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Revista Dr. Plinio 203

Fevereiro de 2015

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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>203</strong> Fevereiro de 2015<br />

Há 40 anos,<br />

um oferecimento<br />

avidamente aceito


Jebulon (CC 3.0)<br />

Tholme (CC 3.0)<br />

A<br />

Energia combativa<br />

história do pontificado do grande Pio IX mereceria<br />

ser estudada a fundo pelos católicos. Ela contém ensinamentos<br />

para nossa época muito mais oportunos e profundos<br />

do que geralmente se pensa.<br />

Quer pela definição do dogma da Imaculada Conceição, em<br />

1854, quer pela convocação do Concílio do Vaticano em 1869, e a definição<br />

do dogma da infalibilidade papal no ano seguinte, este grande Papa enfrentou aguerrida<br />

e resolutamente o naturalismo e o racionalismo do século.<br />

Pio IX julgou que a época era ainda menos propícia do que outra qualquer para uma atitude<br />

de impassibilidade sorridente, cujo efeito necessário seria o encorajamento dos maus e o entibiamento<br />

dos bons. Com isto, calcando aos pés qualquer falso sentimentalismo, Pio IX enfrentou<br />

decididamente a impiedade.<br />

Sua energia combativa venceu. Depois da definição do dogma da infalibilidade pontifícia pelo<br />

Concílio do Vaticano, a onda do racionalismo naturalista tem decrescido incessantemente, e<br />

embora ela ainda conserve formas disfarçadas dignas da maior cautela dos católicos, é certo que<br />

perdeu aquela agressividade truculenta e blasfema com que se pavoneava nas altas rodas literárias,<br />

políticas e sociais da Europa do século XIX.<br />

(Extraído de “O Legionário” de 18/12/1938)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>203</strong> Fevereiro de 2015<br />

Ano XVIII - Nº <strong>203</strong> Fevereiro de 2015<br />

Há 40 anos,<br />

um oferecimento<br />

avidamente aceito<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

na década de 1980<br />

Foto: Sérgio Miyazaki<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Editorial<br />

4 Há 40 anos, um oferecimento<br />

avidamente aceito<br />

Dona Lucilia<br />

6 Inocência, generosidade e afeto<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

8 Adoração da Pessoa de<br />

Nosso Senhor<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

14 Ordenação e desregramento do<br />

instinto de sociabilidade - I<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

18 Modalidades de sofrimento - I<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

22 Teoria do progresso - II<br />

Calendário dos Santos<br />

26 Santos de Fevereiro<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 130,00<br />

Colaborador .......... R$ 180,00<br />

Propulsor ............. R$ 415,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

Hagiografia<br />

28 São Romão, doçura e<br />

força de oração<br />

Apóstolo do pulchrum<br />

32 O belo e o prático - II<br />

Última página<br />

36 Contraste maravilhoso<br />

3


Editorial<br />

Há 40 anos,<br />

um oferecimento<br />

avidamente aceito<br />

Sine sanguinis effusione non fit remissio 1 . Esta afirmação encerra um profundo mistério. Por que<br />

Deus quis que o próprio Verbo pelo qual todas as coisas foram feitas 2 Se encarnasse e vertesse, do<br />

alto da Cruz, até a última gota de seu preciosíssimo Sangue para remir suas criaturas? O mesmo<br />

ato de vontade onipotente que tirou do nada o universo não bastaria para operar a Redenção?<br />

São questões que nos interessam a fundo e concernem a toda a nossa existência, pois o enigma da dor<br />

e da morte — que aflige e, por vezes, esmaga o homem — só encontra sua solução em Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo 3 .<br />

A cada ano, o Tempo da Quaresma nos convida a meditarmos na necessidade de associar os nossos<br />

padecimentos ao sacrifício redentor do Cordeiro de Deus para, assim, realizarmos os planos divinos.<br />

De espírito fundamentalmente religioso, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> compreendeu e amou esta verdade, a respeito da<br />

qual teceu belos comentários que iluminam as páginas da vasta obra por ele deixada, e dos quais o leitor<br />

encontrará mais um exemplo na presente edição 4 .<br />

Porém, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não se limitou a compreender e amar o sacrifício. Sua admiração pelas vítimas expiatórias<br />

e, sobretudo, sua adoração pela Vítima suprema, levaram-no a oferecer-se em holocausto pela<br />

causa católica. Celebramos, neste mês, 40 anos de seu oferecimento avidamente aceito pela Providência.<br />

Fiz esse oferecimento — dizia ele 5 — na presença de várias pessoas. Conversávamos sobre a situação<br />

de nosso Movimento cujas difíceis vicissitudes pelas quais passava exigiam um holocausto dessa<br />

natureza. Como não via qualquer disposição para isso em meus interlocutores, pareceu-me que eu<br />

deveria fazê-lo. Então lhes declarei minha intenção de oferecer-me como vítima a Nossa Senhora.<br />

Não imaginei que fosse ter uma tão grande repercussão. A conversa se deu no sábado à noite. Na<br />

segunda-feira, dia 3 de fevereiro, sofri o desastre de automóvel.<br />

A Santíssima Virgem colheu com avidez esse sacrifício. Dir-se-ia que, por menos que ele valesse,<br />

Ela estava precisando tanto dele que fez como uma mendiga faminta — Ela, a Rainha do Céu e da<br />

Terra! — a quem se dá um pedaço de pão: põe-se o pão em sua mão, e ela leva-o à boca imediatamente.<br />

Nossa Senhora tinha fome desse sacrifício. Por assim dizer, mal o sacrifício foi oferecido, ele<br />

foi colhido.<br />

Ao sair do hospital, notei ter ficado com a marcha impedida. Os médicos determinaram que eu<br />

permanecesse deitado por mais um mês. Eu percebia bem que, na melhor das hipóteses, teria de andar<br />

de muletas, o que, naturalmente, é uma limitação na validez de uma pessoa.<br />

Minha grande preocupação era: até que ponto continuarei capaz de servir a Nossa Senhora, tocando<br />

adiante a luta que devo travar?<br />

4


Percebia que minha saúde, em geral, estava boa. Embora notasse a memória um tanto abalada<br />

devido à forte pancada recebida na cabeça, o raciocínio estava perfeito. Cheguei à conclusão de<br />

que, se Nossa Senhora continuasse a me ajudar do ponto de vista intelectual, a invalidez física não<br />

teria maior importância.<br />

Contudo, esse sacrifício foi acrescido de outros.<br />

Era de se esperar que, se eu sofresse um desastre como aceitação de meu oferecimento, de algum<br />

modo e por algum sinal, Nossa Senhora de Genazzano far-me-ia sentir previamente.<br />

Ora, isso não se deu, o que para mim parecia significar que o pacto de Genazzano, a promessa<br />

que Ela me fizera estava cancelada. E a prova disso era que eu tinha afundado num mar de infortúnios,<br />

sem nenhum sinal anterior no sentido de que esses infortúnios viriam.<br />

Por cima do tormento de toda aquela situação — com operações, imobilidade, incômodos de toda<br />

ordem — vinha o problema pior, mais desagradável: os exames de consciência com uma espécie<br />

de solidão espiritual. “O que fiz eu para que essa promessa fosse desmentida? No que fui infiel?<br />

Acuse-se, seja franco consigo mesmo! Deve haver alguma culpa sua.” Uma espécie de terror acompanhado<br />

desta ideia: “Não foi o meu oferecimento, porque eu não recebi um sinal.”<br />

Dez anos depois — durante os quais a graça de Genazzano pareceu-me apagada —, eu soube, por<br />

uma conversa fortuita, que no dia do desastre comemora-se a festa do Bem-aventurado Stefano Bellesini,<br />

o grande devoto da Mãe do Bom Conselho, cujas relíquias se encontram no Santuário de Genazzano.<br />

Segundo as convenções entre Nossa Senhora e eu — se assim eu pudesse dizer — este poderia<br />

ser o sinal. Então o sinal fora dado! Mas eu só soube disso dez anos depois... Como Nossa Senhora<br />

estava ávida de um grande sacrifício!<br />

Muito tempo depois, contaram-me o comentário de um conceituado autor — se não me engano,<br />

o Pe. Garrigou-Lagrange — segundo o qual, quando alguém se oferece como vítima expiatória,<br />

a Providência dispõe as coisas de maneira a que a pessoa não acredite estar padecendo por causa de<br />

seu oferecimento. Porque se ela soubesse disso, diminuiria tanto o sofrimento, que o próprio poder<br />

expiatório ficaria muito atenuado.<br />

Vemos, então, a longa trajetória de um oferecimento que foi mais longe do que eu imaginava.<br />

Nossa Senhora, por assim dizer, multiplicou o meu pedido, e fê-lo frutificar mais do que eu tinha<br />

oferecido, para que, em última análise, alguma coisa viesse para o bem da causa d’Ela.<br />

1) Do latim: Sem a efusão de sangue não há perdão (Hb 9, 22).<br />

2) Jo 1, 3.<br />

3) Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 22.<br />

4) Seção “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...”, p. 18-21.<br />

5) Cf. conferências de 30/7/1983 e 3/2/1991.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

5


Dona Lucilia<br />

Inocência, generosidade<br />

e afeto<br />

João Dias<br />

O espírito revolucionário inocula e exacerba nas almas o egoísmo.<br />

Quando encontramos pessoas não egoístas, devemos<br />

apreciá-las e imitá-las, lavando, assim, as nossas almas da influência<br />

da Revolução. A inocência de Dona Lucilia se caracterizava não só<br />

pela pureza, mas por uma total ausência de egoísmo, tornando-a<br />

plena de generosidade e bondade.<br />

Ainocência de Dona Lucilia consistia, antes de<br />

tudo, na pureza, nas virtudes próprias à boa católica,<br />

comuns nas senhoras daquele tempo, e<br />

que hoje se tornaram raras devido à decadência moral<br />

do mundo.<br />

Ela possuía essa inocência em alto grau.<br />

6


Desprendimento de si mesma<br />

Entretanto, tinha outra forma de inocência que tornava<br />

o convívio com ela extraordinariamente agradável<br />

e consistia em um desprendimento de si mesma, pelo<br />

qual a última coisa em que ela pensava era na vantagem<br />

própria, nos seus direitos, no que ela queria ou no que<br />

lhe convinha. Ela pensava muito na vantagem dos filhos,<br />

mas nas vantagens dela, absolutamente não.<br />

Por exemplo, se uma pessoa quisesse ou lhe pedisse<br />

algo, encontrava uma generosidade, um prazer em dar,<br />

um contentamento em conceder, que era extraordinário<br />

e feito sem pretensão. Não se portava como certas pessoas<br />

que, ao fazer algum obséquio, ficam com uma fisionomia<br />

e um ar de quem diz: “Olhe aqui, você receba isto e<br />

veja que colosso eu sou!”<br />

Mamãe não era assim. Ela dava aquilo que lhe pediam como<br />

uma muito boa irmã concederia para outra irmã. E se ela<br />

se lembrasse, depois, que podia dar mais algo que a pessoa<br />

não tinha pedido, ela ia atrás e dizia: “Olhe, eu me lembrei<br />

de que ainda podia fazer por você tal coisa assim!”, e fazia.<br />

Isto tornava toda a presença dela muito agradável.<br />

Bondade inspirada no Sagrado<br />

Coração de Jesus<br />

O egoísmo torna a pessoa desagradável. Notando que<br />

determinado indivíduo está pensando apenas em seus interesses,<br />

o tempo inteiro, e não cogita de outra coisa, e continuamente<br />

medindo as vantagens, as desvantagens, etc., sente-se<br />

um afastamento, um desagrado muito grande.<br />

Mas vendo essa generosidade, essa bondade cristã no<br />

sentido próprio da palavra, quer dizer, inspirada no Sagrado<br />

Coração de Jesus, modelo inigualável dessa bondade e<br />

dessa generosidade, tinha-se uma impressão de retidão de<br />

alma e de abertura de coração, que não me lembro de ter<br />

experimentado ao tratar com qualquer outra pessoa.<br />

Evidentemente, na idade em que estou, tenho tratado<br />

com um número enorme de pessoas, tenho conhecido<br />

tanto pessoas boas como ruins, mas nenhuma me deu essa<br />

impressão de generosidade e de afeto.<br />

Mamãe tinha isso em alto grau, o que tornava a presença<br />

dela deliciosa. É por esta razão que, por exemplo,<br />

quando eu voltava de alguma viagem, chegava a casa<br />

com uma espécie de sofreguidão de encontrá-la logo,<br />

de sentir o eflúvio da companhia dela, o seu agrado, etc.<br />

A lembrança luminosa que acompanhou<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> até o fim de seus dias<br />

Quando ela morreu, eu já era um homem ultrafeito,<br />

tinha quase 60 anos e ela, 92. Em tão longo convívio, não<br />

me lembro de uma só viagem realizada por mim na qual,<br />

ao chegar, não tenha ido comungar em alguma igreja e,<br />

em seguida, dirigir-me diretamente para casa, a fim de<br />

vê-la. Ainda que fosse uma viagem pequena, dessas que<br />

não cansam e nas quais, chegando, vai-se diretamente<br />

tratar de negócios, antes mesmo de ir para casa.<br />

Não me lembro de um só caso em que isso aconteceu,<br />

porque para mim, estar de volta a São Paulo era estar<br />

com mamãe, encontrar-me com ela, ver como ela estava,<br />

e — por que não? — ser visto por ela. Eu gostava de me<br />

sentir visto por ela, e de observar o olhar dela me querendo<br />

bem. Era um dos fatores de alegria de minha vida.<br />

Ainda hoje continua em mim essa lembrança luminosa<br />

que, se Deus quiser, me acompanhará até o fim. Aquilo<br />

fazia parte da inocência dela.<br />

Devemos desejar encontrar muita gente assim em nossa<br />

vida, e, quando encontrarmos, saber reconhecê-las. Em<br />

geral, prestamos atenção nas pessoas pelas razões mais fúteis<br />

— porque riem ou fazem rir, são inteligentes, mil banalidades<br />

—, e não pelo verdadeiro valor que elas têm.<br />

Devemos procurar os verdadeiros valores<br />

dos outros e celebrá-los como merecem<br />

Resultado: habitualmente estamos em estado de injustiça<br />

em relação aos outros. Nós damos valor a quem<br />

não tem, e não a quem tem. E é muito bom sabermos<br />

procurar os valores onde estão e nos unir a eles, celebrá-<br />

-los como merecem ser celebrados.<br />

Eu fazia isto às torrentes com mamãe. Quando ela estava<br />

numa sala, quer em minha casa ou em outra, a primeira<br />

pessoa para mim era ela. Sendo outra residência,<br />

naturalmente, ao chegar, eu saudaria primeiro a dona da<br />

casa. Entretanto, logo depois me dirigiria à mamãe. E assim<br />

a punha em primeiríssimo lugar, com os primeiríssimos<br />

agrados, nas primeiríssimas manifestações de consideração,<br />

de respeito, etc.; o píncaro era ela. Com isso eu<br />

tinha também a intenção de fazer justiça a ela.<br />

É recomendável que adquiramos o hábito de fazer o<br />

mesmo com as outras pessoas. Aprendamos a apreciar as<br />

pessoas isentas de egoísmos que encontremos em torno<br />

de nós. Saibamos imitá-las, lavando, assim, as nossas almas<br />

da influência da Revolução.<br />

Sobretudo quando vier o Reino de Maria encontraremos<br />

muita gente assim.<br />

Saibamos, então, ver tudo quanto há de nobre, virtuoso<br />

e santo no Reino de Maria, e dar graças a Nossa Senhora,<br />

compreendendo que depois desse reino virá outro:<br />

o Reino do Céu. Se pela misericórdia divina passarmos<br />

para lá, conviveremos por toda a eternidade, junto a<br />

Deus, a Maria Santíssima, aos Anjos e Santos. v<br />

(Extraído de conferência de 14/4/1991)<br />

7


Sagrado Coração de Jesus<br />

Adoração da Pessoa<br />

de Nosso Senhor<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão<br />

supremo em função do qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> concebia a<br />

verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como<br />

também o relacionamento humano.<br />

Aescola filosófica pela qual o conhecer a biografia<br />

do filósofo não interessa em nada, limitando-se<br />

em considerar as ideias dele, priva-se de alguma<br />

coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento<br />

da verdade, da beleza e do bem.<br />

Pedra angular<br />

O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda<br />

que não queira, notas da sua luz primordial 1 e do atraente<br />

que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é<br />

conhecido no que tem de mais profundo.<br />

Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como<br />

“Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que<br />

se poderia chamar a sua luz primordial.<br />

Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus<br />

crucificado 2 . Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações<br />

de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém<br />

que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade<br />

de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem<br />

São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles,<br />

aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde<br />

afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim” 3 , em<br />

vez de dizer: “É Deus que vive em mim.”<br />

No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação<br />

da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à<br />

consideração da sociedade temporal, foi um modo especial<br />

de analisar o bonum, o verum, o pulchrum. Mas o elemento<br />

fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana<br />

e divina.<br />

O que há de mais profundo na minha alma é essa visão<br />

religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra<br />

de ângulo a partir da qual todo o verum, bonum, pulchrum<br />

se deslinda.<br />

Em menino, fazendo a análise<br />

psicológica de Nosso Senhor<br />

Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha<br />

alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma<br />

criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira<br />

cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?<br />

Eu O considerava através das imagens que via em<br />

mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião<br />

para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História<br />

Sagrada, etc.<br />

Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o<br />

que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era<br />

o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o<br />

problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…”<br />

Porque ela considerava que, ao contar a história,<br />

já estava provando ser verdadeira. E para a criança é<br />

realmente assim.<br />

Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus<br />

— porque mamãe, ao tratar disso, deixava<br />

claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica<br />

de Nosso Senhor.<br />

Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente<br />

excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso<br />

Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade<br />

que deixava qualquer outra pessoa sem ne-<br />

8


nhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura<br />

inacessível ao homem.<br />

Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem,<br />

resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia<br />

que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade<br />

d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação<br />

e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima<br />

Trindade.<br />

A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas<br />

as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações<br />

de um simples ser humano, Ele conhecia todas<br />

as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas<br />

e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe<br />

dava o direito ex natura rerum 4 a esse contato.<br />

Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito.<br />

Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo<br />

pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora,<br />

noto que era isso.<br />

Fuga do bom para o ótimo<br />

O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza<br />

era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma<br />

contato com essas almas?<br />

Não posso saber como<br />

é nos outros, mas posso<br />

perceber como é esse<br />

contato de almas estudando-o<br />

em mim. Eu me<br />

sinto, antes de tudo, elevado<br />

algum tanto acima<br />

de mim mesmo, por ver<br />

essa grandeza do ser e do<br />

cogitar d’Ele.<br />

De onde se abre em<br />

mim uma luz no cogitar<br />

e no ver, que me extasia,<br />

porque algo em mim<br />

é feito para olhar mais<br />

do que eu. E quando saio<br />

da minha vida de menininho<br />

e percebo algo em<br />

mim que vê mais do que<br />

eu, que é mais do que eu,<br />

tenho a impressão de que<br />

eu escapo, fujo do bom<br />

para o ótimo, ponho-me<br />

ali na ponta dos pés e me<br />

alegro.<br />

Outro ponto: eu noto<br />

que, ao mesmo tempo em<br />

que contemplo assim essa<br />

Christophe.Finot (CC 3.0)<br />

Capela do Sagrado Coração<br />

Semur-en-Auxois, Borgonha, França<br />

vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um<br />

querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as<br />

mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me<br />

comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e<br />

uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais<br />

são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver<br />

essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira,<br />

mas ao mesmo tempo me corrigisse.<br />

Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla<br />

ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro.<br />

E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que<br />

coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas,<br />

se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas<br />

que me tornavam doente sem eu saber.<br />

Entrevendo a luta que aparece no horizonte<br />

Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não<br />

fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero<br />

me acusar de uma imperfeição que não estava em mim,<br />

mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições<br />

proveniente do pecado original.<br />

Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso,<br />

mas quando passasse<br />

o mais intenso disso,<br />

essa ação corretiva<br />

ser-me-ia duro manter.<br />

E, portanto, em certo<br />

momento eu teria que sofrer<br />

e lutar muito.<br />

Eu tomava conhecimento<br />

dessa realidade,<br />

mas, à maneira de uma<br />

criança, pensava: “Bem,<br />

ainda não chegou a hora,<br />

e aqui está tão bom, que<br />

deixo isso para depois.”<br />

Tinha mais curiosidade<br />

de fixar a minha atenção<br />

no que Deus estava me<br />

mostrando — sem saber<br />

ser Ele Quem mostrava<br />

— do que naquilo que eu<br />

poderia deduzir por mim<br />

mesmo, e que era o combate.<br />

Por isso, eu apenas<br />

entrevia e deixava meio<br />

de lado.<br />

E, olhando para os<br />

meninos com quem eu<br />

vivia, notava que alguma<br />

coisa dessas Jesus fa-<br />

9


Sagrado Coração de Jesus<br />

zia em suas almas também, mas eles davam muito menos<br />

atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros,<br />

uma indecência.<br />

Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo<br />

no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou<br />

mais tarde.<br />

Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem<br />

menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo<br />

que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um<br />

choque que me levasse diretamente para a luta.<br />

Ação direta e ação supletiva<br />

Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia<br />

assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare<br />

fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos<br />

morem juntos.” 5 Eu formava com aqueles meninos<br />

um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir:<br />

“Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles<br />

um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!”<br />

Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham<br />

estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu<br />

me sentia posto na minha situação própria e natural:<br />

contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica<br />

— cuja noção começava a aparecer no meu espírito<br />

—, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo!<br />

— e nos que me circundavam também.<br />

De maneira que era um mundo todo católico dentro<br />

do qual eu sentia a complementação normal da felicidade,<br />

que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo.<br />

Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver<br />

a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do<br />

homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber<br />

sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar<br />

com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando<br />

em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por<br />

meio dos outros.<br />

Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois<br />

uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava<br />

o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.<br />

O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias<br />

que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo<br />

eu considerava como sendo igualmente bom.<br />

Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma<br />

série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele<br />

tempo, e que eu supunha habitadas pela influência<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Um sol que não cessava de brilhar<br />

François Goglins (CC 3.0)<br />

Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja<br />

com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas<br />

mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam<br />

os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando.<br />

Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo<br />

castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende<br />

contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era<br />

um defensor que pairava acima de todos.<br />

Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão<br />

presente em tudo isso, que me dava a ideia de<br />

que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente<br />

era que tudo em torno de mim fosse<br />

“cristiforme” também.<br />

Depois veio a Primeira Comunhão, com<br />

suas graças características, o conhecimen-<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

Sainpuits, França<br />

10


to mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos<br />

regulares de Catecismo, da História Sagrada.<br />

Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo<br />

quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava<br />

profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

habitava e Se fazia sentir de um modo especial por<br />

uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que<br />

era como um sol que não parava de brilhar.<br />

Daí a ideia — complementar do convívio com meus<br />

próximos — de uma grande instituição que era a fonte<br />

dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente<br />

tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido<br />

a essa fonte, pois era um ambiente católico.<br />

Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com<br />

a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a<br />

noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro<br />

da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como<br />

se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do<br />

centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da<br />

casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso.<br />

Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor<br />

ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso,<br />

na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa<br />

santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas<br />

e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa<br />

igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando:<br />

“A partir daqui começa a casa d’Ele!”<br />

Ato de humildade<br />

Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc<br />

est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é<br />

essa. E <strong>Plinio</strong>, preste atenção! Você é objeto da ação dessa<br />

graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente<br />

bem. Mas você tem seus doze anos e já sente<br />

as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que<br />

as suas resistências resultam de alguma coisa que existe<br />

de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo<br />

disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça<br />

o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente,<br />

você não é digno de nada disso. Agradeça o<br />

fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um<br />

sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade,<br />

e querer oscular a soleira da porta compreendendo<br />

que você se honra com esse gesto, pois não seria digno<br />

nem sequer disso.”<br />

Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um<br />

efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas<br />

atuando muito mais profundamente em mim. Depois<br />

vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava<br />

meu ato de humildade com todas as minhas forças,<br />

por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo<br />

era sentir essa proximidade.<br />

Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em<br />

cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso<br />

Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima<br />

de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que<br />

isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer<br />

fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a<br />

Fé Católica na minha alma.<br />

Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais<br />

eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei<br />

próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar<br />

para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-<br />

-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!<br />

À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo<br />

dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as<br />

imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso;<br />

a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos<br />

disso, por causa dessa radical maldade existente em mim,<br />

que me tornava objeto explicável da repulsa divina.<br />

Provações contra a pureza e o<br />

choque com a Revolução<br />

Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com<br />

vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só<br />

Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto,<br />

era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia<br />

viver a não ser assim.<br />

Começa a época das provações contra a pureza, do<br />

choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação<br />

da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como<br />

que o momento da falta de energias e de mobilização<br />

própria para entrar na luta.<br />

De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários,<br />

o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não<br />

naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos,<br />

mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio<br />

vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas.<br />

Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!<br />

Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato<br />

amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias<br />

despreocupadas da minha infância, sentindo-me<br />

quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos<br />

problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze<br />

anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro!<br />

Eu me resolvo a arcar com essa luta?<br />

O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz<br />

da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal<br />

maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você<br />

tinha… Veja bem quem é você!”<br />

11


Sagrado Coração de Jesus<br />

Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno<br />

de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a<br />

Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com<br />

um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico<br />

é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse<br />

eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz<br />

de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que<br />

Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo<br />

esse caso?<br />

Aparece o ”arco-íris”<br />

Edelseider (CC 3.0)<br />

A Virgem e o Menino<br />

Catedral de Estrasburgo, França<br />

Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja<br />

do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa<br />

Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria,<br />

aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque<br />

Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar<br />

d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha<br />

Mãe!<br />

Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a<br />

solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela,<br />

tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade<br />

d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco,<br />

tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada<br />

como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto<br />

meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri<br />

para mim e como que me diz:<br />

“Meu filho, é verdade, você tem<br />

razão. Mas muito mais Eu sou<br />

boa do que você é ruim! E passo<br />

por cima disso, o afago, lhe<br />

quero bem, trago-o para junto<br />

de Mim.”<br />

Daí brotar de meus lábios:<br />

Salve Regina, Salve Regina, Salve<br />

Regina! E daí também o sentido<br />

da palavra “salve”: o de me salvar!<br />

Eu não a considerava como<br />

uma saudação; não estava pensando<br />

em protocolos na hora em<br />

que eu naufragava. Era S.O.S.!<br />

“Salve Regina…”<br />

Esse era o aspecto “vida interior”<br />

de algo que transbordaria,<br />

no contato com a vida, numa<br />

noção da Cristandade, num conceito<br />

completo de Revolução e<br />

Contra-Revolução.<br />

Qual é o papel do verum, bonum<br />

e pulchrum — de que eu<br />

falava há pouco — nessa visão<br />

das coisas, da sociedade temporal<br />

e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução,<br />

cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente<br />

com isso?<br />

Ardor no conhecimento do verum<br />

Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra<br />

“enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é<br />

inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente<br />

— para indicar a disposição de nossa alma em relação a<br />

Ele.<br />

Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração<br />

do verum, do bonum ou do pulchrum?<br />

É uma coisa evidente que no ato de adoração existe<br />

simultaneamente um abrasamento no conhecimento do<br />

verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e<br />

um deslumbramento pelo pulchrum.<br />

Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente<br />

o Homem-Deus! Como na unidade da<br />

Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível,<br />

ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus<br />

ali dentro, que coisa fantástica!<br />

De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E<br />

como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!<br />

O verum aqui está não só em<br />

que isso é assim, mas numa outra<br />

coisa: como tudo é coerente dentro<br />

disso! É lógico, deve ser assim!<br />

E, portanto, um entusiasmo<br />

da verdade possuída.<br />

Como é esse entusiasmo?<br />

Não é um entusiasmo exclusivamente<br />

silogístico: “Eu raciocinei<br />

e cheguei à conclusão”, porque o<br />

ato de Fé em mim precedeu de<br />

muito esse raciocínio; mas é uma<br />

espécie de evidência meio mística<br />

dada pela Fé, que o raciocínio<br />

apologético vem calçar depois,<br />

mas não vem suprimir; vem servir<br />

a essa ação meio mística dada<br />

pela Fé.<br />

De tal maneira que eu ouço<br />

pessoas falarem na firmeza das<br />

minhas convicções. Tenho vontade<br />

de sorrir, e dizer: “Você não<br />

entende nada. Fale da firmeza<br />

de minha Fé!” Porque a partir da<br />

firmeza da minha Fé, no que eu<br />

dela deduzo, tenho muita certe-<br />

12


za; ali eu piso com sapato de<br />

ferro, porque não tenho medo<br />

de peso nenhum! No que<br />

eu não deduzo, não tenho<br />

essa certeza.<br />

Por outro lado, também<br />

o modo categórico com que<br />

distingo uma coisa má de outra<br />

boa. A boa deve ser praticada,<br />

favorecida, estimulada,<br />

louvada. A má deve ser<br />

execrada, detestada; deve-<br />

-se viver no reconhecimento<br />

e na desconfiança constante<br />

do mal que aquilo representa,<br />

numa atitude a mais policialesca<br />

que se possa imaginar<br />

contra esse mal, pegando-o<br />

e triturando-o implacavelmente.<br />

Igreja das Mercês - Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil<br />

victor Toniolo<br />

Pulchrum e simbolismo<br />

Sobre o pulchrum, o que dizer?<br />

Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o<br />

verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum.<br />

Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum,<br />

ela os contém com a luz própria a cada coisa.<br />

Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do<br />

bem, com mais algo; não significa que ele não existe.<br />

Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia<br />

de pensamento, que talvez houvesse entre o verum,<br />

o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira<br />

de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o<br />

Espírito Santo.<br />

O pulchrum tem no meu pensamento grande papel.<br />

Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas<br />

este próprio sensível precisa ser entendido.<br />

São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto,<br />

agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo,<br />

olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.<br />

Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim<br />

em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado<br />

de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu<br />

pensamento.<br />

O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo<br />

aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma<br />

— de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam<br />

a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira<br />

tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.<br />

Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse<br />

simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia<br />

dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito<br />

grande.<br />

O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada<br />

perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos,<br />

como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é<br />

sedentíssima disso.<br />

Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para<br />

perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo<br />

criado de Deus que completa o que as graças de ordem<br />

mística fazem perceber.<br />

Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo<br />

faz de algum modo perceber também pelos sentidos,<br />

iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile 6 espiritual,<br />

simbólico e digno de ser tocado pela graça. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 12/4/1989)<br />

1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições<br />

divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma<br />

ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este<br />

assunto, ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 54, p. 4.<br />

2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.<br />

3) Gl 2, 20.<br />

4) Do latim: pela própria natureza das coisas.<br />

5) Sl 133, 1.<br />

6) Do latim: deleitável.<br />

13


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Ordenação e desregramento do<br />

instinto de sociabilidade - I<br />

A Religião Católica tem o poder incomparável de promover o<br />

relacionamento ideal entre os homens. A Revolução, entretanto,<br />

deturpando o instinto de sociabilidade, leva as pessoas a cair nos<br />

piores vícios e a praticar pecados coletivos.<br />

Osenso do ser, com o qual todos nascem, seria mutilado<br />

se não tivesse originariamente uma espécie<br />

de embocadura, de abertura para uma noção<br />

global, embora o intelecto da criança não tenha, por<br />

exemplo, ideia da humanidade como um todo dentro da<br />

Criação. Apesar de a criança não ter essa noção, há não<br />

só uma aptidão para adquiri-la, mas uma espécie de matriz<br />

dessa noção dentro da ideia primeira de ser.<br />

A hipertrofia da fruição e a<br />

chacina dos inocentes<br />

Essa matriz existe à maneira de um discernimento<br />

muito elevado do lumen que paira sobre o mundinho que<br />

ela conhece, juntamente com a ideia instintiva de que esse<br />

lumen é próprio ao universo inteiro. E, por amar esse<br />

lumen, a criança ficaria desolada se soubesse que ele não<br />

existe assim para todos os homens. Portanto, esse lumen<br />

traz consigo uma noção da globalidade.<br />

Quando na própria criança se dá um desequilíbrio,<br />

por onde ela toma essa luz mais como um elemento de<br />

fruição do que de amor e admiração, acaba acontecendo<br />

que ela vai restringindo o seu horizonte a si própria, donde<br />

vêm todas as más consequências e subversões.<br />

Esse é o caminho mais frequente da quebra da inocência:<br />

antes mesmo de vir o problema da pureza, transformar<br />

tudo numa fruição. Neste sentido, a educação que se<br />

dá para as crianças procurando, para agradá-las, hipertrofiar<br />

nelas o sentido da fruição, é a mais errada possível.<br />

É a chacina dos inocentes.<br />

Por exemplo, a alegria de Natal é muito íntegra porque<br />

tem por objeto Nosso Senhor, que é causa de nossa<br />

alegria; Alguém que é adorável baixou à Terra e nos enche<br />

de gáudio.<br />

É diferente do gáudio pelo pão de mel que se vai comer<br />

depois. Portanto, a alegria de Natal não pode ser<br />

transformada numa festa opulenta, que tem como principal<br />

razão o presente e a festa.<br />

O relacionamento ideal entre os homens<br />

O instinto de sociabilidade, no Paraíso, se apresentava<br />

tão perfeito quanto o estado de prova admite. Esse instinto<br />

deveria levar ao auge a sua própria perfeição quando<br />

nascesse Aquele que seria a chave de cúpula da ordem<br />

do universo e o Homem por excelência, hipostaticamente<br />

unido à segunda Pessoa da Santíssima Trindade;<br />

seria um de nós, que ao mesmo tempo é Deus, em função<br />

do qual tudo se torna admirável, que transcende a tudo e<br />

cuja presença tornaria inefavelmente doces todas as interarticulações<br />

da sociabilidade humana, porque Ele estaria<br />

presente como denominador comum dos homens.<br />

É por causa disso que a Religião Católica tem o poder<br />

incomparável de promover o relacionamento ideal entre<br />

os homens.<br />

Tendo Nosso Senhor remido os homens e morrido por<br />

todos nós na Cruz, essa realidade ainda toma uma nota<br />

especialmente admirável e pungente, porque se Ele chegou<br />

a dar-Se a tal ponto, pela abertura que a bondade<br />

opera em nós, somos chamados a nos doar também.<br />

Tudo isso, passando através de Nossa Senhora, vem<br />

com uma abundância e uma carga de perdão incomparável,<br />

porque a Medianeira que Deus quis que fosse necessária<br />

atuou nisso.<br />

Por esse motivo não se pode compreender a verdadeira<br />

sociabilidade ou o instinto de sociabilidade inteiramente<br />

bem tratado na sociedade pagã. Aliás, não houve,<br />

é a lei da selva.<br />

14


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Essa explicitação é um elemento integrante indispensável<br />

do conceito de Cristandade. E ela é também a explicação<br />

da intransigência, porque leva o instinto de sociabilidade<br />

a só admitir como inteiramente normal o relacionamento<br />

assim.<br />

A visão exclusivamente fraterna do instinto de sociabilidade<br />

conduz à ideia de que o homem em sociedade<br />

é igual ao outro. É uma decorrência do socialismo: uma<br />

sociedade onde há só iguais, todos irmãos. Daí a tal fraternidade<br />

que insinua haver somente irmãos, não há pai.<br />

É uma afirmação indireta do ateísmo.<br />

Enquanto que na concepção verdadeira, mais do que<br />

a fraternidade, há a relação pai-filho que encontra, na<br />

fraternidade, sua consequência normal: os filhos do mesmo<br />

pai são irmãos. Percebe-se bem, assim, a carga revolucionária<br />

do termo fraternité, no lema da Revolução<br />

Francesa.<br />

No relacionamento, cada um deve<br />

contribuir com seu sacrifício<br />

Poderíamos, agora, aprofundar o tema, tratando dos<br />

estados de doença do relacionamento humano.<br />

Quando o relacionamento entre pessoas que pertencem<br />

a Nosso Senhor Jesus Cristo entra em estado de doença,<br />

ou seja, passa a ser defectivo, acontece como se a<br />

juntura dos ossos num corpo fosse malfeita, porque a ordem<br />

posta por Nosso Senhor é que todos se amem. Os<br />

que estão num relacionamento malfeito devem tomar<br />

em linha de conta que sempre que o relacionamento range,<br />

dói n’Ele, assim como quando os ossos rangem no<br />

corpo fazem padecer o corpo inteiro.<br />

Em consequência, esse relacionamento<br />

pede que cada um contribua com uma<br />

cota de sacrifício própria, para que esse<br />

estado doentio cesse por amor a Nosso<br />

Senhor. Quem dá mais é o que ama mais<br />

a Ele.<br />

Então, há uma função supletiva daquele<br />

que é menos tentado, menos provado,<br />

que tem menos dificuldade; ele<br />

entra suprindo o que possa faltar àquele<br />

que tem mais dificuldades, está mais tentado,<br />

mais provado. Por esta forma, cedendo,<br />

diminui a dor em Nosso Senhor<br />

e, assim, abranda indiretamente o fundo<br />

da dor naquele com quem ele trata.<br />

Entretanto, é preciso não considerar<br />

Nosso Senhor como um estranho nessa<br />

relação. Ele está presente e, como Ele é<br />

o liame entre todos os homens, pela razão<br />

que eu acabo de dizer, se entre homens<br />

há uma fricção, o liame sofre.<br />

Posto de lado qualquer assunto que diga respeito<br />

ao sexto ou ao nono Mandamento, o principal entretenimento<br />

do homem na vida são os outros homens. Daí<br />

aquele princípio de que não é bom o homem estar sozinho<br />

1 , por isso precisava ter uma companheira, e também<br />

ter filhos e viver em sociedade.<br />

Se os homens não se voltam para Deus, nessa perspectiva<br />

que apresentei, os principais apegos acabam sendo,<br />

no fundo, relativos aos outros homens. E o relacionamento<br />

dos indivíduos com a sociedade na qual se encontram<br />

é o grande tema de suas vidas.<br />

Compreende-se por aí que os melhores prêmios dados<br />

por Deus sejam também nessa linha, assim como as expiações<br />

mais tremendas, e os atos de reparação e de generosidade<br />

mais estupendos.<br />

Sofrimentos de Santa Teresinha<br />

Dou um exemplo: Santa Teresinha do Menino Jesus.<br />

Ela viveu com um instinto de sociabilidade, a meu ver,<br />

perfeitamente atendido, arquetipicamente atendido até<br />

o momento de entrar para o Carmelo. Porque se vê que<br />

ela não aspirava outra coisa a não ser entrar para o Carmelo.<br />

Portanto, tudo quanto estava fora não lhe interessava,<br />

exceto a família Martin e a família Guérin, muito<br />

chegada, e que formavam mais ou menos um todo; e<br />

Santa Teresinha com as irmãs constituíam aquele “bandinho”<br />

em torno do pai.<br />

Ora, aquilo tudo perfeitamente bem arranjado, ordenado,<br />

equilibrado, era para ela um “céuzinho” do instinto<br />

de sociabilidade. As fotografias dela em menina dão<br />

15


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

A doença contagiosa afastando-a do contato<br />

das outras, sendo posta numa seção do sanatório,<br />

e ali sofrendo, sofrendo, sofrendo...<br />

Aparecem ainda as tentações contra a Fé<br />

que a isolam, por assim dizer, do lado sensível,<br />

em certo sentido até mesmo do próprio Deus.<br />

É um longo padecimento do instinto de sociabilidade<br />

que vai se desenvolvendo.<br />

O drama do instinto de<br />

sociabilidade de Nosso Senhor<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Santa Teresinha do Menino Jesus com as<br />

demais freiras do Carmelo de Lisieux<br />

muito essa ideia. Uma pessoa que vive num ambiente<br />

sem arranhões, não tem nenhum irmão bêbado que volta<br />

tarde da noite para casa, quebrando a baixela preferida,<br />

os vasos prediletos da mãe, ou outro irmão que deixou o<br />

pai em claro porque a polícia deitou a mão nele; Santa<br />

Teresinha não teve nenhum drama assim. Vê-se que cenas<br />

dessas não passaram sequer por aquele olhar puro e<br />

sereno dela, nem de longe. E ela toda está com uma calma,<br />

uma ordenação que vem da perfeita instalação desse<br />

princípio de sociabilidade nas condições da vida.<br />

O primeiro grande trauma é que Nosso Senhor passa<br />

e, de acordo com o que ela desejava, pede o sacrifício<br />

do esquartejamento daquela unidade. Todas as filhas<br />

vão para o convento e fica só o Monsieur Martin em casa.<br />

E na solidão do Monsieur Martin, que é bem evidente que<br />

não se casaria novamente, começa a circular a calúnia, que<br />

com certeza até então não havia sido usada contra elas: começa-se<br />

a falar que fizeram mal em deixar o velho sozinho.<br />

Certa ocasião, quando elas passaram horas inteiras à<br />

espera do pai aparecer, Santa Teresinha deixou transparecer<br />

que nessa demora uma das preocupações dela era a<br />

dor da injustiça que sofreriam com as calúnias.<br />

É o instinto de sociabilidade, não na sua faceirice ou<br />

vaidade, mas na sua inocência, até então bem tratado pelos<br />

outros e que passa a ser maltratado.<br />

Depois, dentro do convento, a incompreensão de todas<br />

as freiras a respeito dela, e a Santa que provavelmente<br />

veria as imperfeições de todas as religiosas, e tudo o<br />

mais, levá-la-ia a uma situação onde ela ficava completamente<br />

isolada. E com a sua afetividade, que afinal de<br />

contas é uma expressão do instinto de sociabilidade, atingida<br />

a fundo.<br />

Isso não é nada, se comparado com o que<br />

se passou com Nosso Senhor. Vê-se que Ele,<br />

na sua humanidade, começou o contato com<br />

os homens, benevolente, alegre, aberto, conseguindo<br />

resultados evidentes, com um relacionamento<br />

magnífico, as turbas que O seguiam,<br />

etc.<br />

Depois, nota-se que aquele entusiasmo todo<br />

resultava num élan apenas medíocre, que não dava<br />

aquilo que deveria dar. Além disso, essa mediocridade<br />

se tornava invejosa, malévola, cética, ao sopro dos adversários<br />

que não tinham querido se render a Ele. Então<br />

a batalha que começa e a divisão, tudo isso era um<br />

drama na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas<br />

um drama do instinto de sociabilidade, no afeto que Ele<br />

tem. O amor d’Ele, em larga medida, está ligado ao instinto<br />

de sociabilidade.<br />

Durante a Paixão, o sofrimento d’Ele chega ao auge.<br />

Enfim, está tudo dito, não tenho que acrescentar nada.<br />

Uma Missa na Sainte-Chapelle,<br />

durante a Idade Média<br />

Compreende-se, então, que a Revolução procure trabalhar<br />

para que todo esse elemento propulsor, tão profundo<br />

no homem e tão capaz de arrastá-lo, esteja nas<br />

mãos dela. E ela fez o seguinte jogo:<br />

No começo, tomando o homem normal, medieval,<br />

inocente, cheio de apetência pelas verdades metafísicas,<br />

com aspectos terra a terra ao mesmo tempo.<br />

Podemos imaginar num domingo uma Missa na Sainte-Chapelle<br />

com o acesso livre à população de Paris. Tilinta<br />

a sineta e vão entrando as famílias, os casais, para<br />

assistirem à Missa.<br />

Um é pequeno nobre do interior que foi tratar de negócios,<br />

ou descansar, ou participar da festa de um santo<br />

padroeiro, e que está hospedado em Paris. Outro é um<br />

casal de mercadores com uma lojinha ali perto. Outro<br />

ainda é, por exemplo, um estudante cuja família está no<br />

interior e que vai sozinho à Missa.<br />

16


Wilwarin (CC 3.0)<br />

Estou imaginando todos eles no estado de equilíbrio:<br />

calmos, tranquilos, gozando o sossego do domingo, uma<br />

unção dominical que havia antigamente, e um pouco antevendo<br />

o descanso que eles deverão ter à tarde. Entram<br />

na Sainte-Chapelle, sem nenhum choque, com uma espécie<br />

de continuidade com a vida que levam, contemplam a<br />

maravilha da Sainte-Chapelle e se enchem de tudo aquilo.<br />

Vamos imaginar que São Luís apareça para assistir à<br />

Missa também. Ao sair, um deles comenta: “Estava bem<br />

disposto hoje o nosso bom Rei Luís!”<br />

Entram noivos também. Como são esses noivos? Residem,<br />

em geral, no mesmo bairro, às vezes pertencem a<br />

ramos mais ou menos distantes de uma mesma família,<br />

conhecem-se há muito tempo. Conduzem o noivado sem<br />

aflição, sem apoteose, sem torcida; sabem que vão se casar<br />

mesmo, estão marcando o dia, têm seus planos. Esses<br />

planos não são deliciosos, embora tenham grandes esperanças.<br />

Eles se tratam com respeito, com distância, e esperam<br />

fundar uma família que seja a continuidade da família<br />

calma e sacral à qual pertencem. O noivado e o casamento<br />

são dois lances a mais de uma determinada ordem<br />

de coisas normal.<br />

Relacionamento com base no egoísmo<br />

Diante desse quadro, sentimos melhor o papel dos<br />

trovadores e das cortes de amor que fizeram as pessoas<br />

se desgostar dessa normalidade. Entra aqui a tal náusea<br />

da normalidade.<br />

É um defeito do homem, concebido no pecado original,<br />

que quer encontrar nas coisas desta Terra certas<br />

formas de auge e de gáudio próprias exclusivamente do<br />

Céu. E que então começa a imaginar coisas nesta Terra à<br />

maneira carnal e humana, que lhe deem alegrias que ele<br />

nesta Terra não tem. Mas ele fica fechado para o gáudio<br />

da Sainte-Chapelle, naquele domingo.<br />

A fruta do demônio é essa. O demônio oferece essa<br />

porcaria mesmo, e não outra coisa.<br />

O homem tem, no fundo, uma apetência de gáudios<br />

que ele não pode alcançar porque se fechou ao maravilhoso,<br />

ao sobrenatural e até ao natural em ordem à Fé.<br />

Então vem a sugestão: “Que mundo difícil, que domingo<br />

pesado, que pai obeso, que mãe banal, que irmãos comuns!<br />

Oh, preciso sair, passear, conhecer coisas novas,<br />

viajar! Procuro alguém com quem eu possa viver esta vida,<br />

mas que seja uma Isolda, uma Dulcineia, ou algo assim,<br />

em cuja experiência psicológica vou viver uma<br />

existência completamente diferente.”<br />

Seria mais ou menos como se a bem-amada fosse<br />

uma lâmpada que se acendesse na vida dele, e que<br />

desse um colorido maravilhoso às realidades banais<br />

da existência. Ele viveria olhando para a lâmpada e<br />

não para a vida, como uma mariposa para o fogo.<br />

Vamos dizer que na hora de irem para a Missa,<br />

eles se vejam pela primeira vez. A Sainte-Chapelle<br />

não tem beleza, a Missa é enfadonha, o recolhimento<br />

insuportável, a oração se faz para com um Deus distante<br />

a Quem não sentem ter acesso, nem que tenha<br />

continuidade com eles, a Comunhão é uma rotina, o<br />

convívio dos outros se torna insuportável. Ele só quer<br />

aquela Dulcineia, e ela só aquele Dom Quixote.<br />

Nessa perspectiva, fica criada a saciedade, e o relacionamento<br />

é deslocado de seu centro de gravidade e<br />

de sua rota. A pessoa que se engaje nisso vai travar<br />

um relacionamento com base no egoísmo: são agradáveis<br />

as pessoas conexas ou afins com esse sonho;<br />

são enfadonhas todas as outras; é inimigo todo aquele<br />

que cria dificuldade para a realização desse sonho.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 5/1/1984)<br />

Portal da Sainte-Chapelle - Paris, França<br />

1) Cf. Gn 2, 18.<br />

17


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Modalidades de<br />

sofrimento - I<br />

Em sua vida de quase 87 anos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve grandes<br />

consolações, mas também passou por sofrimentos inenarráveis.<br />

E pronunciou inúmeras conferências a respeito da dor, como<br />

a que transcrevemos abaixo, na qual mostra um panorama<br />

grandioso, descrevendo, com muitos exemplos, os diversos<br />

sofrimentos que podem ocorrer na existência do homem.<br />

P<br />

ara tratarmos a respeito do sofrimento em<br />

termos inteiramente utilizáveis por nós, devemos<br />

fazer algumas distinções entre modalidades<br />

de padecimentos. Porque a atitude do homem<br />

diante dessas formas varia, mas a atitude legítima,<br />

quer dizer, as diversas vias de Deus a respeito<br />

dessas modalidades de sofrimento também variam.<br />

Precisamos ter isto bem claro, sob pena de criar um<br />

imbroglio que acaba, por alguns lados, sendo nocivo.<br />

Sofrimentos intrínsecos a toda ação séria<br />

Eugene (CC 3.0)<br />

São Jerônimo estudando - Galeria<br />

Nacional, Londres, Inglaterra<br />

Há uma primeira modalidade de sofrimento que<br />

é intrínseca a toda ação séria. É o sofrimento do trabalho,<br />

do estudo, do esforço físico, da ginástica, da<br />

luta; são coisas que fazem parte da contextura comum<br />

da vida do homem ou da vida dos povos.<br />

Ainda não coloco dentro disso as doenças, porque<br />

o estado normal do ser humano não é a enfermidade,<br />

como não é, por exemplo, ter sofrido um<br />

desastre. Essas coisas não são o comum da vida.<br />

Para uma pessoa ter verdadeiro interesse pelo estudo,<br />

o empenho, a concentração mental, a energia<br />

de espírito que ele exige, a abnegação de uma série<br />

de coisas mais baixas são sofrimentos iniciais.<br />

Quando esses sofrimentos são aceitos, podem se<br />

tornar familiares e até fonte de alegria. Que efeito<br />

esses sofrimentos têm para a vida, para a alma humana?<br />

18


Eles enrijecem a alma, dão-lhe profundidade de espírito,<br />

continuidade de intenções, seriedade e, com isto, tornam<br />

o homem verdadeiramente varonil. Um indivíduo incapaz<br />

desses sofrimentos torna-se indigno de ser homem.<br />

A pessoa deve procurar esse tipo de sofrimento, endurecer-se<br />

diante dele, ser inclemente consigo à vista dele,<br />

e quanto mais ela seja dura consigo, mais a vida lhe será<br />

suportável.<br />

Quando nessa gama certas coisas não fazem sofrer,<br />

em algum ponto acabará aparecendo um grande sofrimento,<br />

porque não se escapa da regra de que em algum<br />

aspecto, maior ou menor, o esforço é muito penoso, como<br />

um argueiro no olho ou um pedregulho no sapato.<br />

Por exemplo, um homem pode ser muito estudioso,<br />

mas certa forma de estudo indispensável lhe dá preguiça.<br />

Isso tudo faz parte do tal sofrimento que o indivíduo<br />

deve enfrentar.<br />

Qual é a utilidade desse sofrimento para a ordem da<br />

Comunhão dos Santos, como caráter expiatório? Evidentemente,<br />

desde que o indivíduo tenha intenção de<br />

oferecer, isto é útil à Comunhão dos Santos, enriquece o<br />

tesouro da Igreja.<br />

Padecimentos que agridem<br />

Mas um peculiar título de valor ele não possui, que<br />

vem de outra coisa: é do sofrimento que agride todo homem<br />

na vida, o qual está fora da ordem comum e se diria<br />

até que é destrutivo desta ordem.<br />

Por exemplo, o indivíduo começa a estudar com decisão<br />

e adquire o hábito do estudo. Vem a mãe dele e lhe<br />

informa: “Até agora temos vivido do comércio de seu pai.<br />

Mas ele teve uma embolia cerebral e não vai mais poder<br />

continuar esse trabalho. Por isso, será preciso que você o<br />

assuma.”<br />

Ele que já se dedicara inteiramente a certo ramo, fica<br />

colocado diante de um sofrimento de outra ordem, com<br />

isto de meio desagregador: com dificuldade, rezando,<br />

ele conseguiu tornar-se inteiramente familiar ao estudo.<br />

Agora, vem uma surpresa que o lança nessa história.<br />

Imaginemos que o pai tenha uma casa de comércio<br />

pequena, de arrabalde, onde vende louças e ferragens. E<br />

a primeira coisa que esse gênero de negócio exige é boas<br />

relações na redondeza, porque há nos arredores duas<br />

ou três outras casas novas que estão fazendo competição.<br />

E ele também precisa estar muito a par do que as fabriquetas<br />

de São Paulo vão lançando de novo a esse respeito,<br />

porque, do contrário, não oferece artigos que disputem<br />

a clientela.<br />

Portanto, isso não só absorve o tempo de trabalho dele,<br />

mas a capacidade de luta e de reflexão. E ele se vê descido<br />

de São Tomás até o problema de saber se a louça fabricada<br />

com pó de pedra e vendida em tal lugar agrada a Da. Fulana<br />

que é a mandachuva de tal quarteirão, e com a qual ele<br />

precisa conversar antes. Então Da. Fulana convida-o para<br />

tomar chá em casa dela, e o indivíduo tem que lhe contar<br />

uma piada, senão ele não mantém a freguesia.<br />

A moeda da dor nos ”bancos” do Céu<br />

Outra possibilidade é que o próprio estudioso fique<br />

doente. Ele se habitua a estudar, mas vem, de repente,<br />

uma enfermidade qualquer que o obriga a ficar pelo menos<br />

três anos afastado dos estudos.<br />

Diante disso o indivíduo tem várias saídas possíveis.<br />

Uma delas é encontrar uma fresta e afirmar-se ainda<br />

mais. Esta é a solução providencial que o leva a lutar<br />

contra o infortúnio, suportar este sofrimento, além do<br />

anterior de que falamos, e vencer.<br />

Isso tem um mérito muito maior porque o indivíduo sofre<br />

muito mais do que o comum dos homens. E, portanto,<br />

dá a Deus essa moeda da dor que tem nos “bancos” do<br />

Céu uma importância colossal, e abre um fundo de depósitos<br />

extraordinário para si nos “bancos” do Paraíso. Ele<br />

pertence à categoria de almas que Deus chama para isso.<br />

A diferença entre os dois sofrimentos até aqui descritos<br />

está em que, no padecimento anterior, o indivíduo luta<br />

e pode eliminá-lo. E esse segundo tipo de sofrimento,<br />

ao menos durante muito tempo, não pode ser sanado.<br />

Então, o que fazer? O indivíduo precisa acomodar-<br />

-se àquele sofrimento porque, do contrário, estoura. Mas<br />

de um acomodar-se cujo verdadeiro nome é resignação<br />

e cujo triunfo está em superar o sofrimento, sem deixar-<br />

-se cair em deformações sentimentais por onde ele fique<br />

mole, covarde e sem vigor. Neste caso, ele pode ser um<br />

grande benemérito na Comunhão dos Santos.<br />

O sofrimento penitencial e o de<br />

enriquecimento da Igreja<br />

Outra espécie de sofrimento é aquele que a pessoa<br />

procura. Isso pode se dar de dois modos: ou ela se penitencia,<br />

ou escolhe um gênero de atividade que de si não<br />

seria obrigada a escolher, mas fá-lo por idealismo.<br />

Por exemplo, alguém que, sendo rico, quisesse entrar<br />

para a Legião Estrangeira a fim de praticar o heroísmo.<br />

Ele procurou o sofrimento. Ou um homem que pede a<br />

Deus que lhe mande sofrimentos, como o caso de Monsieur<br />

Martin, pai de Santa Teresinha, a quem Deus inundava<br />

de consolações e que Lhe dizia: “Meu Deus, isso<br />

não pode continuar, eu tenho que, em algum momento,<br />

sofrer!” E pedia o sofrimento para Deus. E veio!<br />

Este é ainda mais nobre do que os sofrimentos anteriores.<br />

Foi por um ato de amor que ele fez isso, com-<br />

19


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

preendendo o valor enorme do sofrimento<br />

e querendo fazer aos tesouros da Igreja<br />

o beneficio de enriquecê-los, entrando<br />

com a gota d’água de sua própria dor.<br />

Às vezes é um sofrimento de penitência.<br />

Aí ele quase paga aos tesouros<br />

da Igreja o que ele roubou pecando.<br />

Outras vezes não é um sofrimento<br />

penitencial e sim de enriquecimento<br />

da Igreja. Uma alma que tem a felicidade<br />

de poder dizer: “Sou inocente,<br />

mas quero sofrer como Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo inocente sofreu,<br />

para, por esta forma, derrubar a Revolução.<br />

Meu Deus, mandai-me a tragédia,<br />

eu a aceito e me afundo nela!<br />

Morro dentro da tragédia! Só Vos peço<br />

a força de aguentar.”<br />

São modalidades diferentes de sofrimento.<br />

Não se pode padronizar<br />

os caminhos de<br />

Deus para cada alma<br />

Reprodução<br />

Diante desses padecimentos, a pessoa que os pediu<br />

deve endurecer-se contra eles, fazendo esforço para sofrer<br />

pouco?<br />

Por exemplo, um indivíduo que tenha rogado a Deus<br />

que lhe mande um sofrimento, e ele verifica que está ficando<br />

cego. É provavelmente o atendimento do pedido<br />

que ele fez. Ele deve rezar a Deus para não vir essa cegueira?<br />

Fazer toda espécie de tratamento para evitá-la?<br />

Os tratamentos que entram na vida comum da Medicina<br />

e que a Moral obriga, ele deve fazer, não tem por<br />

onde escapar.<br />

Os outros… aí vem o mundo dos contatos da alma com<br />

Deus: se ele tem uma autêntica moção interna de que está<br />

sendo atendido, será heroico e compreende-se que não<br />

recorra. Mas pode ser que, para outra alma igualmente<br />

dedicada a Deus, a Providência não queira isso, mas sim<br />

que ela tente e faça uma luta heroica para evitar o sofrimento,<br />

ficando só provado que a oração dela foi atendida,<br />

porque o sofrimento se impõe apesar de ela fazer a luta.<br />

Depende do caminho de Deus, que não se pode padronizar,<br />

para cada alma. Estou mostrando a variedade de vias.<br />

Vindo o sofrimento, o que o indivíduo deve fazer?<br />

Voltemos ao exemplo do cego. Ele deve fazer o necessário<br />

para suprir sua cegueira: comprar aparelhos magníficos,<br />

aprender métodos por onde ele possa ler, etc., de<br />

maneira a, tanto quanto possível, remediar os inconvenientes<br />

do estado em que caiu?<br />

Beato Luís Martin em 1875<br />

Vale aqui o raciocínio anterior: para alguns<br />

sim, para outros não. Depende do que internamente<br />

a graça peça a cada um. Não há<br />

uma regra assim peremptória. Para algumas<br />

almas Deus tem um desígnio, para<br />

outras, outro. De todas Ele quer que<br />

saibam ouvi-Lo e obedecer-Lhe. É a<br />

regra que precisa ser seguida.<br />

A provação axiológica<br />

O mais terrível dentro disso é o<br />

sofrimento antiaxiológico 2 . É outro<br />

tipo de padecimento. A dor antiaxiológica<br />

é maior em si, como gênero, do<br />

que todas as outras dores porque, tendo<br />

certeza de que se encaixou numa determinada<br />

ordem, a pessoa encontra nisto<br />

um elemento de ação. Porém, quando<br />

ela não tem esta certeza, não sabe se não<br />

está sendo castigada, se é uma coisa temporária<br />

da qual pode pular fora, não sabe<br />

nada, a sua vida se torna sem sentido.<br />

Qualquer um dos sofrimentos acima<br />

descritos pode acontecer tomando uma nota antiaxiológica.<br />

O indivíduo, por exemplo, faz uma reflexão: “Realmente<br />

eu deveria oferecer a minha vida, minha saúde,<br />

qualquer coisa assim...” Interrompe seu pensamento e<br />

vai ocupar-se com outra coisa. Internamente não recusou.<br />

Deus viu que ele estaria disposto, ou espera dele um<br />

ato de aceitação no decurso dos padecimentos. Em certo<br />

momento, uma doença pula em cima dele!<br />

A Providência está permitindo que dois tormentos o<br />

aflijam especialmente: um é o da enfermidade, outro o<br />

de não saber se aquilo lhe veio por um castigo. Ele não<br />

sabe se, por exemplo, rezasse mais, a doença não o acometeria,<br />

se deve orar ou não para cessarem os sofrimentos;<br />

e vai suportando como pode, enquanto Deus<br />

Se mantém mudo. Nisto pode estar embuçado tanto um<br />

castigo quanto um modo magnífico de carregar a cruz,<br />

sem que o interessado saiba por quê.<br />

Deus não lhe dá os meios de resolver a questão, porque<br />

nisto está a maior prova. E às vezes a graça pode pôr na alma<br />

da pessoa a seguinte ideia: “Procure resolver, mas não<br />

peça graças especiais para isso, porque talvez você fuja do<br />

sofrimento mais duro e que não quereria sofrer.”<br />

É terrível porque não adianta consolar o sujeito com a<br />

ideia de que é a mais alta forma de sacrifício, porque para<br />

ele não está claro se é mesmo a mais elevada forma de<br />

imolação ou se ele está sendo castigado. Quer dizer, não<br />

sabe se está no fundo de um poço ou no alto do monte. E<br />

assim morrerá e se apresentará ao Juízo de Deus.<br />

20


Santíssimo Cristo<br />

das Misericórdias<br />

Paróquia de Santa Cruz,<br />

Sevilha, Espanha<br />

Até lá a incógnita axiológica pode sombrear a vida de<br />

uma pessoa sem ela se dar conta. Por isso digo ser essa<br />

provação axiológica aquela que, entre todas, mais faz o<br />

homem sofrer.<br />

”Deus meus, quare Me dereliquisti?”<br />

Tem-se a impressão de que, durante toda a Paixão,<br />

Nosso Senhor sofreu eminentemente do ponto de vista<br />

antiaxiológico, culminando no “Deus, Deus meus, quare<br />

Me dereliquisti?” 1<br />

No teto da Igreja do Coração de Jesus há pintado<br />

Nosso Senhor aparecendo a Santa Margarida Maria. Ele<br />

diz a ela, mostrando seu Sagrado Coração: “Eis o Coração<br />

que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco<br />

amado.” Este é um sofrimento moral maior do que os<br />

padecimentos físicos inenarráveis.<br />

Ora, isto tem qualquer coisa de antiaxiológico. A dor<br />

que sofre quem foi assim renegado é, no fundo, uma<br />

dor antiaxiológica. Ele era o Justo e seria normal que<br />

fosse acolhido de outra maneira. Entretanto, vem o sofrimento<br />

da Cruz! Levaram a coisa a tal ponto que Longinus<br />

crava a lança n’Ele, e ainda sai água, quer dizer,<br />

não restou nada! Um dos Salmos diz: “Transpassaram<br />

minhas mãos e meus pés, posso contar todos os meus<br />

ossos.” 3<br />

Acima de tudo, a fidelidade do amor d’Ele restaura o<br />

princípio axiológico rompido. Nosso Senhor continua a<br />

amar os homens; tudo o que estes fizeram para romper a<br />

ordem, Ele, com sua obstinação sacrossanta em continuar<br />

a amá-los, recompõe.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência<br />

de 23/11/1983)<br />

Gustavo Kralj<br />

1) Do latim: Meu Deus, meu Deus,<br />

por que Me abandonaste? (Sl 22,<br />

2; Mt 27, 46).<br />

2) Termo derivado de “Axiologia”:<br />

ramo da Filosofia que estuda<br />

os “valores”, isto é, os motivos<br />

e as aspirações superiores e<br />

universais do homem, as condições<br />

e razões que dão rumo à sua<br />

existência, para os quais ele<br />

tende por insuprimível impulso<br />

da sua natureza.<br />

3) Sl 22, 17-18.<br />

21


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Teoria do progresso - II<br />

Continuando a busca de respostas para os mistérios que<br />

envolvem a ascensão e a decadência da sociedade humana, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> discerne a ação de Deus na História dos povos e aponta<br />

para a necessidade da obediência aos planos divinos.<br />

F<br />

ustel de Coulanges 1 , num livro que recomendo<br />

muito — La Cité Antique 2 —, trata dessa questão<br />

e diz que Roma fundou-se assim:<br />

Fundamentos da sociedade romana<br />

Havia povoados de famílias numerosas que habitavam<br />

toda uma zona. Essas famílias sabiam serem parentes en-<br />

tre si, mas já não tinham ciência de que modo nem em<br />

que grau; conheciam apenas a tradição do parentesco e<br />

possuíam um chefe cuja ascendência reportava, por via<br />

de primogenitura, ao antigo patriarca.<br />

O rei fora, assim, um patriarca a quem o consenso<br />

unânime resolveu colocar numa situação diferente,<br />

criando uma dignidade nova. Então, fundou-se o Estado.<br />

Mas o monarca é um produto da cidade. E dentro da<br />

Ruínas de construções<br />

romanas - Palmyra, Síria<br />

James Gordon (CC 3.0)<br />

22


cidade de Roma, o rei, na maior parte dos casos, não governava<br />

diretamente, pois a urbe era dividida em tribos<br />

e estas eram dirigidas pelos respectivos patriarcas, por<br />

meio dos quais o rei governava.<br />

Com o aumento da cidade, e dado o caráter meio soberano<br />

dos patriarcas, o rei não tomava todas as decisões,<br />

mas reunia o conselho dos patriarcas para resolver<br />

as coisas. Nasceu, assim, o Senado romano.<br />

Depois começaram a aparecer tribos não mais aparentadas,<br />

mas já claramente pertencentes a outras zonas,<br />

e que migravam inteiras para a cidade, com a condição<br />

de serem admitidas com seus patriarcas e seus costumes.<br />

E devido à necessidade de braços para se defender contra<br />

o inimigo, a urbe romana as admitia, e aquelas tribos<br />

se inseriam num sistema tribal e patriarcal do qual elas<br />

também viviam; e os chefes dessas tribos entravam para<br />

o Senado, também em igualdade de condições com os<br />

demais patriarcas.<br />

Os escravos não faziam parte do Estado romano,<br />

eram como bichos, sem ter qualquer direito, e ficavam<br />

à margem. Muitos deles, entretanto, começaram a ser libertados<br />

pelos donos e formaram a plebe livre estrangeira,<br />

porque não descendiam das tribos que constituíam o<br />

Estado.<br />

Digo isso para mostrar como a ideia da tribo ficou<br />

profundamente vincada. O Estado era composto de tribos<br />

como uma laranja é formada de gomos.<br />

Evolução do Direito romano<br />

Szilas (CC 3.0)<br />

Com o passar do tempo, começa a aparecer nas cidades<br />

gente avulsa: aventureiros, homens livres, sem vínculo<br />

de parentesco com ninguém. Esses não eram naturalizados,<br />

não tinham direitos políticos, mas sim direitos naturais,<br />

humanos. Nas contendas jurídicas, os juristas romanos<br />

não aplicavam, para esses estrangeiros, o direito<br />

das tribos antigas, mas o direito deduzido teoricamente<br />

da natureza humana.<br />

Na evolução do Direito romano constituíram-se,<br />

em determinada fase, dois Direitos:<br />

o Direito Quiritário e o Direito das Gentes.<br />

O Direito Quiritário, baseado nos costumes<br />

e na religião, provinha das antigas<br />

tribos. O Direito das Gentes,<br />

elaborado por juristas com grande<br />

voo, era o Direito natural, aplicável<br />

aos pobres, estrangeiros, gentios,<br />

que estavam do lado de fora.<br />

Com a expansão de Roma, chegou-se<br />

a tal superpopulação que,<br />

em certo momento, o Direito<br />

Quiritário começou a não se poder<br />

aplicar, e o Direto das Gentes foi-se estendendo aos<br />

cidadãos romanos — plebeus e nobres —; mesmo porque<br />

aquelas leis antigas, não sendo escritas, caíam no esquecimento,<br />

na confusão.<br />

É muito bonito conhecermos essa evolução que Fustel<br />

de Coulanges afirma ter sido, com essas ou aquelas<br />

diferenças, a linha geral da evolução de todos os municípios<br />

gregos e latinos. Mas eu admito ter algo de comum<br />

com a formação de todos os municípios antigos, porque<br />

é tão natural e tão bonita essa passagem do primitivo patriarcado<br />

para o rei, e do primitivo conjunto de tribos até<br />

o Estado, que sou propenso à hipótese de que, com circunstâncias<br />

e com diferenças bem consideráveis, algo<br />

disso seja encontrado na constituição de todas as antigas<br />

sociedades.<br />

O culto dos judeus e as religiões pagãs<br />

Devemos pensar, agora, nos elementos vitais do patriarcado,<br />

e para isso precisamos nos pôr uma pergunta<br />

para a qual tenho muito menos do que hipóteses, não possuo<br />

senão vislumbres, porque seria preciso fazer um estudo<br />

mais aprofundado a respeito da vida sobrenatural.<br />

Quais eram as relações de Deus com Adão, Eva e seus<br />

descendentes?<br />

Por certo, Deus revelara muita coisa a Adão e Eva a<br />

respeito de Si mesmo, do destino do homem, e isso Ele<br />

não proibiu que fosse contado aos descendentes, para<br />

que assim esse conhecimento entrasse como um elemento<br />

da religiosidade deles.<br />

Quer dizer, Adão e Eva levaram para fora do Paraíso<br />

terrestre sua crença religiosa sem nenhuma alteração, e<br />

tenho a impressão de que com isso vinham também favores<br />

celestes que proporcionavam aos homens uma relação<br />

com Deus pré-figurativa daquela estabelecida por meio<br />

da graça santificante, e os povos que ficaram fiéis à tradição<br />

vinda de Adão e Eva eram favorecidos por<br />

uma vinculação especial com Deus. Seria ou<br />

não seria sobrenatural, não sei, mas teria alguma<br />

coisa acima da mera religião deduzida<br />

pela razão humana, e que isto foi ainda mais<br />

acentuado nos judeus que, por ser o povo<br />

eleito, estavam visivelmente numa situação<br />

de partícipes do sobrenatural.<br />

No culto dos judeus a presença<br />

do sobrenatural fazia-se notar a todo<br />

momento por meio de profetas<br />

que orientavam o povo, instituíram<br />

Busto de Aristóteles<br />

Museu Nacional<br />

Romano, Roma, Itália<br />

23


Coyau(CC 3.0)<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Ciro durante uma caçada - Palácio de Versailles, França<br />

e regulamentaram o culto, edificaram um templo, previram<br />

o Messias.<br />

Se considerarmos aquelas religiões pagãs antigas —<br />

a religião dos judeus não estava neste caso —, podemos<br />

nos perguntar se houve guerras religiosas. Por exemplo,<br />

os egípcios querendo provar aos gregos que os ídolos<br />

gregos eram falsos, e que os deuses deles eram verdadeiros;<br />

ou os gregos querendo provar o contrário aos egípcios,<br />

aos assírios, etc. Percebe-se que tais guerras não<br />

existiram.<br />

Aos judeus, a Revelação; aos gregos,<br />

a Filosofia<br />

Fustel de Coulanges trata, de passagem, desta questão<br />

e mostra que cada povo tinha os seus deuses, e quando<br />

dois povos iam à guerra, eles imaginavam que numa<br />

região ignota esses deuses lutavam entre si, e que a guerra<br />

entre eles era a mesma dos homens na Terra. Isso dava<br />

a ideia da crença em um mundo de deuses, todos “verdadeiros”,<br />

com atribuições que se excluíam umas às outras,<br />

pois todos possuíam força divina, dirigindo o universo,<br />

etc., como mais ou menos cada mitologia compunha as<br />

próprias divindades. Donde os povos viverem numa contradição<br />

enorme, pacífica, mas não ecumênica, pois não<br />

visavam fazer prevalecer seus deuses, nem fundir todas<br />

as religiões.<br />

O primeiro povo que, pelo esforço de sua razão, procurou<br />

ter uma noção exata de Deus e de todo o universo,<br />

e constituir, portanto, uma Filosofia, foi o povo grego.<br />

Os gregos, por assim<br />

dizer, tinham duas espécies<br />

de religiões: a religião<br />

filosófica, que os filósofos<br />

— na ponta dos<br />

quais floresceu Aristóteles<br />

— cultivavam e que<br />

era mais um conhecimento<br />

do que um culto. De<br />

outro lado, o culto idolátrico<br />

do povinho, que os<br />

filósofos fingiam aceitar<br />

por medo de serem perseguidos.<br />

A elaboração de uma<br />

lógica, de um sistema de<br />

pensamento, cogitações<br />

a respeito da natureza<br />

do homem e tudo o mais,<br />

nasceu do espírito grego.<br />

Mas qual era o papel<br />

de Deus nisso?<br />

São Clemente de Alexandria afirma que Deus tinha<br />

dado a Filosofia aos gregos e, aos judeus, a Revelação 3 .<br />

A Teologia católica é a aplicação do sistema de pensamento<br />

grego, depois romano, à Revelação, o aprofundamento<br />

da Revelação pela aplicação da razão. Isto todos<br />

os outros povos não tiveram. Foi, portanto, um progresso<br />

enorme, no qual vemos o dedo de Deus.<br />

Pois bem, Deus deu a Revelação aos judeus e a Filosofia<br />

aos gregos. Mas outras coisas a que outros povos chegaram,<br />

não teriam presente também o dedo de Deus?<br />

O dedo de Deus<br />

Por exemplo, os persas: Ciro foi mandado pela Providência<br />

Divina para liquidar a Babilônia e libertar os<br />

judeus, e ele é chamado na Escritura de o “ungido” de<br />

Deus 4 , um homem amado por Ele. Ciro, o imperador pagão<br />

de um império pagão. Na formação do Império Persa<br />

houve, portanto, uma missão divina, um homem de<br />

Deus que executou tudo isso nas trevas do paganismo.<br />

Os juristas medievais admitiam de bom grado que o<br />

Império Romano — que perseguira os cristãos — era um<br />

dom de Deus, pois formava um todo para a pacificação e<br />

coesão do gênero humano, e que competia à Igreja Católica<br />

conservá-lo, fortalecê-lo, e não destruí-lo.<br />

E a Esposa de Cristo não quis destruir o Império Romano,<br />

mas viveu debaixo dele. Quando esse império caiu<br />

de podre, a Igreja Católica conservou a recordação dele,<br />

e os povos mantiveram a ideia de um Império Romano<br />

onde ainda existia o Direito natural, e que deve-<br />

24


A civilização tão apregoada<br />

seria um bem e ao mesmo<br />

tempo um mal. No início,<br />

tudo muito bom, mas vai-se<br />

ver, há um caminho anterior<br />

que se apaga e um desvio<br />

novo aparece, e é uma<br />

decadência. Por quê?<br />

Coroação de Carlos Magno<br />

como Rei dos Lombardos<br />

Reims, França<br />

Garitan(CC 3.0)<br />

ria ser restaurado. E quando o Papa São Leão coroou<br />

Carlos Magno, a intenção do Pontífice era de restaurar<br />

o Império Romano. O tal Sacro Império de língua alemã<br />

foi uma coisa menor, fundada séculos depois de Carlos<br />

Magno, mas que a piedade dos homens da Idade Média<br />

tomou como uma espécie de filho do Império Romano,<br />

com fragmentos da jurisdição universal que o Império<br />

Romano possuía.<br />

Deus quis que se fundasse o Império para facilitar<br />

a expansão da Religião Católica, pois se ela tivesse encontrado<br />

no seu caminho muitos povos antagônicos, teria<br />

sido muito difícil se estabelecer. Ela se estabeleceu<br />

una com uma relativa facilidade, por causa da unidade<br />

do Império Romano. Isto faz compreender melhor o Papado<br />

em Roma.<br />

Vemos, então, o dedo de Deus empurrando, sob vários<br />

aspectos, a História e, como consequência, podemos<br />

admitir que Ele foi dando empurrões de natureza diversa<br />

a vários desses povos, Estados e nações, para irem progredindo<br />

mais do que progrediriam entregues a si mesmos.<br />

Desaparecendo o desejo do sublime,<br />

começa a decadência<br />

Entretanto, acontece esta coisa horrível, talvez um<br />

dos paradoxos mais tristes da História: partindo daquele<br />

ápice primitivo patriarcal, percebe-se que o homem<br />

vai engendrando mais progresso, mas esse progresso traz<br />

a complicação e o apego. E à medida que o homem vai<br />

construindo um edifício, este se transforma em seu pró-<br />

prio mausoléu. Em determinado momento, desaparece o<br />

desejo do esplendor maior, o impulso rumo ao sublime<br />

estanca, e a pessoa fica sorvendo as delícias do que fez,<br />

sem querer subir mais.<br />

A partir do momento em que ela começa a sugar essas<br />

delícias, todo o peso do pecado original fica sem freios<br />

— o freio é o desejo do sublime —, esse peso vai esmagando,<br />

e a pessoa ou a sociedade cai na decadência, chegando<br />

até à inteira dissolução.<br />

Então Deus dá certa ajuda para que o povo possa progredir<br />

sem decair assim, mas a quase totalidade dos povos<br />

decaiu e não progrediu. Isso se deu inclusive em matéria<br />

de Direito com os romanos, e de Filosofia com os<br />

gregos. No meio da Filosofia grega havia erros enormes,<br />

e aquilo parou, estagnou.<br />

Então, a civilização tão apregoada seria um bem e ao<br />

mesmo tempo um mal. No início, tudo muito bom, mas<br />

vai-se ver, há um caminho anterior que se apaga e um<br />

desvio novo aparece, e é uma decadência. Por quê? Porque<br />

o impulso de Deus não foi seguido. v<br />

(Extraído de conferência de 22/8/1991)<br />

1) Numa Denis Fustel de Coulanges (*1830 - †1889). Historiador<br />

francês.<br />

2) Do francês: A Cidade Antiga. Publicado em 1864.<br />

3) Cf. Strom. VI, 8.<br />

4) Is 45, 1.<br />

25


C<br />

alendário<br />

dos Santos – ––––––<br />

1. IV Domingo do Tempo Comum.<br />

Beata Joana Francisca da Visitação, virgem (†1888).<br />

Fundadora do Instituto das Irmãzinhas do Sagrado Coração,<br />

em Turim, Itália.<br />

5. Santa Águeda, virgem e mártir (†c. 251).<br />

São Jesus Méndez, presbítero e mártir (†1928). Foi fuzilado<br />

em Valtiervilla, México, durante a perseguição religiosa.<br />

2. Apresentação do Senhor.<br />

Beato Estêvão Bellesini, presbítero (†1840). Religioso<br />

agostiniano, pároco de Genazzano, Itália. Destacou-se por<br />

sua grande devoção à Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />

3. São Brás,bispo e mártir (†c. 320).<br />

Santo Oscar, bispo (†865).<br />

Santa Berlinda, virgem (†séc. IX-X). Filha do duque<br />

da Lotaríngia e sobrinha de Santo Amando. Ingressou no<br />

mosteiro de Moorsel, Bélgica e depois em Meerbeke.<br />

4. São José de Leonessa, presbítero (†1612). Franciscano<br />

capuchinho, deu assistência aos cristãos cativos em<br />

Constantinopla e pregou o Evangelho até no palácio do<br />

Sultão. Morreu em Amatrice, Itália.<br />

6. São Paulo Miki e companheiros, mártires (†1597).<br />

Beato Antônio Maria Fusco, presbítero (†1910). Fundador<br />

das Irmãs Batistinas do Nazareno, em Angri, Itália.<br />

Foi assíduo no serviço litúrgico e diligente na administração<br />

dos Sacramentos.<br />

7. Beato Pio IX, Papa (†1878). Ver página 2.<br />

8. V Domingo do Tempo Comum.<br />

São Jerônimo Emiliani, presbítero (†1537).<br />

Santa Josefina Bakhita,virgem (†1947).<br />

São Paulo de Verdun,bispo (†c. 647). Tendo abraçado a<br />

vida monástica, depois foi eleito Bispo de Verdun, França,<br />

onde promoveu a dignidade do culto divino e a observância<br />

regular dos cônegos.<br />

9. São Miguel Febres Cordeiro, religioso (†1910). Religioso<br />

da Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs.<br />

Nasceu em Cuenca, Equador, onde durante quase 40 anos<br />

se dedicou à formação escolástica e literária dos alunos e<br />

dos próprios professores. Trasladou-se para a Espanha,<br />

onde faleceu em Premiá de Mar.<br />

10. Santa Escolástica,virgem (†c. 547).<br />

Santa Austreberta, virgem e abadessa (†704). Regeu o<br />

mosteiro de Pavilly, em Rouen, França, fundado pelo Bispo<br />

Santo Audeno.<br />

11. Nossa Senhora de Lourdes.<br />

São Pascoal I, Papa (†824). Trasladou muitas relíquias<br />

dos mártires das catacumbas para as igrejas. Promoveu<br />

missões nos países escandinavos e reconstruiu a Basílica<br />

de Santa Cecília, em Roma.<br />

Masalova S.V. (CC 3.0)<br />

12. São Melécio, bispo (†381). Exilado várias vezes por<br />

defender as normas do Concílio de Niceia. Morreu na Antioquia,<br />

hoje Turquia, quando presidia o Primeiro Concílio<br />

Ecumênico de Constantinopla.<br />

13. São Paulo Liu Hanzuo,presbítero e mártir (†1818).<br />

Preso quando celebrava a Missa da Assunção. Estrangulado<br />

por ser cristão em Dongjiaochang, China.<br />

São Cirilo e São Metódio<br />

14. São Cirilo, monge (†869) e São Metódio,bispo (†885).<br />

26


––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />

Milziade (CC 3.0)<br />

Beato Estêvão Bellesini<br />

Santo Auxêncio,<br />

presbítero e<br />

arquimandrita<br />

(†séc. V).<br />

Abandonando<br />

a carreira<br />

militar, tornou-se<br />

eremita<br />

perto de<br />

Constantinopla<br />

e dedicou o<br />

resto da vida à pratica<br />

da mortificação<br />

e à defesa da Fé.<br />

15. VI Domingo do Tempo Comum.<br />

Beato Miguel Sopoko,presbítero (†1975). Fundador das<br />

Irmãs de Jesus Misericordioso. Confessor de Santa Faustina<br />

Kowalska e grande propagador da devoção à Divina<br />

Misericórdia. Morreu em Bialystok, Polônia.<br />

16. Beato José Allamano,presbítero (†1926). Animado<br />

pelo zelo incansável, fundou em Turim, Itália, duas Congregações<br />

das Missões da Consolata, uma masculina e outra<br />

feminina.<br />

17. Sete Santos Fundadores dos Servitas(†1310).<br />

São Fintano, abade (†c. 440). Fundador do mosteiro de<br />

Clúain Ednech, Irlanda, destacou-se por sua austeridade.<br />

18. Quarta-feira de Cinzas.<br />

São Francisco Régis Clet, presbítero e mártir<br />

(†1820). Sacerdote da Congregação da Missão nascido<br />

em Grenoble, Franca, anunciou o Evangelho no meio<br />

de extremas dificuldades na província de Hubei, China.<br />

Após ter sido denunciado por um apóstata, passou<br />

um longo período na prisão, onde morreu estrangulado.<br />

Santo Eustácio, bispo (†c. 338). Bispo da Antioquia,<br />

exilado para Trajanópolis, atual Bósnia, pelo Imperador<br />

Constâncio, por defender a Fé Católica.<br />

22. I Domingo da Quaresma.<br />

Festa da Cátedra de São Pedro Apóstolo.<br />

Santa Margarida de Cortona, penitente (†1297). Comovida<br />

pela morte de seu amante, arrependeu-se e depois<br />

de muitas provas foi admitida na Ordem Terceira Franciscana,<br />

onde levou uma vida de penitência.<br />

23. São Policarpo, bispo e mártir (†c. 155).<br />

Beata Josefina Vannini, virgem (†1911). Fundadora da<br />

Congregação das Filhas de São Camilo, em Roma, para<br />

assistência aos doentes.<br />

24. Beata Ascensão do Coração de Jesus, virgem<br />

(†1940). Cofundadora da Congregação das Missionárias<br />

Dominicanas do Santíssimo Rosário, em Lima, Peru. Faleceu<br />

aos 57 anos de idade em Pamplona, Espanha.<br />

25. São Nestor de Magido,<br />

bispo e mártir (†c.<br />

250). Preso durante<br />

perseguição do Imperador<br />

Décio. Foi condenado<br />

e crucificado<br />

em Perge, atual Turquia.<br />

26. São Vítor,eremita<br />

(†séc. VII).<br />

Louvado nos Sermões<br />

de São Bernardo,<br />

morreu em Arcis-sur-Aube,<br />

França,<br />

onde viveu da oração<br />

e contemplação.<br />

19. Beata Isabel Picenárdi, virgem (†1468). Tomou o<br />

hábito da Ordem dos Servos de Maria em Mântua, Itália.<br />

Possuía grande devoção à Eucaristia e à Santíssima Virgem.<br />

20. São Tirânio,bispo (†311). Foi Bispo de Tiro, tendo<br />

sido instruído na Fé Cristã desde muito jovem. Recebeu a<br />

palma do martírio na Antioquia, Síria.<br />

21. São Pedro Damião,bispo e Doutor da Igreja (†1072).<br />

27. São Gregório<br />

de Narek, monge (†c.<br />

1005). Evangelizador<br />

dos armênios, ilustre<br />

pela doutrina, escritos<br />

e ciência mística.<br />

28. São Romão,<br />

abade (†460). Ver página<br />

28.<br />

Santa Margarida de Cortona<br />

Otuourly (CC 3.0)<br />

27


Hagiografia<br />

São Romão, doçura<br />

e força de oração<br />

Pregar apenas a misericórdia e silenciar a justiça é tão<br />

errado quanto fazer o contrário, pois ambas as virtudes<br />

são necessárias para as almas. Dois irmãos santos, Romão<br />

e Lupicino, nos deram significativo exemplo de como a<br />

justiça e a misericórdia se harmonizam.<br />

Aqui há uma série de fatos interessantes para considerar,<br />

e cada um deles, portanto, vai ter um comentário à<br />

parte. Em primeiro lugar, nos encontramos em face des-<br />

Em 28 de fevereiro, comemora-se a festa de São<br />

Romão, abade. A ficha biográfica que irei comentar<br />

é tirada do Pe. Édouard Daras, “Les vies<br />

des Saints” 1 .<br />

Chuvas de pedras cortantes<br />

provocadas pelo demônio<br />

São Romão, nascido em 399 na Borgonha, foi fundador<br />

de um famoso convento na região do Franco Condado.<br />

Desde jovem retirou-se para a solidão, sendo mais tarde seguido<br />

por seu irmão, São Lupicino. Conta-se que levavam<br />

uma vida que consideravam de paz e felicidade, quando o<br />

demônio resolveu interrompê-la. Cada vez que se punham<br />

de joelhos para rezar, o demônio fazia cair sobre eles uma<br />

chuva de pedras cortantes, que os feria e impediam de continuar.<br />

Ambos resistiram por algum tempo, mas vendo que<br />

nada conseguiam decidiram abandonar o retiro. Ao chegarem<br />

a uma aldeia, foram hospedados por uma pobre mulher,<br />

que lhes perguntou de onde vinham. Não sem alguma<br />

vergonha, narraram toda a verdade.<br />

“Vós deveríeis, disse a mulher, lutar corajosamente contra<br />

o demônio e não temer os embustes e ódio daquele que<br />

tão frequentemente foi vencido pelos amigos de Deus. Se ele<br />

ataca os homens, é por medo de que eles, por suas virtudes,<br />

subam ao lugar de onde a perfídia diabólica os fez cair.”<br />

Ao saírem dessa casa, consideraram a sua fraqueza e<br />

quão pouco haviam combatido. Voltaram sobre seus passos<br />

e, com orações e paciência, venceram o inimigo.<br />

Dois métodos diferentes no trato com as almas<br />

Mais tarde, tendo já fundado numerosos mosteiros, os<br />

dois irmãos visitavam essas fundações com frequência. São<br />

Lupicino era severíssimo, não perdoando o menor deslize.<br />

São Romão, ao contrário, era bem mais misericordioso.<br />

Aconteceu que São Lupicino, visitando um convento na<br />

Alemanha, encontrou na cozinha excessiva quantidade de<br />

legumes e peixe. Escandalizado com aquilo, fez cozinhar<br />

tudo junto para castigo dos monges. A comida saiu tão repugnante<br />

que doze religiosos deixaram a casa, não suportando<br />

a penitência. São Romão teve uma visão sobre esse<br />

acontecimento, e quando Lupicino voltou, disse-lhe:<br />

— Meu irmão, é melhor não visitar as ovelhas do que ir<br />

vê-las para dispersá-las.<br />

Resposta de São Lupicino:<br />

— Não tenhais pena, meu caro irmão. Não é preciso purificar<br />

o campo do Senhor e separar a palha do bom grão?<br />

Os que foram eram doze orgulhosos em quem o Senhor<br />

não mais habitava.<br />

São Romão concordou. Mas daí em diante chorava tão<br />

profundamente, magoado com a partida dos monges, que<br />

Deus, atendendo suas preces, reconduziu mais tarde os doze<br />

recalcitrantes ao convento. E a ele se apresentaram voluntariamente<br />

para fazer penitência.<br />

Num ambiente sereno, surge a provação<br />

28


Reprodução<br />

Cenas da vida dos Padres do deserto (por Fra Angelico)<br />

Museu de Belas Artes, Budapeste, Hungria<br />

sa admirável floração de santos, depois da queda do Império<br />

Romano do Ocidente. Vemos aqui dois irmãos que<br />

levam uma vida de grande santidade. E aparece esse episódio<br />

deles residindo no ermo, sem amolação nenhuma,<br />

sem ver nada das coisas da cidade, nem do mundo, numa<br />

natureza amena, bucólica, vivendo felizes.<br />

Então podemos imaginar, nas horas de oração, os irmãos<br />

ajoelhados bem direitinho, um ao lado do outro —<br />

assim é que os representaria uma iluminura —, e rezando<br />

a Nossa Senhora que aparece no alto, sorrindo para<br />

eles. Esse seria o primeiro ato. É o ato da felicidade eremítica<br />

e bucólica desses dois irmãos que vivem numa atmosfera<br />

terrena, encimada por um céu parecido com o<br />

ar diáfano daqueles céus azuis de Fra Angelico, o qual<br />

poderia perfeitamente ter pintado essa cena.<br />

Vem depois a provação. O demônio tem ódio deles e o<br />

modo de castigá-los também é muito interessante: a chuva<br />

de pedras cortantes. Sobre eles, tão bonzinhos, tão direitinhos,<br />

cai uma chuva medonha de pedras cortantes<br />

que os molesta. Os irmãos então procuram rezar direi-<br />

A justiça e a paz se<br />

oscularam, diz o Salmo.<br />

Aqui se poderia dizer que<br />

a justiça e a misericórdia<br />

se oscularam.<br />

to, mas afinal de contas as pedras caem em tal quantidade<br />

que eles resolvem sair.<br />

Lição de uma virtuosa mulher<br />

Por fim, surge uma mulher, a qual é, naturalmente,<br />

uma boa mulher, que habita no campo, numa choupana.<br />

Ela perdeu o marido e tem apenas um filho, que é<br />

29


Hagiografia<br />

monge e reside num lugar distante, e de quem, de vez<br />

em quando, recebe uma carta; essa mulher é reumática,<br />

tem uma perna inchada, mas reza o tempo inteiro e vive<br />

só para Deus. Assim poderíamos imaginar a mulher,<br />

pois esse era o ambiente pitoresco da época, o modo pelo<br />

qual a graça operava. Não é lenda. É o estilo da ação<br />

de Deus naquele tempo.<br />

Então a mulher, provada em dores e cheia de sabedoria,<br />

recebe os dois. Naturalmente, primeiro oferece a<br />

eles alguma coisa para comer. Ajuda a curar alguma ferida<br />

provocada pelas pedras. Depois pergunta o que há.<br />

Fora está chovendo torrencialmente, eles estão abrigados<br />

na casinha da mulher e contam para ela o ocorrido.<br />

A mulher suspira, põe os olhos num Crucifixo e diz: “Irmãos,<br />

mui errados andais!” E fala a verdade.<br />

Compungidos, eles passam a noite em prece. Na manhã<br />

seguinte, voltam para o ermo e vão lutar contra o demônio.<br />

São dois cavaleiros, dois guerreiros contra o demônio,<br />

que emergem dessa atmosfera azul-claro, rosa-<br />

-claro, ouro-rutilante, e que a partir desse momento se<br />

transformam em lutadores varonis. É a formação deles<br />

que assim se enuncia.<br />

Severidade e brandura<br />

Depois se saltam vários anéis intermediários, e eles<br />

nos aparecem numa posição pomposa, majestosa. São<br />

dois santos veneráveis, cuja fama de santidade reuniu<br />

em torno de si vários monges que lhes obedeciam. Eles<br />

são patriarcas, provavelmente já de barba branca, mais<br />

sábios e mais provados na vida do que aquela mulher,<br />

derrotaram os demônios, enfrentaram os adversários, fizeram<br />

viagens perigosas passando por lugares onde havia<br />

feras, pontes mal construídas, bandidos, tempestades,<br />

tudo enfrentaram por causa de Deus Nosso Senhor. Os<br />

dois estão no zênite da vida deles. Porém, mais uma vez,<br />

um episódio entre eles se dará.<br />

Há certa medida de severidade e de brandura que deve<br />

ser utilizada de acordo com o sopro da graça, e com o<br />

modo pelo qual Deus Nosso Senhor quer conduzir os espíritos.<br />

Existem certos espíritos que só sabem fazer bem<br />

por meio da severidade suma, e realizam um bem admirável.<br />

Há outros espíritos que, dentro da medida do razoável,<br />

quase se diria que estão no extremo oposto: são<br />

muito brandos, muito suaves, e fazem bem pela sua brandura<br />

e suavidade. Uns imitam mais Nosso Senhor enquanto<br />

expulsava os vendilhões do Templo;<br />

outros O imitam mais enquanto perdoava<br />

Santa Maria Madalena.<br />

De qualquer forma, ei-los que começam<br />

a governar esses mosteiros. E um deles,<br />

São Lupicino, muito severo, muito duro,<br />

vai ao mosteiro e faz o que todos os<br />

instintos de minha alma me pediriam para<br />

fazer, se estivesse em situação análoga:<br />

“Isso aqui não está direito? Está bem,<br />

eu vou ensinar.” É reto, rápido, não faz os<br />

outros perderem tempo, resolve as coisas<br />

diretamente e resolve mesmo. Erradica e<br />

põe fora. Está acabado.<br />

Victor Toniolo<br />

Que São Romão nos<br />

conceda sua doçura com sua<br />

força de oração; porque,<br />

sem sua força de oração,<br />

nada faria com sua doçura.<br />

Um Santo Eremita<br />

(por Girolamo Muziano)<br />

Museus Vaticanos<br />

30


Mas exatamente a Igreja é multíplice, e São Romão,<br />

o qual tinha o espírito diverso, começa a lamentar o que<br />

fez São Lupicino.<br />

Notem a sutileza e o conteúdo teológico interessantíssimo<br />

do fato: São Romão começa a lamentar o que realizou<br />

São Lupicino e lhe faz uma censura. Este dá uma<br />

resposta à sua maneira, esplêndida, e explica tudo. São<br />

Romão dá um suspiro e concorda, teve boa-fé. Isso é verdade.<br />

A justiça e a misericórdia se oscularam<br />

Mas a Providência quis que a misericórdia não saísse<br />

derrotada. E onde São Lupicino tinha feito bem em expulsar,<br />

São Romão fez bem em pedir que os monges voltassem.<br />

Este se pôs a chorar. Vê-se, então, o velho com<br />

as barbas brancas numa atitude enternecida, pensando<br />

naquelas almas, as lágrimas cristalinas de olhos cristalinos<br />

que correm ao longo de uma face alva e emaciada,<br />

chegam a cair no chão e enternecem o Anjo da Guarda,<br />

encontram eco diante de Nossa Senhora, a qual, por sua<br />

vez, tem sempre eco diante de Deus. E Maria Santíssima<br />

pede pelos monges.<br />

Resultado: o pessoal, que São Lupicino com tão boa<br />

vassoura varrera, volta. Mas não regressa como era<br />

quando foi varrido. Volta emendado por uma ação excepcional<br />

da graça, uma ação que está para além das vias<br />

normais da graça; que não é o corretivo de São Lupicino,<br />

mas é uma bela superação desse santo. A graça conseguiu<br />

a conversão daqueles que a justiça, a tão bom título<br />

e tão oportunamente, tinha castigado.<br />

A justiça e a paz se oscularam, diz o Salmo 2 . Aqui se<br />

poderia dizer que a justiça e a misericórdia se oscularam.<br />

E termina assim, num encantador happy end, esta ficha.<br />

Que São Romão nos consiga um pouco dessa candura<br />

de alma; que no interior de nossas almas haja um pouco<br />

desse rosa-claro, desse verde, desse florilégio que é tão<br />

extraordinariamente agradável para carregarmos a virtude.<br />

E que tenhamos a compreensão dos métodos de São<br />

Lupicino, e não apenas a ternura para com os modos de<br />

agir de São Romão. Que ambos nos façam parecidos<br />

com eles. Que São Lupicino nos dê toda a sua braveza. E<br />

São Romão nos conceda sua doçura com sua força de<br />

oração; porque, sem sua força de oração, nada faria com<br />

sua doçura.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 28/2/1967)<br />

Reprodução<br />

1) Cf. DARAS, Édouard. Les vies des Saints. Volume II. 7ª edição.<br />

Paris: Louis Vivès, 1872. p. 465-471.<br />

2) Cf. Sl 85, 11.<br />

Eremitas - Detalhe do Retábulo de Ghent, Bélgica<br />

31


Apóstolo do pulchrum<br />

Luca Boldrini (CC 3.0)<br />

O belo e o prático - II<br />

Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e<br />

proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios<br />

de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens<br />

existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são<br />

exemplos característicos dessa verdade.<br />

T<br />

endo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina<br />

sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos<br />

algumas carruagens 1 que se encontram<br />

no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.<br />

A parte nobre do corpo do homem deve<br />

aparecer mais que a inferior<br />

Logo à primeira vista notamos como o chão dessa car-<br />

32


uagem tem uma superfície menor do que a do teto; este<br />

se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que<br />

se considerarmos como chão apenas a parte onde está a<br />

porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto.<br />

A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem<br />

faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de<br />

seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito<br />

menos.<br />

Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo,<br />

é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos<br />

cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre,<br />

em que ele aparece como um busto. Imaginem que<br />

este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado<br />

na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até<br />

embaixo. Perderia enormemente.<br />

Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam<br />

nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do<br />

que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou<br />

da dama, em atitude monumental, escultural.<br />

Harmonia entre as diversas<br />

partes da carruagem<br />

O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que<br />

transporta, e outra a que é transportada. A parte que<br />

transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor.<br />

Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho<br />

para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que<br />

quando o carro para, imediatamente eles descem e vão<br />

correndo abrir as portas e pôr um banquinho<br />

embaixo — que já vem dentro do<br />

próprio carro —, para que o passageiro<br />

não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como<br />

ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para<br />

baixo?<br />

Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com<br />

chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia<br />

muito grande com a porta aberta; e, não havendo um<br />

fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe<br />

oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.<br />

Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas<br />

e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que<br />

são transportados.<br />

Notem a diferença de construção das rodas da frente<br />

com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais<br />

robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes.<br />

A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos<br />

passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados,<br />

há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria<br />

alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e<br />

a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira<br />

que os passageiros não sejam jogados para frente ou para<br />

trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de<br />

providências práticas que são muito belas.<br />

Tuvalkin (CC 3.0)<br />

Victor Toniolo<br />

Tuvalkin (CC 3.0)<br />

Victor Toniolo<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

O prático disfarçado pela beleza<br />

Está posta uma situação digna de nota, em que o prático<br />

existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber<br />

vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela<br />

beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria<br />

prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”<br />

As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela<br />

não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos<br />

do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.<br />

Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao<br />

calçamento está calculada para a perfeita comodidade<br />

das pessoas que se encontram no interior da cabine.<br />

Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos<br />

frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há<br />

o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas,<br />

conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa<br />

atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente.<br />

O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes,<br />

e faz parte do dever delas apresentar esta beleza,<br />

pois as instituições políticas devem ornar os povos. O<br />

mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.<br />

As carruagens e a hierarquia<br />

existente numa sociedade<br />

Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior<br />

ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja<br />

um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?<br />

Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo,<br />

mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas<br />

bonito.<br />

Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer<br />

um carro assim?<br />

Não, porque toda sociedade, qualquer<br />

que seja a forma de governo, deve ter uma<br />

hierarquia. E é preciso que essa hierarquia<br />

seja harmônica; quer dizer, não haja um<br />

tombo entre o primeiro carro e depois apenas<br />

liteiras. Convém que essa hierarquia seja<br />

por degraus. Este não é um carro para rei,<br />

mas para príncipes.<br />

Por causa disto, ele é distinto, mas notem<br />

que a presença do ouro nele é muito menos<br />

abundante: o teto dele é muito menos ornado<br />

e de uma cor comum. As formas das janelas<br />

são muito menos fantasiosas e mais retilíneas,<br />

mas a justaposição de vermelho e ouro<br />

é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro<br />

possui, mas de modo menos excelente.<br />

Essas carruagens são do museu dos coches<br />

da corte, mas se houvesse um museu dos coches<br />

da burguesia, outro dos coches do clero,<br />

etc., simplesmente pelos coches teríamos uma<br />

ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.<br />

Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias<br />

da classe popular tinham para se fazer transportar,<br />

eram interessantes. É a hierarquia social em que cada<br />

elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo.<br />

E constitui uma boa organização social.<br />

Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos<br />

de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para<br />

se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.<br />

Ósculo entre o belo e o prático<br />

Carlos Luis M C da Cruz(CC.3.0)<br />

Ricardo Tulio Gandelman (CC.3.0)<br />

Considerem um pouco o prédio do<br />

museu e notem como a sala dos coches<br />

é muito bem calculada. Vistas num conjunto,<br />

todas as coisas belas apresentam<br />

uma beleza maior do que a simples soma<br />

delas. E por isso é bonito ver os coches<br />

no seu conjunto. Então foi feito<br />

um salão bem alto, com uma grande galeria<br />

em cima, para que o conhecedor<br />

possa percorrer os vários lados e analisar<br />

os coches no seu conjunto.<br />

Para guardar bonitos coches tudo<br />

foi bem preparado. Quadros a óleo,<br />

provavelmente do tempo, representando<br />

cenas que se passaram neste ou<br />

naquele coche. O teto todo pintado e<br />

trabalhado. Tem-se vontade de haver<br />

ali no fundo, onde há uma cortina, um<br />

34


Aspectos do Museu Nacional dos<br />

Coches - Lisboa, Portugal<br />

Igor Zyx (CC.3.0)<br />

órgão para serem tocadas músicas extraordinárias,<br />

celebrando o passado de Portugal.<br />

Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto<br />

muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um<br />

elemento de grande valor para o prestígio atual<br />

de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal.<br />

Em geral, as nações que foram colônias se revoltam<br />

contra as metrópoles, e rompem à mão armada.<br />

Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique,<br />

gente que está lutando para que essas nações<br />

voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que<br />

muitos angolanos, moçambicanos que visitaram<br />

esse museu, levando álbuns com visões de coisas<br />

destas para Angola e Moçambique, deram o sabor<br />

da cultura portuguesa, e concorreram para esta<br />

união de Portugal com os seus súditos. Nós, de<br />

origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto<br />

aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam,<br />

se encontram. Era preciso termos chegado a este<br />

século descabelado e sujo para que se imaginasse<br />

esse dissídio entre o belo e o prático. v<br />

(Extraído de conferência de 4/10/1986)<br />

1) As fotografias que ilustram esta seção não são as<br />

mesmas comentadas por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Luca Boldrini (CC.3.0)<br />

35


Contraste<br />

maravilhoso<br />

O<br />

que me toca especialmente na devoção<br />

a Nossa Senhora é uma espécie de<br />

antinomia harmoniosa e maravilhosa pelo<br />

fato de Ela ser tão santa e, entretanto, saber<br />

colocar-Se tanto ao nível de todos nós,<br />

pecadores. Pensar que Ela, sem perder nada<br />

de sua incomensurável superioridade,<br />

sabe descer tão ao nosso plano!<br />

Quando rezo à Santíssima Virgem,<br />

cogito sobre Ela, trato com Ela, sinto-A<br />

enormemente ao meu alcance, ao meu<br />

nível. Mas, de outro lado, maior do<br />

que eu, nem sei de que jeito!<br />

Ela, tão pura, poder — por<br />

assim dizer — “tocar” numa<br />

alma que tem manchas, sem Se<br />

contaminar em nada; e, tendo<br />

todo horror ao pecado, não ficar<br />

com horror de mim!<br />

Há aí uma espécie de contraste<br />

belíssimo, maravilhoso, em que<br />

eu me sinto aceito e assumido por<br />

inteiro.<br />

(Extraído de conferência de 25/6/1972)<br />

Timothy Ring<br />

Nossa Senhora do Brasil<br />

São Paulo, Brasil

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