ilha de Quios, Grécia, e recorreu a<br />
Roma para defender o culto das sagradas<br />
imagens.<br />
30
–––––––––––––––––– * Junho * ––––<br />
15. Beata Albertina Berkenbrock, <br />
virgem e mártir (†1931). Assassinada<br />
aos 12 anos em São Luís, Santa Catarina<br />
Brasil, por defender heroicamente<br />
a sua castidade.<br />
16. Santo Aureliano, bispo (†551).<br />
Bispo de Arles e Vigário do Papa<br />
Virgílio para a Gália, fundou um<br />
mosteiro masculino e outro feminino<br />
na sua diocese, dando-lhes uma<br />
regra por ele redigida.<br />
reconciliar com Deus os condenados<br />
à morte, em Turim, Itália.<br />
24. Natividade de São João Batista.<br />
São Teodgaro, presbítero (†c. 1065).<br />
Missionário que evangelizou e construiu<br />
em Vestervig, Dinamarca, a<br />
primeira igreja de madeira.<br />
25. São Guilherme de Vercelli, <br />
abade (†1142).<br />
17. São Pedro Da, mártir (†1862).<br />
Carpinteiro e sacristão morto na fogueira<br />
em Qua-Linh, Vietnã, no<br />
tempo do imperador Tu Duc.<br />
18. Santa Isabel, virgem (†1164).<br />
Abadessa do mosteiro beneditino<br />
de Schönau, Alemanha. Foi modelo<br />
de observância da regra de seu convento.<br />
19. São Romualdo, abade (†1027).<br />
Santa Juliana Falconieri, virgem<br />
(†c. 1341). Fundou em Florença, Itália,<br />
o instituto das Irmãs da Ordem<br />
dos Servos de Maria, denominadas<br />
“Mantelatas” por causa de seu hábito religioso.<br />
20. Beata Margarida Ebner, virgem (†1351). Religiosa<br />
dominicana, que sofrendo muitas enfermidades, destacou-se<br />
na prática de mortificações, em Mödingen, Alemanha.<br />
21. XII Domingo do Tempo Comum.<br />
São Luís Gonzaga, religioso (†1591).<br />
São José Isabel Flores, presbítero e mártir (†1927). Capelão<br />
de Matalán, México, degolado durante as pregações<br />
religiosas, em Zapotlanejo.<br />
22. São Paulino de Nola, bispo (†431).<br />
São João Fisher, bispo, e São Tomás Moro, mártires<br />
(†1535). Ver página 2.<br />
23. São José Cafasso, presbítero (†1860). Dedicou-se<br />
à formação espiritual e cultural dos futuros clérigos e a<br />
São Norberto<br />
26. São Josemaría Escrivá de Balaguer,<br />
presbítero (†1975).<br />
Beato Tiago Ghazir Haddad, presbítero<br />
(†1954). Sacerdote capuchinho,<br />
fundador da Congregação das<br />
Irmãs Franciscanas da Cruz, em<br />
Beirute, Líbano.<br />
27. São Cirilo de Alexandria, bispo<br />
e Doutor da Igreja (†444).<br />
São Sansão, presbítero (†560).<br />
De origem romana, viveu desde jovem<br />
em Constantinopla, onde foi ordenado<br />
e fundou um hospital. Usava<br />
os seus conhecimentos médicos em<br />
benefício dos pobres.<br />
28. Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos.<br />
Santo Irineu, bispo e mártir (†c. 202).<br />
Santa Vicência Gerosa, virgem (†1847). Juntamente com<br />
Santa Bartolomea Capitanio, fundou o Instituto das Irmãs<br />
da Caridade (ou das Irmãs de Maria Menina), em Lovera,<br />
Itália.<br />
29. Beato Raimundo Lúlio, religioso e mártir<br />
(†1316). Terciário franciscano. Homem de grande cultura<br />
e eminente doutrina, empenhou-se no diálogo com<br />
os sarracenos e viajou ao norte da África com essa finalidade.<br />
Foi morto quando retornava para Maiorca,<br />
Espanha.<br />
30. Santos Protomártires da Igreja de Roma (†64).<br />
Beato Zenão Kovalyk, presbítero e mártir (†1941). Sacerdote<br />
redentorista, que durante um regime hostil a Deus, foi<br />
martirizado em Lviv, Ucrânia.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Roma sparita<br />
A Roma dos Papas não tinha a monotonia das<br />
grandes cidades modernas, mas possuía muita<br />
fisionomia, porque as pessoas, ao fazerem suas<br />
residências, comunicavam-lhes seu caráter, seu<br />
modo de ser, com o pitoresco que causa o sorriso.<br />
V<br />
ou expor o que era a Roma papal, para termos<br />
um pouco a ideia de que tipo de cidade se tratava,<br />
e depois iremos considerar algumas fotografias<br />
selecionadas de um álbum chamado “Roma sparita”,<br />
ou seja, “Roma desaparecida”. Quer dizer, a Roma<br />
papal que foi demolida pelas reformas nela introduzidas<br />
pela Casa de Sabóia, a qual unificou a Península Italiana<br />
e se tornou a única dominadora da Cidade de Roma, onde<br />
estabeleceu a sua capital, transformando-a, de cidade<br />
antiga que era, numa grande cidade do tipo moderno.<br />
Cidade não planejada, com muita fisionomia<br />
O que vem a ser a Roma do tempo dos Papas? É, ao<br />
mesmo tempo, uma Roma medieval com todas as características<br />
da vida medieval, um tanto reformada no tempo<br />
do período do Ancien Régime 1 , e uma cidade eminentemente<br />
eclesiástica.<br />
Quando falo de uma cidade medieval, o que eu quero<br />
indicar? Era uma cidade raras vezes planejada de antemão.<br />
Por exemplo, se tomarmos, em São Paulo, o bairro<br />
Higienópolis, perceberemos que o traçado das ruas não<br />
foi espontâneo: as casas não foram se acrescentando umas<br />
às outras normalmente, mas houve uma empresa que planejou<br />
e fez o loteamento do bairro, devido ao qual todas<br />
as ruas são em linha reta e se cortam em ângulo reto, fazendo<br />
do bairro uma espécie de tabuleiro de xadrez. O<br />
mesmo se poderia dizer do bairro do Pacaembu, que foi<br />
urbanizado por uma grande empresa norte-americana.<br />
Na época em que o Pacaembu foi urbanizado, o urbanismo<br />
tipo Higienópolis estava fora de moda. Tinha-se<br />
considerado que as avenidas retilíneas, cortando-se em<br />
ângulo reto e formando quarteirões quadrados, eram monótonas.<br />
Então fizeram zigue-zagues e curvas no Pacaembu,<br />
que existem também em outros bairros de São Paulo:<br />
Pinheiros, Jardim América, Jardim Europa, em que não<br />
se usa mais a linha reta, mas as grandes curvas macias.<br />
Porém o que nos interessa no momento é o fato de<br />
que as ruas não foram feitas por cada morador, que colocou<br />
sua casa onde queria, portanto, um pouco mais recuada<br />
da rua, ou um pouco mais para a frente, e dando<br />
à via pública um gráfico todo casual, fortuito; aquilo foi<br />
planejado de antemão.<br />
Também as construções eram menos planejadas do<br />
que se tornaram depois. Uma família construía uma casa;<br />
nascia um filho, mandava construir um quarto no teto<br />
da residência; nascia outro filho, colocava dois quartos.<br />
De repente um velho, que morava num quarto<br />
da casa, começava a ter reumatismo: abria-<br />
-se uma janela no lugar onde devia entrar sol<br />
para o ancião se aquecer. Não se incomodavam<br />
em saber se a casa ficava simétrica ou assimétrica,<br />
bonita ou feia. Era uma necessidade<br />
do velho para não ficar reumático. O idoso<br />
ficava muito pouco consolado com a ideia de<br />
sentir seu reumatismo, para evitar que quem<br />
passasse fora achasse feia a janela que ele ia<br />
abrir. Ele queria o sol sobre a perna ou o braço<br />
doente. Quer dizer, circunstâncias imprevistas<br />
foram formando essas cidades.<br />
Por causa disso, elas não tiveram a monotonia<br />
das grandes cidades modernas e possuíam<br />
muita fisionomia: porque<br />
as pessoas que iam fazendo<br />
essas construções imprevistas<br />
comunicavam seu<br />
caráter, seu modo de ser,<br />
sua fisionomia às casas que<br />
estavam sendo construídas.<br />
De onde Roma, como todas<br />
as cidades desse tipo,<br />
era uma cidade com fisionomia.<br />
A esse dote de ter fisionomia,<br />
nós poderíamos cha-<br />
32
mar, em certo sentido, de pitoresco. O pitoresco é a fisionomia<br />
quando, pelo imprevisto, ela faz sorrir um pouco.<br />
O Panteon e o túmulo de Adriano<br />
Há outra coisa que se acrescentava à Roma: ela era<br />
uma cidade velhíssima, nascida mitologicamente de Rômulo<br />
e Remo. Portanto, uns sete, oito séculos antes de Jesus<br />
Cristo. E com aquele senso de conservação existente<br />
na Europa, do qual nós, brasileiros, não temos uma ideia.<br />
Até hoje certos prédios do tempo dos remotos romanos<br />
são utilizados para uso comum. O Panteon de Roma era o<br />
templo onde adoravam todos os deuses gentílicos antigos.<br />
E, para a Roma de antigamente, era uma igreja bem grande.<br />
O Panteon esteve franqueado ao culto pagão até o momento<br />
em que Constantino mandou fechá-lo. Quando o<br />
Imperador deu a ordem de fechar, não pensem que, à moderna,<br />
derrubaram o Panteon; ele mandou instalar uma<br />
igreja católica ali. E o Panteon é hoje uma paróquia. As<br />
pessoas se casam, são batizadas, confessam-se lá, e a igreja<br />
funciona como qualquer outra. Ali, há séculos, Júpiter era<br />
adorado, e agora é adorado Nosso Senhor Jesus Cristo. E<br />
o prédio ainda se conserva.<br />
A sepultura do Imperador Adriano foi aproveitada: é<br />
uma torre cilíndrica de pouca altura e imenso diâmetro.<br />
Foi utilizada, durante a Idade Média, para fortaleza. Depois,<br />
uma parte dessa fortaleza foi aproveitada para palácio.<br />
O túmulo de Adriano não existe mais. Mas podem-<br />
-se visitar as muralhas da fortaleza e o palácio, que agora<br />
é museu. De maneira que houve a seguinte mutação:<br />
de sepultura de Adriano para fortaleza, de fortaleza para<br />
palácio, de palácio a museu.<br />
Em Roma havia mais de 400 igrejas<br />
Vejamos, agora, as fotografias.<br />
Eis um pórtico, um arco numa rua no gueto de Roma.<br />
A rua existe para uma casa que está em cima.<br />
Ali, uma rua popular, com a roupa lavada, estendida<br />
e gotejando em cima de quem passa; duas velhas comentam<br />
qualquer coisa. É a pequena vida caseira que sai<br />
da casa e se espraia pela rua afora. Reconheçamos que é<br />
bem diferente da Avenida Paulista 2 .<br />
Observem um recanto da velha Roma. Uma casa,<br />
o alinhamento caprichoso da rua, uma bonita torre no<br />
meio de casarões velhos, que eu quase chamaria leprosos.<br />
Um dossel sobre a imagem talvez de Nossa Senhora<br />
com o Menino Jesus. Nichos com imagens de Santos assim<br />
eram frequentes na Roma daquele tempo.<br />
Vejam a escadaria que perfura uma casa a qual já<br />
foi construída assim. A rua é uma escadaria que passa<br />
no meio da velha casa, sem eira nem beira, tem um bonito<br />
balcão de alguma família nobre ou rica que mora<br />
aqui. E isso é uma coisa muito comum até hoje na Itália.<br />
Metade da casa é cortiço, a outra metade é um palácio<br />
de nobres.<br />
Duas irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, com<br />
seus lindos chapéus bretões, andando numa espécie de<br />
praça de terra, sem calçamento, da velha Roma, com uma<br />
magnífica palmeira se espraiando suavemente no clima<br />
romano. Uma nobre torre antiga e mais adiante outra torre.<br />
Roma era uma cidade com mais de 400 igrejas.<br />
Cidade das fontes<br />
Fotos: Reprodução<br />
Esse terreno foi rebaixado para a construção das casas.<br />
Mas aqui, por qualquer razão, o dono não quis que<br />
rebaixasse e ficou alto. E permaneceu a árvore que se<br />
eleva de modo pitoresco aqui. Um muro, uma água parada<br />
e uma bela igreja ao fundo.<br />
Pormenor da vida do tempo: um cachorro, que procura<br />
comida pela rua. É um cão sem dono, na infeliz situação<br />
dos cachorros sem dono.<br />
Uma senhora conduzindo o filho para passear. A<br />
criança está vendo o cachorro, mas ela está tocando uma<br />
espécie de corneta para ver o que o cão faz. Manifestação<br />
musical do gênero italiano. O cachorro é utilitário e<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
está se preocupando exclusivamente com a comida. Não<br />
liga para nada.<br />
Aqui o reboco da casa caiu, mas ela pode durar mais<br />
mil anos. Não pensem que a escada é para escorar a casa;<br />
está encostada do lado de fora para qualquer coisa.<br />
Um cavalo bem lustroso e bonito, uma porta com um nobre<br />
arco, um pátio cimentado de pedras, mas sem qualquer<br />
regularidade.<br />
Outra viela romana. Nas cidades medievais as ruas<br />
eram muito estreitas para caber tudo dentro das muralhas.<br />
A iluminação pública já havia começado. Aqui há<br />
um poste com iluminação a gás, que era o grande progresso<br />
do momento. Também significava progresso a placa<br />
com o nome da rua.<br />
Está chovendo, duas senhoras passam abrigadas num<br />
guarda-chuva insuficiente, e aqui há uma comerciante<br />
oferecendo algum produto. Notem a desigualdade<br />
do solo, como é tudo feito mais ou menos ao acaso.<br />
Isso não se vê de jeito nenhum em rua moderna:<br />
um arco comunicando uma casa com a outra. Eu não<br />
sei por que se condena isso, que é uma coisa que pode<br />
prestar muito serviço.<br />
Uma bela torre. Está mal cuidada e velha, mas é<br />
nobre como uma velha marquesa que conserva sua<br />
nobreza, apesar de todas as devastações do tempo e<br />
do dinheiro.<br />
Numa praça pública, um homem dança, e outro<br />
não presta atenção na dança. Esse aqui parece um<br />
aleijado apoiado num bordão, e vai andando com<br />
uma sacola e uma caixa de música. Essas cidades<br />
eram todas muito musicais. Cantava-se, tocava-se<br />
violino, dançava-se mais ou menos em todos os lugares<br />
e ouvia-se música sair de todas as janelas, com a<br />
voz bonita e o senso melódico tão frequente na Itália.<br />
Cena pitoresca mais uma vez. O burrico puxado<br />
pelo homem, carregado, que vai devagarzinho pela cidade.<br />
Provavelmente um vendedor ambulante.<br />
Aqui, uma como que pequena coluna, e dali brota<br />
água. Roma é a cidade das fontes, em geral com água<br />
muito límpida, muito boa.<br />
Significado da palavra ”pitoresco”<br />
Uma torre que foi fortaleza durante a Idade Média.<br />
Tudo caiu, mas ao lado foi construído um pitoresco jardim<br />
suspenso. Um dos pitorescos em Roma são os terraços<br />
como esse, onde se colocam guarda-sóis grandes e<br />
há restaurantes no local. Um homem toca violino para os<br />
que comem e bebem, e ficam olhando o movimento da<br />
rua, onde se vê um monge dominicano atravessando-a. A<br />
cidade dos Papas era a cidade dos frades.<br />
34
Esse menino tem um lado pitoresco. É um menino<br />
de rua que não teve nenhuma educação e, portanto, está<br />
deitado na carroça como estaria em sua casa. Se ele<br />
estivesse de bruços na cama, tentando pegar um rato no<br />
quarto dele, sua atitude não seria diferente. Apesar disso,<br />
o gesto todo dele não deixa de ter certa harmonia e<br />
muita naturalidade. Não é um gesto feio. Tem certa harmonia<br />
de posição e de atitude, e a naturalidade de uma<br />
pessoa que se sente completamente à vontade na cidade.<br />
É a cidade dele, feita para ele, na qual ele está em casa<br />
como em sua residência particular.<br />
Esse inteiro laissez faire 3 faz parte do pitoresco da atitude<br />
do menino. Alguém diria que isso não deveria ser<br />
assim, e que ele não é um menino educado. Não é verdade.<br />
A educação tem vários graus. Ele possui essa forma<br />
principal e mínima de educação, que é a virtude. Ele<br />
está composto, direito, porque é um menino que teve<br />
uma educação pura. A pureza é o principal da educação,<br />
e não as maneiras. Maneiras ele não tem, mas possui a<br />
compostura do menino direito. É o essencial.<br />
A ideia que eu tenho de pitoresco é imaginar morando<br />
ali gente que são os pais e tios desse menino e desse<br />
outro que está atrás. Talvez esse casal e esses dois homens<br />
sejam moradores aqui. E gente do povinho, inteligente<br />
como é habitualmente o italiano, gente que mora<br />
nos casebres, mas que se pôs numa situação muito pitoresca:<br />
tendo sempre diante dos olhos esse templo, a torre<br />
e o Tibre milenários, e que presencia tudo isso como de<br />
um terraço. O cenário é magnífico: encostado num templo<br />
pagão, uma torre do fim da Idade Média, olhando o<br />
rio romano passar como quem vê a vida fluir com toda a<br />
navegação do Tibre.<br />
Isso é pitoresco porque forma quadros. A palavra “pitoresco”<br />
vem de pintura: pictus, pintado. O pitoresco está no<br />
homem do povinho, com sua inteligência, sua vivacidade,<br />
inalando tudo isso sem saber bem o que é, e vivendo aqui à<br />
romana. Quer dizer, à noite, fazendo um jantar entre o parapeito<br />
e a casa, comendo uma polenta, bebendo vinho<br />
quente e tocando num instrumento de corda que talvez tenha<br />
uma corda ou duas a menos, e cantando a plena voz numa<br />
noite enluarada de Roma. Isso é pitoresco. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 29/1/1977)<br />
Fotos: Reprodução<br />
1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />
2) Extensa via pública localizada entre as zonas centro-sul,<br />
central e oeste da cidade de São Paulo.<br />
3) Do francês: deixai fazer. Aqui tem o sentido de distender-se.<br />
35
Superexcelente<br />
misericórdia<br />
N<br />
ossa Senhora, sendo Mãe, seu Coração<br />
Imaculado não é mais misericordioso do que<br />
o Sagrado Coração de Jesus — seria um absurdo<br />
imaginar isso —, porém seu Imaculado Coração faz<br />
ver mais a misericórdia do Sagrado Coração de Jesus<br />
do que Ele próprio.<br />
Seria mais ou menos como quando os raios do<br />
Sol se concentram através de uma lente e põem<br />
fogo numa folha seca. A lente é tão pouco em<br />
comparação com o Sol, mas sem ela esse fogo<br />
não pegaria.<br />
Portanto, o Imaculado Coração de Maria<br />
seria, por assim dizer, uma lente do Sagrado<br />
Coração de Jesus, uma como que concentração<br />
da misericórdia do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Então, Ela, debaixo desse aspecto, tem uma<br />
superexcelente misericórdia.<br />
Ademais, Maria Santíssima é especialmente<br />
nossa advogada, pois sendo mera criatura é<br />
mais plenamente conatural conosco do que o seu<br />
Divino Filho que, enquanto Homem-Deus, é juiz.<br />
Por essas razões, dir-se-ia que o Imaculado<br />
Coração de Maria representa, num largo e glorioso<br />
sentido, muito especialmente a bondade e a<br />
misericórdia do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
(Extraído de conferência de 26/10/1980)<br />
Sagrados Corações de Jesus e Maria<br />
Catedral de Florença, Itália