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Revista Dr. Plinio 233

Agosto de 2017

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Publicação Mensal Ano XX - Nº <strong>233</strong> Agosto de 2017<br />

Ipsa conteret...


Sebastião C.<br />

Venerado<br />

sobre os<br />

ombros do<br />

Imperador<br />

São Bernardo é um dos sóis da Igreja Católica<br />

e da devoção mariana. É o Doctor Mellifluus<br />

– Doutor Melífluo – que como ninguém elogiou<br />

a bondade e a misericórdia de Nossa Senhora.<br />

Ele é, por excelência, o homem da penitência e<br />

da mortificação, como também da polêmica com os<br />

adversários da Igreja do seu tempo.<br />

Este Santo Abade de Claraval era, ao mesmo<br />

tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente.<br />

Ninguém sabia falar da Santíssima Virgem com<br />

tanta unção quanto ele. De outro lado, era um polemista<br />

tremendo que alcançou sucessos extraordinários.<br />

Certa vez, estando na Alemanha, São Bernardo<br />

entrou numa cidade onde se encontrava também o<br />

Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o<br />

mais alto dignatário temporal da Cristandade. A fama<br />

de santidade do Abade cisterciense era tal que<br />

todo o povo foi correndo de encontro a ele. E São<br />

Bernardo teria sido esmagado pela multidão se o<br />

próprio Imperador não o tivesse tomado nos braços<br />

e feito montar sobre seus ombros. Desta maneira,<br />

foi ele um Santo que se apresentou à veneração pública<br />

montado num imperador! Glória extraordinária<br />

para uma época que possuía, muito mais do que<br />

outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.<br />

(Extraído de conferência de 17/4/1971)<br />

São Bernardo - Catedral<br />

de Colônia, Alemanha


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XX - Nº <strong>233</strong> Agosto de 2017<br />

Ano XX - Nº <strong>233</strong> Agosto de 2017<br />

Ipsa conteret...<br />

Na capa, Nossa Senhora do<br />

Rosário de Lepanto - Igreja<br />

de São Domingos, Espanha.<br />

Ipsa conteret: do latim, Ela<br />

esmagará (Gn 3, 15).<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Gilberto de Oliveira<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />

02404-060 S. Paulo - SP<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

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Tel: (11) 3932-1955<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 130,00<br />

Colaborador .......... R$ 180,00<br />

Propulsor ............. R$ 415,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Editorial<br />

4 Grandiosa e inevitável guerra<br />

Piedade pliniana<br />

5 Oração da despretensão e<br />

das santas proezas<br />

Dona Lucilia<br />

6 Senso do holocausto<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

12 Duas influências<br />

Hagiografia<br />

20 Perfeito guerreiro e<br />

devoto de Nossa Senhora<br />

Calendário dos Santos<br />

24 Santos de Agosto<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

26 O maior prazer da vida<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

32 Um hino a Nossa Senhora<br />

Última página<br />

36 Rainha da Contra-Revolução<br />

3


Editorial<br />

Grandiosa e<br />

inevitável guerra<br />

N<br />

ão é deste mundo a concórdia sem jaça, a paz perfeita e eterna entre todos os homens.<br />

Nesta terra de exílio, as carências, as dissensões, as catástrofes são inevitáveis. E uma visão<br />

cristã da vida leva, ao mesmo tempo, a circunscrevê-las quanto possível e a resignar-se<br />

a elas porque inevitáveis.<br />

São Luís Maria Grignion de Montfort 1 nos mostra a vida dos povos como uma grandiosa, trágica e<br />

incessante guerra entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o belo e o feio. Batalha sem a qual a existência<br />

terrena, desfalcada do seu significado sobrenatural, perderia sua dignidade.<br />

Comentando as palavras do Gênesis (3,15): “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua posteridade<br />

e a dela. Ela te pisará a cabeça e tu armarás traições ao seu calcanhar”, observa com profundidade<br />

o grande Santo: “Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável,<br />

que não só há de durar, mas aumentar até o fim: a inimizade entre Maria, sua digna Mãe, e<br />

o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer; de modo<br />

que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou contra o demônio. Ele Lhe deu tanto ódio a esse<br />

amaldiçoado inimigo de Deus, tanta clarividência para descobrir a malícia dessa velha serpente, tanta<br />

força para vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso, que o temor que Maria inspira ao demônio<br />

é maior do que o inspirado por todos os Anjos e homens e, em certo sentido, o próprio Deus.”<br />

Ao longo da História, os filhos de Nossa Senhora batalharão até o fim do mundo contra os filhos<br />

de Satã. E a vitória final será dos primeiros, pela interferência da Mãe de Deus: “Deus estabeleceu<br />

inimizades, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os<br />

filhos e escravos do demônio. Os filhos de Belial, escravos de Satã, amigos do mundo (pois é a mesma<br />

coisa) sempre perseguiram e perseguirão aqueles que pertencem à Santíssima Virgem. Mas a humilde<br />

Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final, que<br />

Ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela descobrirá sempre sua<br />

malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus conselhos diabólicos, e até ao fim<br />

dos tempos garantirá seus fiéis servidores contra as garras de tão cruel inimigo.”<br />

A supressão dessa luta por uma reconciliação ecumênica entre a Virgem com sua posteridade e<br />

a serpente com sua raça, rumo a uma era na qual a cessação utópica do entrechoque acarrete uma<br />

composição entre todos os direitos e interesses, uma interpenetração de todas as línguas sob um governo<br />

universal feito de fartura e despreocupação: eis a grande utopia contra a qual as massas se devem<br />

precaver; eis o regresso (ou antes, o retrocesso) à orgulhosa Torre de Babel, que de todos os modos<br />

o neopaganismo procura reerguer; eis a bandeira toda tecida de ilusão e de mentira com que, em<br />

todas as épocas, os demagogos procuram arrastar as massas insurrectas 2 .<br />

1) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Ed. Vozes: Petrópolis, 1961. 6ª ed., pp. 54-57.<br />

2) Excertos do artigo Volta à Torre de Babel? Publicado em “Folha de São Paulo”, 12/8/1980.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Oração da<br />

despretensão<br />

e das santas<br />

proezas<br />

Teodoro Reis<br />

Nossa Senhora da Luz - Convento<br />

da Luz, São Paulo, Brasil<br />

Óminha Senhora, Mãe de justiça<br />

e de misericórdia, modelai<br />

a minha alma de tal<br />

maneira que, inteiramente despretensioso,<br />

eu seja capaz das mais santas<br />

proezas. Afastai de mim a consideração<br />

de minhas qualidades naturais<br />

e até das sobrenaturais que<br />

a graça, implorada por Vós, possa<br />

me alcançar. Abri minha alma para<br />

o exame sincero, leal, varonil de<br />

meus defeitos, sem buscar atenuantes<br />

e pretextos para indulgências falsas<br />

para comigo. Dai-me a verdadeira<br />

contrição pelas minhas faltas e o<br />

propósito de nunca reincidir nelas.<br />

Assim, ó minha Mãe, serei verdadeiramente<br />

capaz de realizar todas<br />

as proezas por Vós, porque sei bem<br />

que só aos despretensiosos Vós concedeis<br />

as grandes vitórias.<br />

(Composta em 4/2/1980)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Senso<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

do<br />

holocausto<br />

Dona Lucilia não concebia as alegrias do Céu como um eterno<br />

prolongamento de Hollywood. Mas sabia que os sofrimentos desta<br />

vida terrena, suportados com paz e serenidade, preparam uma<br />

eternidade onde tudo se compensa, se acerta, se arranja e a axiologia<br />

se satisfaz inteiramente. Ela possuía um senso do holocausto levado<br />

ao último grau, e fazia todas as coisas para adorar Nosso Senhor,<br />

compreendendo que sua atitude causava alegria ao Coração d’Ele.<br />

Dona Lucilia possuía um vocabulário<br />

elevado, mas doméstico,<br />

de uma senhora<br />

do seu tempo. Ela não sabia construir<br />

uma bonita frase, entretanto nunca<br />

cometia um erro de gramática.<br />

Muitas vezes eu prestava atenção.<br />

Mesmo certos defeitozinhos,<br />

por exemplo, repetir uma palavra na<br />

mesma frase, não saía. Era tudo proporcionado,<br />

direito, bem arranjado.<br />

E de uma doçura que era preciso ter<br />

conhecido para fazer uma ideia.<br />

A mãe perfeita<br />

Mamãe era muito educada, mas<br />

seu modo de ser não se explicava em<br />

termos de educação. Ela até utilizava<br />

as regras de educação, mas no<br />

modo de usá-las entrava uma bondade<br />

muito grande. Nela não havia<br />

uma só aplicação de regras de educação<br />

em que não entrasse sua alma.<br />

A atitude fria, meramente protocolar,<br />

ela não tinha. Nem sei se era capaz<br />

disso.<br />

Para mim, ela foi a mãe perfeita.<br />

Em geral, quando eu chegava da cidade,<br />

encontrava-a fazendo alguma<br />

coisinha, escrevendo uma carta no<br />

meu escritório, ou então no quarto<br />

dela arranjando as coisas numa gaveta<br />

com objetos que ela mexia e remexia<br />

de todo jeito.<br />

Quando a encontrava no meu escritório,<br />

via que ela passara muito<br />

tempo lá me esperando e me querendo<br />

bem, contente de estar num<br />

ambiente que, para o olhar dela, es-<br />

6


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

tava marcado por mim. Na realidade,<br />

era assinalado por ela, mas para<br />

seu olhar de mãe era marcado por<br />

mim, porque eu trabalhava muito no<br />

escritório e passava, portanto, bastante<br />

tempo lá.<br />

Assim, ao entrar no escritório eu<br />

o encontrava impregnado de bem-<br />

-querer e de esperar. Mas tenho a<br />

impressão de que se eu, Deus me livre,<br />

tivesse feito alguma coisa má para<br />

mamãe, ela me receberia do mesmo<br />

modo, e talvez com mais afeto<br />

ainda. Esse é o ponto que é preciso<br />

notar. Então, toda a doutrina de<br />

Nosso Senhor no Evangelho sobre o<br />

perdão dos pecados se entende com<br />

esse exemplo mais próximo de nós, e<br />

que ilustra.<br />

Há um corolário disso: ela não<br />

era inimiga de ninguém, primeiro<br />

ponto. Mas o segundo ponto é: não<br />

era indiferente a ninguém. Essa indiferença<br />

que se tem para com um<br />

anônimo, ela não possuía. Qualquer<br />

pessoa era um filho de Deus, um católico,<br />

e ela não queria que sofresse<br />

qualquer coisa ruim. Daí, por exemplo,<br />

embora quase não conhecesse<br />

os rapazes que vinham em casa, se<br />

estivessem lendo um texto qualquer,<br />

no hall, ela, passando ali perto, logo<br />

mandava um recado pela empregada<br />

para não lerem ali porque prejudicaria<br />

as vistas, devido à pouca luz<br />

no ambiente.<br />

Respeito não em pé<br />

de guerra, mas de<br />

coração aberto<br />

Da parte dela, todos os agrados<br />

e cuidados possíveis. Isso era contínuo.<br />

Entretanto – para se ver como<br />

era sua psicologia –, ela sabia que<br />

comigo algumas deliberações tomadas,<br />

não tem conversa, estão tomadas.<br />

Quando eu era mocinho tomei o<br />

hábito de ler deitado. Constava no<br />

tempo dela que ler deitado<br />

fazia mal para a vista.<br />

Não sei se é verdade. E<br />

mamãe, mais de uma vez,<br />

me chamou a atenção com<br />

sua característica afabilidade:<br />

“Filhão, você está lendo<br />

deitado, faz mal para a vista!” Mas eu<br />

reputava ser a posição ideal para ler,<br />

estudar. Portanto, tinha que ser!<br />

Eu, sem a mínima brutalidade,<br />

uma vez disse para ela: “Mãezinha,<br />

não insista, porque não vou mudar<br />

esse hábito!” Até ela morrer, nunca<br />

mais insistiu. Ela percebeu que era<br />

uma deliberação que tomei, e não tinha<br />

conversa. E, portanto, não valia<br />

a pena mexer. Resignação.<br />

Dona Lucilia tinha uma forma de<br />

sensibilidade como não conheci em<br />

ninguém. Vou dizer mais: fui muito<br />

beneficiado com isso, porque se eu<br />

não tivesse conhecido nela, teria dificuldade<br />

de compreender como é.<br />

Porque há certas coisas que um livro<br />

não mostra. Essa forma de sensibilidade,<br />

para quem não era um brutamontes,<br />

ou um animal, era tocante.<br />

Inclusive nisso: se ela estivesse<br />

sentada ao meu lado, já estou vendo...<br />

Naturalmente, ela considerava<br />

o adjetivo “animal” altamente depreciativo.<br />

Imediatamente ela bateria<br />

levemente na minha mão, mas<br />

eram três toques com muito afeto<br />

para comigo e muita compaixão para<br />

com o outro: “Não, coitado, afinal<br />

de contas nós o queremos bem, vamos<br />

perdoar!”<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Hall de entrada e escritório<br />

na residência de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

7


Dona Lucilia<br />

Contudo, em matéria de regra,<br />

dever é dever, então tem que cumprir.<br />

Essa é uma outra questão. Mamãe<br />

não era uma pessoa a quem se<br />

faltasse com o respeito. Ela sabia<br />

muito bem fazer-se respeitar. Entretanto,<br />

não era em pé de guerra, um<br />

respeito de lança em riste, mas um<br />

respeito de coração aberto.<br />

Isso se tornou tão raro que nem<br />

sei o que dizer!<br />

<strong>Dr</strong>. Antônio protege<br />

e defende em juízo<br />

um inimigo...<br />

Para falar do lado natural,<br />

Dona Lucilia contava<br />

episódios da vida de<br />

seu pai que faziam ver<br />

que havia algo de hereditário<br />

nisso.<br />

Naquele tempo, a<br />

campanha eleitoral<br />

de um político se fazia<br />

ao longo de um<br />

percurso de trem,<br />

porque não havia<br />

estrada de rodagem,<br />

mas o político<br />

descia numa estação<br />

ou noutra e conversava<br />

com quinze, vinte<br />

pessoas. Assim, fazia<br />

uma viagem política. No<br />

trajeto entre Pirassununga<br />

e São Paulo meu avô tinha,<br />

em várias cidades, muitas<br />

relações e influência eleitoral.<br />

Havia numa dessas cidades um<br />

opositor, chamado Morais, que disputava<br />

a influência com meu avô, e<br />

cuja senhora se dava muito bem com<br />

a minha avó. Ela dizia, sem rebuços,<br />

à minha avó: “Meu marido não tem<br />

juízo. Ele deveria ser amigo do <strong>Dr</strong>.<br />

Ribeiro 1 e segui-lo. Eu tenho em <strong>Dr</strong>.<br />

Ribeiro uma confiança que não possuo<br />

em meu marido.”<br />

Um dia meu avô estava viajando e<br />

o trem parou numa cidade, onde ele<br />

percebeu um reboliço e perguntou<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

o que era. Contaram-lhe que o Morais<br />

fora acusado de um crime naquela<br />

cidade, fugira para São Paulo,<br />

tinha sido preso pela polícia e levado<br />

de volta para o interior. Então, os<br />

inimigos do Morais, amigos do meu<br />

avô, estavam esperando a chegada<br />

do acusado, que seria julgado lá<br />

no dia seguinte, para recebê-lo com<br />

<strong>Dr</strong>. Antônio Ribeiro<br />

dos Santos<br />

vaias. Ele não tinha sequer quem lhe<br />

fizesse a defesa, pois os advogados<br />

tinham se esquivado de defendê-lo,<br />

por “respeito humano”, para não serem<br />

mal vistos na cidade. E o Morais<br />

estava no desespero.<br />

Meu avô disse-lhes: “Espanta-me<br />

que vocês, por cima de um inimigo<br />

vencido, estejam fazendo isso. Fi-<br />

quem sabendo que eu vou esperar o<br />

Morais, e lhes peço para não darem<br />

vaias, porque vou dar o braço a ele,<br />

e se vocês o vaiarem estarão vaiando<br />

a mim. Não permito que um inimigo<br />

meu, derrotado, seja esmagado dessa<br />

maneira.”<br />

Chegou o trem trazendo o Morais<br />

com os guardas. Meu avô se aproximou,<br />

cumprimentou-o muito cordialmente<br />

e disse:<br />

– Morais, você quer ir comigo à<br />

prisão? Se for no meu braço, eu<br />

lhe garanto que não haverá ninguém<br />

que o vaie.<br />

– Ribeiro – respondeu<br />

ele –, nesta situação em<br />

que estou, eu aceito.<br />

Foram os dois caminhando<br />

até a prisão,<br />

que ficava perto da<br />

estação de trem, em<br />

meio aos inimigos<br />

do Morais quietos,<br />

por causa da presença<br />

do meu avô.<br />

Chegando à cadeia,<br />

meu avô disse<br />

a ele:<br />

– Você está sem<br />

advogado. Nós não<br />

nos damos, mas se você<br />

quiser, eu interrompo<br />

minha viagem, pouso<br />

aqui e preparo sua defesa.<br />

O Morais aceitou.<br />

Meu avô passou a noite trabalhando.<br />

No dia seguinte, pelo<br />

que contava mamãe, tinha produzido<br />

uma defesa maravilhosa e arranjou<br />

um jeito de o Morais ser solto.<br />

Era compreensível por não se<br />

tratar de um bandido profissional,<br />

mas de um homem de condição que,<br />

de repente, por uma questão eleitoral,<br />

cometeu um crime.<br />

Esse jeito de meu avô tratar o<br />

Morais não impediu que este depois<br />

fizesse canalhadas contra ele, do que<br />

nós aqui estamos certos, porque a<br />

gratidão é muito rara.<br />

8


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

fazia isso evidentemente com a intenção<br />

de que eu seguisse o bom<br />

exemplo. Isso era patente. Aliás, ela<br />

fazia muito bem, estava em seu papel<br />

de mãe.<br />

Ela me contou o caso do Morais<br />

mais de uma vez, mas nunca manifestou<br />

um azedume contra ele. Mamãe<br />

explicava bem direito como o<br />

Morais era ruim, para eu compreender<br />

a generosidade do pai dela. Se o<br />

Morais estivesse vivo e precisasse de<br />

mamãe, ela ia fazer o que fosse necessário,<br />

àquela hora.<br />

Residência dos Ribeiro dos Santos, em São Paulo, onde<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> passou sua infância e juventude<br />

...e vai levar-lhe socorro<br />

na hora da morte<br />

Anos depois, meu avô mudou-<br />

-se para São Paulo, perdeu o contato<br />

com o Morais, nem pensou mais<br />

nisso. E era uma noite fria, de garoa,<br />

não havia ainda telefone em<br />

São Paulo, batem à porta da casa.<br />

Alguém trazia uma carta da mulher<br />

do Morais para meu avô, dizendo:<br />

“<strong>Dr</strong>. Ribeiro, nós estamos na situação<br />

mais atroz que pode haver. Meu<br />

marido está morrendo de tuberculose.<br />

Nós nos encontramos em péssimas<br />

condições: não temos víveres<br />

nem cama, estamos dormindo num<br />

colchão sobre o solo, e não possuímos<br />

sequer remédios. Mas será que<br />

posso contar ainda com a sua generosidade<br />

para dar um dinheiro para<br />

o Morais se nutrir, etc.?”<br />

Naquela hora da noite, meu avô<br />

mandou vir um tílburi, uma forma<br />

de carrinho que havia antigamente<br />

e, apesar da garoa, etc., ele foi à casa<br />

do Morais, já levando víveres, cobertores<br />

e outras coisas para o Morais<br />

e sua mulher. Chegando lá, perguntou<br />

qual era a receita do médico, foi<br />

a uma farmácia; o farmacêutico dormia,<br />

mas ele fez que abrissem a farmácia<br />

e comprou o remédio.<br />

Logo depois, o Morais morreu<br />

com a cabeça apoiada num travesseiro<br />

nos braços do meu avô, o qual, se<br />

não me engano, havia levado o travesseiro.<br />

E o Morais com uma doença<br />

contagiosa, que naquele tempo<br />

era quase incurável...<br />

Mamãe contava essa história,<br />

com muito entusiasmo pelo pai. E<br />

Uma senhora russa de<br />

alta condição social pede<br />

conselho a Dona Lucilia<br />

Houve também o fato que se deu<br />

num hotel, em Paris. Certo dia, uma<br />

senhora russa de alta condição social<br />

bateu à porta do quarto de mamãe<br />

e disse:<br />

– Madame, a senhora me permite?<br />

Eu percebo na senhora tanta<br />

bondade que, embora eu não possua<br />

nenhum direito de vir expandir<br />

minha dor com a senhora, venho<br />

pedir licença, tenha paciência comigo.<br />

Vou expor à senhora o sofrimento<br />

que eu tenho, e vou perguntar se<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

9


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

a senhora tem um conselho para me<br />

dar...<br />

Podem imaginar se o pedido foi<br />

atendido... Ela estava feita para<br />

atender!<br />

– Entre, por favor, sente-se, vamos<br />

conversar.<br />

A senhora contou que tinham detectado<br />

nela um câncer. Era uma doença<br />

incurável, e ela estava apavorada.<br />

Aqui entravam os jeitinhos de<br />

Dona Lucilia. Ela possuía certa experiência<br />

de doença, como tem uma<br />

dona de casa atenta a essas coisas<br />

para o cumprimento do dever, mas<br />

não tinha um senso clínico especial.<br />

Mas ela dava um jeitinho nas coisas.<br />

Ela ouviu tudo e disse:<br />

– Olhe, o médico deu à senhora<br />

certeza de que isso é câncer mesmo<br />

e que é incurável?<br />

– Sim, Madame, o médico deu.<br />

– Mas, olhe aqui, os médicos podem<br />

se enganar. Eu aconselho a senhora<br />

ir ao <strong>Dr</strong>. Fulano, que é um<br />

grande médico aqui em Paris e po-<br />

de fazer um exame melhor. E quero<br />

muito aconselhar a senhora a ir lá.<br />

E a senhora espere, tenha confiança<br />

em Deus que isso se arranja.<br />

A russa chorou, acabou secando<br />

as lágrimas e foi ao médico. E depois,<br />

no hotel, não se encontraram<br />

mais. Passado algum tempo, mamãe<br />

recebeu uma carta da russa dizendo<br />

que não sabia como agradecer.<br />

Tinha ido consultar o médico, e este<br />

lhe dera um remédio que a curou,<br />

afastando aquele pesadelo.<br />

A ação de mamãe é de natureza a<br />

recompor, e o afeto que ela tinha para<br />

com os outros era desinteressado.<br />

Ela queria o bem dos outros, porque<br />

é bom, em si, que os outros estejam<br />

bem. A ordem criada por Deus pede<br />

isso. E, portanto, é por amor de<br />

Deus que ela o fazia.<br />

Queria o bem das<br />

pessoas, sem esperar<br />

nenhuma retribuição<br />

Por exemplo, esse episodiozinho<br />

dos jovens lendo no hall pouco iluminado,<br />

ela se inquietou<br />

porque<br />

era uma tristeza,<br />

na concepção oculista<br />

dela, que estivessem<br />

comprometendo<br />

a própria vista.<br />

Isso, em si, é um<br />

mal por não ser de<br />

acordo com a ordem<br />

das coisas, mas também<br />

porque vão ficar<br />

sofrendo, com prejuízo,<br />

por perderem algo<br />

que Deus lhes deu,<br />

que é uma boa vista. E<br />

ela queria o bem deles,<br />

sem esperar nenhuma<br />

retribuição. Vê-se que<br />

no fundo estava a ideia<br />

do amor de Deus.<br />

Mamãe possuía uma<br />

noção de ordem muito<br />

clara, acompanhada da<br />

ideia de que nesta Terra essas coisas<br />

não têm recompensa, mas as grandes<br />

tristezas da vida preparam no<br />

Céu alegrias nobres e serenas, como<br />

eram nobres e serenas essas tristezas.<br />

A alegria no Céu ela não concebia<br />

de pandeiro na mão, como um eterno<br />

prolongamento de Hollywood.<br />

Mas era uma coisa diferente. Toda<br />

a paz, toda a serenidade que ela tinha<br />

aqui, no meio da tristeza, preparava<br />

uma eternidade onde tudo isso<br />

se compensa, se acerta, se arranja, e<br />

onde a axiologia se satisfaz nos seus<br />

últimos postulados. É a Fé católica,<br />

evidentemente.<br />

Entrava muito uma adoração pessoal<br />

a Nosso Senhor e, sabendo que<br />

o Coração d’Ele ficaria alegre com<br />

sua atitude, ela a fazia para adorá-<br />

-Lo. Todas essas razões constituem<br />

um senso harmônico, e um senso do<br />

holocausto levado ao último grau.<br />

Não vi ninguém levar o holocausto<br />

até o ponto onde ela levou.<br />

Eu já a conheci assim, e ela foi<br />

desse modo o tempo inteiro!<br />

10


Só aceitava cartas<br />

manuscritas<br />

Lembram-se daquela história de<br />

eu, quando criança, passar da minha<br />

cama para a dela e sentar-me<br />

em cima do seu peito para acordá-<br />

-la? Abria os olhos dela com as minhas<br />

mãos. Eu percebia que ela passava<br />

de um sono profundo imediatamente<br />

para uma atitude de perdão.<br />

Mal ela notava que era eu quem estava<br />

ali, sentava-se logo de uma vez.<br />

Não era uma atitude ambígua para<br />

ver se começava a dormir dali a pouco,<br />

não. Ela renunciava a retomar o<br />

sono. Abria um parêntese no sono<br />

e brincava comigo, dizia coisas, me<br />

agradava, etc.<br />

Eu me sentia tão invadido por<br />

aquela bondade que as angústias<br />

da noite fugiam. Lembrei-me disso<br />

quando, lendo a vida de Santa Teresinha<br />

do Menino Jesus, vi-a falar<br />

das tentações que tinha de noite. Então<br />

ela diz que não compreendia por<br />

que no Ofício as carmelitas rezavam:<br />

“Para que fujam os sonos maus, e os<br />

fantasmas noturnos...” E isto porque<br />

havia angústias noturnas.<br />

Tenho a impressão de que eu<br />

acordava angustiado. Sentia-me isolado,<br />

inseguro, mal, numa espécie<br />

de naufrágio. Além disso, era doente,<br />

fraco. Então, passava para a cama<br />

dela, mas sem a mínima hesitação.<br />

Eu sabia que ia ser bem recebido<br />

a qualquer hora da noite. E quando<br />

ela me fazia deitar de novo em<br />

minha cama, eu me lembro de que<br />

mais de uma vez me vinha a reflexão:<br />

“Propriamente eu me arranjo<br />

com ela. Com mamãe posso me<br />

arranjar até o fim, porque ela não<br />

me recusa nada!” Acho que isso me<br />

acalmava, então dormia bem.<br />

No dia seguinte, era mais confiança,<br />

mais querer bem, mais respeito,<br />

mais admiração...<br />

Aliás, é preciso dizer, eu a queria<br />

bem até onde me seja possível querer<br />

bem a uma pessoa! Naturalmente,<br />

Nosso Senhor, Nossa Senhora estão<br />

acima de toda comparação. Mas<br />

até onde podia querer bem uma pessoa,<br />

eu a queria totalmente bem.<br />

Mas, vejam bem, ela não tinha essas<br />

bondades relaxadas. As menores<br />

coisinhas, ela insistia comigo. Quando<br />

eu saía de São Paulo, sempre lhe<br />

escrevia cartas, e ela gostava, lia, relia<br />

e as guardava. Mas eu omitia de<br />

pôr data, porque toda a vida tive<br />

preguiça de escrever. E tinha um defeito<br />

qualquer na mão, por onde escrever<br />

me doía um pouco; além disso,<br />

letra muito feia. Tudo isso fazia<br />

com que eu não gostasse de escrever.<br />

E ela só queria carta escrita à<br />

mão, não aceitava batida à máquina.<br />

Dizia que carta à máquina era inexpressiva,<br />

e que ela não me sentia na<br />

carta à máquina. E tinha razão. Eu<br />

era datilógrafo rapidíssimo e em cinco<br />

minutos saía uma carta enorme,<br />

evidentemente transbordante de carinho.<br />

Mas ela não queria. Afirmava<br />

que tomava como não recebida.<br />

Eu cedi porque ela tinha o direito<br />

de querer isso de mim. Mas, por preguiça<br />

de escrever, não punha a data.<br />

Ela, na resposta, lembrava: “Filhão<br />

querido, quando me escreveres, não<br />

esqueças de pôr data em cima...” Eu<br />

na próxima vez esquecia, ela insistia<br />

de novo. Isso era feito com tanta doçura,<br />

que eu ficava literalmente encantado!<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

31/8/1985)<br />

1) <strong>Dr</strong>. Antônio Ribeiro dos Santos, avô<br />

materno de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

11


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Duas<br />

influências<br />

Na década de 1920, a sociedade, influenciada<br />

pela Igreja Católica, possuía polidez, distinção,<br />

elegância. Mas tudo isso foi perecendo pela<br />

influência da Revolução. Fala-se da invasão<br />

dos bárbaros que arruinaram o Império<br />

Romano do Ocidente. Porém, a entrada da<br />

Revolução escangalhou a civilização mais do<br />

que a invasão dos bárbaros.<br />

12<br />

Igreja do Sagrado Coração de Jesus,<br />

em São Paulo, no início do século XX


J. P. Ramos<br />

Igreja do Sagrado Coração de Jesus - São Paulo, Brasil<br />

Desde minha mais tenra infância,<br />

fui considerando<br />

a Igreja Católica Apostólica<br />

Romana com enlevo cujo fundo<br />

era a Fé. Como a ideia de uma instituição<br />

divina foi se formando aos<br />

meus olhos?<br />

Semelhante aos<br />

bancos de coral<br />

Eu via as pompas paroquianas.<br />

A Igreja do Sagrado Coração de Jesus<br />

não era propriamente uma Matriz,<br />

mas a capela de um colégio, situado<br />

na Paróquia de Santa Cecília.<br />

Igreja de dimensões modestas para<br />

nosso olhar de hoje em dia, porém<br />

grandes para a São Paulinho daquele<br />

tempo, onde eu entrava cheio de respeito<br />

porque me parecia um grande<br />

monumento. Sempre fui muito atraído<br />

por tudo quanto é monumental,<br />

imponente, grandioso. Eu me adentrava<br />

cheio de respeito pelo edifício<br />

e pelo que lá se passava. Graças<br />

a Deus tinha Fé e sabia ser ali a Igreja<br />

verdadeira do Deus verdadeiro, e<br />

era levado sobretudo pela adoração<br />

a Deus presente no Santíssimo Sacramento.<br />

Eu ia lá para assistir às cerimônias,<br />

à Missa, à bênção do Santíssimo,<br />

de vez em quando um casamento,<br />

mas tinha minha atenção voltada<br />

para um ponto especial, que só consegui<br />

explicitar mais tarde, mas foi<br />

criando densidade no meu espírito.<br />

Realmente, a explicitação não é<br />

senão o último afloramento de uma<br />

verdade. Assim como os bancos de<br />

coral são formados no oceano, a partir<br />

bem do fundo e vão subindo – em<br />

certo momento aquilo aflora e constitui<br />

uma ilha –, isso de modo semelhante<br />

também ocorre na mente humana.<br />

São impressões que vão se sedimentando<br />

e se colocando de modo<br />

harmônico umas junto às outras, e<br />

constituem no subconsciente a enorme<br />

torre “submarina” de uma convicção<br />

ou de uma ideia que vai surgir.<br />

Em certo momento dá-se a explicitação<br />

na qual a ideia acaba de se<br />

formar e nascer. Vou descrever um<br />

pouco como se deu comigo.<br />

Gestos, atitudes, modos<br />

de falar que exprimem<br />

a mentalidade<br />

Desde pequeno, eu era muito<br />

atraído pelas formas e sobretudo pelas<br />

cores. Agradava-me o colorido<br />

da pintura de um mosaico sobre o<br />

tabernáculo, representando o Padre<br />

Eterno, tendo ao peito uma pomba,<br />

símbolo do Espírito Santo, e o Santíssimo<br />

Sacramento, indicando a Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade.<br />

Era tudo muito adequado.<br />

O tabernáculo, que me parecia feito<br />

de ouro, era espesso, sólido, bem<br />

trabalhado. Os candelabros, os vitrais,<br />

as pinturas nas paredes – sóbrias,<br />

distintas, tranquilas –, as formas<br />

dos paramentos litúrgicos, os<br />

gestos e as palavras do celebrante –<br />

13


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

J. P. Ramos<br />

Igreja de Santa Cecília<br />

São Paulo, Brasil<br />

Basílica de Santo Antônio do<br />

Embaré - Santos, Brasil<br />

o latim, língua tão nobre que eu não<br />

entendia e ficava acima da intelecção<br />

comum, sendo própria para os doutos,<br />

homens de valor superior –, tudo<br />

isso somado ia me impregnando de<br />

mil impressões afins com a calma que<br />

é um dos aspectos da virtude da temperança.<br />

Aquilo me parecia harmonioso,<br />

sério, coerente, estável, elevado,<br />

com um certo reluzimento sobrenatural<br />

que eu não sabia definir.<br />

Havia muita relação harmônica<br />

também com a música do órgão, com<br />

a atitude dos fiéis enquanto o padre<br />

celebrava. E havia a coerência disso<br />

tudo com a ideia de que o sacerdote<br />

era um ser superior, escolhido dentre<br />

o povo e chamado por Deus para<br />

uma missão de uma intimidade especial<br />

com Ele, fazendo do padre uma<br />

pessoa ungida, separado dos outros<br />

homens, e colocado acima deles para<br />

o bem da humanidade. Uma ponte,<br />

ao pé da letra, entre Deus e os homens.<br />

O sacerdote é o pontífice, palavra<br />

que designa aquele que faz o papel<br />

de ponte. Depois, a ideia de que o<br />

padre não se casa e, portanto, não se<br />

mistura nem sequer com as alegrias<br />

santas do lar, criando em torno dele<br />

um isolamento meio misterioso e sacral<br />

que o reveste de uma respeitabilidade<br />

toda especial.<br />

Aos poucos fui notando como em<br />

todas as igrejas que conhecia, ou<br />

cuja fotografia via ao folhear revistas,<br />

eu tinha a mesma impressão, e<br />

pensava: “Como essas igrejas, tão diferentes<br />

em sua decoração, nas imagens<br />

nelas veneradas, nas pessoas<br />

que as frequentam, entretanto parecem<br />

uma mesma coisa! Seja a Igreja<br />

do Coração de Jesus como a do Imaculado<br />

Coração de Maria, a de Santa<br />

Cecília, em São Paulo, como a de<br />

Embaré, em Santos, em todas elas a<br />

Igreja é sempre a Igreja!”<br />

O que há na Santa Igreja que se<br />

afirma com tanta unidade em circunstâncias<br />

tão diversas?<br />

As cores e as formas que alguém<br />

escolha para exprimir seus sentimentos<br />

variam de pessoa a pessoa. Cada<br />

qual se exprime por uma certa forma,<br />

e comunica uma determinada nota ao<br />

ambiente onde está. O indivíduo tem<br />

certos gestos, atitudes, modos de falar<br />

que exprimem também a mentalidade<br />

dele. Entre todos esses sintomas<br />

de sua mentalidade e a sua própria<br />

mentalidade há coerência.<br />

Convicções, normas, virtudes<br />

Ora, se vou tomar a Liturgia católica,<br />

todos os seus gestos exprimem<br />

uma mesma mentalidade, como se<br />

fosse o gesticular de uma mesma<br />

pessoa. Por detrás desses gestos há<br />

uma mentalidade que vive de algum<br />

modo em todos os padres. É uma<br />

mentalidade que está no padre professor<br />

alemão do Colégio São Luís,<br />

mas também no missionário italiano<br />

J. P. Ramos<br />

Biiib (CC3.0)<br />

Igreja do Sagrado Coração de Jesus - São Paulo, Brasil<br />

Igreja do Imaculado Coração de Maria - São Paulo, Brasil<br />

14


do Coração de Jesus, no missionário<br />

espanhol do Coração de Maria, naquele<br />

outro sacerdote brasileiro nortista,<br />

gaúcho ou paulista. Há dentro<br />

deles a presença de um terceiro que<br />

vale mais do que eles.<br />

Conheço, privadamente, alguns<br />

deles. São respeitáveis, distintos,<br />

apresentáveis, eu os estimo. Mas não<br />

valem o que fazem no altar. Essa tal<br />

pessoa que, por assim dizer, habita<br />

neles vale muito mais do que eles.<br />

E não foi composta por eles; já existia<br />

na Igreja antes deles nascerem<br />

e, quando foram ordenados padres,<br />

eles se inseriram nisso. O que é isso?<br />

Vinha-me ao espírito essa pergunta,<br />

sem perplexidade. Era a indagação<br />

de quem sabia haver resposta e a procurava<br />

com a clareza de quem busca<br />

um tesouro. Não era, portanto, uma<br />

pergunta angustiada, mas sim enlevada,<br />

esperançada e maravilhada.<br />

Eu não possuía os conhecimentos<br />

de Catecismo e de Religião que adquiri<br />

com o curso do tempo. A minha<br />

resposta foi a seguinte: a Igreja<br />

é uma instituição. É algo que existe<br />

desde Jesus Cristo até hoje e que<br />

transmite um conjunto de convicções<br />

– as verdades da Fé –, um conjunto<br />

de normas – as normas da Moral<br />

–, um conjunto de virtudes, porque<br />

a Igreja não é apenas um complexo<br />

de livros, mas é um conjunto<br />

de virtudes efetivamente praticadas,<br />

as quais vêm se transmitindo de<br />

geração em geração e são a efetivação,<br />

na vida humana, daquilo que a<br />

Fé propõe, a Moral indica, e vão assim<br />

modelando os homens em todos<br />

os lugares, em todos os tempos. Daí<br />

o admirável da Igreja.<br />

Oh, que instituição divina!<br />

Essa instituição dominada pela<br />

mesma mentalidade, pelo mesmo<br />

espírito, elaborou tudo isso e o<br />

foi completando e aperfeiçoando ao<br />

longo dos séculos. Mas existe algo<br />

que nasceu dela também: a boa edu-<br />

<strong>Plinio</strong> em Águas da Prata<br />

cação na ordem temporal<br />

e civil.<br />

O cerimonial da sociedade<br />

civil, bem analisado,<br />

é o contrário<br />

da chulice moderna,<br />

do espírito revolucionário.<br />

É o reflexo, nos<br />

hábitos humanos, da<br />

mesma mentalidade<br />

da Igreja.<br />

Oh, que instituição<br />

divina! Há aí qualquer<br />

coisa completamente<br />

superior à crônica<br />

e inevitável estupidez<br />

humana. Se nela<br />

deixassem só homens,<br />

essa instituição<br />

se esfarelava. Há nela<br />

um princípio de unidade,<br />

uma chama sobrenatural<br />

que vale mais<br />

e mantém tudo isso. É<br />

um espírito, uma continuidade,<br />

uma chama<br />

de Deus.<br />

Eu olhava as imagens<br />

de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, longa e<br />

atentamente, e pensava:<br />

“Se tivesse talento,<br />

considerando a Igreja,<br />

talvez eu fosse capaz<br />

de imaginar a fisionomia<br />

do seu Fundador.<br />

Porque a Igreja está presente<br />

no seu Fundador como em sua própria<br />

Causa. Ora, olho a fisionomia de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo e digo: ‘É<br />

o Fundador da Igreja! Ele é a Causa,<br />

a Igreja é a Filha d’Ele!’” Donde uma<br />

longa atenção posta em Nosso Senhor<br />

para adorá-Lo como a Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade encarnada,<br />

mas também para fazer a comparação<br />

entre Ele e a Igreja.<br />

Minha conclusão: Como se parecem!<br />

A filha, como se assemelha com<br />

o Pai! Depois, considerar as regras de<br />

educação, dignidade, distinção, em<br />

vigor ainda no Ocidente, e dizer: “Esta<br />

ordem temporal também é filha<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo.” E eu<br />

adorava a Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

refletido também no cerimonial civil.<br />

E exclamava: “Que maravilha! Que<br />

coisa sublime!”<br />

Homem bom é aquele que<br />

abriu sua alma à Igreja<br />

Posteriormente, conhecendo um<br />

pouco mais a Doutrina Católica,<br />

aprendi que a Igreja é o Corpo Místico<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Que Nosso Senhor Jesus Cristo tem<br />

duas naturezas, humana e divina,<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

15


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Samuel M.<br />

Altar com o Santíssimo Sacramento - Igreja<br />

de Santa Cecília, São Paulo, Brasil<br />

cias. Eu examinava qual era o lado<br />

que no interior delas resistia: a Santa<br />

Igreja.<br />

Olhava para dentro de mim e via<br />

nascer a tentação. Não só a tentação<br />

vinda do demônio, mas a procedente<br />

de mim, errado e tendente ao mal,<br />

querendo com ênfase coisas não boas,<br />

e tendo que travar uma batalha<br />

em meu interior para conseguir andar<br />

bem. E me perguntava: “Quantos<br />

são os que, ao meu redor, lutaram<br />

como eu combato? Ora, não sou<br />

nem melhor nem pior do que eles. Se<br />

preciso lutar assim para andar bem,<br />

se eles não combatem não prestam.<br />

Porque se eu não lutasse, não prestaria<br />

também. Logo, <strong>Plinio</strong>, seja desconfiado<br />

e compreenda em que humanidade<br />

você está!”<br />

Conclusão: só é bom quem é verdadeiramente<br />

católico e traz na sua<br />

numa só Pessoa. E enquanto<br />

Homem-Deus<br />

pôde oferecer um sacrifício<br />

que expiasse,<br />

diante do Padre Eterno,<br />

pelos pecados dos<br />

homens, obtendo com<br />

isso o perdão do pecado<br />

original, das outras<br />

faltas pelos Sacramentos,<br />

e a abertura do caminho<br />

rumo ao Céu. E<br />

que daí vem a vida da<br />

graça sobre os homens.<br />

Essa graça é a participação<br />

da própria vida<br />

de Deus em nós.<br />

De onde a existência,<br />

na Igreja, de uma<br />

presença sobrenatural,<br />

que eu julgava entrever<br />

mais ou menos como o<br />

Sol através do vitral. A<br />

comparação é objetável;<br />

toda comparação<br />

tem alguma coisa de<br />

claudicante. Mas o fato<br />

concreto é que a mim<br />

me parecia ver reluzimentos<br />

na Igreja através<br />

dos quais, pela graça de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, discernia algo que,<br />

em última análise, remontava a Ele.<br />

Brotava, então, de minha alma o ato<br />

de adoração a Deus, Nosso Senhor.<br />

Em certo momento, comecei a<br />

dar-me conta de como, apesar de<br />

Ele ser infinitamente bom e misericordioso,<br />

o ser humano não é digno<br />

de se aproximar d’Ele. Essa ideia<br />

se cravou muito mais no meu espírito<br />

à medida que fui tomando contato<br />

com a Revolução. Os que não são<br />

péssimos, vejo que não o são porque<br />

abriram algo de sua alma à Igreja.<br />

Querem a definição de homem<br />

bom? É aquele que abriu sua alma à<br />

Igreja. A graça de Deus, penetrando<br />

nele, chamou-o para o bem, ele disse<br />

“sim” e começou a ser bom.<br />

Fui vendo o mal efervescer nas<br />

pessoas, os defeitos, as más tendênalma<br />

e na sua fisionomia<br />

o sinal da luta.<br />

Quem não é assim,<br />

quando tem virtude esta<br />

é frágil; e virtude<br />

frágil não é senão uma<br />

virtude em agonia.<br />

Deus detesta<br />

o pecado<br />

Aquele que não vigia<br />

a si próprio, vivendo<br />

com uma cara despreocupada,<br />

e que recusa<br />

tais pontos da<br />

Doutrina ou da Moral<br />

católica, como vou<br />

acreditar, por exemplo,<br />

na amizade dele<br />

por mim? Não contem<br />

comigo para isso,<br />

porque não é sério.<br />

Posso tomar ares amáveis,<br />

não manifestar a<br />

minha desconfiança.<br />

É uma obrigação velar<br />

a desconfiança, não<br />

se pode viver com a interrogação<br />

pendurada<br />

nos olhos. Deve-se ser amável, gentil.<br />

Mas, no fundo, se eu tenho que<br />

desconfiar de mim, e não valho mais<br />

nem menos do que ninguém, por minha<br />

natureza, então desconfio do<br />

outro que não vive tendo nas mãos<br />

as rédeas de sua alma.<br />

Estou com setenta e cinco anos.<br />

Quanta gente tem passado pelo caminho<br />

de minha vida! Nunca vi um desmentido<br />

a essa regra: não confiar em<br />

quem não for católico apostólico romano,<br />

praticante e militante, sobretudo<br />

dentro de si. Militante com os outros,<br />

ótimo! Mas eu quero saber se<br />

você fica indignado com os seus defeitos,<br />

se os combate; porque meter o<br />

relho nos outros quando necessário é<br />

bom, mas muito menos duro do que<br />

metê-lo nas próprias costas. Formar<br />

a ideia de que os outros não prestam<br />

corresponde à realidade. Contudo,<br />

16


muito mais meritório é compreender<br />

que nós mesmos não prestamos.<br />

Mas, ao mesmo tempo em que eu<br />

vinha notando isso, com a graça de<br />

Nossa Senhora, ia percebendo que<br />

Deus detestava o pecado. Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo era profundamente<br />

incompatível com o pecado; e com<br />

o pecado em mim também. E que o<br />

amor que Ele me tem é, debaixo de<br />

um certo ponto de vista, incondicional,<br />

e, de outro ponto de vista, condicional.<br />

Incondicional nesse sentido: Nosso<br />

Senhor me chama junto a Ele<br />

e me ama em todos os dias que me<br />

concede viver. Ainda que tenha a<br />

desgraça culposa de O ofender gravemente,<br />

Ele me chama: “<strong>Plinio</strong>,<br />

vem cá!” Na Igreja de Santa Cecília,<br />

em São Paulo, acima de um altar<br />

com o Santíssimo Sacramento, há<br />

uma frase tirada do Evangelho muito<br />

bonita: Magister adest et vocat te – O<br />

Mestre está aqui e te chama.<br />

Mas Jesus me chama<br />

para que eu me modifique.<br />

Se não me modificar,<br />

vou caminhando não<br />

na graça d’Ele e, em certo<br />

momento, Ele me joga<br />

no Inferno! Nosso Senhor<br />

me dará a graça até o último<br />

instante. Se eu recusar,<br />

terei a rejeição eterna<br />

d’Ele, então carregada de<br />

ódio! Pois bem, vou examinar<br />

esse ódio.<br />

Todo mundo analisa<br />

o amor. É fácil e gaudioso<br />

examinar o amor que<br />

Ele tem para conosco. É<br />

tão gaudioso que aprendemos<br />

depressa. Agora<br />

vamos analisar esse ódio.<br />

Quão pouca gente adora<br />

o ódio d’Ele ao mal!<br />

Quão pouca gente adora<br />

a divina intransigência<br />

com que Ele tem horror<br />

aos nossos pecados, ainda<br />

que pequenos e leves!<br />

Ora, eu adoro essa intransigência<br />

ainda quando O sinto detestando os<br />

meus defeitos. Eu O adoro dizendo:<br />

“Senhor, como sois perfeito a ponto<br />

de detestar em mim isso que é detestável!<br />

Senhor, adoro a vossa justa cólera!<br />

E não compreenderia a vossa<br />

santidade infinita se não tivesse também<br />

o matiz de vossa cólera.”<br />

Mas, como me aproximar? Eu me<br />

enlevei muito, adorei muito, compreendi<br />

como estava próximo; num<br />

segundo lance, comecei a entender<br />

como me encontrava longe. E agora,<br />

como fazer? “Salve Rainha, Mãe<br />

de Misericórdia, vida, doçura e esperança<br />

nossa, salve!”<br />

Ah, agora compreendo! Há Alguém<br />

que é Mãe e Advogada, com<br />

esta missão da parte d’Ele: tocar-me,<br />

comover-me, aproximar-me d’Ele<br />

e conseguir que Ele me perdoe. Alguém<br />

que une a minha imperfeição<br />

irremediável à celeste perfeição<br />

d’Ele! “Salve Rainha, Mãe de misericórdia!”<br />

Se não fosse isso, eu desesperaria.<br />

Mas Ela é a nossa esperança.<br />

Tradicção e modernidade<br />

Eu passava daí para a sociedade,<br />

para o mundo. Por exemplo, as festas<br />

e outras reuniões sociais das quais<br />

participei, num mundo bastante diferente<br />

do de hoje, muito mais protocolar,<br />

mais cerimonioso, mais elevado.<br />

Entrei e percebi imediatamente o<br />

contraste de duas influências.<br />

Uma era a influência das boas maneiras,<br />

da tradição, da distinção, da<br />

elevação, e outra era a influência da<br />

Revolução, na mesma sala, nas mesmas<br />

pessoas, nas mesmas atitudes. Então<br />

eu percebia – e poderia contar cem<br />

pequenos episódios – que tudo quanto<br />

era bom, elevado e cerimonioso provinha<br />

do passado. O que era porcaria<br />

– porque não há outro modo de dizer<br />

– provinha do presente. E<br />

quando era bem ruim mesmo,<br />

prenunciava o futuro.<br />

Inútil dizer que essas<br />

coisas procuravam envolver<br />

cada um que estava<br />

dentro do ambiente, e<br />

que a contradição marcava<br />

de tal maneira o ambiente,<br />

que exigia de cada<br />

pessoa uma certa cota<br />

de tradicionalidade e outra<br />

cota de modernidade.<br />

Dando a cota da modernidade,<br />

se abria a alma<br />

para uma espécie de vento<br />

impetuoso que ia para<br />

a frente. Oferecendo a<br />

cota da tradição, se descerrava<br />

a alma para uma<br />

espécie de calma, de temperança<br />

– parada e já sem<br />

vida – que ia morrendo a<br />

cada dia mais…<br />

Eu me perguntei: donde<br />

vem essa tradição e essa<br />

marcha para a frente?<br />

E a resposta foi rápida.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

17


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Guilherme Gaensly (CC 3.0)<br />

Teatro Municipal de São Paulo no início do século XX<br />

ram na lama embaixo, assim estava a<br />

sociedade civil. A Cristandade, a família<br />

das nações cristãs que a Igreja Católica<br />

modelara, e com isso a polidez,<br />

a distinção, a elegância da sociedade<br />

cristã de outrora, tudo ia desabando.<br />

A vida humana<br />

apresenta graus de<br />

importância desiguais<br />

Mas nesse período ainda se notava<br />

muito a tradição. Lembro-me<br />

das grandes soirées de gala no Teatro<br />

Municipal de São Paulo.<br />

Não sei se os mais jovens alcançam<br />

o significado da palavra “gala”.<br />

O que é um espetáculo, uma cerimônia<br />

de gala?<br />

Por detrás da noção de gala e<br />

de pompa existe o seguinte princípio:<br />

a vida humana apresenta graus<br />

de importância desiguais. E até nisso<br />

o mundo daquele tempo não era<br />

igualitário. Um ato praticado por<br />

uma razão tem um certo significado<br />

e uma certa importância. O mesmo<br />

No tempo em que os homens eram<br />

católicos, nasceram regras de educação<br />

maravilhosas; essa marcha errada,<br />

do desatino e do desvario, não<br />

existia ainda. E os homens iam, cada<br />

dia que passava, inventando novas<br />

fórmulas de polidez, de distinção. A<br />

sociedade toda brilhava em atitudes<br />

em que, cada vez mais, o amor às autoridades<br />

legitimamente constituídas,<br />

o amor ao próximo igual a nós e<br />

o amor ao inferior a nós iam se destilando,<br />

e maneiras requintadas que<br />

aperfeiçoavam o temperamento exprimiam<br />

e formavam a alma.<br />

Houve um certo momento em<br />

que entrou um demônio nisso, e um<br />

rodopio em sentido oposto passou<br />

a se instaurar. A analogia da Liturgia<br />

para a sociedade civil, as regras<br />

da etiqueta do passado, a sociedade<br />

temporal toda marcada pela Igreja,<br />

que estava no alto da montanha, nos<br />

anos 20, tudo isso foi perecendo.<br />

Como um castelo que está ruindo,<br />

cujas pedras vão rolando pela encosta<br />

da montanha, e algumas já afundaato<br />

realizado por outro motivo possui<br />

uma importância menor. Então,<br />

numa família onde há, por exemplo,<br />

uma matriarca, vamos dizer que é<br />

uma senhora que teve quinze filhos,<br />

e cada filho quinze filhos, e ela festeja<br />

– vou imaginar uma hipótese que<br />

muito raramente se verifica, mas pode<br />

acontecer e tem acontecido – cem<br />

anos de idade, o aniversário dela,<br />

se a família possui posses, deve ser<br />

muito festivo. É claro! Porque cem<br />

anos é um aniversário insigne!<br />

E nesse aniversário o que há de insigne<br />

na condição de matriarca brilha<br />

mais. Então, a festa deve ter pompa!<br />

A família põe para a refeição as melhores<br />

toalhas, os melhores serviços<br />

de mesa, os melhores talheres. A casa<br />

está adornada com as mais belas flores.<br />

Servem as comidas, as bebidas, as<br />

melhores que podem apresentar.<br />

Correlatamente, as pessoas se<br />

apresentam com os trajes melhores.<br />

E se tratam nesse dia com uma distinção<br />

e um mútuo respeito maiores<br />

do que nos dias comuns. É um ani-<br />

18


Arquivo <strong>Revista</strong><br />

versário de gala, comemorado com<br />

uma pompa jubilosa!<br />

Se a família é católica, essa pompa<br />

começa de manhã, na igreja, com<br />

uma Missa solene, à qual todos se<br />

apresentam com trajes de festa, em<br />

que a família toda comunga, e a matriarca<br />

é cercada com provas de respeito<br />

especiais. Para ela se mandou<br />

fazer, nesta ocasião, um vestido excelente.<br />

Será um dos vestidos mais<br />

ricos de sua vida com o qual, provavelmente,<br />

ela será enterrada.<br />

Mas ela se apresenta naquele dia<br />

adornada com todo o esplendor de<br />

sua condição. Todos a tratam com<br />

respeito muito mais marcado. Ela<br />

mostra muito mais a sua grandeza!<br />

É uma coisa bela, a gala! Não é<br />

sem graça como quem festejasse, por<br />

exemplo, o septuagésimo oitavo aniversário.<br />

A vida não precisa ter umas<br />

ocasiões assim?<br />

Bodas de prata ou de ouro de um<br />

casal, vinte e cinco ou cinquenta anos<br />

de casados. Gala, é claro! Nas ordens<br />

religiosas mais simples, como na franciscana,<br />

quando um religioso completava<br />

vinte e cinco anos – ou cinquenta,<br />

não me lembro bem – de profissão,<br />

ao menos na província brasileira<br />

e na alemã, se comemorava. Eu conheci<br />

frades alemães no Brasil que<br />

festejavam isso, ainda quando era um<br />

simples irmão leigo: Missa de gala,<br />

com pompa litúrgica. E se não me engano,<br />

já durante a Missa, ele era cercado<br />

com uma coroa de flores, a qual<br />

ele usava o dia inteiro dentro do convento!<br />

Eu acho uma beleza!<br />

Conheço o caso de uma família<br />

antiga na qual, remexendo velhos<br />

objetos, se encontrou o vestido<br />

de casamento, finíssimo e muito bonito,<br />

da avó já falecida. Ajustava-se<br />

tanto ao corpo da neta a qual estava<br />

noiva que, pondo-o ao sol, arranjando<br />

alguma coisinha, ela se casou com<br />

o vestido da avó. Isso conferiu a toda<br />

a cerimônia nupcial uma pompa especial!<br />

É natural. São coisas bonitas,<br />

razoáveis, verdadeiras.<br />

Espetáculo de gala no<br />

Teatro Municipal<br />

Havia também espetáculo de gala,<br />

quando vinha uma grande companhia<br />

artística representar no Teatro<br />

Municipal. Artistas de fama mundial<br />

vinham à São Paulinho do café, para<br />

se apresentarem. Por exemplo, as melhores<br />

artistas da Opéra de Paris, cuja<br />

língua se compreendia melhor aqui.<br />

Ou então, no campo da música,<br />

pianistas, violinistas, orquestras célebres.<br />

Eram espetáculos de gala. Resultado:<br />

todos os bilhetes de entrada<br />

eram vendidos muito mais caros. E<br />

obrigatório o uso de traje solene. Os<br />

homens com casacas, condecorações.<br />

As senhoras – no início dos anos 20 –<br />

trajando vestidos com cauda, usando<br />

leques, com plumas, joias coruscantes,<br />

etc. E era bonito estar dentro do<br />

saguão, vendo chegar as famílias.<br />

Os automóveis entravam naquelas<br />

arcadas laterais, o chauffeur descia,<br />

abria a porta, tirava o boné, o marido<br />

ia correndo, dava a volta no carro,<br />

ajudava a mulher a descer. Ela o<br />

fazia com ar amável, entrava, encontrava<br />

conhecidos parados ali, todos<br />

vestidos solenemente, que se cumprimentavam.<br />

Muito esplendor. Entrando<br />

na sala, as frisas, os camarotes, todos<br />

dourados, aveludados, iam se enchendo<br />

de pessoas que se sentavam.<br />

A família não cabia inteira numa<br />

frisa, nem ficava bem um rapaz ocupar<br />

uma frisa. Então, os mais novos<br />

sentavam-se na plateia. Mas como<br />

eram parentes dos outros assistentes,<br />

antes de começar o espetáculo se<br />

cumprimentavam à distância. As senhoras<br />

punham binóculos lindos, preciosos,<br />

para reconhecer melhor. Era a<br />

pompa, a gala. Isso acabou completamente.<br />

Mas de tal maneira que estou<br />

contando isso como se fosse uma história<br />

anterior ao dilúvio!<br />

Como tudo mudou, e mudou para<br />

pior! Foi o mundo da Revolução que<br />

entrou. O neopaganismo foi eliminando<br />

completamente os restos de polidez<br />

da Cristandade, os quais eram filhos<br />

da Igreja e da Liturgia. A tradição<br />

foi morrendo e a modernidade foi pisando<br />

em tudo, como se uma horda de<br />

vândalos entrasse por toda parte. Fala-<br />

-se da invasão dos bárbaros que escangalharam<br />

com o Império Romano do<br />

Ocidente. Foi triste. Porém, a entrada<br />

da Revolução escangalhou mais do<br />

que a invasão dos bárbaros. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

7/1/1984)<br />

19


Hagiografia<br />

Perfeito guerreiro<br />

e devoto de<br />

Nossa Senhora<br />

Zairon (CC3.0)<br />

A Igreja, vista na sua totalidade, possui<br />

uma harmonia de aspectos opostos,<br />

mas afins, que mostra toda a sua beleza.<br />

Santo Estêvão foi um exemplo dessa<br />

harmonia: incomparável em toda forma<br />

de misericórdia, mas por isso mesmo<br />

um homem forte, combativo, que lutou<br />

intrepidamente pelo bem.<br />

Estátua<br />

equestre de<br />

Santo Estêvão<br />

Budapeste,<br />

Hungria<br />

As fichas a serem comentadas<br />

hoje versam sobre a vida<br />

de Santo Estêvão, Rei<br />

da Hungria, retiradas do livro Vida<br />

dos Santos, de Rohrbacher 1 .<br />

Particular devoto da<br />

Santíssima Virgem<br />

Santo Estêvão é o grande monarca<br />

a cujo Batismo se deveu a conversão<br />

da nação húngara, até então pagã.<br />

O que Clóvis foi para a França,<br />

ele significou para a Hungria, com<br />

a imensa diferença de que Clóvis<br />

se converteu, mas ficou muito longe<br />

de ser um santo. Enquanto, pelo<br />

contrário, Estêvão foi um verdadeiro<br />

santo. Também os descendentes<br />

imediatos de Clóvis não foram santos,<br />

mas Santo Estêvão teve um filho<br />

canonizado: Santo Américo, sucessor<br />

de seu pai no trono real.<br />

Esta primeira ficha nos traz um<br />

dado especial sobre Santo Estêvão:<br />

sua devoção a Nossa Senhora.<br />

Santo Estêvão sempre manifestou<br />

predileção particular pela Santíssima<br />

Virgem. Por meio de um voto especial,<br />

colocou sua pessoa e seu reino sob a<br />

proteção de Nossa Senhora. Quanto<br />

aos húngaros, ao referirem-se à Mãe<br />

de Deus, não Lhe davam o nome de<br />

Maria, ou qualquer outro; diziam apenas<br />

“A Senhora” ou “Nossa Senhora”.<br />

À simples menção dessas palavras, inclinavam<br />

a cabeça e dobravam o joelho.<br />

20


O santo rei mandou<br />

construir em Alba<br />

Real magnífica<br />

igreja em honra da<br />

Rainha do Céu. Os<br />

muros do coro eram<br />

ornados de esculturas,<br />

o piso de mármore,<br />

possuía várias<br />

mesas de altar de<br />

ouro puro, enriquecidas<br />

de pedrarias, e<br />

um tabernáculo para<br />

a Eucaristia maravilhosamente<br />

trabalhado.<br />

O tesouro<br />

estava repleto de vasos<br />

de ouro e prata,<br />

cristal e de ricos paramentos.<br />

Santo Estêvão sempre desejou, pedindo<br />

mesmo em suas orações, que<br />

sua morte ocorresse no dia 15 de agosto,<br />

Assunção da Santíssima Virgem.<br />

Sua vontade foi satisfeita. Antes de expirar,<br />

erguendo as mãos e os olhos, exclamou:<br />

“Rainha do Céu, Co-Redentora<br />

do mundo, é ao vosso patrocínio<br />

que entrego a Santa Igreja, com os bispos<br />

e o clero, o reino com os grandes<br />

e o povo”; e, tendo recebido a Extrema-Unção<br />

e o Santo Viático, rendeu<br />

a sua alma.<br />

Guerreiro e juiz<br />

A segunda ficha apanha outro aspecto<br />

da personalidade dele: Santo<br />

Estêvão, guerreiro e juiz.<br />

À piedade e ao zelo de um apóstolo,<br />

Santo Estêvão da Hungria juntava<br />

a coragem de um guerreiro e herói.<br />

Nas instruções a seu filho, Santo<br />

Américo, ele próprio observa que passara<br />

quase toda a sua vida na guerra,<br />

repelindo invasões de nações estrangeiras.<br />

Logo que subiu ao trono, ainda<br />

duque – ele foi duque até o momento<br />

de se converter, quando o Papa o elevou<br />

à dignidade de Rei da Hungria –,<br />

procurou manter a paz. Porém, dirigidos<br />

pelos fidalgos, seus súditos, ainda<br />

O Papa São Silvestre coroa Santo Estêvão - Basílica São João de Latrão, Roma, Itália<br />

pagãos, revoltaram-se. Pilhavam cidades<br />

e campos, matavam seus oficiais e<br />

insultavam o próprio Duque.<br />

O Duque Estêvão reuniu suas tropas<br />

e, levando nos seus estandartes a<br />

imagem de São Martinho e São Jorge,<br />

marchou contra os rebeldes que sitiavam<br />

Veszprém. Tendo-os derrotado,<br />

consagrou suas terras a Deus.<br />

Em 1002, tendo seu tio Gyula, Duque<br />

da Transilvânia, atacado a Hungria<br />

por várias vezes, Estêvão marchou<br />

contra ele, fê-lo prisioneiro, assim<br />

como sua família, e juntou seus<br />

Estados à monarquia húngara. Venceu<br />

e matou com as suas próprias<br />

mãos Kean, duque dos búlgaros. Com<br />

o mesmo êxito repeliu os bessos, povo<br />

vizinho da Bulgária. Mas sua justiça<br />

igualava seu valor. Atraídos por<br />

sua fama, sessenta bessos da nobreza<br />

deixaram sua terra, levando com eles<br />

famílias e riquezas, e vieram pedir ao<br />

santo Rei permissão para se estabelecerem<br />

no Reino da Hungria.<br />

Os fâmulos de um comandante de<br />

fronteira, levados pela cobiça dos despojos,<br />

atacaram-nos de improviso matando<br />

alguns, ferindo outros, e arrebatando<br />

os seus bens. Santo Estêvão deu<br />

ordem para que o comandante e suas<br />

tropas se apresentassem na corte.<br />

Ao defrontá-los, recriminou-lhes a desumanidade<br />

e comunicou-lhes que faria<br />

o mesmo com eles. Imediatamente<br />

mandou-os enforcar dois a dois em todas<br />

as avenidas do reino, a fim de que<br />

todos soubessem que a Panônia estava<br />

aberta aos estrangeiros e que nela encontrariam<br />

hospitalidade e proteção.<br />

A Civilização Católica é<br />

a fonte de todo bem e de<br />

toda grandeza temporal<br />

Aqui encontramos essas verdadeiras<br />

maravilhas da Igreja Católica sobre<br />

as quais jamais será suficiente insistir.<br />

Quando nos deparamos com<br />

uma acusação à Igreja, devemos procurar<br />

sua unilateralidade. Porque,<br />

em geral, tratando-se de uma acusação<br />

histórica, entra uma mentira; sendo<br />

uma acusação doutrinária, há uma<br />

unilateralidade. Os adversários da<br />

Igreja não querem tomar em consideração<br />

que ela, vista na sua totalidade,<br />

tem uma harmonia de aspectos opostos,<br />

mas afins, que faz toda a beleza<br />

da Esposa de Cristo. Aliás, também<br />

no universo, os contrários harmônicos<br />

constituem a beleza da ordem<br />

criada por Deus. Não se pode possuir<br />

verdadeiramente o espírito da Igreja<br />

Gabriel K.<br />

21


Hagiografia<br />

Tony Bowden (CC3.0)<br />

se não se têm os olhos voltados<br />

para esta verdade e o espírito<br />

enlevado com ela.<br />

Essas duas fichas nos<br />

dão a fisionomia completa<br />

de Santo Estêvão e, portanto,<br />

da Igreja que o canonizou.<br />

Porque quando a Esposa<br />

de Cristo canoniza alguém,<br />

declara que esse Santo<br />

teve perfeitamente o espírito<br />

dela. De maneira que cada<br />

Santo, a seu modo, é uma<br />

imagem do espírito da Igreja.<br />

Assim, se raciocinarmos com<br />

uma lógica elementar, com<br />

um bom senso primário, encontramos<br />

a plena justificação<br />

de ambos os aspectos na<br />

vida de Santo Estêvão.<br />

Primeiro, o aspecto varonil<br />

e enérgico. Santo Estêvão<br />

está às voltas com inimigos irredutíveis<br />

que o odeiam por<br />

não ser pagão, querem depô-<br />

-lo porque ele deseja trazer a<br />

luz do Evangelho para seu povo,<br />

e por isso se revoltam contra ele,<br />

dentro do reino, ou marcham de fora<br />

para o interior de seus domínios<br />

para exterminá-lo e eliminar a porção<br />

da nação húngara que já aderiu à<br />

verdadeira Fé. Esses homens são esses<br />

invasores, revoltosos, os inimigos<br />

da salvação eterna do povo húngaro.<br />

Ao mesmo tempo, são inimigos da<br />

soberania do povo húngaro, do direito<br />

que tem esse povo de escolher a<br />

verdadeira Fé, de atender ao apelo<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo, dessa<br />

liberdade que o homem tem quando<br />

obedece a Deus.<br />

Portanto, Santo Estêvão via seu povo<br />

atacado nos seus bens espirituais<br />

mais altos, porque a Fé é a fonte de todos<br />

esses bens, e agredido na sua própria<br />

soberania, no que ela tem de mais<br />

importante, porque o distintivo da soberania<br />

de uma nação é a mesma coisa<br />

do que o selo da liberdade de um<br />

homem: consiste em, sem embaraços,<br />

poder obedecer e servir a Deus. Es-<br />

O pequeno Príncipe Américo sendo<br />

instruído pelo Bispo São Gerardo Sagredo<br />

Székesfehérvár (Alba Regia), Hungria<br />

sa é a própria definição de liberdade.<br />

Negar ao povo húngaro essa liberdade<br />

era recusar-lhe a sua soberania no que<br />

ela tem de mais essencial. Significava,<br />

ademais, comprometer o progresso do<br />

povo húngaro, porque a Civilização<br />

Católica, correspondendo inteiramente<br />

aos princípios da ordem natural e<br />

dando ao homem as forças sobrenaturais<br />

para obedecer aos princípios dessa<br />

ordem, é a fonte de todo bem e de<br />

toda grandeza temporal. De maneira<br />

que querer afastar a Fé católica de<br />

um país é desejar mantê-lo num paganismo<br />

abjeto e impedir seu verdadeiro<br />

progresso. Logo, tudo quanto consistia<br />

para a Hungria uma razão de ser<br />

e de viver estava empenhado nessa luta<br />

de Santo Estêvão.<br />

O centro da resistência<br />

de um país era o rei<br />

Naquele tempo a alma e o centro<br />

da resistência do país era o rei.<br />

O modo de desmantelar essa<br />

resistência era matar o monarca.<br />

Se um rei pagão pretendia<br />

eliminar Santo Estevão,<br />

não era belo, simbólico e<br />

nobre que o Rei santo o eliminasse<br />

com sua própria espada<br />

e suas próprias mãos? E<br />

que assim a infâmia cometida<br />

por um sangue régio fosse<br />

reparada pela fidelidade de<br />

outro sangue régio? Isso não<br />

é conveniente e bonito? Santo<br />

Estêvão cumpriu seus deveres<br />

de soberano, defendendo<br />

assim seu povo e a Santa<br />

Igreja Católica.<br />

Por que ele agiu de um<br />

modo tão enérgico com os indivíduos<br />

que mataram e roubaram<br />

essas pessoas que iam<br />

se asilar na Hungria? Elas<br />

pertenciam à própria nação<br />

do rei que ele tinha morto,<br />

ou que ia matar. Eram pessoas<br />

de categoria que, descontentes<br />

com o rei pagão, querendo<br />

se converter, passavam com<br />

seus rebanhos e suas economias para<br />

o território da Hungria. Elas chegam<br />

à fronteira – naturalmente desejavam<br />

se batizar – e pedem: “Nós<br />

queremos ingressar no reino de Estêvão<br />

e no reino de Cristo. Pedimos<br />

licença para entrar impunemente<br />

nós e os nossos.” Consulta-se o Rei,<br />

o qual diz: “Podem entrar, eu dou<br />

garantias para as pessoas e para os<br />

bens.” Abrem a fronteira e elas entram<br />

com toda a confiança, deixando<br />

as armas de lado – naquele tempo<br />

todo homem, sobretudo o chefe de<br />

família, era um guerreiro. Mas aparecem<br />

uns bandidos infames que assaltam,<br />

matam algumas pessoas para<br />

serem donos dos haveres. São assassínios<br />

vulgares, agravados pelo<br />

aspecto da traição. Então, Santo Estêvão,<br />

que punia com pena de morte<br />

um assassinato comum, não haveria<br />

de mandar castigar esses homens?<br />

Alguém dirá: “Mas eles foram mui-<br />

22


tos.” Prova a mais de que se devia<br />

punir com pena de morte. Porque, se<br />

são muitos os criminosos, isso prova<br />

que o povo não está muito distante<br />

da prática desses crimes. E então<br />

é necessário punir para que o crime<br />

não se repita. O fato de serem muitos<br />

é uma prova a mais de que precisava<br />

punir.<br />

Praticou a justiça<br />

e a misericórdia ao<br />

mesmo tempo<br />

Ele cumpriu o dever inerente à<br />

majestade régia. O rei tem os Poderes<br />

Legislativo, Executivo e Judiciário.<br />

É o supremo juiz do país. E os<br />

antigos, aliás muito acertadamente,<br />

consideravam o Poder Judiciário<br />

mais alto do que o Legislativo. Porque<br />

as Leis fundamentais são feitas<br />

por Deus. E o rei é o juiz que julga<br />

de acordo com as Leis fundamentais.<br />

O monarca não possui a plenitude<br />

do Poder Legislativo, enquanto<br />

o Poder Judiciário ele tem no sentido<br />

de que aplica a Lei de Deus. Então,<br />

Santo Estêvão agiu perfeitamente<br />

bem.<br />

Esse homem podia, portanto,<br />

quando rogava para Nossa Senhora,<br />

dirigir-se a Ela com o espírito completamente<br />

tranquilo, com a consciência<br />

inteiramente distendida. E<br />

verdadeiramente chamá-La de Mãe<br />

de Misericórdia, implorar a compaixão<br />

d’Ela porque ele usou de misericórdia.<br />

Ao castigar essa gente, Santo<br />

Estêvão foi misericordioso para<br />

com os que eram ou poderiam vir a<br />

ser vítimas desses homens maus, se<br />

não fossem intimidados; quer dizer,<br />

ele praticou a justiça e a misericórdia<br />

ao mesmo tempo. Então, nós deduzimos<br />

daí que Santo Estêvão agiu<br />

perfeitamente bem.<br />

Temos, então, a imagem do perfeito<br />

guerreiro e devoto de Maria.<br />

Incomparável no perdoar, no estimar,<br />

em toda forma de misericórdia,<br />

mas por isso mesmo homem forte,<br />

valente, que passou o tempo inteiro<br />

na luta.<br />

Fisionomia do combatente<br />

católico por excelência<br />

Lembro-me de que certa vez, conversando<br />

com um senhor de uma lógica<br />

muito estrita, muito clara, com<br />

base em premissas extremamente<br />

pobres e limitadas, abrangendo sempre<br />

uma parte infinitesimal do horizonte,<br />

ele me dizia:<br />

“Eu não gosto do livro Imitação<br />

de Cristo. Li e não compreendo, porque<br />

se eu fosse fazer constantemente<br />

o que está ali – voltar o outro lado<br />

do rosto, não tomar em consideração<br />

o mal que os outros nos fazem,<br />

perdoar sempre, etc. –, eu me deixaria<br />

roubar, saquear! É a conclusão<br />

lógica da Imitação de Cristo.”<br />

Pensei com os meus botões: Para<br />

esse homem não há explicação possível.<br />

Ou lhe faço um simpósio, que de<br />

nenhum modo ele quer ouvir, ou ele<br />

não pode entender isso, porque se<br />

colocou previamente fora das perspectivas<br />

necessárias para essa compreensão.<br />

É preciso exatamente compreender<br />

que a Imitação de Cristo foi escrita<br />

para um ambiente no qual esses<br />

princípios que apresentei eram<br />

claríssimos, e havia até a tendência<br />

a exagerar o lado belicoso. Então,<br />

a Imitação de Cristo constituía uma<br />

nota dentro de um concerto, ou seja,<br />

a insistência em uma das vias que,<br />

conjugada com a outra, dá a perfeição<br />

da Moral Católica.<br />

Sem dúvida, sempre que<br />

possível é preferível<br />

perdoar,<br />

praticar a mansidão<br />

e não a violência. Mas<br />

não sendo possível é preciso<br />

arregaçar as mangas e lutar!<br />

Nisso se vê nossa fidelidade<br />

aos princípios da Igreja Católica,<br />

pelo auxílio e bênção de<br />

Nossa Senhora. Por vezes, as pessoas<br />

não compreendem o desassombro<br />

com que enfrentamos o que imaginam<br />

ser a opinião pública. De outro<br />

lado, não entendem também como<br />

somos corteses, gentis, amáveis e<br />

nunca tomamos a iniciativa do ataque.<br />

Entretanto, quando atacados,<br />

damos uma surra! É a fisionomia do<br />

combatente católico por excelência:<br />

enquanto não me agridem, não agrido.<br />

Porém, ai de quem me agredir,<br />

porque saio “com um quente e dois<br />

fervendo!” 2 É uma pequena aplicação<br />

do que acabamos de ver na vida<br />

de Santo Estêvão.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

10/9/1971)<br />

1) Cf. ROHRBACHER, René François.<br />

Vida dos Santos. São Paulo: Editora<br />

das Américas, 1959. vol.<br />

XV, p. 423, 428-430 e 442.<br />

2) Antiga expressão popular<br />

portuguesa, significando<br />

aqui uma reação imediata e<br />

indignada.<br />

Vicente T.<br />

Santo Estêvão<br />

Budapeste, Hungria<br />

23


C<br />

alendário<br />

1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />

bispo e Doutor da Igreja (†1787).<br />

Beato Pedro Fabro, presbítero<br />

(†1546). Foi o primeiro entre os membros<br />

da Companhia de Jesus a empreender<br />

árduos trabalhos pastorais em<br />

diversas regiões da Europa. Morreu<br />

na cidade de Roma, quando se dirigia<br />

ao Concílio Ecumênico de Trento.<br />

2. São Pedro Julião Eymard, presbítero<br />

e fundador (†1868).<br />

Beata Joana, leiga († s. XII). Mãe<br />

de São Domingos, realizou grandes<br />

obras de misericórdia em favor dos<br />

pobres e necessitados.<br />

3. Beato Agostinho Kazotic, bispo<br />

(†1323). Esteve inicialmente à frente<br />

da Igreja de Zagreb e, mais tarde,<br />

devido à hostilidade do Rei da Dalmácia,<br />

assumiu a sede de Lucera, na<br />

Apúlia, onde desenvolveu uma grande<br />

obra em favor dos pobres.<br />

4. Beato Federico Janssoone, presbítero<br />

(†1916). Pertencia à Ordem<br />

dos Frades Menores, em Montreal,<br />

na província de Quebec, no Canadá.<br />

Promoveu as peregrinações à Terra<br />

Santa para o incremento da Fé.<br />

dos Santos – ––––––<br />

5. Beato Pedro Miguel Noël, presbítero<br />

e mártir (†1794). Durante a<br />

Revolução Francesa, por ser sacerdote,<br />

foi encerrado de modo inumano<br />

em um navio de prisioneiros, onde<br />

acabou sua vida contagiado de peste.<br />

6. Transfiguração do Senhor.<br />

7. Beato Edmundo Bojanowski,<br />

presbítero (†1871). Trabalhou com<br />

afinco na formação dos pobres e analfabetos,<br />

na localidade de Gorka Duchovna,<br />

na Polônia. Fundou a Congregação<br />

das Escravas da Imaculada<br />

Conceição da Mãe de Deus.<br />

8. São Domingos de Gusmão, presbítero<br />

e fundador (†1221).<br />

Santa Maria da Cruz (Maria Elena)<br />

MacKillop, virgem (†1909). Fundou<br />

a Congregação das Irmãs de São<br />

José e do Sagrado Coração, dirigindo-a<br />

em meio a múltiplas fadigas e vexações.<br />

9. Santa Mariana (Bárbara) Cope,<br />

virgem (†1918). Religiosa exemplar e<br />

de um coração extraordinário, dedicou<br />

trinta anos de sua vida ao serviço<br />

dos leprosos de Molokai, entre os<br />

quais faleceu aos 80 anos de idade.<br />

10. São Lourenço, diácono e mártir<br />

(†258).<br />

São Blano, bispo († s. VI). Faleceu<br />

em Dumblane, na Escócia.<br />

11. Beato Maurício Tornay, presbítero<br />

e mártir (†1949). Anunciou com<br />

empenho o Evangelho na China e no<br />

Tibete, e recebeu a morte por mãos<br />

dos inimigos do nome cristão.<br />

12. Santa Joana Francisca Frémiot<br />

de Chantal, religiosa (†1641).<br />

13. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />

São Benildo (Pedro) Romançon, religioso<br />

(†1862). Pertencia ao Instituto<br />

dos Irmãos das Escolas Cristãs e dedicou<br />

sua vida à formação dos jovens.<br />

Beata Gertrudis, virgem (†1297).<br />

Abadessa da Ordem Premostratense.<br />

Quando criança, foi oferecida a Deus<br />

por sua mãe, Santa Isabel, Rainha da<br />

Hungria.<br />

14. São Maximiliano Maria Kolbe,<br />

presbítero e mártir (†1941).<br />

Santos Domingo Ibáñez de Erquicia,<br />

presbítero e Francisco Shoyemon,<br />

noviço, mártires (†1633). Dominicanos<br />

mortos por ódio à Fé, em Nagasaki,<br />

Japão.<br />

15. Beato Cláudio (Ricardo) Granzotto,<br />

religioso (†1947). Uniu o exercício<br />

de sua profissão religiosa à arte de<br />

escultor, alcançando em poucos anos a<br />

perfeição na imitação de Cristo.<br />

Flávio Lourenço<br />

16. Santo Estêvão, Rei da Hungria<br />

(†1038). Ver página 20.<br />

Santa Rosa Fan Hui, virgem e mártir<br />

(†1900). Na perseguição dos boxers,<br />

na China, sofreu inúmeras torturas,<br />

sendo lançada a um rio quando<br />

ainda agonizava.<br />

Martírio de São Lourenço<br />

17. Santa Joana Delanoue, virgem<br />

(†1736). Apoiada totalmente na Divina<br />

Providência, acolheu em sua casa<br />

órfãs, anciãs, mulheres enfermas e<br />

24


––––––––––––––––– * Agosto * ––––<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

de má vida. Posteriormente, estabeleceu,<br />

com suas companheiras, os fundamentos<br />

do Instituto das Irmãs de<br />

Santa Ana da Divina Providência.<br />

18. Beato Alberto Hurtado Cruchaga,<br />

presbítero (†1952). Fundou<br />

uma obra para amparar os pobres que<br />

carecem de moradia, principalmente<br />

crianças.<br />

Beata Maria Beltrame<br />

Quattrocchi<br />

19. São Luís, bispo (†1297). Sobrinho<br />

do Rei São Luís, da França, preferiu<br />

a pobreza evangélica às honras<br />

do mundo. Ainda jovem, foi elevado à<br />

sede de Tolouse.<br />

20. Solenidade da Assunção de<br />

Maria (Transferida do dia 15).<br />

São Bernardo, abade e Doutor da<br />

Igreja (†1153). Ver página 2.<br />

Santa Maria de Matias, virgem<br />

(†1866). Fundou o Instituto das Irmãs<br />

da Adoração do Preciosíssimo Sangue<br />

do Senhor.<br />

21. São Pio X, Papa (†1914).<br />

Beata Vitória Rasoamanarivo, viúva<br />

(†1894). Socorreu com toda solicitude<br />

os cristãos e defendeu a Igreja<br />

diante dos magistrados públicos da<br />

ilha de Madagascar.<br />

22. Nossa Senhora Rainha.<br />

Beato Simão Lukac, bispo e mártir<br />

(†1964). Durante um governo hostil à<br />

Fé, exerceu clandestinamente seu ministério<br />

em favor da grei de católicos<br />

de rito bizantino, sendo por isso assassinado,<br />

na Ucrânia.<br />

23. Santa Rosa de Lima, virgem<br />

(†1617). Desde criança entregou-se à<br />

penitência e à oração. Ardendo em zelo<br />

pela salvação dos pecadores e dos<br />

indígenas, submetia-se de bom grado<br />

a toda sorte de sofrimentos para conquistá-los<br />

para Cristo. Foi proclamada<br />

padroeira da América Latina.<br />

24. São Bartolomeu, Apóstolo († s. I).<br />

Beata Maria da Encarnação (Maria<br />

Vicenta) Rosal, virgem (†1886).<br />

Fundou as Irmãs de Belém, com a finalidade<br />

de reivindicar a dignidade<br />

da mulher e formar as meninas na Fé<br />

cristã.<br />

25. São Gregório, abade (†775). Sendo<br />

ainda adolescente, seguiu fielmente<br />

a São Bonifácio quando este tentava a<br />

conversão de Hesse e Turíngia.<br />

26. Beata Maria Beltrame Quattrocchi,<br />

leiga (†1965). Mãe de família,<br />

que viveu exemplarmente sua vida matrimonial<br />

e demonstrou sua comunhão<br />

de Fé e amor para com o próximo.<br />

27. XXI Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Mônica, viúva (†387).<br />

Beata Maria do Pilar Izquierdo Albero,<br />

virgem (†1945). Muito provada<br />

pela pobreza e por graves enfermidades,<br />

serviu a Deus demonstrando uma<br />

caridade singular para com os pobres,<br />

em favor dos quais fundou a Obra<br />

Missionária de Jesus e Maria.<br />

28. Santo Agostinho, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†430).<br />

Martírio de São João Batista<br />

Beato Junípero (Miguel) Serra,<br />

presbítero (†1784). Catequizou as tribos<br />

ainda pagãs da Califórnia e defendeu<br />

com valentia os direitos dos<br />

pobres.<br />

29. Martírio de São João Batista († s. I).<br />

Beato Edmundo Inácio Rice, fundador<br />

(†1844). Entregou-se, com entusiasmo<br />

e perseverança, à formação<br />

de crianças e jovens, fundando para<br />

isso a Congregação dos Irmãos Cristãos<br />

e a dos Irmãos da Apresentação.<br />

30. Beato Alfredo Ildefonso Schuster,<br />

bispo (†1954). Sendo abade de<br />

São Paulo de Roma, foi elevado à sede<br />

episcopal de Milão, onde, com grande<br />

diligência e admirável sabedoria, desempenhou<br />

sua função de pastor.<br />

31. Santo Aidano, bispo e abade<br />

(†651). Varão de suma mansidão, piedade<br />

e reto governo, que estabeleceu<br />

em Northumberland (Inglaterra) sua<br />

sede episcopal e um mosteiro para<br />

dedicar-se com eficácia à evangelização<br />

daquele Reino.<br />

Samuel Holanda<br />

25


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Samuel Holanda<br />

O maior prazer<br />

Vale do Reno,<br />

Alemanha<br />

da vida<br />

A Revolução Industrial vai produzindo o despojamento<br />

gradual de tudo aquilo em que a pessoa pôs o prazer de<br />

sua vida, acarretando uma resignação dentro da qual ela<br />

fica cuidando de levar uma vidinha arranjada. A alegria<br />

desapareceu. A verdadeira e legítima fruição da vida parte do<br />

momento em que o indivíduo aprendeu o deleite da calma.<br />

Qual é a verdadeira calma? A<br />

católica, verdadeiramente.<br />

No que ela consiste?<br />

Há duas calmas distintas para o<br />

homem: a da Terra e a do Céu. Na<br />

Terra, o que se entende habitualmente<br />

por calma?<br />

Calma não é mera distensão<br />

Vou tratar da calma boa para poder<br />

fazer a comparação com a ruim.<br />

Creio que não se pode formular bem<br />

a descrição da calma ruim sem ter<br />

passado pela boa. Há tantas deformações<br />

do sentido da palavra calma,<br />

mesmo quando se quer elogiá-la,<br />

que todo mundo perdeu a noção da<br />

verdadeira calma. Seria preciso uma<br />

verdadeira explicação.<br />

A noção corrente de calma é<br />

que ela se identifica com distensão.<br />

Quando o sujeito se encontra distendido,<br />

está calmo. Esta noção é verdadeira?<br />

Ela traz consigo uma certa<br />

ideia insuficiente, incompleta, porque<br />

mesmo quando o indivíduo se<br />

encontrasse no auge de sua vitalidade,<br />

poderia estar perfeitamente calmo,<br />

e esta é a verdadeira calma.<br />

Imagine que um de nós fosse convidado,<br />

por exemplo, a fazer um passeio<br />

de barco no Reno, subindo o rio<br />

até as suas origens na Suíça adentro,<br />

rumo ao primeiro ponto onde ele<br />

nasce. A pessoa vê aquelas encostas<br />

de montanhas verdejantes, onde estão<br />

plantadas uvas em quantidade,<br />

de vez em quando uma aldeia bonitinha,<br />

um castelinho, às vezes um castelão,<br />

uma cidade, e aquilo vai passando<br />

lentamente.<br />

Durante todo o tempo, a pessoa<br />

observa coisas que podem despertar<br />

nela muitas vitalidades: ficar alegre,<br />

satisfeita, dar risada, tirar uma fotografia,<br />

fazer qualquer coisa. Ela com<br />

o isso perde a calma? Talvez alguns<br />

percam, mas passar por todas essas<br />

impressões legitimamente não implica<br />

em perder a calma.<br />

A calma não é a mera distensão,<br />

o relaxamento. É um estado de alma<br />

pelo qual o temperamento reage de<br />

26


um modo inteiramente proporcionado<br />

àquilo que se tem diante de si.<br />

Esse é o sentido da calma.<br />

Não perder o governo<br />

de si mesmo<br />

A ira, bem como o temor de si, são<br />

sentimentos opostos à calma, porque<br />

é um outro elemento que entra aí. A<br />

calma deve ter por objeto colocar o<br />

homem em presença de coisas que<br />

sejam agradáveis ou, pelo menos,<br />

não desagradáveis, e não introduzam<br />

no homem o temor, porque este,<br />

de si, convida muito facilmente a<br />

perder a calma, é até implicitamente<br />

contrário à calma. Quando o indivíduo<br />

tem um susto, maior ou menor,<br />

devido a algum mal que o ameaça,<br />

próximo ou remoto, provável ou menos<br />

provável, mas de uma coisa que<br />

para ele constitui uma ameaça, aquilo<br />

lhe faz perder a calma.<br />

Portanto, a atitude perfeitamente<br />

proporcionada do homem, diante<br />

de uma grave ameaça, o faz perder a<br />

calma. Mas notem que a linguagem<br />

corrente comporta uma aplicação<br />

contraditória disso que estou dizendo.<br />

Por exemplo, afirmando: “Durante<br />

a maior luta, “X”<br />

não perdeu a calma.”<br />

Então, nesse caso, é<br />

calma ou não?<br />

Tem dois sentidos a<br />

palavra calma. Um é<br />

a calma que não é colocada,<br />

exatamente,<br />

nem diante de objeto<br />

de ira, nem de pavor,<br />

medo, apreensão. Outro<br />

é o modo de ter ira,<br />

apreensão, pelo qual<br />

o indivíduo não perca<br />

em nada o governo de<br />

si. Isto também pode<br />

chamar-se calma, mas<br />

é em um outro sentido<br />

da palavra. Como a<br />

calma é um inteiro governo<br />

de si, o fato de o<br />

indivíduo se encontrar numa situação<br />

que está pondo-o em tensão, se<br />

conserva o governo de si, tem calma.<br />

Esta luta já não é a calma no sentido<br />

pleno da palavra, mas a conservação<br />

da calma dentro da alma. É<br />

até o que a calma tem de mais nobre,<br />

a inteira proporção com a verdade.<br />

Mas já não é propriamente a calma;<br />

é calma por uma acomodação, uma<br />

adequação de linguagem.<br />

Um mártir que<br />

entra na arena<br />

Quer dizer, trata-se da calma de<br />

uma pessoa posta numa situação onde<br />

é quase inevitável que a sensibilidade<br />

efervesça. Mas é uma efervescência<br />

reduzida, pelo império<br />

da vontade, estritamente a seus primeiros<br />

borbulhares. Além disso não<br />

passa. Em outros termos, há alguma<br />

coisa que, conforme a circunstância,<br />

o indivíduo não consegue vencer,<br />

porque não é natural que vença.<br />

Mas, sem embargo, ele conserva<br />

a vitória sobre aquilo em todo o limite<br />

em que é humano mantê-la.<br />

Vou dar um exemplo comum, mas<br />

muito ilustrativo: um mártir que entra<br />

na arena e vê, por exemplo, um<br />

leão ali que vai comê-lo. Salvo uma<br />

ação superior da graça, o instinto de<br />

conservação se apresenta imediatamente<br />

e produz um certo efeito, que<br />

o indivíduo pode nobremente impedir<br />

que tome conta de si, mas um primeiro<br />

trauma de perturbação é inevitável<br />

que ele sinta. O que o indivíduo<br />

pode é manter aquele princípio<br />

de perturbação nos limites necessários,<br />

impossíveis de transpor. Então,<br />

ele tem a calma por excelência que é<br />

esta: até diante do leão está calmo.<br />

No caso do mártir, existe a calma<br />

no esplendor de seu ser, mas não<br />

no seu bem-estar. Essa seria a ideia.<br />

Aqui entra algo que é muito importante:<br />

a calma supõe, portanto, que<br />

o indivíduo tenha a atração ou a repulsa<br />

da coisa exatamente no limite<br />

que a razão indica, e que está na natureza<br />

das coisas. Inclusive que está<br />

na natureza do temperamento dele,<br />

porque certas peculiaridades individuais<br />

se introduzem nisso, legitimamente.<br />

Entra algo de pessoal, não é uma<br />

coisa impessoal. Mas esse elemento<br />

pessoal, no homem normal, é sempre<br />

tal que não impõe que o indiví-<br />

IABI (CC3.0)<br />

27


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

duo saia da normalidade. Esse é o<br />

ponto. É a temperança.<br />

O prazer da castidade<br />

A temperança pode ser, por<br />

exemplo, o seguinte: Você está inteiramente<br />

calmo e pensando numa<br />

coisa que quando a tiver lhe poderá<br />

dar muito prazer. Aquilo não lhe tirou<br />

a inteira serenidade, mas deixará<br />

de ser temperança se você pensar<br />

naquilo mais tempo do que deve.<br />

Porque já entrou alguma coisa ali<br />

que ainda não chega a abalar os nervos,<br />

mas que é uma concupiscência<br />

imoderada. O que se poderia sustentar<br />

é que em todo caso de concupiscência<br />

imoderada, por mais remoto<br />

que seja o objeto, há um pouquinho<br />

de vibração que sai da linha.<br />

A isso seria possível objetar: Então,<br />

nessa perspectiva, calma e temperança<br />

se equivaleriam. A calma seria um<br />

sentir interno da própria temperança.<br />

Uma pessoa poderia cometer um<br />

pecado de modo frio, porém não calmo.<br />

A verdadeira calma é inerente à<br />

virtude, nesse sentido estrito da palavra.<br />

Daí decorre que a verdadeira e legítima<br />

fruição da vida parte do momento<br />

em que o indivíduo aprendeu<br />

o deleite da calma. Quando ele compreende<br />

que a calma é o maior prazer<br />

da vida, ele entendeu o que é a vida.<br />

Se ele não compreendeu que a calma<br />

é o maior deleite da existência, não<br />

compreendeu nada, não sabe viver.<br />

Então, eu imagino, por exemplo,<br />

um Doge de Veneza embarcando no<br />

Bucentauro para as núpcias de Veneza<br />

com o mar. O doge é festejadíssimo,<br />

etc.; se não teve calma em fruir aquilo,<br />

ele de fato não fruiu. Porque veio<br />

acompanhado de uma ansiedade que<br />

é o contrário, traz consigo um elemento<br />

de dor. E onde há um elemento de<br />

dor não é tão perfeita a alegria, como<br />

onde a dor não está presente.<br />

É, por exemplo, um lado por onde<br />

se entende bem no que a castida-<br />

de é, a seu modo, o prazer supremo<br />

da vida. Parece uma tese a mais ousada<br />

possível querer imaginar na castidade<br />

o prazer. Mas é o maior prazer<br />

da vida. O homem casto possui aquela<br />

desnecessidade de outrem para encontrar<br />

o seu próprio equilíbrio. E<br />

tem aquele bastar-se a si próprio, sem<br />

torcidas, sem dependências, sem anseios<br />

nem sonhos, por onde lhe é frequente,<br />

na vida de todos os dias, estar<br />

em horas em que pode isolar-se e<br />

fruir do seu próprio ser, independente<br />

de quem quer que seja.<br />

Um agradável terraço<br />

que dava para o jardim<br />

GCI (CC3.0)<br />

A maior parte das pessoas são educadas<br />

no oposto, mas brutalmente no<br />

oposto. Creio que se eu devesse enumerar<br />

as graças recebidas<br />

outrora, esta<br />

era uma que precisaria<br />

incluir com<br />

especial gratidão.<br />

Desde muito cedo,<br />

tinha verdadeira<br />

delicia em sentir<br />

a independência<br />

da minha virtude,<br />

da minha castidade<br />

e, portanto, quanto<br />

era agradável viver<br />

não precisando de<br />

outrem, tendo em<br />

torno de mim quanto<br />

me bastava e o<br />

deleite equilibrado<br />

de todas as coisas,<br />

suficientemente para<br />

ser verdadeiramente<br />

eu.<br />

Eu não comentava<br />

esse assunto<br />

com ninguém porque<br />

sabia que isso<br />

seria abominado,<br />

mas não evitava<br />

que eu gozasse.<br />

Creio que era uma<br />

graça. Eu fruía isso<br />

intensamente. Lembro-me de<br />

que em nossa casa havia um jardim e<br />

uma área desocupada muito grande<br />

em volta. Era um jardim característico<br />

daquele bairro, bastante bem cuidado,<br />

com muitos tico-ticos e outros<br />

passarinhos. O terraço da casa que<br />

dava para o jardim era agradável.<br />

Cada um tem seu temperamento.<br />

Eu levava alguma boa coisa para<br />

comer no terraço – para mim, comer<br />

sempre fez parte do bem-estar.<br />

E comia ali ao ar livre, sentindo, por<br />

exemplo, a minha pureza e comparando<br />

com a agitação: a Fulana telefonou,<br />

ela vem, vai acontecer algo, ela está<br />

gostando de outrem e não de mim…<br />

Mas que calma, que calma eu tinha!<br />

Não tem nada dessa porcaria. Que<br />

ela goste de quem quiser, eu estou cuidando<br />

de mim, a coisa é outra, não é<br />

28


essa droga. Ou então: Fulano ganhou<br />

um automóvel. Eu vivo bem sem automóvel.<br />

Eu sou eu; vivo de mim. Mas<br />

a fruição que eu tinha aí, e substituía o<br />

automóvel e a Fulana, era calma.<br />

O saltitar dos tico-ticos<br />

O homem precisa também cogitar,<br />

que é uma coisa eminente da alma.<br />

E o jardim era muito propício<br />

não só para cogitar, mas fluir os prazeres<br />

pequenos e inocentes da vida.<br />

Por exemplo, lá havia bastantes tico-ticos.<br />

Eu ouvia falar dos tico-ticos<br />

como passarinhos muito comuns,<br />

que não valem nada, como gato de<br />

goteira. E os tico-ticos chegavam até<br />

o parapeito do terraço, que era largo,<br />

e saltitavam em cima. Vendo-os,<br />

eu de repente tive a minha atenção<br />

muito atraída para a saltitância alegre<br />

deles, os pulinhos que davam. Eu<br />

não gostava de pular, mas o tico-tico<br />

tinha um peso para carregar muito<br />

menor do que o meu.<br />

Depois comecei a prestar atenção<br />

nas penas do tico-tico: achei o jogo<br />

de cores muito bonitinho. Então<br />

passei a notar que os movimentos<br />

dele eram também graciosos, e que o<br />

tico-tico é todo muito proporcionadinho,<br />

uma verdadeira joia.<br />

Vinha-me uma alegria em observar<br />

isso e um comprazimento em<br />

ver naquela natureza, que ainda era<br />

da São Paulinho, o tico-tico saltitando.<br />

Mas, ao mesmo tempo, uma coisa<br />

empanou a minha cogitação: como<br />

eram estúpidos os outros que julgavam<br />

os tico-ticos tão banais. Nunca tinham<br />

tido a independência, nem critério,<br />

para perceber<br />

Retorno do<br />

Bucentauro ao cais<br />

pelo Palácio Ducal<br />

como o tico-tico pode<br />

ser interessante,<br />

bonitinho.<br />

E daí me afluíram<br />

ao espírito todas<br />

as minhas diferenças<br />

em relação<br />

aos colegas, e as lutas<br />

com eles, o que<br />

era penoso e irritante.<br />

Eu pensei: “Não<br />

é a hora de cogitar<br />

nisto. Pensarei<br />

no tico-tico.” Então<br />

mandei embora<br />

aquela reflexão e<br />

continuei a comer e<br />

olhar para o tico-tico.<br />

É a calma.<br />

Aqui se poria,<br />

muito de passagem,<br />

uma questão:<br />

É possível uma reconquista<br />

da calma?<br />

Em geral, a<br />

perda da calma e,<br />

portanto, da temperança,<br />

se deu a<br />

partir da ideia de<br />

que, forçando a<br />

fruição a ir a um paroxismo por meio<br />

do exagero do que ela apresenta, a<br />

pessoa gozaria mais incessantemente.<br />

Esse foi o erro, a mentira de satanás.<br />

Nós tínhamos essa calma e, se<br />

não forçássemos nada, possuiríamos<br />

tudo. Forçando, nos arrebentamos.<br />

Essa calma pode conservar-se diante<br />

de uma coisa sumamente apetecível?<br />

A rigor pode, mas é preciso notar<br />

que as coisas muito apetecíveis levam<br />

o homem a não querer depois as menos<br />

apetecíveis. É necessário, portanto,<br />

ter um certo cuidado. Para isso, eu<br />

também, graças a Nossa Senhora, sentia<br />

muita facilidade, porque havia um<br />

lado no meu temperamento por onde<br />

o sumamente apetecível me cansava<br />

quando durava pouco. E eu tinha vontade<br />

de voltar ao normal.<br />

Sonhando ser ovacionado<br />

no Viaduto do Chá<br />

Por vezes, a criança, antes de se<br />

dar conta do mal da coisa, tem sonhos<br />

de olhos abertos. Lembro-me de sonhar<br />

– é ridículo, mas sonhei com isso!<br />

– como seria se na minha vida obtivesse<br />

uma grande vitória e houvesse<br />

uma multidão me ovacionando.<br />

Para mim o ideal punha-se assim:<br />

Havia um bonito hotel em São<br />

Paulo de onde se divisava o Viaduto<br />

do Chá. Então imaginava o viaduto<br />

cheio de uma multidão e eu, em<br />

uma arcada grande que dava para<br />

um salão interno, aparecendo para<br />

receber a ovação da multidão. Mas<br />

eu comendo uma refeição estupenda<br />

sozinho e sabendo que o pessoal<br />

chegaria para me ovacionar em certo<br />

momento. Via-me, então, saindo<br />

um instante, recebendo aquela ovação<br />

e depois me esquivando para poder<br />

continuar o meu jantar sozinho.<br />

E a parte do jantar depois da aclamação<br />

era mais agradável do que a<br />

ovação ou o prelibar a ovação que<br />

viria. Porque a coisa passou, a ovação<br />

veio, ganhei aquilo, e volto para<br />

a minha calma.<br />

29


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

É preciso dizer que na ovação não<br />

entrava delírio nenhum. Tratava-se<br />

de vê-la como uma constatação de<br />

que eu tinha merecido aquilo por<br />

uma coisa muitíssimo grande que<br />

fizera, e fora reconhecida pelos<br />

outros. Havia aquela permuta<br />

de afeto com um reconhecimento<br />

que me engrandecia<br />

aos olhos de Deus. Entrava<br />

um pouco o amor-próprio<br />

também, mas não era<br />

nenhum delírio. O que estava<br />

presente mais do que tudo<br />

era o prazer gastronômico.<br />

Conto isso para explicar um<br />

pouquinho o que é morar na<br />

calma e como alguém deveria<br />

construir o seu plano de felicidade<br />

terrena.<br />

Evidentemente, esse sonho era<br />

perigoso e eu o abandonei porque<br />

percebi que poderia facilmente degenerar<br />

para outra coisa, que era o<br />

inebriar-me com as multidões; e levaria<br />

à vaidade. Mas Nossa Senhora<br />

me ajudou e não cheguei até lá.<br />

Secundo Pia (CC3.0)<br />

Necessidade do sofrimento<br />

Deve-se dizer o seguinte: esse estado<br />

de alma ligado à inocência não<br />

se mantém sem que em outras circunstâncias<br />

da vida a pessoa sofra, e<br />

sofra muito. Quer dizer, essa calma<br />

não se sustenta se, ao mesmo tempo,<br />

a propósito de outros temas ou<br />

aspectos, a pessoa não sofra. Esse é<br />

um ponto capital.<br />

Se o ser humano não gasta sua vitalidade<br />

no esforço, na luta, no trabalho<br />

e, portanto, em coisas que o<br />

fazem sofrer, ele borbulha demais<br />

e extrapola. É mais ou menos como<br />

uma pessoa que não pode ficar sem<br />

se mover, porque aquela vitalidade<br />

represada produz efeitos danosos no<br />

organismo; assim também não pode<br />

permanecer nesse estado sem passar<br />

por dores enormes, suportando dentro<br />

da calma, num outro sentido da<br />

palavra, isto é, em meio a ameaças<br />

Santo Sudário<br />

ou a dores atuais aguentar deliberadamente,<br />

pondo-se dentro do sofrimento<br />

e cuidando de viver.<br />

Por fim, resta a pergunta: Essa<br />

calma pode ser recuperada? A resposta<br />

é simples: Com a oração sim,<br />

sem a oração não. Porém, ela deve<br />

ser profundamente desejada, considerada<br />

como uma meta da vida espiritual.<br />

Eu não sei a que grandeza<br />

chegaria o gênero humano se tantas<br />

capacidades de tantas pessoas não<br />

se perdessem em torcidas inúteis, e<br />

os recursos pessoais fossem todos<br />

aproveitados dentro dessa calma.<br />

Seria uma coisa fantástica!<br />

Figura comunicativa da calma<br />

por excelência: Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo! Aquilo é a calma, em todos<br />

os sentidos e gradações possíveis<br />

da palavra. Ele o tempo inteiro teve<br />

calma, não deixou de sentir calma. E<br />

a figura d’Ele – inclusive o sudário<br />

de Turim – comunica calma.<br />

A calma de Nossa Senhora<br />

Toda solenidade implica em calma.<br />

É, aliás, uma das muitas razões<br />

pelas quais a Revolução Industrial se<br />

revoltou contra as solenidades, as cerimônias,<br />

o trato cerimonioso, respeitoso.<br />

O respeito é, dentro da calma,<br />

a constatação de um valor maior e<br />

dá origem à homenagem.<br />

Para encerrar esta parte em<br />

que tratamos da verdadeira<br />

calma, eu recomendaria que<br />

todos pedissem para si a Nossa<br />

Senhora uma calma como<br />

Ela e Nosso Senhor tiveram.<br />

Ao receber a Anunciação<br />

do Anjo, a Santíssima Virgem<br />

ficou perplexa, deu seu assentimento<br />

e, ato contínuo, concebeu<br />

do Espírito Santo. Se estava próxima<br />

a hora do almoço, Ela se levantou<br />

e principiou a fazer a refeição<br />

com toda a calma. E, ao mesmo<br />

tempo em que, por exemplo, preparava<br />

ovos para São José e para Si mesma,<br />

começava a entrar em uma oração<br />

altíssima com o Verbo de Deus,<br />

presente dentro d’Ela. Essa é a calma!<br />

A alma perturbada é aquela que<br />

perdeu o leme e não sabe para onde<br />

voltar-se, e é sacudida por ventos<br />

desordenados que ela não consegue<br />

dirigir. Nosso Senhor, no Horto das<br />

Oliveiras, não teve perturbação.<br />

A falsa calma<br />

Passemos agora a tratar da falsa<br />

calma para fazer a distinção entre<br />

esta e a verdadeira calma.<br />

Essa calma que estou descrevendo<br />

é cheia de frescor e de mobilidade<br />

para aceitar a variedade, sem ficar<br />

atarraxada numa determinada coisa,<br />

com exclusão de outras. Uma espécie<br />

de flexibilidade de toda a alma, por<br />

onde, diante de tudo o que acontece,<br />

vai aceitando ou recusando e se modelando<br />

na alegria e no bem-estar da<br />

vida. Essa é a calma boa.<br />

A calma ruim tende para qualquer<br />

coisa de melancólico, de amuado, de<br />

fechado e de desconfiado, numa atitude<br />

perante a vida como quem diz:<br />

“Vida, tu és tal que perante ti eu só<br />

30


tenho uma posição, é a da defesa. Fecho<br />

as portas e as janelas, não quero<br />

que tu entres na minha impassibilidade,<br />

porque tudo teu me faz sofrer. E<br />

é só por esta forma que eu consigo viver.<br />

Portanto não sinto nada, não sofro<br />

nada, não me alegro com nada,<br />

para não entrar no teu jogo.”<br />

É uma recusa da vida e, se quiserem,<br />

uma recusa de Deus. Recuso<br />

tudo! Isso é errado.<br />

Alguém me diria: “Não tenho<br />

meios de evitar o excesso dos apegos,<br />

a não ser assim.” E eu responderia:<br />

“Meu filho, então conserve isto que<br />

é menos difícil de combater do que o<br />

excesso dos apegos, mas vamos ir diminuindo<br />

este excesso dos apegos,<br />

até poder desembaraçar-se de dentro<br />

desta cadeia para o fluxo normal da<br />

vida!” A pessoa está num sarcófago.<br />

Não me parece a forma mais fácil<br />

de combater os apegos. É apenas para<br />

subtrair uma má solução, gradualmente,<br />

com sabedoria, para conseguir<br />

uma solução boa. Se for eliminar<br />

de uma vez, pode cair num excesso.<br />

Fazer aos poucos, mas tem que fazer.<br />

Acontece uma coisa boa, aceita-se;<br />

vem algo ruim, fica-se desagradado;<br />

não acontece nada, não se fica amuado,<br />

mas se mantém<br />

flexível a tudo.<br />

É como aquele movimento<br />

do barco<br />

sobre as ondas que<br />

vão de um lado para<br />

outro dentro de um<br />

porto, que em francês<br />

se diz ballottage.<br />

Devemos nos deixar<br />

ballotter pela vida.<br />

Essa posição fria<br />

diante da vida equivale<br />

à ideia gnóstica<br />

de que a Criação<br />

foi um mal. Aliás, os<br />

adeptos dessa teoria<br />

não têm a ideia da<br />

Criação e sim a de<br />

que o homem é uma<br />

partícula que se desprendeu<br />

de uma divindade, mas não<br />

deveria ter-se desprendido. Isso foi<br />

um desastre nesse deus e, uma vez<br />

que eu nasci desse desastre, o que devo<br />

querer agora é manter-me em uma<br />

espécie de nirvana ou de nada, até o<br />

momento feliz em que eu possa me<br />

reincorporar na divindade.<br />

Devemos lutar por uma<br />

outra ordem de coisas<br />

Se considerarmos a alma católica,<br />

enquanto for consoante com a Santa<br />

Igreja, ela nunca será assim. Entretanto<br />

se não for fiel, ela poderá passar<br />

para a posição protestante à maneira<br />

dos britânicos ou dos prussianos, mas<br />

somente como uma manobra para diminuir<br />

em si as dores e não ter que<br />

enfrentá-las. Portanto, uma manobra<br />

parecida com a do budismo, mas sem<br />

a mentalidade dos budistas nem o inteiro<br />

desejo de deixar a vida e de se<br />

reduzir à imobilidade completa. Pelo<br />

contrário, poderá ter o desejo feroz<br />

de ganhar dinheiro e de construir,<br />

por exemplo, o Império Britânico, de<br />

se vestir bem, e manter essa posição<br />

diante de grandes infortúnios: não os<br />

sentir e conservar-se impassível. Lord<br />

Anunciação - Basílica Santa Maria del popolo, Roma, Itália<br />

Nelson, por exemplo, ao falecer, procuraria<br />

morrer assim. Já o Churchill<br />

não. Este era muito mais vivão, inteiramente<br />

diferente. A fleuma britânica<br />

tem muito disso que estamos comentando.<br />

A alma faz uma pequena<br />

operação parecida com a do budismo,<br />

por razões psicológicas análogas,<br />

mas com fundamentos e métodos<br />

doutrinários diferentes.<br />

Na degringolada da Revolução<br />

Industrial que estamos presenciando<br />

em nossos dias, isso vai se tornando<br />

patente. O despojamento gradual<br />

de tudo aquilo em que a pessoa pôs<br />

o prazer de sua vida tem que produzir<br />

necessariamente a impossibilidade<br />

completa de reagir e, consequentemente,<br />

uma resignação dentro da<br />

qual se fica cuidando de levar, tanto<br />

quanto possível, uma vidinha arranjada.<br />

A alegria desapareceu. Isso<br />

produz pessoas que, ao longo do caminhar<br />

da existência, ficam completamente<br />

surradas e perdem a reatividade<br />

diante da vida.<br />

A meu ver, o único jeito de reverter<br />

esse processo seria suscitar o maior<br />

número possível de almas inocentes<br />

que não vão dentro dessa onda. Contudo,<br />

eu me pergunto: Se houvesse<br />

uma pequena cidade<br />

na qual todos fossem<br />

inocentes e levassem,<br />

na calma, uma<br />

vida orgânica, haveria<br />

turismo para ver<br />

aquilo? Creio que<br />

não, porque as pessoas<br />

preferem a situação<br />

atual. Não obstante,<br />

devemos lutar<br />

até o fim por uma<br />

outra ordem de coisas,<br />

pela certeza de<br />

que Nossa Senhora<br />

premiará essa luta<br />

com uma interferência<br />

angélica. v<br />

(Extraído de<br />

conferência de<br />

25/9/1986)<br />

Gabriel K.<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

GuidoR (CC 3.0)<br />

Um hino a<br />

Nossa Senhora<br />

Gabriel K.<br />

A Catedral de Notre-Dame é tão bela que<br />

se pode olhá-la indefinidamente, cheio de<br />

enlevo, de veneração e de ternura. Quem a<br />

aprecia muito passa a amar a ordem sublime<br />

das coisas, que conduz ao amor de Deus.


Dietmar Rabich (CC 3.0)<br />

N<br />

otre-Dame de Paris. Eis a catedral de uma beleza<br />

perfeita, alegria da Terra inteira!<br />

Para sentir o equilíbrio da fachada, notemos<br />

que há três partes distintas. Uma vai dos portais de<br />

entrada e termina com a galeria enorme de estátuas, as<br />

quais dão as costas para um terraço que vou analisar daqui<br />

a pouco.<br />

Um resplendor em torno da<br />

Santíssima Virgem<br />

Percebe-se ali o corrimão do terraço e se vê, logo<br />

atrás, uma imagem de Nossa Senhora sustentando nos<br />

braços o Menino Jesus. É a segunda parte do edifício,<br />

que vai do terraço até uma série de colunas que separa<br />

o terraço da torre. Há uma grande rosácea central, toda<br />

feita de vitrais. Nela nota-se uma parte mais central, delimitada<br />

por um trabalho de pedra. Dentro há um círculo<br />

menor ainda, onde está a cabeça de Nossa Senhora. A<br />

ideia que fica insinuada é a seguinte: toda essa rosácea é<br />

o resplendor da cabeça de Maria Santíssima. E sendo a<br />

rosácea o centro da catedral, a ideia que fica meio confusa,<br />

mas realmente verdadeira, é que a catedral é um hino<br />

a Nossa Senhora.<br />

Contrastes harmônicos na relação entre<br />

os diversos elementos da fachada<br />

Ela tem nos braços o Menino Jesus e, com o mais inefável<br />

sorriso de Rainha e de Mãe, olha para seu Divino<br />

Filho. A alma fica assim transportada de entusiasmo<br />

e com vontade de subir. O que ela encontra em cima?<br />

Uma série de colunas, mas que dão para o vazio!<br />

Essas colunas têm uma função que parece um disparate:<br />

sendo tão frágeis, elegantes e harmoniosas, parecendo<br />

irmãs que se tocam pelas mãos, elas sustentam o peso<br />

de duas torres. Porém, ninguém tem a impressão de<br />

que as torres vão esmagar a colunata. Parece tão natural,<br />

com um contraste tão agradável, que se uma pessoa mais<br />

atenta não nos mostrasse, talvez nem notaríamos.<br />

Por detrás, vemos a flecha que se ergue, bem no meio<br />

das duas torres. O resto é o céu...<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

É certo que não foi terminada a construção das torres,<br />

as quais teriam uma parte mais alta. Ninguém pode<br />

imaginar como seria, nem ousa completar uma coisa que,<br />

quando se olha, tem-se a impressão de não pedir complemento.<br />

Onde está o talento para completar uma obra<br />

admirável como essa? Não foram encontradas as plantas<br />

que os arquitetos deviam seguir, ninguém ousou mexer<br />

nisso.<br />

Considerem como a relação desses vários elementos<br />

dá uma impressão de harmonia. Qual? Embaixo, três<br />

portais; o do centro é um pouco maior do que os outros<br />

dois. Mas não se percebe bem, pois é discretíssima a diferença.<br />

Contudo, se os portais fossem da mesma altura,<br />

seriam sem graça.<br />

A ogiva é a nota do andar térreo. O andar de cima começa<br />

com a galeria de estátuas e acaba com a colunata.<br />

No meio há uma rosácea e duas ogivas, uma de cada lado.<br />

Cada ogiva é dividida em duas. E, no ponto em que<br />

as duas se encontram, há outra rosácea.<br />

Assim, o redondo é a nota mais saliente nesse andar,<br />

contrastando com o pontiagudo de tantas outras partes.<br />

Mas observem a harmonia, o bom senso e o equilíbrio de<br />

coisas tão diversas e tão bem reunidas. Notem como fica<br />

leve, quase como um brinquedinho, a estátua colossal de<br />

Nossa Senhora ladeada por duas figuras de Anjos.<br />

Por cima, vê-se a massa enorme das torres, cada uma<br />

com duas notáveis ogivas, onde os sinos tocam gravemente<br />

nas grandes horas do ano litúrgico e, às vezes, nas<br />

grandes horas da História da França, que são as grandes<br />

horas da História do mundo.<br />

A galeria dos reis<br />

DXR (CC 3.0)<br />

Essa galeria com estátuas de reis tem sua história. A<br />

Revolução Francesa, sempre ela mesma, decapitou todas<br />

essas esculturas porque, como os bandidos tinham guilhotinado<br />

o rei e a rainha, quiseram “guilhotinar” também<br />

todos esses reis do Antigo Testamento.<br />

Recentemente, nos alicerces de um banco próximo a<br />

Notre-Dame, quiseram fazer construções e encontraram<br />

essas cabeças, que a Revolução Francesa tinha arrancado,<br />

enterradas no subsolo do banco. Fizeram-se estudos<br />

e verificou-se que foi um homem piedoso, residente nas<br />

cercanias, que enterrou essas cabeças ali, porque ele não<br />

se conformava com essa decapitação.<br />

Dietmar Rabich (CC 3.0)<br />

34


Dietmar Rabich (CC 3.0)<br />

Mark Bonica (CC 3.0)<br />

Veio o dia em que mãos justiceiras tiraram do subsolo<br />

todas essas cabeças e tentaram colocar nos troncos dos<br />

reis. Mas, infelizmente, as autoridades decretaram que<br />

não ficavam bem, não havia meio de prendê-las. Entretanto,<br />

eram belas obras de escultura e foram levadas para<br />

o Museu de Cluny, que é o museu de coisas da Idade<br />

Média.<br />

Miguel Hermoso Cuesta (CC 3.0)<br />

Contemplação que conduz ao amor de Deus<br />

Todas essas coisas tão diversas se unem de um modo<br />

tão tranquilo, mas tão interessante, que se fica olhando<br />

indefinidamente, cheio de enlevo, de veneração e de ternura.<br />

Porém, se colocarmos diante desse monumento um<br />

frenético, um indivíduo que baila essas danças modernas,<br />

nasce uma batalha, porque ou ele, à força de gostar do<br />

monumento, perde o frenesi, ou recusa a santa influência<br />

do monumento e o abandona. Entretanto, para almas<br />

predispostas a aceitar essa tranquilidade, essa estabilidade,<br />

a catedral quer dizer enormemente! Quem começa<br />

a gostar daquilo, por novato que seja, passa a amar a ordem<br />

sublime das coisas que conduz ao amor de Deus. v<br />

(Extraído de conferência de 28/6/1986)<br />

BrokenSphere (CC 3.0)<br />

35


Rainha da<br />

Gabriel K.<br />

Contra-Revolução<br />

Nossa Senhora enquanto Rainha<br />

dos Anjos é a Rainha da Contra-Revolução.<br />

Ela dirige a<br />

Contra-Revolução dos Anjos que atuam<br />

sobre nós e os acontecimentos da<br />

Terra, de maneira a se passar tudo como<br />

Ela quiser.<br />

Maria Santíssima tem todos os matizes,<br />

todas as glórias, todas as cores,<br />

todas as belezas da Contra-Revolução.<br />

É a Imaculada Conceição esmagando<br />

a cabeça da serpente, a Rainha<br />

dos Anjos que comanda o exército angélico,<br />

como o exército dos Santos – Regina<br />

Sanctorum Omnium, Rainha de todos<br />

os Santos. É a Rainha dos contrarrevolucionários,<br />

nossa Mãe, que nos<br />

guia e nos ama especialmente por esta<br />

razão. E Nossa Senhora é o arquétipo<br />

da virtude dos anjos que, tendo<br />

decaído, terminaram por ser lançados<br />

no Inferno, e que devemos substituir<br />

no Céu. Assim, há um nexo<br />

especial entre nós e Ela.<br />

(Extraído de conferência de<br />

28/5/1988)<br />

A Imaculada Conceição - Igreja<br />

São Francisco dos Penitentes,<br />

Rio de Janeiro, Brasil

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