Revista Dr. Plinio 203
Fevereiro de 2015
Fevereiro de 2015
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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>203</strong> Fevereiro de 2015<br />
Há 40 anos,<br />
um oferecimento<br />
avidamente aceito
Jebulon (CC 3.0)<br />
Tholme (CC 3.0)<br />
A<br />
Energia combativa<br />
história do pontificado do grande Pio IX mereceria<br />
ser estudada a fundo pelos católicos. Ela contém ensinamentos<br />
para nossa época muito mais oportunos e profundos<br />
do que geralmente se pensa.<br />
Quer pela definição do dogma da Imaculada Conceição, em<br />
1854, quer pela convocação do Concílio do Vaticano em 1869, e a definição<br />
do dogma da infalibilidade papal no ano seguinte, este grande Papa enfrentou aguerrida<br />
e resolutamente o naturalismo e o racionalismo do século.<br />
Pio IX julgou que a época era ainda menos propícia do que outra qualquer para uma atitude<br />
de impassibilidade sorridente, cujo efeito necessário seria o encorajamento dos maus e o entibiamento<br />
dos bons. Com isto, calcando aos pés qualquer falso sentimentalismo, Pio IX enfrentou<br />
decididamente a impiedade.<br />
Sua energia combativa venceu. Depois da definição do dogma da infalibilidade pontifícia pelo<br />
Concílio do Vaticano, a onda do racionalismo naturalista tem decrescido incessantemente, e<br />
embora ela ainda conserve formas disfarçadas dignas da maior cautela dos católicos, é certo que<br />
perdeu aquela agressividade truculenta e blasfema com que se pavoneava nas altas rodas literárias,<br />
políticas e sociais da Europa do século XIX.<br />
(Extraído de “O Legionário” de 18/12/1938)<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>203</strong> Fevereiro de 2015<br />
Ano XVIII - Nº <strong>203</strong> Fevereiro de 2015<br />
Há 40 anos,<br />
um oferecimento<br />
avidamente aceito<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
na década de 1980<br />
Foto: Sérgio Miyazaki<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Editorial<br />
4 Há 40 anos, um oferecimento<br />
avidamente aceito<br />
Dona Lucilia<br />
6 Inocência, generosidade e afeto<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
8 Adoração da Pessoa de<br />
Nosso Senhor<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
14 Ordenação e desregramento do<br />
instinto de sociabilidade - I<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
18 Modalidades de sofrimento - I<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
22 Teoria do progresso - II<br />
Calendário dos Santos<br />
26 Santos de Fevereiro<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 130,00<br />
Colaborador .......... R$ 180,00<br />
Propulsor ............. R$ 415,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Hagiografia<br />
28 São Romão, doçura e<br />
força de oração<br />
Apóstolo do pulchrum<br />
32 O belo e o prático - II<br />
Última página<br />
36 Contraste maravilhoso<br />
3
Editorial<br />
Há 40 anos,<br />
um oferecimento<br />
avidamente aceito<br />
Sine sanguinis effusione non fit remissio 1 . Esta afirmação encerra um profundo mistério. Por que<br />
Deus quis que o próprio Verbo pelo qual todas as coisas foram feitas 2 Se encarnasse e vertesse, do<br />
alto da Cruz, até a última gota de seu preciosíssimo Sangue para remir suas criaturas? O mesmo<br />
ato de vontade onipotente que tirou do nada o universo não bastaria para operar a Redenção?<br />
São questões que nos interessam a fundo e concernem a toda a nossa existência, pois o enigma da dor<br />
e da morte — que aflige e, por vezes, esmaga o homem — só encontra sua solução em Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo 3 .<br />
A cada ano, o Tempo da Quaresma nos convida a meditarmos na necessidade de associar os nossos<br />
padecimentos ao sacrifício redentor do Cordeiro de Deus para, assim, realizarmos os planos divinos.<br />
De espírito fundamentalmente religioso, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> compreendeu e amou esta verdade, a respeito da<br />
qual teceu belos comentários que iluminam as páginas da vasta obra por ele deixada, e dos quais o leitor<br />
encontrará mais um exemplo na presente edição 4 .<br />
Porém, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não se limitou a compreender e amar o sacrifício. Sua admiração pelas vítimas expiatórias<br />
e, sobretudo, sua adoração pela Vítima suprema, levaram-no a oferecer-se em holocausto pela<br />
causa católica. Celebramos, neste mês, 40 anos de seu oferecimento avidamente aceito pela Providência.<br />
Fiz esse oferecimento — dizia ele 5 — na presença de várias pessoas. Conversávamos sobre a situação<br />
de nosso Movimento cujas difíceis vicissitudes pelas quais passava exigiam um holocausto dessa<br />
natureza. Como não via qualquer disposição para isso em meus interlocutores, pareceu-me que eu<br />
deveria fazê-lo. Então lhes declarei minha intenção de oferecer-me como vítima a Nossa Senhora.<br />
Não imaginei que fosse ter uma tão grande repercussão. A conversa se deu no sábado à noite. Na<br />
segunda-feira, dia 3 de fevereiro, sofri o desastre de automóvel.<br />
A Santíssima Virgem colheu com avidez esse sacrifício. Dir-se-ia que, por menos que ele valesse,<br />
Ela estava precisando tanto dele que fez como uma mendiga faminta — Ela, a Rainha do Céu e da<br />
Terra! — a quem se dá um pedaço de pão: põe-se o pão em sua mão, e ela leva-o à boca imediatamente.<br />
Nossa Senhora tinha fome desse sacrifício. Por assim dizer, mal o sacrifício foi oferecido, ele<br />
foi colhido.<br />
Ao sair do hospital, notei ter ficado com a marcha impedida. Os médicos determinaram que eu<br />
permanecesse deitado por mais um mês. Eu percebia bem que, na melhor das hipóteses, teria de andar<br />
de muletas, o que, naturalmente, é uma limitação na validez de uma pessoa.<br />
Minha grande preocupação era: até que ponto continuarei capaz de servir a Nossa Senhora, tocando<br />
adiante a luta que devo travar?<br />
4
Percebia que minha saúde, em geral, estava boa. Embora notasse a memória um tanto abalada<br />
devido à forte pancada recebida na cabeça, o raciocínio estava perfeito. Cheguei à conclusão de<br />
que, se Nossa Senhora continuasse a me ajudar do ponto de vista intelectual, a invalidez física não<br />
teria maior importância.<br />
Contudo, esse sacrifício foi acrescido de outros.<br />
Era de se esperar que, se eu sofresse um desastre como aceitação de meu oferecimento, de algum<br />
modo e por algum sinal, Nossa Senhora de Genazzano far-me-ia sentir previamente.<br />
Ora, isso não se deu, o que para mim parecia significar que o pacto de Genazzano, a promessa<br />
que Ela me fizera estava cancelada. E a prova disso era que eu tinha afundado num mar de infortúnios,<br />
sem nenhum sinal anterior no sentido de que esses infortúnios viriam.<br />
Por cima do tormento de toda aquela situação — com operações, imobilidade, incômodos de toda<br />
ordem — vinha o problema pior, mais desagradável: os exames de consciência com uma espécie<br />
de solidão espiritual. “O que fiz eu para que essa promessa fosse desmentida? No que fui infiel?<br />
Acuse-se, seja franco consigo mesmo! Deve haver alguma culpa sua.” Uma espécie de terror acompanhado<br />
desta ideia: “Não foi o meu oferecimento, porque eu não recebi um sinal.”<br />
Dez anos depois — durante os quais a graça de Genazzano pareceu-me apagada —, eu soube, por<br />
uma conversa fortuita, que no dia do desastre comemora-se a festa do Bem-aventurado Stefano Bellesini,<br />
o grande devoto da Mãe do Bom Conselho, cujas relíquias se encontram no Santuário de Genazzano.<br />
Segundo as convenções entre Nossa Senhora e eu — se assim eu pudesse dizer — este poderia<br />
ser o sinal. Então o sinal fora dado! Mas eu só soube disso dez anos depois... Como Nossa Senhora<br />
estava ávida de um grande sacrifício!<br />
Muito tempo depois, contaram-me o comentário de um conceituado autor — se não me engano,<br />
o Pe. Garrigou-Lagrange — segundo o qual, quando alguém se oferece como vítima expiatória,<br />
a Providência dispõe as coisas de maneira a que a pessoa não acredite estar padecendo por causa de<br />
seu oferecimento. Porque se ela soubesse disso, diminuiria tanto o sofrimento, que o próprio poder<br />
expiatório ficaria muito atenuado.<br />
Vemos, então, a longa trajetória de um oferecimento que foi mais longe do que eu imaginava.<br />
Nossa Senhora, por assim dizer, multiplicou o meu pedido, e fê-lo frutificar mais do que eu tinha<br />
oferecido, para que, em última análise, alguma coisa viesse para o bem da causa d’Ela.<br />
1) Do latim: Sem a efusão de sangue não há perdão (Hb 9, 22).<br />
2) Jo 1, 3.<br />
3) Cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 22.<br />
4) Seção “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...”, p. 18-21.<br />
5) Cf. conferências de 30/7/1983 e 3/2/1991.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Inocência, generosidade<br />
e afeto<br />
João Dias<br />
O espírito revolucionário inocula e exacerba nas almas o egoísmo.<br />
Quando encontramos pessoas não egoístas, devemos<br />
apreciá-las e imitá-las, lavando, assim, as nossas almas da influência<br />
da Revolução. A inocência de Dona Lucilia se caracterizava não só<br />
pela pureza, mas por uma total ausência de egoísmo, tornando-a<br />
plena de generosidade e bondade.<br />
Ainocência de Dona Lucilia consistia, antes de<br />
tudo, na pureza, nas virtudes próprias à boa católica,<br />
comuns nas senhoras daquele tempo, e<br />
que hoje se tornaram raras devido à decadência moral<br />
do mundo.<br />
Ela possuía essa inocência em alto grau.<br />
6
Desprendimento de si mesma<br />
Entretanto, tinha outra forma de inocência que tornava<br />
o convívio com ela extraordinariamente agradável<br />
e consistia em um desprendimento de si mesma, pelo<br />
qual a última coisa em que ela pensava era na vantagem<br />
própria, nos seus direitos, no que ela queria ou no que<br />
lhe convinha. Ela pensava muito na vantagem dos filhos,<br />
mas nas vantagens dela, absolutamente não.<br />
Por exemplo, se uma pessoa quisesse ou lhe pedisse<br />
algo, encontrava uma generosidade, um prazer em dar,<br />
um contentamento em conceder, que era extraordinário<br />
e feito sem pretensão. Não se portava como certas pessoas<br />
que, ao fazer algum obséquio, ficam com uma fisionomia<br />
e um ar de quem diz: “Olhe aqui, você receba isto e<br />
veja que colosso eu sou!”<br />
Mamãe não era assim. Ela dava aquilo que lhe pediam como<br />
uma muito boa irmã concederia para outra irmã. E se ela<br />
se lembrasse, depois, que podia dar mais algo que a pessoa<br />
não tinha pedido, ela ia atrás e dizia: “Olhe, eu me lembrei<br />
de que ainda podia fazer por você tal coisa assim!”, e fazia.<br />
Isto tornava toda a presença dela muito agradável.<br />
Bondade inspirada no Sagrado<br />
Coração de Jesus<br />
O egoísmo torna a pessoa desagradável. Notando que<br />
determinado indivíduo está pensando apenas em seus interesses,<br />
o tempo inteiro, e não cogita de outra coisa, e continuamente<br />
medindo as vantagens, as desvantagens, etc., sente-se<br />
um afastamento, um desagrado muito grande.<br />
Mas vendo essa generosidade, essa bondade cristã no<br />
sentido próprio da palavra, quer dizer, inspirada no Sagrado<br />
Coração de Jesus, modelo inigualável dessa bondade e<br />
dessa generosidade, tinha-se uma impressão de retidão de<br />
alma e de abertura de coração, que não me lembro de ter<br />
experimentado ao tratar com qualquer outra pessoa.<br />
Evidentemente, na idade em que estou, tenho tratado<br />
com um número enorme de pessoas, tenho conhecido<br />
tanto pessoas boas como ruins, mas nenhuma me deu essa<br />
impressão de generosidade e de afeto.<br />
Mamãe tinha isso em alto grau, o que tornava a presença<br />
dela deliciosa. É por esta razão que, por exemplo,<br />
quando eu voltava de alguma viagem, chegava a casa<br />
com uma espécie de sofreguidão de encontrá-la logo,<br />
de sentir o eflúvio da companhia dela, o seu agrado, etc.<br />
A lembrança luminosa que acompanhou<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> até o fim de seus dias<br />
Quando ela morreu, eu já era um homem ultrafeito,<br />
tinha quase 60 anos e ela, 92. Em tão longo convívio, não<br />
me lembro de uma só viagem realizada por mim na qual,<br />
ao chegar, não tenha ido comungar em alguma igreja e,<br />
em seguida, dirigir-me diretamente para casa, a fim de<br />
vê-la. Ainda que fosse uma viagem pequena, dessas que<br />
não cansam e nas quais, chegando, vai-se diretamente<br />
tratar de negócios, antes mesmo de ir para casa.<br />
Não me lembro de um só caso em que isso aconteceu,<br />
porque para mim, estar de volta a São Paulo era estar<br />
com mamãe, encontrar-me com ela, ver como ela estava,<br />
e — por que não? — ser visto por ela. Eu gostava de me<br />
sentir visto por ela, e de observar o olhar dela me querendo<br />
bem. Era um dos fatores de alegria de minha vida.<br />
Ainda hoje continua em mim essa lembrança luminosa<br />
que, se Deus quiser, me acompanhará até o fim. Aquilo<br />
fazia parte da inocência dela.<br />
Devemos desejar encontrar muita gente assim em nossa<br />
vida, e, quando encontrarmos, saber reconhecê-las. Em<br />
geral, prestamos atenção nas pessoas pelas razões mais fúteis<br />
— porque riem ou fazem rir, são inteligentes, mil banalidades<br />
—, e não pelo verdadeiro valor que elas têm.<br />
Devemos procurar os verdadeiros valores<br />
dos outros e celebrá-los como merecem<br />
Resultado: habitualmente estamos em estado de injustiça<br />
em relação aos outros. Nós damos valor a quem<br />
não tem, e não a quem tem. E é muito bom sabermos<br />
procurar os valores onde estão e nos unir a eles, celebrá-<br />
-los como merecem ser celebrados.<br />
Eu fazia isto às torrentes com mamãe. Quando ela estava<br />
numa sala, quer em minha casa ou em outra, a primeira<br />
pessoa para mim era ela. Sendo outra residência,<br />
naturalmente, ao chegar, eu saudaria primeiro a dona da<br />
casa. Entretanto, logo depois me dirigiria à mamãe. E assim<br />
a punha em primeiríssimo lugar, com os primeiríssimos<br />
agrados, nas primeiríssimas manifestações de consideração,<br />
de respeito, etc.; o píncaro era ela. Com isso eu<br />
tinha também a intenção de fazer justiça a ela.<br />
É recomendável que adquiramos o hábito de fazer o<br />
mesmo com as outras pessoas. Aprendamos a apreciar as<br />
pessoas isentas de egoísmos que encontremos em torno<br />
de nós. Saibamos imitá-las, lavando, assim, as nossas almas<br />
da influência da Revolução.<br />
Sobretudo quando vier o Reino de Maria encontraremos<br />
muita gente assim.<br />
Saibamos, então, ver tudo quanto há de nobre, virtuoso<br />
e santo no Reino de Maria, e dar graças a Nossa Senhora,<br />
compreendendo que depois desse reino virá outro:<br />
o Reino do Céu. Se pela misericórdia divina passarmos<br />
para lá, conviveremos por toda a eternidade, junto a<br />
Deus, a Maria Santíssima, aos Anjos e Santos. v<br />
(Extraído de conferência de 14/4/1991)<br />
7
Sagrado Coração de Jesus<br />
Adoração da Pessoa<br />
de Nosso Senhor<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão<br />
supremo em função do qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> concebia a<br />
verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como<br />
também o relacionamento humano.<br />
Aescola filosófica pela qual o conhecer a biografia<br />
do filósofo não interessa em nada, limitando-se<br />
em considerar as ideias dele, priva-se de alguma<br />
coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento<br />
da verdade, da beleza e do bem.<br />
Pedra angular<br />
O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda<br />
que não queira, notas da sua luz primordial 1 e do atraente<br />
que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é<br />
conhecido no que tem de mais profundo.<br />
Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como<br />
“Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que<br />
se poderia chamar a sua luz primordial.<br />
Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus<br />
crucificado 2 . Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações<br />
de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém<br />
que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade<br />
de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem<br />
São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles,<br />
aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde<br />
afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim” 3 , em<br />
vez de dizer: “É Deus que vive em mim.”<br />
No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação<br />
da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à<br />
consideração da sociedade temporal, foi um modo especial<br />
de analisar o bonum, o verum, o pulchrum. Mas o elemento<br />
fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana<br />
e divina.<br />
O que há de mais profundo na minha alma é essa visão<br />
religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra<br />
de ângulo a partir da qual todo o verum, bonum, pulchrum<br />
se deslinda.<br />
Em menino, fazendo a análise<br />
psicológica de Nosso Senhor<br />
Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha<br />
alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma<br />
criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira<br />
cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?<br />
Eu O considerava através das imagens que via em<br />
mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião<br />
para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História<br />
Sagrada, etc.<br />
Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o<br />
que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era<br />
o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o<br />
problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…”<br />
Porque ela considerava que, ao contar a história,<br />
já estava provando ser verdadeira. E para a criança é<br />
realmente assim.<br />
Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus<br />
— porque mamãe, ao tratar disso, deixava<br />
claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica<br />
de Nosso Senhor.<br />
Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente<br />
excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso<br />
Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade<br />
que deixava qualquer outra pessoa sem ne-<br />
8
nhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura<br />
inacessível ao homem.<br />
Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem,<br />
resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia<br />
que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade<br />
d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação<br />
e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima<br />
Trindade.<br />
A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas<br />
as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações<br />
de um simples ser humano, Ele conhecia todas<br />
as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas<br />
e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe<br />
dava o direito ex natura rerum 4 a esse contato.<br />
Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito.<br />
Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo<br />
pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora,<br />
noto que era isso.<br />
Fuga do bom para o ótimo<br />
O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza<br />
era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma<br />
contato com essas almas?<br />
Não posso saber como<br />
é nos outros, mas posso<br />
perceber como é esse<br />
contato de almas estudando-o<br />
em mim. Eu me<br />
sinto, antes de tudo, elevado<br />
algum tanto acima<br />
de mim mesmo, por ver<br />
essa grandeza do ser e do<br />
cogitar d’Ele.<br />
De onde se abre em<br />
mim uma luz no cogitar<br />
e no ver, que me extasia,<br />
porque algo em mim<br />
é feito para olhar mais<br />
do que eu. E quando saio<br />
da minha vida de menininho<br />
e percebo algo em<br />
mim que vê mais do que<br />
eu, que é mais do que eu,<br />
tenho a impressão de que<br />
eu escapo, fujo do bom<br />
para o ótimo, ponho-me<br />
ali na ponta dos pés e me<br />
alegro.<br />
Outro ponto: eu noto<br />
que, ao mesmo tempo em<br />
que contemplo assim essa<br />
Christophe.Finot (CC 3.0)<br />
Capela do Sagrado Coração<br />
Semur-en-Auxois, Borgonha, França<br />
vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um<br />
querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as<br />
mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me<br />
comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e<br />
uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais<br />
são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver<br />
essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira,<br />
mas ao mesmo tempo me corrigisse.<br />
Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla<br />
ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro.<br />
E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que<br />
coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas,<br />
se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas<br />
que me tornavam doente sem eu saber.<br />
Entrevendo a luta que aparece no horizonte<br />
Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não<br />
fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero<br />
me acusar de uma imperfeição que não estava em mim,<br />
mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições<br />
proveniente do pecado original.<br />
Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso,<br />
mas quando passasse<br />
o mais intenso disso,<br />
essa ação corretiva<br />
ser-me-ia duro manter.<br />
E, portanto, em certo<br />
momento eu teria que sofrer<br />
e lutar muito.<br />
Eu tomava conhecimento<br />
dessa realidade,<br />
mas, à maneira de uma<br />
criança, pensava: “Bem,<br />
ainda não chegou a hora,<br />
e aqui está tão bom, que<br />
deixo isso para depois.”<br />
Tinha mais curiosidade<br />
de fixar a minha atenção<br />
no que Deus estava me<br />
mostrando — sem saber<br />
ser Ele Quem mostrava<br />
— do que naquilo que eu<br />
poderia deduzir por mim<br />
mesmo, e que era o combate.<br />
Por isso, eu apenas<br />
entrevia e deixava meio<br />
de lado.<br />
E, olhando para os<br />
meninos com quem eu<br />
vivia, notava que alguma<br />
coisa dessas Jesus fa-<br />
9
Sagrado Coração de Jesus<br />
zia em suas almas também, mas eles davam muito menos<br />
atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros,<br />
uma indecência.<br />
Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo<br />
no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou<br />
mais tarde.<br />
Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem<br />
menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo<br />
que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um<br />
choque que me levasse diretamente para a luta.<br />
Ação direta e ação supletiva<br />
Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia<br />
assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare<br />
fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos<br />
morem juntos.” 5 Eu formava com aqueles meninos<br />
um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir:<br />
“Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles<br />
um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!”<br />
Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham<br />
estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu<br />
me sentia posto na minha situação própria e natural:<br />
contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica<br />
— cuja noção começava a aparecer no meu espírito<br />
—, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo!<br />
— e nos que me circundavam também.<br />
De maneira que era um mundo todo católico dentro<br />
do qual eu sentia a complementação normal da felicidade,<br />
que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo.<br />
Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver<br />
a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do<br />
homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber<br />
sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar<br />
com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando<br />
em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por<br />
meio dos outros.<br />
Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois<br />
uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava<br />
o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.<br />
O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias<br />
que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo<br />
eu considerava como sendo igualmente bom.<br />
Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma<br />
série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele<br />
tempo, e que eu supunha habitadas pela influência<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Um sol que não cessava de brilhar<br />
François Goglins (CC 3.0)<br />
Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja<br />
com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas<br />
mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam<br />
os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando.<br />
Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo<br />
castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende<br />
contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era<br />
um defensor que pairava acima de todos.<br />
Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão<br />
presente em tudo isso, que me dava a ideia de<br />
que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente<br />
era que tudo em torno de mim fosse<br />
“cristiforme” também.<br />
Depois veio a Primeira Comunhão, com<br />
suas graças características, o conhecimen-<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Sainpuits, França<br />
10
to mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos<br />
regulares de Catecismo, da História Sagrada.<br />
Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo<br />
quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava<br />
profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
habitava e Se fazia sentir de um modo especial por<br />
uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que<br />
era como um sol que não parava de brilhar.<br />
Daí a ideia — complementar do convívio com meus<br />
próximos — de uma grande instituição que era a fonte<br />
dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente<br />
tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido<br />
a essa fonte, pois era um ambiente católico.<br />
Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com<br />
a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a<br />
noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro<br />
da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como<br />
se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do<br />
centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da<br />
casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso.<br />
Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor<br />
ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso,<br />
na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa<br />
santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas<br />
e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa<br />
igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando:<br />
“A partir daqui começa a casa d’Ele!”<br />
Ato de humildade<br />
Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc<br />
est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é<br />
essa. E <strong>Plinio</strong>, preste atenção! Você é objeto da ação dessa<br />
graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente<br />
bem. Mas você tem seus doze anos e já sente<br />
as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que<br />
as suas resistências resultam de alguma coisa que existe<br />
de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo<br />
disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça<br />
o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente,<br />
você não é digno de nada disso. Agradeça o<br />
fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um<br />
sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade,<br />
e querer oscular a soleira da porta compreendendo<br />
que você se honra com esse gesto, pois não seria digno<br />
nem sequer disso.”<br />
Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um<br />
efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas<br />
atuando muito mais profundamente em mim. Depois<br />
vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava<br />
meu ato de humildade com todas as minhas forças,<br />
por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo<br />
era sentir essa proximidade.<br />
Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em<br />
cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso<br />
Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima<br />
de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que<br />
isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer<br />
fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a<br />
Fé Católica na minha alma.<br />
Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais<br />
eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei<br />
próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar<br />
para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-<br />
-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!<br />
À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo<br />
dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as<br />
imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso;<br />
a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos<br />
disso, por causa dessa radical maldade existente em mim,<br />
que me tornava objeto explicável da repulsa divina.<br />
Provações contra a pureza e o<br />
choque com a Revolução<br />
Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com<br />
vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só<br />
Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto,<br />
era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia<br />
viver a não ser assim.<br />
Começa a época das provações contra a pureza, do<br />
choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação<br />
da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como<br />
que o momento da falta de energias e de mobilização<br />
própria para entrar na luta.<br />
De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários,<br />
o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não<br />
naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos,<br />
mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio<br />
vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas.<br />
Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!<br />
Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato<br />
amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias<br />
despreocupadas da minha infância, sentindo-me<br />
quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos<br />
problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze<br />
anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro!<br />
Eu me resolvo a arcar com essa luta?<br />
O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz<br />
da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal<br />
maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você<br />
tinha… Veja bem quem é você!”<br />
11
Sagrado Coração de Jesus<br />
Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno<br />
de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a<br />
Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com<br />
um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico<br />
é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse<br />
eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz<br />
de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que<br />
Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo<br />
esse caso?<br />
Aparece o ”arco-íris”<br />
Edelseider (CC 3.0)<br />
A Virgem e o Menino<br />
Catedral de Estrasburgo, França<br />
Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja<br />
do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa<br />
Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria,<br />
aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque<br />
Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar<br />
d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha<br />
Mãe!<br />
Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a<br />
solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela,<br />
tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade<br />
d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco,<br />
tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada<br />
como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto<br />
meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri<br />
para mim e como que me diz:<br />
“Meu filho, é verdade, você tem<br />
razão. Mas muito mais Eu sou<br />
boa do que você é ruim! E passo<br />
por cima disso, o afago, lhe<br />
quero bem, trago-o para junto<br />
de Mim.”<br />
Daí brotar de meus lábios:<br />
Salve Regina, Salve Regina, Salve<br />
Regina! E daí também o sentido<br />
da palavra “salve”: o de me salvar!<br />
Eu não a considerava como<br />
uma saudação; não estava pensando<br />
em protocolos na hora em<br />
que eu naufragava. Era S.O.S.!<br />
“Salve Regina…”<br />
Esse era o aspecto “vida interior”<br />
de algo que transbordaria,<br />
no contato com a vida, numa<br />
noção da Cristandade, num conceito<br />
completo de Revolução e<br />
Contra-Revolução.<br />
Qual é o papel do verum, bonum<br />
e pulchrum — de que eu<br />
falava há pouco — nessa visão<br />
das coisas, da sociedade temporal<br />
e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução,<br />
cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente<br />
com isso?<br />
Ardor no conhecimento do verum<br />
Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra<br />
“enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é<br />
inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente<br />
— para indicar a disposição de nossa alma em relação a<br />
Ele.<br />
Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração<br />
do verum, do bonum ou do pulchrum?<br />
É uma coisa evidente que no ato de adoração existe<br />
simultaneamente um abrasamento no conhecimento do<br />
verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e<br />
um deslumbramento pelo pulchrum.<br />
Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente<br />
o Homem-Deus! Como na unidade da<br />
Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível,<br />
ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus<br />
ali dentro, que coisa fantástica!<br />
De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E<br />
como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!<br />
O verum aqui está não só em<br />
que isso é assim, mas numa outra<br />
coisa: como tudo é coerente dentro<br />
disso! É lógico, deve ser assim!<br />
E, portanto, um entusiasmo<br />
da verdade possuída.<br />
Como é esse entusiasmo?<br />
Não é um entusiasmo exclusivamente<br />
silogístico: “Eu raciocinei<br />
e cheguei à conclusão”, porque o<br />
ato de Fé em mim precedeu de<br />
muito esse raciocínio; mas é uma<br />
espécie de evidência meio mística<br />
dada pela Fé, que o raciocínio<br />
apologético vem calçar depois,<br />
mas não vem suprimir; vem servir<br />
a essa ação meio mística dada<br />
pela Fé.<br />
De tal maneira que eu ouço<br />
pessoas falarem na firmeza das<br />
minhas convicções. Tenho vontade<br />
de sorrir, e dizer: “Você não<br />
entende nada. Fale da firmeza<br />
de minha Fé!” Porque a partir da<br />
firmeza da minha Fé, no que eu<br />
dela deduzo, tenho muita certe-<br />
12
za; ali eu piso com sapato de<br />
ferro, porque não tenho medo<br />
de peso nenhum! No que<br />
eu não deduzo, não tenho<br />
essa certeza.<br />
Por outro lado, também<br />
o modo categórico com que<br />
distingo uma coisa má de outra<br />
boa. A boa deve ser praticada,<br />
favorecida, estimulada,<br />
louvada. A má deve ser<br />
execrada, detestada; deve-<br />
-se viver no reconhecimento<br />
e na desconfiança constante<br />
do mal que aquilo representa,<br />
numa atitude a mais policialesca<br />
que se possa imaginar<br />
contra esse mal, pegando-o<br />
e triturando-o implacavelmente.<br />
Igreja das Mercês - Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil<br />
victor Toniolo<br />
Pulchrum e simbolismo<br />
Sobre o pulchrum, o que dizer?<br />
Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o<br />
verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum.<br />
Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum,<br />
ela os contém com a luz própria a cada coisa.<br />
Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do<br />
bem, com mais algo; não significa que ele não existe.<br />
Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia<br />
de pensamento, que talvez houvesse entre o verum,<br />
o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira<br />
de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o<br />
Espírito Santo.<br />
O pulchrum tem no meu pensamento grande papel.<br />
Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas<br />
este próprio sensível precisa ser entendido.<br />
São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto,<br />
agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo,<br />
olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.<br />
Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim<br />
em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado<br />
de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu<br />
pensamento.<br />
O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo<br />
aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma<br />
— de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam<br />
a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira<br />
tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.<br />
Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse<br />
simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia<br />
dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito<br />
grande.<br />
O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada<br />
perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos,<br />
como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é<br />
sedentíssima disso.<br />
Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para<br />
perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo<br />
criado de Deus que completa o que as graças de ordem<br />
mística fazem perceber.<br />
Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo<br />
faz de algum modo perceber também pelos sentidos,<br />
iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile 6 espiritual,<br />
simbólico e digno de ser tocado pela graça. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 12/4/1989)<br />
1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições<br />
divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma<br />
ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este<br />
assunto, ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 54, p. 4.<br />
2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.<br />
3) Gl 2, 20.<br />
4) Do latim: pela própria natureza das coisas.<br />
5) Sl 133, 1.<br />
6) Do latim: deleitável.<br />
13
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Ordenação e desregramento do<br />
instinto de sociabilidade - I<br />
A Religião Católica tem o poder incomparável de promover o<br />
relacionamento ideal entre os homens. A Revolução, entretanto,<br />
deturpando o instinto de sociabilidade, leva as pessoas a cair nos<br />
piores vícios e a praticar pecados coletivos.<br />
Osenso do ser, com o qual todos nascem, seria mutilado<br />
se não tivesse originariamente uma espécie<br />
de embocadura, de abertura para uma noção<br />
global, embora o intelecto da criança não tenha, por<br />
exemplo, ideia da humanidade como um todo dentro da<br />
Criação. Apesar de a criança não ter essa noção, há não<br />
só uma aptidão para adquiri-la, mas uma espécie de matriz<br />
dessa noção dentro da ideia primeira de ser.<br />
A hipertrofia da fruição e a<br />
chacina dos inocentes<br />
Essa matriz existe à maneira de um discernimento<br />
muito elevado do lumen que paira sobre o mundinho que<br />
ela conhece, juntamente com a ideia instintiva de que esse<br />
lumen é próprio ao universo inteiro. E, por amar esse<br />
lumen, a criança ficaria desolada se soubesse que ele não<br />
existe assim para todos os homens. Portanto, esse lumen<br />
traz consigo uma noção da globalidade.<br />
Quando na própria criança se dá um desequilíbrio,<br />
por onde ela toma essa luz mais como um elemento de<br />
fruição do que de amor e admiração, acaba acontecendo<br />
que ela vai restringindo o seu horizonte a si própria, donde<br />
vêm todas as más consequências e subversões.<br />
Esse é o caminho mais frequente da quebra da inocência:<br />
antes mesmo de vir o problema da pureza, transformar<br />
tudo numa fruição. Neste sentido, a educação que se<br />
dá para as crianças procurando, para agradá-las, hipertrofiar<br />
nelas o sentido da fruição, é a mais errada possível.<br />
É a chacina dos inocentes.<br />
Por exemplo, a alegria de Natal é muito íntegra porque<br />
tem por objeto Nosso Senhor, que é causa de nossa<br />
alegria; Alguém que é adorável baixou à Terra e nos enche<br />
de gáudio.<br />
É diferente do gáudio pelo pão de mel que se vai comer<br />
depois. Portanto, a alegria de Natal não pode ser<br />
transformada numa festa opulenta, que tem como principal<br />
razão o presente e a festa.<br />
O relacionamento ideal entre os homens<br />
O instinto de sociabilidade, no Paraíso, se apresentava<br />
tão perfeito quanto o estado de prova admite. Esse instinto<br />
deveria levar ao auge a sua própria perfeição quando<br />
nascesse Aquele que seria a chave de cúpula da ordem<br />
do universo e o Homem por excelência, hipostaticamente<br />
unido à segunda Pessoa da Santíssima Trindade;<br />
seria um de nós, que ao mesmo tempo é Deus, em função<br />
do qual tudo se torna admirável, que transcende a tudo e<br />
cuja presença tornaria inefavelmente doces todas as interarticulações<br />
da sociabilidade humana, porque Ele estaria<br />
presente como denominador comum dos homens.<br />
É por causa disso que a Religião Católica tem o poder<br />
incomparável de promover o relacionamento ideal entre<br />
os homens.<br />
Tendo Nosso Senhor remido os homens e morrido por<br />
todos nós na Cruz, essa realidade ainda toma uma nota<br />
especialmente admirável e pungente, porque se Ele chegou<br />
a dar-Se a tal ponto, pela abertura que a bondade<br />
opera em nós, somos chamados a nos doar também.<br />
Tudo isso, passando através de Nossa Senhora, vem<br />
com uma abundância e uma carga de perdão incomparável,<br />
porque a Medianeira que Deus quis que fosse necessária<br />
atuou nisso.<br />
Por esse motivo não se pode compreender a verdadeira<br />
sociabilidade ou o instinto de sociabilidade inteiramente<br />
bem tratado na sociedade pagã. Aliás, não houve,<br />
é a lei da selva.<br />
14
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Essa explicitação é um elemento integrante indispensável<br />
do conceito de Cristandade. E ela é também a explicação<br />
da intransigência, porque leva o instinto de sociabilidade<br />
a só admitir como inteiramente normal o relacionamento<br />
assim.<br />
A visão exclusivamente fraterna do instinto de sociabilidade<br />
conduz à ideia de que o homem em sociedade<br />
é igual ao outro. É uma decorrência do socialismo: uma<br />
sociedade onde há só iguais, todos irmãos. Daí a tal fraternidade<br />
que insinua haver somente irmãos, não há pai.<br />
É uma afirmação indireta do ateísmo.<br />
Enquanto que na concepção verdadeira, mais do que<br />
a fraternidade, há a relação pai-filho que encontra, na<br />
fraternidade, sua consequência normal: os filhos do mesmo<br />
pai são irmãos. Percebe-se bem, assim, a carga revolucionária<br />
do termo fraternité, no lema da Revolução<br />
Francesa.<br />
No relacionamento, cada um deve<br />
contribuir com seu sacrifício<br />
Poderíamos, agora, aprofundar o tema, tratando dos<br />
estados de doença do relacionamento humano.<br />
Quando o relacionamento entre pessoas que pertencem<br />
a Nosso Senhor Jesus Cristo entra em estado de doença,<br />
ou seja, passa a ser defectivo, acontece como se a<br />
juntura dos ossos num corpo fosse malfeita, porque a ordem<br />
posta por Nosso Senhor é que todos se amem. Os<br />
que estão num relacionamento malfeito devem tomar<br />
em linha de conta que sempre que o relacionamento range,<br />
dói n’Ele, assim como quando os ossos rangem no<br />
corpo fazem padecer o corpo inteiro.<br />
Em consequência, esse relacionamento<br />
pede que cada um contribua com uma<br />
cota de sacrifício própria, para que esse<br />
estado doentio cesse por amor a Nosso<br />
Senhor. Quem dá mais é o que ama mais<br />
a Ele.<br />
Então, há uma função supletiva daquele<br />
que é menos tentado, menos provado,<br />
que tem menos dificuldade; ele<br />
entra suprindo o que possa faltar àquele<br />
que tem mais dificuldades, está mais tentado,<br />
mais provado. Por esta forma, cedendo,<br />
diminui a dor em Nosso Senhor<br />
e, assim, abranda indiretamente o fundo<br />
da dor naquele com quem ele trata.<br />
Entretanto, é preciso não considerar<br />
Nosso Senhor como um estranho nessa<br />
relação. Ele está presente e, como Ele é<br />
o liame entre todos os homens, pela razão<br />
que eu acabo de dizer, se entre homens<br />
há uma fricção, o liame sofre.<br />
Posto de lado qualquer assunto que diga respeito<br />
ao sexto ou ao nono Mandamento, o principal entretenimento<br />
do homem na vida são os outros homens. Daí<br />
aquele princípio de que não é bom o homem estar sozinho<br />
1 , por isso precisava ter uma companheira, e também<br />
ter filhos e viver em sociedade.<br />
Se os homens não se voltam para Deus, nessa perspectiva<br />
que apresentei, os principais apegos acabam sendo,<br />
no fundo, relativos aos outros homens. E o relacionamento<br />
dos indivíduos com a sociedade na qual se encontram<br />
é o grande tema de suas vidas.<br />
Compreende-se por aí que os melhores prêmios dados<br />
por Deus sejam também nessa linha, assim como as expiações<br />
mais tremendas, e os atos de reparação e de generosidade<br />
mais estupendos.<br />
Sofrimentos de Santa Teresinha<br />
Dou um exemplo: Santa Teresinha do Menino Jesus.<br />
Ela viveu com um instinto de sociabilidade, a meu ver,<br />
perfeitamente atendido, arquetipicamente atendido até<br />
o momento de entrar para o Carmelo. Porque se vê que<br />
ela não aspirava outra coisa a não ser entrar para o Carmelo.<br />
Portanto, tudo quanto estava fora não lhe interessava,<br />
exceto a família Martin e a família Guérin, muito<br />
chegada, e que formavam mais ou menos um todo; e<br />
Santa Teresinha com as irmãs constituíam aquele “bandinho”<br />
em torno do pai.<br />
Ora, aquilo tudo perfeitamente bem arranjado, ordenado,<br />
equilibrado, era para ela um “céuzinho” do instinto<br />
de sociabilidade. As fotografias dela em menina dão<br />
15
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A doença contagiosa afastando-a do contato<br />
das outras, sendo posta numa seção do sanatório,<br />
e ali sofrendo, sofrendo, sofrendo...<br />
Aparecem ainda as tentações contra a Fé<br />
que a isolam, por assim dizer, do lado sensível,<br />
em certo sentido até mesmo do próprio Deus.<br />
É um longo padecimento do instinto de sociabilidade<br />
que vai se desenvolvendo.<br />
O drama do instinto de<br />
sociabilidade de Nosso Senhor<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Santa Teresinha do Menino Jesus com as<br />
demais freiras do Carmelo de Lisieux<br />
muito essa ideia. Uma pessoa que vive num ambiente<br />
sem arranhões, não tem nenhum irmão bêbado que volta<br />
tarde da noite para casa, quebrando a baixela preferida,<br />
os vasos prediletos da mãe, ou outro irmão que deixou o<br />
pai em claro porque a polícia deitou a mão nele; Santa<br />
Teresinha não teve nenhum drama assim. Vê-se que cenas<br />
dessas não passaram sequer por aquele olhar puro e<br />
sereno dela, nem de longe. E ela toda está com uma calma,<br />
uma ordenação que vem da perfeita instalação desse<br />
princípio de sociabilidade nas condições da vida.<br />
O primeiro grande trauma é que Nosso Senhor passa<br />
e, de acordo com o que ela desejava, pede o sacrifício<br />
do esquartejamento daquela unidade. Todas as filhas<br />
vão para o convento e fica só o Monsieur Martin em casa.<br />
E na solidão do Monsieur Martin, que é bem evidente que<br />
não se casaria novamente, começa a circular a calúnia, que<br />
com certeza até então não havia sido usada contra elas: começa-se<br />
a falar que fizeram mal em deixar o velho sozinho.<br />
Certa ocasião, quando elas passaram horas inteiras à<br />
espera do pai aparecer, Santa Teresinha deixou transparecer<br />
que nessa demora uma das preocupações dela era a<br />
dor da injustiça que sofreriam com as calúnias.<br />
É o instinto de sociabilidade, não na sua faceirice ou<br />
vaidade, mas na sua inocência, até então bem tratado pelos<br />
outros e que passa a ser maltratado.<br />
Depois, dentro do convento, a incompreensão de todas<br />
as freiras a respeito dela, e a Santa que provavelmente<br />
veria as imperfeições de todas as religiosas, e tudo o<br />
mais, levá-la-ia a uma situação onde ela ficava completamente<br />
isolada. E com a sua afetividade, que afinal de<br />
contas é uma expressão do instinto de sociabilidade, atingida<br />
a fundo.<br />
Isso não é nada, se comparado com o que<br />
se passou com Nosso Senhor. Vê-se que Ele,<br />
na sua humanidade, começou o contato com<br />
os homens, benevolente, alegre, aberto, conseguindo<br />
resultados evidentes, com um relacionamento<br />
magnífico, as turbas que O seguiam,<br />
etc.<br />
Depois, nota-se que aquele entusiasmo todo<br />
resultava num élan apenas medíocre, que não dava<br />
aquilo que deveria dar. Além disso, essa mediocridade<br />
se tornava invejosa, malévola, cética, ao sopro dos adversários<br />
que não tinham querido se render a Ele. Então<br />
a batalha que começa e a divisão, tudo isso era um<br />
drama na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas<br />
um drama do instinto de sociabilidade, no afeto que Ele<br />
tem. O amor d’Ele, em larga medida, está ligado ao instinto<br />
de sociabilidade.<br />
Durante a Paixão, o sofrimento d’Ele chega ao auge.<br />
Enfim, está tudo dito, não tenho que acrescentar nada.<br />
Uma Missa na Sainte-Chapelle,<br />
durante a Idade Média<br />
Compreende-se, então, que a Revolução procure trabalhar<br />
para que todo esse elemento propulsor, tão profundo<br />
no homem e tão capaz de arrastá-lo, esteja nas<br />
mãos dela. E ela fez o seguinte jogo:<br />
No começo, tomando o homem normal, medieval,<br />
inocente, cheio de apetência pelas verdades metafísicas,<br />
com aspectos terra a terra ao mesmo tempo.<br />
Podemos imaginar num domingo uma Missa na Sainte-Chapelle<br />
com o acesso livre à população de Paris. Tilinta<br />
a sineta e vão entrando as famílias, os casais, para<br />
assistirem à Missa.<br />
Um é pequeno nobre do interior que foi tratar de negócios,<br />
ou descansar, ou participar da festa de um santo<br />
padroeiro, e que está hospedado em Paris. Outro é um<br />
casal de mercadores com uma lojinha ali perto. Outro<br />
ainda é, por exemplo, um estudante cuja família está no<br />
interior e que vai sozinho à Missa.<br />
16
Wilwarin (CC 3.0)<br />
Estou imaginando todos eles no estado de equilíbrio:<br />
calmos, tranquilos, gozando o sossego do domingo, uma<br />
unção dominical que havia antigamente, e um pouco antevendo<br />
o descanso que eles deverão ter à tarde. Entram<br />
na Sainte-Chapelle, sem nenhum choque, com uma espécie<br />
de continuidade com a vida que levam, contemplam a<br />
maravilha da Sainte-Chapelle e se enchem de tudo aquilo.<br />
Vamos imaginar que São Luís apareça para assistir à<br />
Missa também. Ao sair, um deles comenta: “Estava bem<br />
disposto hoje o nosso bom Rei Luís!”<br />
Entram noivos também. Como são esses noivos? Residem,<br />
em geral, no mesmo bairro, às vezes pertencem a<br />
ramos mais ou menos distantes de uma mesma família,<br />
conhecem-se há muito tempo. Conduzem o noivado sem<br />
aflição, sem apoteose, sem torcida; sabem que vão se casar<br />
mesmo, estão marcando o dia, têm seus planos. Esses<br />
planos não são deliciosos, embora tenham grandes esperanças.<br />
Eles se tratam com respeito, com distância, e esperam<br />
fundar uma família que seja a continuidade da família<br />
calma e sacral à qual pertencem. O noivado e o casamento<br />
são dois lances a mais de uma determinada ordem<br />
de coisas normal.<br />
Relacionamento com base no egoísmo<br />
Diante desse quadro, sentimos melhor o papel dos<br />
trovadores e das cortes de amor que fizeram as pessoas<br />
se desgostar dessa normalidade. Entra aqui a tal náusea<br />
da normalidade.<br />
É um defeito do homem, concebido no pecado original,<br />
que quer encontrar nas coisas desta Terra certas<br />
formas de auge e de gáudio próprias exclusivamente do<br />
Céu. E que então começa a imaginar coisas nesta Terra à<br />
maneira carnal e humana, que lhe deem alegrias que ele<br />
nesta Terra não tem. Mas ele fica fechado para o gáudio<br />
da Sainte-Chapelle, naquele domingo.<br />
A fruta do demônio é essa. O demônio oferece essa<br />
porcaria mesmo, e não outra coisa.<br />
O homem tem, no fundo, uma apetência de gáudios<br />
que ele não pode alcançar porque se fechou ao maravilhoso,<br />
ao sobrenatural e até ao natural em ordem à Fé.<br />
Então vem a sugestão: “Que mundo difícil, que domingo<br />
pesado, que pai obeso, que mãe banal, que irmãos comuns!<br />
Oh, preciso sair, passear, conhecer coisas novas,<br />
viajar! Procuro alguém com quem eu possa viver esta vida,<br />
mas que seja uma Isolda, uma Dulcineia, ou algo assim,<br />
em cuja experiência psicológica vou viver uma<br />
existência completamente diferente.”<br />
Seria mais ou menos como se a bem-amada fosse<br />
uma lâmpada que se acendesse na vida dele, e que<br />
desse um colorido maravilhoso às realidades banais<br />
da existência. Ele viveria olhando para a lâmpada e<br />
não para a vida, como uma mariposa para o fogo.<br />
Vamos dizer que na hora de irem para a Missa,<br />
eles se vejam pela primeira vez. A Sainte-Chapelle<br />
não tem beleza, a Missa é enfadonha, o recolhimento<br />
insuportável, a oração se faz para com um Deus distante<br />
a Quem não sentem ter acesso, nem que tenha<br />
continuidade com eles, a Comunhão é uma rotina, o<br />
convívio dos outros se torna insuportável. Ele só quer<br />
aquela Dulcineia, e ela só aquele Dom Quixote.<br />
Nessa perspectiva, fica criada a saciedade, e o relacionamento<br />
é deslocado de seu centro de gravidade e<br />
de sua rota. A pessoa que se engaje nisso vai travar<br />
um relacionamento com base no egoísmo: são agradáveis<br />
as pessoas conexas ou afins com esse sonho;<br />
são enfadonhas todas as outras; é inimigo todo aquele<br />
que cria dificuldade para a realização desse sonho.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 5/1/1984)<br />
Portal da Sainte-Chapelle - Paris, França<br />
1) Cf. Gn 2, 18.<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Modalidades de<br />
sofrimento - I<br />
Em sua vida de quase 87 anos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve grandes<br />
consolações, mas também passou por sofrimentos inenarráveis.<br />
E pronunciou inúmeras conferências a respeito da dor, como<br />
a que transcrevemos abaixo, na qual mostra um panorama<br />
grandioso, descrevendo, com muitos exemplos, os diversos<br />
sofrimentos que podem ocorrer na existência do homem.<br />
P<br />
ara tratarmos a respeito do sofrimento em<br />
termos inteiramente utilizáveis por nós, devemos<br />
fazer algumas distinções entre modalidades<br />
de padecimentos. Porque a atitude do homem<br />
diante dessas formas varia, mas a atitude legítima,<br />
quer dizer, as diversas vias de Deus a respeito<br />
dessas modalidades de sofrimento também variam.<br />
Precisamos ter isto bem claro, sob pena de criar um<br />
imbroglio que acaba, por alguns lados, sendo nocivo.<br />
Sofrimentos intrínsecos a toda ação séria<br />
Eugene (CC 3.0)<br />
São Jerônimo estudando - Galeria<br />
Nacional, Londres, Inglaterra<br />
Há uma primeira modalidade de sofrimento que<br />
é intrínseca a toda ação séria. É o sofrimento do trabalho,<br />
do estudo, do esforço físico, da ginástica, da<br />
luta; são coisas que fazem parte da contextura comum<br />
da vida do homem ou da vida dos povos.<br />
Ainda não coloco dentro disso as doenças, porque<br />
o estado normal do ser humano não é a enfermidade,<br />
como não é, por exemplo, ter sofrido um<br />
desastre. Essas coisas não são o comum da vida.<br />
Para uma pessoa ter verdadeiro interesse pelo estudo,<br />
o empenho, a concentração mental, a energia<br />
de espírito que ele exige, a abnegação de uma série<br />
de coisas mais baixas são sofrimentos iniciais.<br />
Quando esses sofrimentos são aceitos, podem se<br />
tornar familiares e até fonte de alegria. Que efeito<br />
esses sofrimentos têm para a vida, para a alma humana?<br />
18
Eles enrijecem a alma, dão-lhe profundidade de espírito,<br />
continuidade de intenções, seriedade e, com isto, tornam<br />
o homem verdadeiramente varonil. Um indivíduo incapaz<br />
desses sofrimentos torna-se indigno de ser homem.<br />
A pessoa deve procurar esse tipo de sofrimento, endurecer-se<br />
diante dele, ser inclemente consigo à vista dele,<br />
e quanto mais ela seja dura consigo, mais a vida lhe será<br />
suportável.<br />
Quando nessa gama certas coisas não fazem sofrer,<br />
em algum ponto acabará aparecendo um grande sofrimento,<br />
porque não se escapa da regra de que em algum<br />
aspecto, maior ou menor, o esforço é muito penoso, como<br />
um argueiro no olho ou um pedregulho no sapato.<br />
Por exemplo, um homem pode ser muito estudioso,<br />
mas certa forma de estudo indispensável lhe dá preguiça.<br />
Isso tudo faz parte do tal sofrimento que o indivíduo<br />
deve enfrentar.<br />
Qual é a utilidade desse sofrimento para a ordem da<br />
Comunhão dos Santos, como caráter expiatório? Evidentemente,<br />
desde que o indivíduo tenha intenção de<br />
oferecer, isto é útil à Comunhão dos Santos, enriquece o<br />
tesouro da Igreja.<br />
Padecimentos que agridem<br />
Mas um peculiar título de valor ele não possui, que<br />
vem de outra coisa: é do sofrimento que agride todo homem<br />
na vida, o qual está fora da ordem comum e se diria<br />
até que é destrutivo desta ordem.<br />
Por exemplo, o indivíduo começa a estudar com decisão<br />
e adquire o hábito do estudo. Vem a mãe dele e lhe<br />
informa: “Até agora temos vivido do comércio de seu pai.<br />
Mas ele teve uma embolia cerebral e não vai mais poder<br />
continuar esse trabalho. Por isso, será preciso que você o<br />
assuma.”<br />
Ele que já se dedicara inteiramente a certo ramo, fica<br />
colocado diante de um sofrimento de outra ordem, com<br />
isto de meio desagregador: com dificuldade, rezando,<br />
ele conseguiu tornar-se inteiramente familiar ao estudo.<br />
Agora, vem uma surpresa que o lança nessa história.<br />
Imaginemos que o pai tenha uma casa de comércio<br />
pequena, de arrabalde, onde vende louças e ferragens. E<br />
a primeira coisa que esse gênero de negócio exige é boas<br />
relações na redondeza, porque há nos arredores duas<br />
ou três outras casas novas que estão fazendo competição.<br />
E ele também precisa estar muito a par do que as fabriquetas<br />
de São Paulo vão lançando de novo a esse respeito,<br />
porque, do contrário, não oferece artigos que disputem<br />
a clientela.<br />
Portanto, isso não só absorve o tempo de trabalho dele,<br />
mas a capacidade de luta e de reflexão. E ele se vê descido<br />
de São Tomás até o problema de saber se a louça fabricada<br />
com pó de pedra e vendida em tal lugar agrada a Da. Fulana<br />
que é a mandachuva de tal quarteirão, e com a qual ele<br />
precisa conversar antes. Então Da. Fulana convida-o para<br />
tomar chá em casa dela, e o indivíduo tem que lhe contar<br />
uma piada, senão ele não mantém a freguesia.<br />
A moeda da dor nos ”bancos” do Céu<br />
Outra possibilidade é que o próprio estudioso fique<br />
doente. Ele se habitua a estudar, mas vem, de repente,<br />
uma enfermidade qualquer que o obriga a ficar pelo menos<br />
três anos afastado dos estudos.<br />
Diante disso o indivíduo tem várias saídas possíveis.<br />
Uma delas é encontrar uma fresta e afirmar-se ainda<br />
mais. Esta é a solução providencial que o leva a lutar<br />
contra o infortúnio, suportar este sofrimento, além do<br />
anterior de que falamos, e vencer.<br />
Isso tem um mérito muito maior porque o indivíduo sofre<br />
muito mais do que o comum dos homens. E, portanto,<br />
dá a Deus essa moeda da dor que tem nos “bancos” do<br />
Céu uma importância colossal, e abre um fundo de depósitos<br />
extraordinário para si nos “bancos” do Paraíso. Ele<br />
pertence à categoria de almas que Deus chama para isso.<br />
A diferença entre os dois sofrimentos até aqui descritos<br />
está em que, no padecimento anterior, o indivíduo luta<br />
e pode eliminá-lo. E esse segundo tipo de sofrimento,<br />
ao menos durante muito tempo, não pode ser sanado.<br />
Então, o que fazer? O indivíduo precisa acomodar-<br />
-se àquele sofrimento porque, do contrário, estoura. Mas<br />
de um acomodar-se cujo verdadeiro nome é resignação<br />
e cujo triunfo está em superar o sofrimento, sem deixar-<br />
-se cair em deformações sentimentais por onde ele fique<br />
mole, covarde e sem vigor. Neste caso, ele pode ser um<br />
grande benemérito na Comunhão dos Santos.<br />
O sofrimento penitencial e o de<br />
enriquecimento da Igreja<br />
Outra espécie de sofrimento é aquele que a pessoa<br />
procura. Isso pode se dar de dois modos: ou ela se penitencia,<br />
ou escolhe um gênero de atividade que de si não<br />
seria obrigada a escolher, mas fá-lo por idealismo.<br />
Por exemplo, alguém que, sendo rico, quisesse entrar<br />
para a Legião Estrangeira a fim de praticar o heroísmo.<br />
Ele procurou o sofrimento. Ou um homem que pede a<br />
Deus que lhe mande sofrimentos, como o caso de Monsieur<br />
Martin, pai de Santa Teresinha, a quem Deus inundava<br />
de consolações e que Lhe dizia: “Meu Deus, isso<br />
não pode continuar, eu tenho que, em algum momento,<br />
sofrer!” E pedia o sofrimento para Deus. E veio!<br />
Este é ainda mais nobre do que os sofrimentos anteriores.<br />
Foi por um ato de amor que ele fez isso, com-<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
preendendo o valor enorme do sofrimento<br />
e querendo fazer aos tesouros da Igreja<br />
o beneficio de enriquecê-los, entrando<br />
com a gota d’água de sua própria dor.<br />
Às vezes é um sofrimento de penitência.<br />
Aí ele quase paga aos tesouros<br />
da Igreja o que ele roubou pecando.<br />
Outras vezes não é um sofrimento<br />
penitencial e sim de enriquecimento<br />
da Igreja. Uma alma que tem a felicidade<br />
de poder dizer: “Sou inocente,<br />
mas quero sofrer como Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo inocente sofreu,<br />
para, por esta forma, derrubar a Revolução.<br />
Meu Deus, mandai-me a tragédia,<br />
eu a aceito e me afundo nela!<br />
Morro dentro da tragédia! Só Vos peço<br />
a força de aguentar.”<br />
São modalidades diferentes de sofrimento.<br />
Não se pode padronizar<br />
os caminhos de<br />
Deus para cada alma<br />
Reprodução<br />
Diante desses padecimentos, a pessoa que os pediu<br />
deve endurecer-se contra eles, fazendo esforço para sofrer<br />
pouco?<br />
Por exemplo, um indivíduo que tenha rogado a Deus<br />
que lhe mande um sofrimento, e ele verifica que está ficando<br />
cego. É provavelmente o atendimento do pedido<br />
que ele fez. Ele deve rezar a Deus para não vir essa cegueira?<br />
Fazer toda espécie de tratamento para evitá-la?<br />
Os tratamentos que entram na vida comum da Medicina<br />
e que a Moral obriga, ele deve fazer, não tem por<br />
onde escapar.<br />
Os outros… aí vem o mundo dos contatos da alma com<br />
Deus: se ele tem uma autêntica moção interna de que está<br />
sendo atendido, será heroico e compreende-se que não<br />
recorra. Mas pode ser que, para outra alma igualmente<br />
dedicada a Deus, a Providência não queira isso, mas sim<br />
que ela tente e faça uma luta heroica para evitar o sofrimento,<br />
ficando só provado que a oração dela foi atendida,<br />
porque o sofrimento se impõe apesar de ela fazer a luta.<br />
Depende do caminho de Deus, que não se pode padronizar,<br />
para cada alma. Estou mostrando a variedade de vias.<br />
Vindo o sofrimento, o que o indivíduo deve fazer?<br />
Voltemos ao exemplo do cego. Ele deve fazer o necessário<br />
para suprir sua cegueira: comprar aparelhos magníficos,<br />
aprender métodos por onde ele possa ler, etc., de<br />
maneira a, tanto quanto possível, remediar os inconvenientes<br />
do estado em que caiu?<br />
Beato Luís Martin em 1875<br />
Vale aqui o raciocínio anterior: para alguns<br />
sim, para outros não. Depende do que internamente<br />
a graça peça a cada um. Não há<br />
uma regra assim peremptória. Para algumas<br />
almas Deus tem um desígnio, para<br />
outras, outro. De todas Ele quer que<br />
saibam ouvi-Lo e obedecer-Lhe. É a<br />
regra que precisa ser seguida.<br />
A provação axiológica<br />
O mais terrível dentro disso é o<br />
sofrimento antiaxiológico 2 . É outro<br />
tipo de padecimento. A dor antiaxiológica<br />
é maior em si, como gênero, do<br />
que todas as outras dores porque, tendo<br />
certeza de que se encaixou numa determinada<br />
ordem, a pessoa encontra nisto<br />
um elemento de ação. Porém, quando<br />
ela não tem esta certeza, não sabe se não<br />
está sendo castigada, se é uma coisa temporária<br />
da qual pode pular fora, não sabe<br />
nada, a sua vida se torna sem sentido.<br />
Qualquer um dos sofrimentos acima<br />
descritos pode acontecer tomando uma nota antiaxiológica.<br />
O indivíduo, por exemplo, faz uma reflexão: “Realmente<br />
eu deveria oferecer a minha vida, minha saúde,<br />
qualquer coisa assim...” Interrompe seu pensamento e<br />
vai ocupar-se com outra coisa. Internamente não recusou.<br />
Deus viu que ele estaria disposto, ou espera dele um<br />
ato de aceitação no decurso dos padecimentos. Em certo<br />
momento, uma doença pula em cima dele!<br />
A Providência está permitindo que dois tormentos o<br />
aflijam especialmente: um é o da enfermidade, outro o<br />
de não saber se aquilo lhe veio por um castigo. Ele não<br />
sabe se, por exemplo, rezasse mais, a doença não o acometeria,<br />
se deve orar ou não para cessarem os sofrimentos;<br />
e vai suportando como pode, enquanto Deus<br />
Se mantém mudo. Nisto pode estar embuçado tanto um<br />
castigo quanto um modo magnífico de carregar a cruz,<br />
sem que o interessado saiba por quê.<br />
Deus não lhe dá os meios de resolver a questão, porque<br />
nisto está a maior prova. E às vezes a graça pode pôr na alma<br />
da pessoa a seguinte ideia: “Procure resolver, mas não<br />
peça graças especiais para isso, porque talvez você fuja do<br />
sofrimento mais duro e que não quereria sofrer.”<br />
É terrível porque não adianta consolar o sujeito com a<br />
ideia de que é a mais alta forma de sacrifício, porque para<br />
ele não está claro se é mesmo a mais elevada forma de<br />
imolação ou se ele está sendo castigado. Quer dizer, não<br />
sabe se está no fundo de um poço ou no alto do monte. E<br />
assim morrerá e se apresentará ao Juízo de Deus.<br />
20
Santíssimo Cristo<br />
das Misericórdias<br />
Paróquia de Santa Cruz,<br />
Sevilha, Espanha<br />
Até lá a incógnita axiológica pode sombrear a vida de<br />
uma pessoa sem ela se dar conta. Por isso digo ser essa<br />
provação axiológica aquela que, entre todas, mais faz o<br />
homem sofrer.<br />
”Deus meus, quare Me dereliquisti?”<br />
Tem-se a impressão de que, durante toda a Paixão,<br />
Nosso Senhor sofreu eminentemente do ponto de vista<br />
antiaxiológico, culminando no “Deus, Deus meus, quare<br />
Me dereliquisti?” 1<br />
No teto da Igreja do Coração de Jesus há pintado<br />
Nosso Senhor aparecendo a Santa Margarida Maria. Ele<br />
diz a ela, mostrando seu Sagrado Coração: “Eis o Coração<br />
que tanto amou os homens e foi por eles tão pouco<br />
amado.” Este é um sofrimento moral maior do que os<br />
padecimentos físicos inenarráveis.<br />
Ora, isto tem qualquer coisa de antiaxiológico. A dor<br />
que sofre quem foi assim renegado é, no fundo, uma<br />
dor antiaxiológica. Ele era o Justo e seria normal que<br />
fosse acolhido de outra maneira. Entretanto, vem o sofrimento<br />
da Cruz! Levaram a coisa a tal ponto que Longinus<br />
crava a lança n’Ele, e ainda sai água, quer dizer,<br />
não restou nada! Um dos Salmos diz: “Transpassaram<br />
minhas mãos e meus pés, posso contar todos os meus<br />
ossos.” 3<br />
Acima de tudo, a fidelidade do amor d’Ele restaura o<br />
princípio axiológico rompido. Nosso Senhor continua a<br />
amar os homens; tudo o que estes fizeram para romper a<br />
ordem, Ele, com sua obstinação sacrossanta em continuar<br />
a amá-los, recompõe.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência<br />
de 23/11/1983)<br />
Gustavo Kralj<br />
1) Do latim: Meu Deus, meu Deus,<br />
por que Me abandonaste? (Sl 22,<br />
2; Mt 27, 46).<br />
2) Termo derivado de “Axiologia”:<br />
ramo da Filosofia que estuda<br />
os “valores”, isto é, os motivos<br />
e as aspirações superiores e<br />
universais do homem, as condições<br />
e razões que dão rumo à sua<br />
existência, para os quais ele<br />
tende por insuprimível impulso<br />
da sua natureza.<br />
3) Sl 22, 17-18.<br />
21
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Teoria do progresso - II<br />
Continuando a busca de respostas para os mistérios que<br />
envolvem a ascensão e a decadência da sociedade humana, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> discerne a ação de Deus na História dos povos e aponta<br />
para a necessidade da obediência aos planos divinos.<br />
F<br />
ustel de Coulanges 1 , num livro que recomendo<br />
muito — La Cité Antique 2 —, trata dessa questão<br />
e diz que Roma fundou-se assim:<br />
Fundamentos da sociedade romana<br />
Havia povoados de famílias numerosas que habitavam<br />
toda uma zona. Essas famílias sabiam serem parentes en-<br />
tre si, mas já não tinham ciência de que modo nem em<br />
que grau; conheciam apenas a tradição do parentesco e<br />
possuíam um chefe cuja ascendência reportava, por via<br />
de primogenitura, ao antigo patriarca.<br />
O rei fora, assim, um patriarca a quem o consenso<br />
unânime resolveu colocar numa situação diferente,<br />
criando uma dignidade nova. Então, fundou-se o Estado.<br />
Mas o monarca é um produto da cidade. E dentro da<br />
Ruínas de construções<br />
romanas - Palmyra, Síria<br />
James Gordon (CC 3.0)<br />
22
cidade de Roma, o rei, na maior parte dos casos, não governava<br />
diretamente, pois a urbe era dividida em tribos<br />
e estas eram dirigidas pelos respectivos patriarcas, por<br />
meio dos quais o rei governava.<br />
Com o aumento da cidade, e dado o caráter meio soberano<br />
dos patriarcas, o rei não tomava todas as decisões,<br />
mas reunia o conselho dos patriarcas para resolver<br />
as coisas. Nasceu, assim, o Senado romano.<br />
Depois começaram a aparecer tribos não mais aparentadas,<br />
mas já claramente pertencentes a outras zonas,<br />
e que migravam inteiras para a cidade, com a condição<br />
de serem admitidas com seus patriarcas e seus costumes.<br />
E devido à necessidade de braços para se defender contra<br />
o inimigo, a urbe romana as admitia, e aquelas tribos<br />
se inseriam num sistema tribal e patriarcal do qual elas<br />
também viviam; e os chefes dessas tribos entravam para<br />
o Senado, também em igualdade de condições com os<br />
demais patriarcas.<br />
Os escravos não faziam parte do Estado romano,<br />
eram como bichos, sem ter qualquer direito, e ficavam<br />
à margem. Muitos deles, entretanto, começaram a ser libertados<br />
pelos donos e formaram a plebe livre estrangeira,<br />
porque não descendiam das tribos que constituíam o<br />
Estado.<br />
Digo isso para mostrar como a ideia da tribo ficou<br />
profundamente vincada. O Estado era composto de tribos<br />
como uma laranja é formada de gomos.<br />
Evolução do Direito romano<br />
Szilas (CC 3.0)<br />
Com o passar do tempo, começa a aparecer nas cidades<br />
gente avulsa: aventureiros, homens livres, sem vínculo<br />
de parentesco com ninguém. Esses não eram naturalizados,<br />
não tinham direitos políticos, mas sim direitos naturais,<br />
humanos. Nas contendas jurídicas, os juristas romanos<br />
não aplicavam, para esses estrangeiros, o direito<br />
das tribos antigas, mas o direito deduzido teoricamente<br />
da natureza humana.<br />
Na evolução do Direito romano constituíram-se,<br />
em determinada fase, dois Direitos:<br />
o Direito Quiritário e o Direito das Gentes.<br />
O Direito Quiritário, baseado nos costumes<br />
e na religião, provinha das antigas<br />
tribos. O Direito das Gentes,<br />
elaborado por juristas com grande<br />
voo, era o Direito natural, aplicável<br />
aos pobres, estrangeiros, gentios,<br />
que estavam do lado de fora.<br />
Com a expansão de Roma, chegou-se<br />
a tal superpopulação que,<br />
em certo momento, o Direito<br />
Quiritário começou a não se poder<br />
aplicar, e o Direto das Gentes foi-se estendendo aos<br />
cidadãos romanos — plebeus e nobres —; mesmo porque<br />
aquelas leis antigas, não sendo escritas, caíam no esquecimento,<br />
na confusão.<br />
É muito bonito conhecermos essa evolução que Fustel<br />
de Coulanges afirma ter sido, com essas ou aquelas<br />
diferenças, a linha geral da evolução de todos os municípios<br />
gregos e latinos. Mas eu admito ter algo de comum<br />
com a formação de todos os municípios antigos, porque<br />
é tão natural e tão bonita essa passagem do primitivo patriarcado<br />
para o rei, e do primitivo conjunto de tribos até<br />
o Estado, que sou propenso à hipótese de que, com circunstâncias<br />
e com diferenças bem consideráveis, algo<br />
disso seja encontrado na constituição de todas as antigas<br />
sociedades.<br />
O culto dos judeus e as religiões pagãs<br />
Devemos pensar, agora, nos elementos vitais do patriarcado,<br />
e para isso precisamos nos pôr uma pergunta<br />
para a qual tenho muito menos do que hipóteses, não possuo<br />
senão vislumbres, porque seria preciso fazer um estudo<br />
mais aprofundado a respeito da vida sobrenatural.<br />
Quais eram as relações de Deus com Adão, Eva e seus<br />
descendentes?<br />
Por certo, Deus revelara muita coisa a Adão e Eva a<br />
respeito de Si mesmo, do destino do homem, e isso Ele<br />
não proibiu que fosse contado aos descendentes, para<br />
que assim esse conhecimento entrasse como um elemento<br />
da religiosidade deles.<br />
Quer dizer, Adão e Eva levaram para fora do Paraíso<br />
terrestre sua crença religiosa sem nenhuma alteração, e<br />
tenho a impressão de que com isso vinham também favores<br />
celestes que proporcionavam aos homens uma relação<br />
com Deus pré-figurativa daquela estabelecida por meio<br />
da graça santificante, e os povos que ficaram fiéis à tradição<br />
vinda de Adão e Eva eram favorecidos por<br />
uma vinculação especial com Deus. Seria ou<br />
não seria sobrenatural, não sei, mas teria alguma<br />
coisa acima da mera religião deduzida<br />
pela razão humana, e que isto foi ainda mais<br />
acentuado nos judeus que, por ser o povo<br />
eleito, estavam visivelmente numa situação<br />
de partícipes do sobrenatural.<br />
No culto dos judeus a presença<br />
do sobrenatural fazia-se notar a todo<br />
momento por meio de profetas<br />
que orientavam o povo, instituíram<br />
Busto de Aristóteles<br />
Museu Nacional<br />
Romano, Roma, Itália<br />
23
Coyau(CC 3.0)<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Ciro durante uma caçada - Palácio de Versailles, França<br />
e regulamentaram o culto, edificaram um templo, previram<br />
o Messias.<br />
Se considerarmos aquelas religiões pagãs antigas —<br />
a religião dos judeus não estava neste caso —, podemos<br />
nos perguntar se houve guerras religiosas. Por exemplo,<br />
os egípcios querendo provar aos gregos que os ídolos<br />
gregos eram falsos, e que os deuses deles eram verdadeiros;<br />
ou os gregos querendo provar o contrário aos egípcios,<br />
aos assírios, etc. Percebe-se que tais guerras não<br />
existiram.<br />
Aos judeus, a Revelação; aos gregos,<br />
a Filosofia<br />
Fustel de Coulanges trata, de passagem, desta questão<br />
e mostra que cada povo tinha os seus deuses, e quando<br />
dois povos iam à guerra, eles imaginavam que numa<br />
região ignota esses deuses lutavam entre si, e que a guerra<br />
entre eles era a mesma dos homens na Terra. Isso dava<br />
a ideia da crença em um mundo de deuses, todos “verdadeiros”,<br />
com atribuições que se excluíam umas às outras,<br />
pois todos possuíam força divina, dirigindo o universo,<br />
etc., como mais ou menos cada mitologia compunha as<br />
próprias divindades. Donde os povos viverem numa contradição<br />
enorme, pacífica, mas não ecumênica, pois não<br />
visavam fazer prevalecer seus deuses, nem fundir todas<br />
as religiões.<br />
O primeiro povo que, pelo esforço de sua razão, procurou<br />
ter uma noção exata de Deus e de todo o universo,<br />
e constituir, portanto, uma Filosofia, foi o povo grego.<br />
Os gregos, por assim<br />
dizer, tinham duas espécies<br />
de religiões: a religião<br />
filosófica, que os filósofos<br />
— na ponta dos<br />
quais floresceu Aristóteles<br />
— cultivavam e que<br />
era mais um conhecimento<br />
do que um culto. De<br />
outro lado, o culto idolátrico<br />
do povinho, que os<br />
filósofos fingiam aceitar<br />
por medo de serem perseguidos.<br />
A elaboração de uma<br />
lógica, de um sistema de<br />
pensamento, cogitações<br />
a respeito da natureza<br />
do homem e tudo o mais,<br />
nasceu do espírito grego.<br />
Mas qual era o papel<br />
de Deus nisso?<br />
São Clemente de Alexandria afirma que Deus tinha<br />
dado a Filosofia aos gregos e, aos judeus, a Revelação 3 .<br />
A Teologia católica é a aplicação do sistema de pensamento<br />
grego, depois romano, à Revelação, o aprofundamento<br />
da Revelação pela aplicação da razão. Isto todos<br />
os outros povos não tiveram. Foi, portanto, um progresso<br />
enorme, no qual vemos o dedo de Deus.<br />
Pois bem, Deus deu a Revelação aos judeus e a Filosofia<br />
aos gregos. Mas outras coisas a que outros povos chegaram,<br />
não teriam presente também o dedo de Deus?<br />
O dedo de Deus<br />
Por exemplo, os persas: Ciro foi mandado pela Providência<br />
Divina para liquidar a Babilônia e libertar os<br />
judeus, e ele é chamado na Escritura de o “ungido” de<br />
Deus 4 , um homem amado por Ele. Ciro, o imperador pagão<br />
de um império pagão. Na formação do Império Persa<br />
houve, portanto, uma missão divina, um homem de<br />
Deus que executou tudo isso nas trevas do paganismo.<br />
Os juristas medievais admitiam de bom grado que o<br />
Império Romano — que perseguira os cristãos — era um<br />
dom de Deus, pois formava um todo para a pacificação e<br />
coesão do gênero humano, e que competia à Igreja Católica<br />
conservá-lo, fortalecê-lo, e não destruí-lo.<br />
E a Esposa de Cristo não quis destruir o Império Romano,<br />
mas viveu debaixo dele. Quando esse império caiu<br />
de podre, a Igreja Católica conservou a recordação dele,<br />
e os povos mantiveram a ideia de um Império Romano<br />
onde ainda existia o Direito natural, e que deve-<br />
24
A civilização tão apregoada<br />
seria um bem e ao mesmo<br />
tempo um mal. No início,<br />
tudo muito bom, mas vai-se<br />
ver, há um caminho anterior<br />
que se apaga e um desvio<br />
novo aparece, e é uma<br />
decadência. Por quê?<br />
Coroação de Carlos Magno<br />
como Rei dos Lombardos<br />
Reims, França<br />
Garitan(CC 3.0)<br />
ria ser restaurado. E quando o Papa São Leão coroou<br />
Carlos Magno, a intenção do Pontífice era de restaurar<br />
o Império Romano. O tal Sacro Império de língua alemã<br />
foi uma coisa menor, fundada séculos depois de Carlos<br />
Magno, mas que a piedade dos homens da Idade Média<br />
tomou como uma espécie de filho do Império Romano,<br />
com fragmentos da jurisdição universal que o Império<br />
Romano possuía.<br />
Deus quis que se fundasse o Império para facilitar<br />
a expansão da Religião Católica, pois se ela tivesse encontrado<br />
no seu caminho muitos povos antagônicos, teria<br />
sido muito difícil se estabelecer. Ela se estabeleceu<br />
una com uma relativa facilidade, por causa da unidade<br />
do Império Romano. Isto faz compreender melhor o Papado<br />
em Roma.<br />
Vemos, então, o dedo de Deus empurrando, sob vários<br />
aspectos, a História e, como consequência, podemos<br />
admitir que Ele foi dando empurrões de natureza diversa<br />
a vários desses povos, Estados e nações, para irem progredindo<br />
mais do que progrediriam entregues a si mesmos.<br />
Desaparecendo o desejo do sublime,<br />
começa a decadência<br />
Entretanto, acontece esta coisa horrível, talvez um<br />
dos paradoxos mais tristes da História: partindo daquele<br />
ápice primitivo patriarcal, percebe-se que o homem<br />
vai engendrando mais progresso, mas esse progresso traz<br />
a complicação e o apego. E à medida que o homem vai<br />
construindo um edifício, este se transforma em seu pró-<br />
prio mausoléu. Em determinado momento, desaparece o<br />
desejo do esplendor maior, o impulso rumo ao sublime<br />
estanca, e a pessoa fica sorvendo as delícias do que fez,<br />
sem querer subir mais.<br />
A partir do momento em que ela começa a sugar essas<br />
delícias, todo o peso do pecado original fica sem freios<br />
— o freio é o desejo do sublime —, esse peso vai esmagando,<br />
e a pessoa ou a sociedade cai na decadência, chegando<br />
até à inteira dissolução.<br />
Então Deus dá certa ajuda para que o povo possa progredir<br />
sem decair assim, mas a quase totalidade dos povos<br />
decaiu e não progrediu. Isso se deu inclusive em matéria<br />
de Direito com os romanos, e de Filosofia com os<br />
gregos. No meio da Filosofia grega havia erros enormes,<br />
e aquilo parou, estagnou.<br />
Então, a civilização tão apregoada seria um bem e ao<br />
mesmo tempo um mal. No início, tudo muito bom, mas<br />
vai-se ver, há um caminho anterior que se apaga e um<br />
desvio novo aparece, e é uma decadência. Por quê? Porque<br />
o impulso de Deus não foi seguido. v<br />
(Extraído de conferência de 22/8/1991)<br />
1) Numa Denis Fustel de Coulanges (*1830 - †1889). Historiador<br />
francês.<br />
2) Do francês: A Cidade Antiga. Publicado em 1864.<br />
3) Cf. Strom. VI, 8.<br />
4) Is 45, 1.<br />
25
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. IV Domingo do Tempo Comum.<br />
Beata Joana Francisca da Visitação, virgem (†1888).<br />
Fundadora do Instituto das Irmãzinhas do Sagrado Coração,<br />
em Turim, Itália.<br />
5. Santa Águeda, virgem e mártir (†c. 251).<br />
São Jesus Méndez, presbítero e mártir (†1928). Foi fuzilado<br />
em Valtiervilla, México, durante a perseguição religiosa.<br />
2. Apresentação do Senhor.<br />
Beato Estêvão Bellesini, presbítero (†1840). Religioso<br />
agostiniano, pároco de Genazzano, Itália. Destacou-se por<br />
sua grande devoção à Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />
3. São Brás,bispo e mártir (†c. 320).<br />
Santo Oscar, bispo (†865).<br />
Santa Berlinda, virgem (†séc. IX-X). Filha do duque<br />
da Lotaríngia e sobrinha de Santo Amando. Ingressou no<br />
mosteiro de Moorsel, Bélgica e depois em Meerbeke.<br />
4. São José de Leonessa, presbítero (†1612). Franciscano<br />
capuchinho, deu assistência aos cristãos cativos em<br />
Constantinopla e pregou o Evangelho até no palácio do<br />
Sultão. Morreu em Amatrice, Itália.<br />
6. São Paulo Miki e companheiros, mártires (†1597).<br />
Beato Antônio Maria Fusco, presbítero (†1910). Fundador<br />
das Irmãs Batistinas do Nazareno, em Angri, Itália.<br />
Foi assíduo no serviço litúrgico e diligente na administração<br />
dos Sacramentos.<br />
7. Beato Pio IX, Papa (†1878). Ver página 2.<br />
8. V Domingo do Tempo Comum.<br />
São Jerônimo Emiliani, presbítero (†1537).<br />
Santa Josefina Bakhita,virgem (†1947).<br />
São Paulo de Verdun,bispo (†c. 647). Tendo abraçado a<br />
vida monástica, depois foi eleito Bispo de Verdun, França,<br />
onde promoveu a dignidade do culto divino e a observância<br />
regular dos cônegos.<br />
9. São Miguel Febres Cordeiro, religioso (†1910). Religioso<br />
da Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs.<br />
Nasceu em Cuenca, Equador, onde durante quase 40 anos<br />
se dedicou à formação escolástica e literária dos alunos e<br />
dos próprios professores. Trasladou-se para a Espanha,<br />
onde faleceu em Premiá de Mar.<br />
10. Santa Escolástica,virgem (†c. 547).<br />
Santa Austreberta, virgem e abadessa (†704). Regeu o<br />
mosteiro de Pavilly, em Rouen, França, fundado pelo Bispo<br />
Santo Audeno.<br />
11. Nossa Senhora de Lourdes.<br />
São Pascoal I, Papa (†824). Trasladou muitas relíquias<br />
dos mártires das catacumbas para as igrejas. Promoveu<br />
missões nos países escandinavos e reconstruiu a Basílica<br />
de Santa Cecília, em Roma.<br />
Masalova S.V. (CC 3.0)<br />
12. São Melécio, bispo (†381). Exilado várias vezes por<br />
defender as normas do Concílio de Niceia. Morreu na Antioquia,<br />
hoje Turquia, quando presidia o Primeiro Concílio<br />
Ecumênico de Constantinopla.<br />
13. São Paulo Liu Hanzuo,presbítero e mártir (†1818).<br />
Preso quando celebrava a Missa da Assunção. Estrangulado<br />
por ser cristão em Dongjiaochang, China.<br />
São Cirilo e São Metódio<br />
14. São Cirilo, monge (†869) e São Metódio,bispo (†885).<br />
26
––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />
Milziade (CC 3.0)<br />
Beato Estêvão Bellesini<br />
Santo Auxêncio,<br />
presbítero e<br />
arquimandrita<br />
(†séc. V).<br />
Abandonando<br />
a carreira<br />
militar, tornou-se<br />
eremita<br />
perto de<br />
Constantinopla<br />
e dedicou o<br />
resto da vida à pratica<br />
da mortificação<br />
e à defesa da Fé.<br />
15. VI Domingo do Tempo Comum.<br />
Beato Miguel Sopoko,presbítero (†1975). Fundador das<br />
Irmãs de Jesus Misericordioso. Confessor de Santa Faustina<br />
Kowalska e grande propagador da devoção à Divina<br />
Misericórdia. Morreu em Bialystok, Polônia.<br />
16. Beato José Allamano,presbítero (†1926). Animado<br />
pelo zelo incansável, fundou em Turim, Itália, duas Congregações<br />
das Missões da Consolata, uma masculina e outra<br />
feminina.<br />
17. Sete Santos Fundadores dos Servitas(†1310).<br />
São Fintano, abade (†c. 440). Fundador do mosteiro de<br />
Clúain Ednech, Irlanda, destacou-se por sua austeridade.<br />
18. Quarta-feira de Cinzas.<br />
São Francisco Régis Clet, presbítero e mártir<br />
(†1820). Sacerdote da Congregação da Missão nascido<br />
em Grenoble, Franca, anunciou o Evangelho no meio<br />
de extremas dificuldades na província de Hubei, China.<br />
Após ter sido denunciado por um apóstata, passou<br />
um longo período na prisão, onde morreu estrangulado.<br />
Santo Eustácio, bispo (†c. 338). Bispo da Antioquia,<br />
exilado para Trajanópolis, atual Bósnia, pelo Imperador<br />
Constâncio, por defender a Fé Católica.<br />
22. I Domingo da Quaresma.<br />
Festa da Cátedra de São Pedro Apóstolo.<br />
Santa Margarida de Cortona, penitente (†1297). Comovida<br />
pela morte de seu amante, arrependeu-se e depois<br />
de muitas provas foi admitida na Ordem Terceira Franciscana,<br />
onde levou uma vida de penitência.<br />
23. São Policarpo, bispo e mártir (†c. 155).<br />
Beata Josefina Vannini, virgem (†1911). Fundadora da<br />
Congregação das Filhas de São Camilo, em Roma, para<br />
assistência aos doentes.<br />
24. Beata Ascensão do Coração de Jesus, virgem<br />
(†1940). Cofundadora da Congregação das Missionárias<br />
Dominicanas do Santíssimo Rosário, em Lima, Peru. Faleceu<br />
aos 57 anos de idade em Pamplona, Espanha.<br />
25. São Nestor de Magido,<br />
bispo e mártir (†c.<br />
250). Preso durante<br />
perseguição do Imperador<br />
Décio. Foi condenado<br />
e crucificado<br />
em Perge, atual Turquia.<br />
26. São Vítor,eremita<br />
(†séc. VII).<br />
Louvado nos Sermões<br />
de São Bernardo,<br />
morreu em Arcis-sur-Aube,<br />
França,<br />
onde viveu da oração<br />
e contemplação.<br />
19. Beata Isabel Picenárdi, virgem (†1468). Tomou o<br />
hábito da Ordem dos Servos de Maria em Mântua, Itália.<br />
Possuía grande devoção à Eucaristia e à Santíssima Virgem.<br />
20. São Tirânio,bispo (†311). Foi Bispo de Tiro, tendo<br />
sido instruído na Fé Cristã desde muito jovem. Recebeu a<br />
palma do martírio na Antioquia, Síria.<br />
21. São Pedro Damião,bispo e Doutor da Igreja (†1072).<br />
27. São Gregório<br />
de Narek, monge (†c.<br />
1005). Evangelizador<br />
dos armênios, ilustre<br />
pela doutrina, escritos<br />
e ciência mística.<br />
28. São Romão,<br />
abade (†460). Ver página<br />
28.<br />
Santa Margarida de Cortona<br />
Otuourly (CC 3.0)<br />
27
Hagiografia<br />
São Romão, doçura<br />
e força de oração<br />
Pregar apenas a misericórdia e silenciar a justiça é tão<br />
errado quanto fazer o contrário, pois ambas as virtudes<br />
são necessárias para as almas. Dois irmãos santos, Romão<br />
e Lupicino, nos deram significativo exemplo de como a<br />
justiça e a misericórdia se harmonizam.<br />
Aqui há uma série de fatos interessantes para considerar,<br />
e cada um deles, portanto, vai ter um comentário à<br />
parte. Em primeiro lugar, nos encontramos em face des-<br />
Em 28 de fevereiro, comemora-se a festa de São<br />
Romão, abade. A ficha biográfica que irei comentar<br />
é tirada do Pe. Édouard Daras, “Les vies<br />
des Saints” 1 .<br />
Chuvas de pedras cortantes<br />
provocadas pelo demônio<br />
São Romão, nascido em 399 na Borgonha, foi fundador<br />
de um famoso convento na região do Franco Condado.<br />
Desde jovem retirou-se para a solidão, sendo mais tarde seguido<br />
por seu irmão, São Lupicino. Conta-se que levavam<br />
uma vida que consideravam de paz e felicidade, quando o<br />
demônio resolveu interrompê-la. Cada vez que se punham<br />
de joelhos para rezar, o demônio fazia cair sobre eles uma<br />
chuva de pedras cortantes, que os feria e impediam de continuar.<br />
Ambos resistiram por algum tempo, mas vendo que<br />
nada conseguiam decidiram abandonar o retiro. Ao chegarem<br />
a uma aldeia, foram hospedados por uma pobre mulher,<br />
que lhes perguntou de onde vinham. Não sem alguma<br />
vergonha, narraram toda a verdade.<br />
“Vós deveríeis, disse a mulher, lutar corajosamente contra<br />
o demônio e não temer os embustes e ódio daquele que<br />
tão frequentemente foi vencido pelos amigos de Deus. Se ele<br />
ataca os homens, é por medo de que eles, por suas virtudes,<br />
subam ao lugar de onde a perfídia diabólica os fez cair.”<br />
Ao saírem dessa casa, consideraram a sua fraqueza e<br />
quão pouco haviam combatido. Voltaram sobre seus passos<br />
e, com orações e paciência, venceram o inimigo.<br />
Dois métodos diferentes no trato com as almas<br />
Mais tarde, tendo já fundado numerosos mosteiros, os<br />
dois irmãos visitavam essas fundações com frequência. São<br />
Lupicino era severíssimo, não perdoando o menor deslize.<br />
São Romão, ao contrário, era bem mais misericordioso.<br />
Aconteceu que São Lupicino, visitando um convento na<br />
Alemanha, encontrou na cozinha excessiva quantidade de<br />
legumes e peixe. Escandalizado com aquilo, fez cozinhar<br />
tudo junto para castigo dos monges. A comida saiu tão repugnante<br />
que doze religiosos deixaram a casa, não suportando<br />
a penitência. São Romão teve uma visão sobre esse<br />
acontecimento, e quando Lupicino voltou, disse-lhe:<br />
— Meu irmão, é melhor não visitar as ovelhas do que ir<br />
vê-las para dispersá-las.<br />
Resposta de São Lupicino:<br />
— Não tenhais pena, meu caro irmão. Não é preciso purificar<br />
o campo do Senhor e separar a palha do bom grão?<br />
Os que foram eram doze orgulhosos em quem o Senhor<br />
não mais habitava.<br />
São Romão concordou. Mas daí em diante chorava tão<br />
profundamente, magoado com a partida dos monges, que<br />
Deus, atendendo suas preces, reconduziu mais tarde os doze<br />
recalcitrantes ao convento. E a ele se apresentaram voluntariamente<br />
para fazer penitência.<br />
Num ambiente sereno, surge a provação<br />
28
Reprodução<br />
Cenas da vida dos Padres do deserto (por Fra Angelico)<br />
Museu de Belas Artes, Budapeste, Hungria<br />
sa admirável floração de santos, depois da queda do Império<br />
Romano do Ocidente. Vemos aqui dois irmãos que<br />
levam uma vida de grande santidade. E aparece esse episódio<br />
deles residindo no ermo, sem amolação nenhuma,<br />
sem ver nada das coisas da cidade, nem do mundo, numa<br />
natureza amena, bucólica, vivendo felizes.<br />
Então podemos imaginar, nas horas de oração, os irmãos<br />
ajoelhados bem direitinho, um ao lado do outro —<br />
assim é que os representaria uma iluminura —, e rezando<br />
a Nossa Senhora que aparece no alto, sorrindo para<br />
eles. Esse seria o primeiro ato. É o ato da felicidade eremítica<br />
e bucólica desses dois irmãos que vivem numa atmosfera<br />
terrena, encimada por um céu parecido com o<br />
ar diáfano daqueles céus azuis de Fra Angelico, o qual<br />
poderia perfeitamente ter pintado essa cena.<br />
Vem depois a provação. O demônio tem ódio deles e o<br />
modo de castigá-los também é muito interessante: a chuva<br />
de pedras cortantes. Sobre eles, tão bonzinhos, tão direitinhos,<br />
cai uma chuva medonha de pedras cortantes<br />
que os molesta. Os irmãos então procuram rezar direi-<br />
A justiça e a paz se<br />
oscularam, diz o Salmo.<br />
Aqui se poderia dizer que<br />
a justiça e a misericórdia<br />
se oscularam.<br />
to, mas afinal de contas as pedras caem em tal quantidade<br />
que eles resolvem sair.<br />
Lição de uma virtuosa mulher<br />
Por fim, surge uma mulher, a qual é, naturalmente,<br />
uma boa mulher, que habita no campo, numa choupana.<br />
Ela perdeu o marido e tem apenas um filho, que é<br />
29
Hagiografia<br />
monge e reside num lugar distante, e de quem, de vez<br />
em quando, recebe uma carta; essa mulher é reumática,<br />
tem uma perna inchada, mas reza o tempo inteiro e vive<br />
só para Deus. Assim poderíamos imaginar a mulher,<br />
pois esse era o ambiente pitoresco da época, o modo pelo<br />
qual a graça operava. Não é lenda. É o estilo da ação<br />
de Deus naquele tempo.<br />
Então a mulher, provada em dores e cheia de sabedoria,<br />
recebe os dois. Naturalmente, primeiro oferece a<br />
eles alguma coisa para comer. Ajuda a curar alguma ferida<br />
provocada pelas pedras. Depois pergunta o que há.<br />
Fora está chovendo torrencialmente, eles estão abrigados<br />
na casinha da mulher e contam para ela o ocorrido.<br />
A mulher suspira, põe os olhos num Crucifixo e diz: “Irmãos,<br />
mui errados andais!” E fala a verdade.<br />
Compungidos, eles passam a noite em prece. Na manhã<br />
seguinte, voltam para o ermo e vão lutar contra o demônio.<br />
São dois cavaleiros, dois guerreiros contra o demônio,<br />
que emergem dessa atmosfera azul-claro, rosa-<br />
-claro, ouro-rutilante, e que a partir desse momento se<br />
transformam em lutadores varonis. É a formação deles<br />
que assim se enuncia.<br />
Severidade e brandura<br />
Depois se saltam vários anéis intermediários, e eles<br />
nos aparecem numa posição pomposa, majestosa. São<br />
dois santos veneráveis, cuja fama de santidade reuniu<br />
em torno de si vários monges que lhes obedeciam. Eles<br />
são patriarcas, provavelmente já de barba branca, mais<br />
sábios e mais provados na vida do que aquela mulher,<br />
derrotaram os demônios, enfrentaram os adversários, fizeram<br />
viagens perigosas passando por lugares onde havia<br />
feras, pontes mal construídas, bandidos, tempestades,<br />
tudo enfrentaram por causa de Deus Nosso Senhor. Os<br />
dois estão no zênite da vida deles. Porém, mais uma vez,<br />
um episódio entre eles se dará.<br />
Há certa medida de severidade e de brandura que deve<br />
ser utilizada de acordo com o sopro da graça, e com o<br />
modo pelo qual Deus Nosso Senhor quer conduzir os espíritos.<br />
Existem certos espíritos que só sabem fazer bem<br />
por meio da severidade suma, e realizam um bem admirável.<br />
Há outros espíritos que, dentro da medida do razoável,<br />
quase se diria que estão no extremo oposto: são<br />
muito brandos, muito suaves, e fazem bem pela sua brandura<br />
e suavidade. Uns imitam mais Nosso Senhor enquanto<br />
expulsava os vendilhões do Templo;<br />
outros O imitam mais enquanto perdoava<br />
Santa Maria Madalena.<br />
De qualquer forma, ei-los que começam<br />
a governar esses mosteiros. E um deles,<br />
São Lupicino, muito severo, muito duro,<br />
vai ao mosteiro e faz o que todos os<br />
instintos de minha alma me pediriam para<br />
fazer, se estivesse em situação análoga:<br />
“Isso aqui não está direito? Está bem,<br />
eu vou ensinar.” É reto, rápido, não faz os<br />
outros perderem tempo, resolve as coisas<br />
diretamente e resolve mesmo. Erradica e<br />
põe fora. Está acabado.<br />
Victor Toniolo<br />
Que São Romão nos<br />
conceda sua doçura com sua<br />
força de oração; porque,<br />
sem sua força de oração,<br />
nada faria com sua doçura.<br />
Um Santo Eremita<br />
(por Girolamo Muziano)<br />
Museus Vaticanos<br />
30
Mas exatamente a Igreja é multíplice, e São Romão,<br />
o qual tinha o espírito diverso, começa a lamentar o que<br />
fez São Lupicino.<br />
Notem a sutileza e o conteúdo teológico interessantíssimo<br />
do fato: São Romão começa a lamentar o que realizou<br />
São Lupicino e lhe faz uma censura. Este dá uma<br />
resposta à sua maneira, esplêndida, e explica tudo. São<br />
Romão dá um suspiro e concorda, teve boa-fé. Isso é verdade.<br />
A justiça e a misericórdia se oscularam<br />
Mas a Providência quis que a misericórdia não saísse<br />
derrotada. E onde São Lupicino tinha feito bem em expulsar,<br />
São Romão fez bem em pedir que os monges voltassem.<br />
Este se pôs a chorar. Vê-se, então, o velho com<br />
as barbas brancas numa atitude enternecida, pensando<br />
naquelas almas, as lágrimas cristalinas de olhos cristalinos<br />
que correm ao longo de uma face alva e emaciada,<br />
chegam a cair no chão e enternecem o Anjo da Guarda,<br />
encontram eco diante de Nossa Senhora, a qual, por sua<br />
vez, tem sempre eco diante de Deus. E Maria Santíssima<br />
pede pelos monges.<br />
Resultado: o pessoal, que São Lupicino com tão boa<br />
vassoura varrera, volta. Mas não regressa como era<br />
quando foi varrido. Volta emendado por uma ação excepcional<br />
da graça, uma ação que está para além das vias<br />
normais da graça; que não é o corretivo de São Lupicino,<br />
mas é uma bela superação desse santo. A graça conseguiu<br />
a conversão daqueles que a justiça, a tão bom título<br />
e tão oportunamente, tinha castigado.<br />
A justiça e a paz se oscularam, diz o Salmo 2 . Aqui se<br />
poderia dizer que a justiça e a misericórdia se oscularam.<br />
E termina assim, num encantador happy end, esta ficha.<br />
Que São Romão nos consiga um pouco dessa candura<br />
de alma; que no interior de nossas almas haja um pouco<br />
desse rosa-claro, desse verde, desse florilégio que é tão<br />
extraordinariamente agradável para carregarmos a virtude.<br />
E que tenhamos a compreensão dos métodos de São<br />
Lupicino, e não apenas a ternura para com os modos de<br />
agir de São Romão. Que ambos nos façam parecidos<br />
com eles. Que São Lupicino nos dê toda a sua braveza. E<br />
São Romão nos conceda sua doçura com sua força de<br />
oração; porque, sem sua força de oração, nada faria com<br />
sua doçura.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 28/2/1967)<br />
Reprodução<br />
1) Cf. DARAS, Édouard. Les vies des Saints. Volume II. 7ª edição.<br />
Paris: Louis Vivès, 1872. p. 465-471.<br />
2) Cf. Sl 85, 11.<br />
Eremitas - Detalhe do Retábulo de Ghent, Bélgica<br />
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Apóstolo do pulchrum<br />
Luca Boldrini (CC 3.0)<br />
O belo e o prático - II<br />
Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e<br />
proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios<br />
de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens<br />
existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são<br />
exemplos característicos dessa verdade.<br />
T<br />
endo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina<br />
sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos<br />
algumas carruagens 1 que se encontram<br />
no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.<br />
A parte nobre do corpo do homem deve<br />
aparecer mais que a inferior<br />
Logo à primeira vista notamos como o chão dessa car-<br />
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uagem tem uma superfície menor do que a do teto; este<br />
se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que<br />
se considerarmos como chão apenas a parte onde está a<br />
porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto.<br />
A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem<br />
faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de<br />
seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito<br />
menos.<br />
Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo,<br />
é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos<br />
cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre,<br />
em que ele aparece como um busto. Imaginem que<br />
este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado<br />
na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até<br />
embaixo. Perderia enormemente.<br />
Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam<br />
nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do<br />
que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou<br />
da dama, em atitude monumental, escultural.<br />
Harmonia entre as diversas<br />
partes da carruagem<br />
O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que<br />
transporta, e outra a que é transportada. A parte que<br />
transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor.<br />
Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho<br />
para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que<br />
quando o carro para, imediatamente eles descem e vão<br />
correndo abrir as portas e pôr um banquinho<br />
embaixo — que já vem dentro do<br />
próprio carro —, para que o passageiro<br />
não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como<br />
ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para<br />
baixo?<br />
Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com<br />
chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia<br />
muito grande com a porta aberta; e, não havendo um<br />
fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe<br />
oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.<br />
Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas<br />
e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que<br />
são transportados.<br />
Notem a diferença de construção das rodas da frente<br />
com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais<br />
robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes.<br />
A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos<br />
passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados,<br />
há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria<br />
alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e<br />
a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira<br />
que os passageiros não sejam jogados para frente ou para<br />
trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de<br />
providências práticas que são muito belas.<br />
Tuvalkin (CC 3.0)<br />
Victor Toniolo<br />
Tuvalkin (CC 3.0)<br />
Victor Toniolo<br />
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Apóstolo do pulchrum<br />
O prático disfarçado pela beleza<br />
Está posta uma situação digna de nota, em que o prático<br />
existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber<br />
vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela<br />
beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria<br />
prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”<br />
As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela<br />
não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos<br />
do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.<br />
Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao<br />
calçamento está calculada para a perfeita comodidade<br />
das pessoas que se encontram no interior da cabine.<br />
Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos<br />
frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há<br />
o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas,<br />
conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa<br />
atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente.<br />
O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes,<br />
e faz parte do dever delas apresentar esta beleza,<br />
pois as instituições políticas devem ornar os povos. O<br />
mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.<br />
As carruagens e a hierarquia<br />
existente numa sociedade<br />
Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior<br />
ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja<br />
um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?<br />
Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo,<br />
mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas<br />
bonito.<br />
Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer<br />
um carro assim?<br />
Não, porque toda sociedade, qualquer<br />
que seja a forma de governo, deve ter uma<br />
hierarquia. E é preciso que essa hierarquia<br />
seja harmônica; quer dizer, não haja um<br />
tombo entre o primeiro carro e depois apenas<br />
liteiras. Convém que essa hierarquia seja<br />
por degraus. Este não é um carro para rei,<br />
mas para príncipes.<br />
Por causa disto, ele é distinto, mas notem<br />
que a presença do ouro nele é muito menos<br />
abundante: o teto dele é muito menos ornado<br />
e de uma cor comum. As formas das janelas<br />
são muito menos fantasiosas e mais retilíneas,<br />
mas a justaposição de vermelho e ouro<br />
é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro<br />
possui, mas de modo menos excelente.<br />
Essas carruagens são do museu dos coches<br />
da corte, mas se houvesse um museu dos coches<br />
da burguesia, outro dos coches do clero,<br />
etc., simplesmente pelos coches teríamos uma<br />
ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.<br />
Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias<br />
da classe popular tinham para se fazer transportar,<br />
eram interessantes. É a hierarquia social em que cada<br />
elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo.<br />
E constitui uma boa organização social.<br />
Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos<br />
de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para<br />
se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.<br />
Ósculo entre o belo e o prático<br />
Carlos Luis M C da Cruz(CC.3.0)<br />
Ricardo Tulio Gandelman (CC.3.0)<br />
Considerem um pouco o prédio do<br />
museu e notem como a sala dos coches<br />
é muito bem calculada. Vistas num conjunto,<br />
todas as coisas belas apresentam<br />
uma beleza maior do que a simples soma<br />
delas. E por isso é bonito ver os coches<br />
no seu conjunto. Então foi feito<br />
um salão bem alto, com uma grande galeria<br />
em cima, para que o conhecedor<br />
possa percorrer os vários lados e analisar<br />
os coches no seu conjunto.<br />
Para guardar bonitos coches tudo<br />
foi bem preparado. Quadros a óleo,<br />
provavelmente do tempo, representando<br />
cenas que se passaram neste ou<br />
naquele coche. O teto todo pintado e<br />
trabalhado. Tem-se vontade de haver<br />
ali no fundo, onde há uma cortina, um<br />
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Aspectos do Museu Nacional dos<br />
Coches - Lisboa, Portugal<br />
Igor Zyx (CC.3.0)<br />
órgão para serem tocadas músicas extraordinárias,<br />
celebrando o passado de Portugal.<br />
Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto<br />
muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um<br />
elemento de grande valor para o prestígio atual<br />
de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal.<br />
Em geral, as nações que foram colônias se revoltam<br />
contra as metrópoles, e rompem à mão armada.<br />
Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique,<br />
gente que está lutando para que essas nações<br />
voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que<br />
muitos angolanos, moçambicanos que visitaram<br />
esse museu, levando álbuns com visões de coisas<br />
destas para Angola e Moçambique, deram o sabor<br />
da cultura portuguesa, e concorreram para esta<br />
união de Portugal com os seus súditos. Nós, de<br />
origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto<br />
aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam,<br />
se encontram. Era preciso termos chegado a este<br />
século descabelado e sujo para que se imaginasse<br />
esse dissídio entre o belo e o prático. v<br />
(Extraído de conferência de 4/10/1986)<br />
1) As fotografias que ilustram esta seção não são as<br />
mesmas comentadas por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Luca Boldrini (CC.3.0)<br />
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Contraste<br />
maravilhoso<br />
O<br />
que me toca especialmente na devoção<br />
a Nossa Senhora é uma espécie de<br />
antinomia harmoniosa e maravilhosa pelo<br />
fato de Ela ser tão santa e, entretanto, saber<br />
colocar-Se tanto ao nível de todos nós,<br />
pecadores. Pensar que Ela, sem perder nada<br />
de sua incomensurável superioridade,<br />
sabe descer tão ao nosso plano!<br />
Quando rezo à Santíssima Virgem,<br />
cogito sobre Ela, trato com Ela, sinto-A<br />
enormemente ao meu alcance, ao meu<br />
nível. Mas, de outro lado, maior do<br />
que eu, nem sei de que jeito!<br />
Ela, tão pura, poder — por<br />
assim dizer — “tocar” numa<br />
alma que tem manchas, sem Se<br />
contaminar em nada; e, tendo<br />
todo horror ao pecado, não ficar<br />
com horror de mim!<br />
Há aí uma espécie de contraste<br />
belíssimo, maravilhoso, em que<br />
eu me sinto aceito e assumido por<br />
inteiro.<br />
(Extraído de conferência de 25/6/1972)<br />
Timothy Ring<br />
Nossa Senhora do Brasil<br />
São Paulo, Brasil