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Fides 21 N1 - Revista do Centro Presbiteriano Andrew Jumper

Revista Fides Reformata 21 N1 (2016)

Revista Fides Reformata 21 N1 (2016)

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<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong> – CPAJ<br />

ISSN 1517-5863<br />

Volume XXI • Número 1 • 2016<br />

Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Brasil<br />

Junta de Educação Teológica<br />

Instituto <strong>Presbiteriano</strong> Mackenzie


INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE<br />

Diretor-Presidente Maurício Melo de Meneses<br />

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER<br />

Diretor Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister<br />

<strong>Fides</strong> reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora<br />

Mackenzie, 1996 –<br />

Semestral.<br />

ISSN 1517-5863<br />

1. Teologia 2. <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação<br />

<strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />

CDD 291.2<br />

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American<br />

Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16 th Flr., Chicago, IL 60606, USA,<br />

e-mail: atla@atla.com, www.atla.com.<br />

<strong>Fides</strong> Reformata também está incluída nas seguintes bases indexa<strong>do</strong>ras:<br />

CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx),<br />

Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory<br />

(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO<br />

(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).<br />

Editores Gerais<br />

Leandro Antonio de Lima<br />

Daniel Santos Júnior<br />

Editor de resenhas<br />

Filipe Costa Fontes<br />

Redator<br />

Alderi Souza de Matos<br />

Editoração<br />

Libro Comunicação<br />

Capa<br />

Rubens Lima


igreja presbiteriana <strong>do</strong> brasil<br />

junta de educação teológica<br />

instituto presbiteriano mackenzie


Conselho Editorial<br />

Augustus Nicodemus Lopes<br />

Davi Charles Gomes<br />

Heber Carlos de Campos<br />

Heber Carlos de Campos Júnior<br />

Jedeías de Almeida Duarte<br />

João Alves <strong>do</strong>s Santos<br />

João Paulo Thomaz de Aquino<br />

Mauro Fernan<strong>do</strong> Meister<br />

Valdeci da Silva Santos<br />

A revista <strong>Fides</strong> Reformata é uma publicação semestral <strong>do</strong><br />

<strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais <strong>do</strong>s autores, não<br />

representan<strong>do</strong> necessariamente a posição <strong>do</strong> Conselho Editorial. Os direitos de publicação<br />

desta revista são <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>.<br />

Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor.<br />

Pede-se permuta.<br />

We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.<br />

Se solicita canje. Si chiede lo scambio.<br />

Endereço para correspondência<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Fides</strong> Reformata<br />

Rua Maria Borba, 40/44 – Vila Buarque<br />

São Paulo – SP – 012<strong>21</strong>-040<br />

Tel.: (11) <strong>21</strong>14-8644<br />

E-mail: pos.teo@mackenzie.com.br<br />

Endereço para permuta<br />

Instituto <strong>Presbiteriano</strong> Mackenzie<br />

Rua da Consolação, 896<br />

Prédio 2 – Biblioteca Central<br />

São Paulo – SP – 01302-907<br />

Tel.: (11) <strong>21</strong>14-8302<br />

E-mail: biblio.per@mackenzie.com.br


Editorial<br />

É com satisfação que apresentamos ao nosso leitor o volume XXI, n o 1,<br />

da revista <strong>Fides</strong> Reformata, dan<strong>do</strong> continuidade a duas décadas de contribuição<br />

ininterrupta à pesquisa teológica na América Latina. Nos últimos anos,<br />

após a decisão de publicar a cada número um artigo em inglês, <strong>Fides</strong> também<br />

iniciou sua contribuição no cenário mundial. É possível conhecer toda essa<br />

contribuição eletronicamente no site oficial <strong>do</strong> <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-<br />

-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong> e em bancos de da<strong>do</strong>s como ATLA Serials, Fuente<br />

Academica, etc.<br />

Nesta edição, o primeiro artigo, por Heleno Guedes Montenegro Filho,<br />

“‘Abençoe-nos Deus e to<strong>do</strong>s os confins da terra o temerão’: uma abordagem<br />

da missão de Israel no Salmo 67”, analisa os princípios conti<strong>do</strong>s na aliança<br />

abraâmica e sinaítica que desembocam numa missiologia. Posteriormente, demonstra<br />

através <strong>do</strong>s salmos como tais princípios missionários faziam parte da<br />

vida <strong>do</strong> povo israelita. O segun<strong>do</strong> artigo, por Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda<br />

Ines Miranda Ribeiro, “Educação e história: a vida de Mary Parker Dascomb”,<br />

ajuda a compreender a contribuição da educa<strong>do</strong>ra Mary Dascomb na missão<br />

presbiteriana no Brasil na segunda metade <strong>do</strong> século 19 e no início <strong>do</strong> século 20,<br />

e sua participação no projeto educacional dessa organização. O terceiro artigo,<br />

por Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, “A oração <strong>do</strong> Pai Nosso:<br />

fonte de consolo ou mera recitação?”, revisita as palavras da oração <strong>do</strong> Pai<br />

Nosso segun<strong>do</strong> o texto original no evangelho de Mateus. A análise indica que<br />

o Pai Nosso tem muito mais a nos dizer <strong>do</strong> que sua brevidade parece indicar.<br />

O quarto artigo, por Sérgio Ribeiro Santos, “O protestantismo e a construção<br />

<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> laico brasileiro: uma breve abordagem <strong>do</strong> processo histórico”,<br />

auxilia a entender como se deu a laicização <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> brasileiro, um processo<br />

que incluiu as políticas de imigração <strong>do</strong> governo imperial, a presença protestante<br />

e a força das novas ideias que aos poucos chegavam em terras brasileiras<br />

vindas da Europa e <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, bem como as tensões existentes entre<br />

a alta direção da Igreja Católica Romana e os poderes políticos constituí<strong>do</strong>s.<br />

O quinto artigo, por Leandro Lima, “Revisitan<strong>do</strong> os espíritos em prisão: uma<br />

análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6”, retoma a antiga discussão sobre a questão<br />

<strong>do</strong> peca<strong>do</strong> de alguns anjos com as mulheres em Gênesis 6.1-4, e seu aprisionamento,<br />

à luz <strong>do</strong>s textos de 1Pedro 3.18-22, Judas 6 e também 2Pedro 2.4. O sexto<br />

artigo, por Breno Mace<strong>do</strong>, “Covenant theology in the thought of John Calvin:<br />

from the Mosaic covenant to the New Covenant”, investiga o pensamento de<br />

Calvino em três administrações pactuais: mosaica, davídica e a nova aliança.<br />

A seção de resenhas traz avaliações de obras relevantes para o contexto<br />

atual da igreja, entre elas Contornos de uma filosofia cristã, de L. Kalsbeek,<br />

resenhada por João Batista <strong>do</strong>s Santos Almeida; Preaching: communicating


faith in an age of skepticism, de Timothy Keller, resenhada por Breno Mace<strong>do</strong>,<br />

e A arte moderna e a morte de uma cultura, de H. R. Rookmaaker, resenhada<br />

por Allen Porto.<br />

Seguin<strong>do</strong> com o compromisso da revista de proporcionar e incentivar<br />

a reflexão teológica reformada, entregamos aos leitores mais uma edição de<br />

<strong>Fides</strong> Reformata, desejosos de que estes artigos e resenhas despertem mais<br />

uma vez o interesse por uma pesquisa que visa contribuir para a edificação <strong>do</strong><br />

povo de Deus, servin<strong>do</strong> sua igreja ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Boa leitura!<br />

Dr. Daniel Santos<br />

Editor Geral


Sumário<br />

Artigos<br />

“Abençoe-nos Deus e to<strong>do</strong>s os confins da terra o temerão”: uma abordagem<br />

da missão de Israel no Salmo 67<br />

Heleno Guedes Montenegro Filho................................................................................................. 9<br />

Educação e história: a vida de Mary Parker Dascomb<br />

Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro............................................................... 39<br />

A oração <strong>do</strong> Pai Nosso: fonte de consolo ou mera recitação?<br />

Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento........................................................................ 53<br />

O protestantismo e a construção <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> laico brasileiro: uma breve<br />

abordagem <strong>do</strong> processo histórico<br />

Sérgio Ribeiro Santos..................................................................................................................... 71<br />

Revisitan<strong>do</strong> os espíritos em prisão: uma análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

Leandro Lima................................................................................................................................. 101<br />

Covenant theology in the thought of John Calvin: from the Mosaic Covenant<br />

to the New Covenant<br />

Breno Mace<strong>do</strong>................................................................................................................................ 1<strong>21</strong><br />

Resenhas<br />

Contornos de uma filosofia cristã (L. Kalsbeek)<br />

João Batista <strong>do</strong>s Santos Almeida................................................................................................... 149<br />

Preaching: communicating faith in an age of skepticism (Timothy Keller)<br />

Breno Mace<strong>do</strong>................................................................................................................................ 153<br />

A arte moderna e a morte de uma cultura (H. R. Rookmaaker)<br />

Allen Porto..................................................................................................................................... 161


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

“Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra<br />

o Temerão”: Uma Abordagem da Missão<br />

de Israel no Salmo 67<br />

Heleno Guedes Montenegro Filho *<br />

resumo<br />

Ao se abordar o tema missionário no Antigo Testamento, Israel demonstra<br />

consciência em gozar <strong>do</strong>s privilégios e responsabilidades da aliança que Deus<br />

fez com Abraão em Gênesis 12.1-3, bem como com seu des<strong>do</strong>bramento e aprofundamento<br />

no momento de sua constituição como nação em Êxo<strong>do</strong> 19.4-6.<br />

A escolha de Israel para ser alvo da revelação da Lei e das bênçãos divinas<br />

tinha por finalidade fazer o senhorio de Javé conheci<strong>do</strong> entre to<strong>do</strong>s os povos.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, o presente artigo analisa primeiramente os princípios conti<strong>do</strong>s<br />

na aliança abraâmica e sinaítica que desembocam numa missiologia. Posteriormente,<br />

demonstra através <strong>do</strong>s salmos como tais princípios missionários<br />

faziam parte da vida <strong>do</strong> povo. Por último, o Salmo 67 é utiliza<strong>do</strong> como uma<br />

ilustração de que as bênçãos pactuais geravam uma obrigação missionária de<br />

Israel perante as nações.<br />

palavras-chave<br />

Antigo Testamento; Missiologia; Missão centrífuga; Missão centrípeta;<br />

Particularismo; Universalismo.<br />

introdução<br />

Embora se reconheça a presença de textos com teor missionário no Antigo<br />

Testamento, tem si<strong>do</strong> comum usá-los como bases bíblicas de uma missão<br />

* O autor é mestre em Teologia Pastoral com ênfase em Missões pelo <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de<br />

Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong> (CPAJ), mestre em Sociedade e Fronteiras pela Universidade Federal<br />

de Roraima e pastor auxiliar na Primeira Igreja Presbiteriana de Boa Vista (RR).<br />

9


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

que se desenrolará de forma efetiva somente no Novo Testamento. Isso fica<br />

ainda mais evidente ao se verificar que boa parte da literatura de missiologia<br />

separa apenas uma pequena parte para desenvolver o tema de missões no<br />

Antigo Testamento – ínfima ante a riqueza de material sobre o trato de Deus<br />

com as nações, a vocação de Israel e suas implicações em relação aos povos<br />

e famílias da terra.<br />

Os estudiosos <strong>do</strong> Antigo Testamento e missiólogos que comungam com a<br />

ideia de que há fundamento para se falar em missões no antigo Israel encaram<br />

a dinâmica da ação missionária sob <strong>do</strong>is pontos de vista: 1. A maioria admite<br />

que a ação missionária no Antigo Testamento teria uma dinâmica centrípeta,<br />

ou seja, que o antigo Israel comunicaria a salvação e o amor de Deus às nações<br />

por meio <strong>do</strong> seu estilo de vida e pelos atos de poder divinos manifesta<strong>do</strong>s nele;<br />

as nações, maravilhadas diante <strong>do</strong> que viam e ouviam, seriam atraídas para<br />

aprender a Lei <strong>do</strong> Senhor. 2. Outros, ainda que não numerosos, têm destaca<strong>do</strong><br />

que o antigo Israel também possuía o dever de ir e anunciar Deus às nações,<br />

dinâmica conhecida como centrífuga.<br />

Embora este artigo não vise desenvolver uma discussão profunda sobre<br />

o assunto, seu teor demonstra concordância com a dinâmica centrífuga da<br />

missão. Essa ideia vem <strong>do</strong> entendimento de que a aliança firmada entre Deus<br />

e o povo de Israel em Êxo<strong>do</strong> 19.5-6 possui tanto bênçãos e privilégios quanto<br />

responsabilidades, sobretu<strong>do</strong> de ser sacerdócio real perante as nações da terra,<br />

caben<strong>do</strong>-lhe também anunciar e ensinar a Lei de Deus a to<strong>do</strong>s os povos. Essa<br />

narrativa consolida a primeira promessa de Deus feita a Abraão em Gênesis<br />

12.2-3, vista agora com robustez por ser o momento da constituição de Israel<br />

como nação.<br />

No Antigo Testamento, a consciência missionária de Israel é visível de<br />

maneira vívida no livro <strong>do</strong>s Salmos. Nesse livro há várias convocações a que<br />

as nações louvem o Senhor, uma vez que o próprio Deus havia afirma<strong>do</strong> “toda<br />

a terra é minha”, conforme Êxo<strong>do</strong> 19.5b. À nação israelita, como reino de<br />

sacer<strong>do</strong>tes, cumpria a responsabilidade de proclamar e admoestar os povos<br />

da terra a se voltarem para o Senhor. Não poucos salmos destacam que o fato<br />

de Israel ser “propriedade peculiar” dentre to<strong>do</strong>s os povos da terra (Êx 19.5a)<br />

não era fruto de uma compreensão exclusivista, mas incluía a responsabilidade<br />

de servir a Deus como seu mensageiro, caben<strong>do</strong>-lhe anunciar o seu senhorio<br />

às nações. Nesse senti<strong>do</strong> o Salmo 67 torna-se uma clara ilustração dessa consciência<br />

teológica.<br />

Logo no início desse salmo, o compositor faz alusão à bênção araônica<br />

(Nm 6.25) com duas modificações importantes: 1. A alteração <strong>do</strong> singular para<br />

o plural e 2. A opção pelo nome Deus (Elohim) no salmo em vez de Senhor<br />

(Yahweh). Como será posteriormente analisa<strong>do</strong>, isso não foi acidental; pelo<br />

contrário, demonstra a consciência de que a bênção <strong>do</strong> Senhor é para a nação<br />

(e não apenas para indivíduos) e recorda sua obrigação sacer<strong>do</strong>tal de conclamar<br />

10


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

os povos ao louvor a Deus. O nome Yahweh, comumente usa<strong>do</strong> no contexto de<br />

relacionamento com o seu povo, é preteri<strong>do</strong> por Elohim, o nome divino usa<strong>do</strong><br />

por Israel para ressaltar o relacionamento de Deus com as nações.<br />

Observa-se ainda que no salmo 67.4 há o anseio de que Deus seja conheci<strong>do</strong><br />

pelas nações: “Alegrem-se e exultem as gentes, pois julgas os povos<br />

com equidade e guias na terra as nações”. As nações poderiam não saber, mas<br />

Israel sabia que elas compunham um reino bem maior, conforme explicita<br />

Van Groningen:<br />

To<strong>do</strong>s os povos estão incluí<strong>do</strong>s no reino cósmico, to<strong>do</strong>s se encontram num<br />

relacionamento de aliança com Yahweh, são chama<strong>do</strong>s a conhecer o Media<strong>do</strong>r,<br />

receber os benefícios que são concedi<strong>do</strong>s por meio dele, crer nele, a<strong>do</strong>rá-lo e<br />

servi-lo. 1<br />

O peca<strong>do</strong> levou cada nação a trilhar seus próprios caminhos. Porém as<br />

Escrituras deixam claro que a revelação divina não se deu por causa de e nem<br />

apenas a Israel, mas que esse povo, de posse <strong>do</strong>s propósitos <strong>do</strong> Senhor, deveria<br />

comunicá-los a to<strong>do</strong>s os povos.<br />

A primeira parte deste artigo demonstra que a razão de Deus haver escolhi<strong>do</strong><br />

o antigo Israel não foi qualquer tipo de exclusivismo. São feitas alusões<br />

ao chama<strong>do</strong> de Abraão em Gênesis 12 para que fique claro que o propósito<br />

de um particularismo em relação à escolha de Israel fazia parte de um plano<br />

maior de expansão da mensagem salva<strong>do</strong>ra a to<strong>do</strong>s os povos da terra. Ainda<br />

nessa parte, o texto de Êxo<strong>do</strong> 19, que mostra o momento de fundação <strong>do</strong> antigo<br />

Israel como nação, é utiliza<strong>do</strong> para que se observe que os mesmos princípios<br />

presentes no chama<strong>do</strong> de Abraão também são encontra<strong>do</strong>s na constituição <strong>do</strong><br />

povo israelita.<br />

A segunda parte <strong>do</strong> artigo trata da importância <strong>do</strong>s Salmos na constituição<br />

de uma missiologia <strong>do</strong> Antigo Testamento, visto que o saltério expressa ensinos<br />

e valores da aliança presente na Torah. Dessa forma, os convites e exortações<br />

às nações e povos da terra para louvar a Deus, por exemplo, demonstram que<br />

havia uma consciência missiológica advinda da responsabilidade da aliança<br />

entre Deus e a nação israelita. Os salmos conheci<strong>do</strong>s por “missionários”<br />

refletem aspectos <strong>do</strong> pacto.<br />

A terceira e última parte traz uma análise <strong>do</strong>s principais temas teológicos<br />

<strong>do</strong> Salmo 67, que ilustram como a compreensão da relação entre bênção pactual<br />

e responsabilidade missionária estava presente na compreensão teológica<br />

<strong>do</strong> antigo Israel.<br />

1 VAN GRONINGEN, Gerard. Criação e consumação: o reino, a aliança e o Media<strong>do</strong>r. Vol. II.<br />

São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 88-89.<br />

11


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

1. israel: uma nação escolhida para proclamar<br />

Há <strong>do</strong>is termos importantes da missiologia que precisam ser esclareci<strong>do</strong>s<br />

de imediato: “particularismo” e “universalismo”. Eles serão utiliza<strong>do</strong>s aqui<br />

tanto como referência ao status de Israel frente aos demais povos da terra<br />

quanto para destacar a abrangência da sua missão. Longe de ser uma postura<br />

isolacionista, separatista ou individualista 2 <strong>do</strong> antigo Israel em relação às demais<br />

nações da terra, o “particularismo” ressalta o fato de Deus haver firma<strong>do</strong> uma<br />

aliança com esse povo, escolhen<strong>do</strong>-o e conferin<strong>do</strong>-lhe uma posição privilegiada<br />

para cumprir o propósito universal de se tornar conheci<strong>do</strong> perante as nações.<br />

Pode-se afirmar que isso faz parte de uma “meto<strong>do</strong>logia” divina para que o<br />

anúncio da salvação alcançasse os confins da terra. Conforme George Peters,<br />

“Deus está limitan<strong>do</strong> a si mesmo em sua única revelação para um povo e opera<br />

unicamente em e através de Israel”. 3 Ou seja, Deus quer se manifestar no povo<br />

e também manifestar-se por meio <strong>do</strong> povo.<br />

Já o termo “universalismo” refere-se à abrangência da revelação de Deus<br />

disponível a todas as famílias da terra. Nas palavras de Grisanti: “Bênçãos redentivas<br />

de Deus disponíveis a to<strong>do</strong>s os povos, a despeito de sua etnicidade”. 4<br />

O fato de Deus haver elegi<strong>do</strong> Israel não significava que os demais povos da<br />

terra tivessem si<strong>do</strong> esqueci<strong>do</strong>s.<br />

1.1 Implicações missiológicas no chama<strong>do</strong> de Abraão em<br />

Gênesis 12.1-3<br />

Em Gênesis 12.1 e 2, Deus encoraja Abrão e promete fazer dele uma<br />

grande nação: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para<br />

a terra que te mostrarei; 2 de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te<br />

engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção!”. Na promessa da formação de uma<br />

“grande nação” os privilégios também foram manifestos: ser alvo das bênçãos<br />

divinas e ter um grande nome.<br />

Deus deixa claro que o propósito <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> não era tornar Israel uma<br />

nação populosa ou poderosa em si, mas abençoar todas as famílias da terra<br />

(Gn 12.3). Paulo, em Gálatas 3.8, lança luz sobre o significa<strong>do</strong> de: “em ti serão<br />

benditas 5 todas as famílias da terra”: “Ora, ten<strong>do</strong> a Escritura previsto que Deus<br />

2 A cautela de Blauw por usar esse termo é tanta que, mesmo mencionan<strong>do</strong>-o, prefere não<br />

utilizá-lo. BLAUW, Johannes. A natureza missionária da igreja: exame da teologia bíblica da missão.<br />

Trad. Jovelino Pereira Ramos. São Paulo: ASTE, 1966, p. 24.<br />

3 PETERS, George W. A Biblical theology of missions. Chicago: Moody Press, 1984, p. 94.<br />

4 GRISANTI, Michael A. Israel’s mission to the nations in Isaiah 40-55: an update. The Master’s<br />

Seminary Journal 9/1, 1998, p. 44.<br />

5 Há uma discussão sobre a forma como se deve traduzir a palavra “abençoar” em Kaiser Jr. (KAI-<br />

SER JR., Walter C. Mission in the Old Testament. Israel as a light to the nations. Grand Rapids: Baker,<br />

2000, p. 19) e em Wright (WRIGHT, Cristopher J. H. The mission of God. Unlocking the Bible’s grand<br />

12


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: Em ti, serão<br />

abençoa<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os povos”. “Assim, sem dúvida estamos no centro <strong>do</strong> que<br />

poderíamos chamar de ponto central <strong>do</strong> evangelho e missões em ambos os<br />

Testamentos”. 6 Aprouve a Deus manifestar primeiramente a Israel sua aliança<br />

para que este anunciasse em toda a terra a mensagem da reconciliação com<br />

ele. Essa vocação deveria ser encarada como uma obrigação de tornar Deus<br />

revela<strong>do</strong> às demais nações. 7 Van Groningen destaca assim tal responsabilidade<br />

presente no pacto com Abraão:<br />

As bênçãos que recebeu deveriam fluir por meio dele para as nações (Gn 12.3).<br />

Consequentemente, uma função missionária redentora era aspecto integral <strong>do</strong><br />

pacto. O pacto deveria ser o meio, a agência, o instrumento pelo qual Abraão<br />

e, por meio dele, as nações se tornariam herdeiros <strong>do</strong> plano redentor de Deus<br />

Yahweh e participantes desse plano redentor apresenta<strong>do</strong> em forma de semente<br />

a Adão e Eva (Gn 3.14,15). 8<br />

Deus, ao escolher Abraão, revela seu plano redentor para os demais povos.<br />

9 A esperança das nações reside naquela declaração: “em ti serão benditas<br />

todas as famílias da terra”, referin<strong>do</strong>-se não apenas a Abraão, mas à grande<br />

nação que seria formada a partir dele. A responsabilidade de servir de “ponte”<br />

para que a mensagem redentora chegasse ao conhecimento <strong>do</strong>s povos estava<br />

arraigada à sua própria razão de ser. A raiz da nação israelita estaria conectada<br />

à sua missão para sempre.<br />

A tensão de ser objeto e ao mesmo tempo instrumento da bênção de Deus<br />

às nações é descrita desta maneira por Wright:<br />

narrative. Downers Grove: InterVarsity, 2006, p. 253). Gronigen sintetiza assim: “A forma niphal <strong>do</strong> verbo<br />

‘abençoar’ implica tanto uma ação reflexiva quanto passiva <strong>do</strong> verbo. A forma reflexiva é <strong>do</strong>minante<br />

e deixa implícitas duas verdades importantes. Abraão deveria viver, a<strong>do</strong>rar e servir, de mo<strong>do</strong> tal, que,<br />

enquanto obedecia aos mandatos espiritual, social e cultural, demonstrava que era, de fato, um agente<br />

pactual no reino cósmico de Yahweh. Assim, os povos ao seu re<strong>do</strong>r e as nações além de seu ambiente<br />

poderiam vê-lo [...]. A segunda verdade importante enfatizada pela forma nifal <strong>do</strong> verbo ‘abençoar’ era<br />

a responsabilidade colocada sobre as nações. [...] As nações tinham um ônus sobre si de se relacionarem<br />

de mo<strong>do</strong> positivo com Abraão”. VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. II, p. 91).<br />

6 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 20.<br />

7 Blauw afirma que “a eleição não é primariamente privilégio, mas responsabilidade”. A natureza<br />

missionária da igreja, p. 23.<br />

8 VAN GRONINGEN, Gerard. Criação e consumação: o reino, a aliança e o media<strong>do</strong>r. Vol. I.<br />

São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 245.<br />

9 Kaiser Jr. considera Gênesis 12.3 “um programa divino para glorificá-lo por meio da salvação<br />

ofertada a to<strong>do</strong> o planeta terra”. Ele não tem dúvida em afirmar que é com esse texto bíblico que a missão<br />

realmente começa, consideran<strong>do</strong>-o como “o primeiro mandato da Grande Comissão na Bíblia”. Mission<br />

in the Old Testament, p. 13.<br />

13


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

Deus escolhe não apenas fazer de Abraão e sua descendência o objeto de sua<br />

bênção, mas também fazer deles o instrumento de sua bênção para o mun<strong>do</strong>.<br />

Essa pessoa, família e nação em particular que são abençoadas por Deus seriam<br />

a maneira de outros se achegarem à mesma bênção. 10<br />

Não havia alternativa para Abraão e sua descendência a não ser aceitar a<br />

responsabilidade advinda <strong>do</strong> chama<strong>do</strong>, conforme destaca Rowley: “O propósito<br />

da eleição é o serviço, e quan<strong>do</strong> o serviço é recusa<strong>do</strong> a eleição perde seu senti<strong>do</strong><br />

e, portanto, fracassa”. 11 Logo, não havia razão para qualquer sentimento de<br />

“autoglorificação” ou exclusivismo por parte de Abraão ou de Israel, 12 visto<br />

que a própria vocação de Abraão se deu por iniciativa divina com a finalidade de<br />

ser veículo da mensagem redentora de Deus a to<strong>do</strong>s os povos. Assim sen<strong>do</strong>, no<br />

ato divino de eleger um povo, não há rejeição <strong>do</strong>s demais, mas o propósito de<br />

beneficiá-los, sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s primeiros registros da sua preocupação redentiva<br />

para com o restante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. 13<br />

1.2 Implicações missiológicas na constituição da nação israelita<br />

em Êxo<strong>do</strong> 19.5-6<br />

Ao transformar Abrão em Abraão, 14 Deus revela a maneira como seu<br />

plano redentor atingirá toda a humanidade. Na narrativa de Gênesis 12.1-3 a<br />

nação israelita ainda era uma promessa, mas séculos depois Deus reafirmaria<br />

a aliança que havia feito com Abraão diante daqueles que chamará de sua<br />

“propriedade peculiar”.<br />

O povo que Deus havia começa<strong>do</strong> a formar a partir de Abraão havia<br />

i<strong>do</strong> para o Egito fugin<strong>do</strong> da fome em Canaã (Gênesis 46). Naquele momento<br />

tratava-se ainda de famílias descendentes de Abraão (ainda não propriamente<br />

10 WRIGHT, The mission of God, p. 253.<br />

11 Apud BLAUW, A natureza missionária da igreja, p. 22.<br />

12 Deuteronômio 7:6-8: “Porque tu és povo santo ao Senhor, teu Deus; o Senhor, teu Deus, te<br />

escolheu, para que lhe fosses o seu povo próprio, de to<strong>do</strong>s os povos que há sobre a terra. 7 Não vos<br />

teve o Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos <strong>do</strong> que qualquer povo, pois<br />

éreis o menor de to<strong>do</strong>s os povos, 8 mas porque o Senhor vos amava e, para guardar o juramento que<br />

fizera a vossos pais...”<br />

13 Não se ignora o fato de Deus já haver demonstra<strong>do</strong> sua benevolência salvífica à humanidade<br />

anteriormente, desde o conheci<strong>do</strong> “protoevangelho” em Gênesis 3.15, bem como para com Enoque, Noé<br />

e outros anteriores a Abraão.<br />

14 A própria escolha divina de Abraão revela-o como legítimo representante das nações que jazem<br />

na i<strong>do</strong>latria, conforme Josué 24.2: “Então, Josué disse a to<strong>do</strong> o povo: Assim diz o Senhor, Deus de Israel:<br />

Antigamente, vossos pais, Tera, pai de Abraão e de Naor, habitaram dalém <strong>do</strong> Eufrates e serviram<br />

a outros deuses”. Comentan<strong>do</strong> este aspecto, Hedlund afirma: “Abraão foi chama<strong>do</strong> de maneira que as<br />

nações precisam ser chamadas à fé e arrependimento, a reconhecer e a obedecer o Deus de Israel como<br />

o único verdadeiro Deus”. HEDLUND, Roger E. The mission of the church in the world: A Biblical<br />

theology. Grand Rapids: Baker, 1991, p. 35.<br />

14


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

um povo), que encontraram no Egito, pela providência divina, abundância<br />

de alimentos. Ali cresceram e se multiplicaram tanto que se tornaram uma<br />

ameaça à liderança daquela nação (Êx 1.9). A solução de Faraó foi escravizar<br />

toda aquela gente (Êx 1.11ss). Após um longo perío<strong>do</strong>, Deus ouviu o clamor<br />

de seu povo e comissionou Moisés para guiá-los na saída <strong>do</strong> Egito (Êx 3.7ss).<br />

Liberto e aos pés <strong>do</strong> Monte Sinai, o povo ouviu os termos da aliança que<br />

Deus desejava firmar, as responsabilidades individual e coletiva no mun<strong>do</strong>,<br />

cumprin<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> que havia prometi<strong>do</strong> em Êxo<strong>do</strong> 6.7: “Tomar-vos-ei por<br />

meu povo e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o Senhor, vosso Deus, que<br />

vos tiro de debaixo das cargas <strong>do</strong> Egito”. A narrativa de Êxo<strong>do</strong> 19 reveste-se<br />

de importância porque, no momento em que o povo responde positivamente<br />

ao pacto (Êx 19.8), passa a ser considera<strong>do</strong> uma nação, 15 inclusive sob o<br />

ponto de vista político. Robertson observa que “até aquela altura o tratamento<br />

de Deus tinha si<strong>do</strong> com uma família. Agora ele estabelece uma aliança com<br />

uma nação”. 16<br />

A partir <strong>do</strong> evento ao pé <strong>do</strong> Monte Sinai, a aliança passa a definir como se<br />

dará o relacionamento entre Deus e os descendentes de Abraão. Ali “Israel foi<br />

chama<strong>do</strong> para ser um povo distinto e santo (Êx 19.5,6)”, bem como “agente da<br />

revelação e da salvação de Deus para to<strong>do</strong>s os povos, raças, línguas e nações<br />

(Is 42.6; Lc 2.31, 32; At 13.47)”. 17<br />

Essas pessoas eram descendentes de Jacó e da semente de Abraão. Como um<br />

povo liberto, eles não estavam por conta própria; Deus Yahweh os reivindicara<br />

como seu povo pactual. Referência a eles como Israel indicava que tinham também<br />

uma herança de estarem em um relacionamento pessoal de reconciliação<br />

com Yahweh. [...] Acampa<strong>do</strong>s ao pé <strong>do</strong> monte, eles ainda não eram a nação de<br />

Israel. Mas Deus Yahweh estava avançan<strong>do</strong> em seu plano de cumprir sua promessa<br />

a Abraão: “Eu farei de você uma grande nação” (Gn 12.2). 18<br />

Moisés enfatiza ao povo que a libertação se deu unicamente pelo poder<br />

de Deus (“Tendes visto o que fiz aos egípcios” – Êx 19.4a), que agiu com sua<br />

mão sobre o império egípcio, retiran<strong>do</strong>-os da servidão. Além de comunicar<br />

ao povo a magnitude <strong>do</strong> poder divino, fala igualmente <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> e afeição<br />

15 ARCHER, Gleason L. Merece confiança o Antigo Testamento? São Paulo: Vida Nova, 2003,<br />

p. 133.<br />

16 ROBERTSON, O. Palmer. Cristo <strong>do</strong>s pactos. Campinas: LPC, 1997, p. 168. Robertson comenta<br />

um pouco mais adiante que “à medida que a lei tornou Israel um povo da aliança, trouxe o desígnio de<br />

Deus quanto à redenção a um novo estágio de realização. Em vez de continuar como uma confederação<br />

tribal nômade, Israel solidificou-se como uma nação distinta, consagrada como sacer<strong>do</strong>tes <strong>do</strong> próprio<br />

Deus” (p. 194).<br />

17 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. II, p. 87. Corroboran<strong>do</strong> com essa visão:<br />

GLASSER, Arthur F. et al. Announcing the King<strong>do</strong>m: The story of God’s mission in the Bible. Grand<br />

Rapids: Baker, 2003, p. 72-73; WRIGHT, The mission of God, p. 370ss.<br />

18 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. I, p. 358.<br />

15


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

que tem pela nação: “como vos levei sobre asas de águia e vos cheguei a<br />

mim” (Êx 19.4b). 19 Essa metáfora indica tanto a maneira extraordinária como<br />

Deus os salvou da escravidão quanto a forma delicada de agir, tal qual uma<br />

ave cuida<strong>do</strong>sa que carrega seus filhos sobre suas costas quan<strong>do</strong> esses ainda<br />

são pequeninos e estão aprenden<strong>do</strong> a voar, aludin<strong>do</strong> aos primeiros passos de<br />

Israel como nação. 20<br />

1.2.1 Propriedade peculiar – o particularismo de Israel<br />

Em Êxo<strong>do</strong> 19.5 se lê: “Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha<br />

voz e guardardes a minha aliança <strong>21</strong> , então, sereis a minha propriedade peculiar<br />

dentre to<strong>do</strong>s os povos; porque toda a terra é minha”. Conquanto o termo “vocação”<br />

não esteja claramente no texto, o seu conceito está presente. Para Van<br />

Groningen “a eleição graciosa de Israel por Deus Yahweh é declarada quan<strong>do</strong><br />

disse, ‘dentre to<strong>do</strong>s os povos’ e ‘porque toda a terra é minha’”. 22 Êxo<strong>do</strong> 19.5<br />

destaca a escolha de Israel dentre to<strong>do</strong>s os povos: se o povo ouvir atentamente<br />

e guardar o que Deus está propon<strong>do</strong>, será lî s e gullah (“para mim, possessão”)<br />

dentre as nações da terra, sob as devidas condições, é claro.<br />

Uma palavra que destaca e esclarece o senti<strong>do</strong> de propriedade de Deus<br />

dentre to<strong>do</strong>s os povos é s e gullah, “propriedade valorosa, tesouro peculiar que<br />

Deus escolheu e tomou para si”. 23 Seu uso se dava principalmente para descrever<br />

um tesouro pessoal de um rei. 24 Conforme Walter Kaiser Jr.: “A raiz desse<br />

termo era sakālu, ‘separar uma coisa ou uma possessão’. Era o oposto de bens<br />

imóveis, tais como terras, que não podiam ser removi<strong>do</strong>s. O s e gullah de Deus,<br />

por outro la<strong>do</strong>, era Seu tesouro móvel”. 25<br />

A conclusão e aplicação missionária que Kaiser Jr. sugere é que Israel,<br />

como uma joia preciosa, poderia ser movida por Deus como ele bem desejasse<br />

e para onde fosse preciso. 26 Tal metáfora também destaca o valor que o povo<br />

19 Comumente se encontra nos salmos a proteção e cuida<strong>do</strong> de Deus associa<strong>do</strong> à imagem das asas<br />

de um pássaro, conforme Salmos 17.8; 36.7; 57.1; 61.4; 63.7; 91.4.<br />

20 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 22.<br />

<strong>21</strong> É a primeira vez que o termo b e rît aparece no Êxo<strong>do</strong>, indican<strong>do</strong> “particular relação estabelecida<br />

entre Deus e o povo de Israel”. BALLARINI, Teo<strong>do</strong>rico; GALBIAT, Enrico; MORALDI, Luigi.<br />

Introdução à Bíblia com antologia exegética. Vol. II/1. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes,<br />

1975, p. 332.<br />

22 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. I, p. 359.<br />

23 BROWN, Francis; DRIVER, S. R.; BRIGGS, Charles A. The New Brown–Driver–Briggs–<br />

Gesenius Hebrew and English Lexicon. With an appendix containing the Biblical Aramaic. Peabody:<br />

Hendrickson Publishers, 1979, p. 582.<br />

24 WRIGHT, The mission of God, p. 256.<br />

25 KAISER JR., Walter C. Teologia <strong>do</strong> Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 110.<br />

26 KAISER JR., Walter C. The Messiah in the Old Testament. Grand Rapids: Zondervan, 1995,<br />

p. 22.<br />

16


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

de Israel (que até pouco tempo possuía o status de escravo) passaria a ter caso<br />

resolvesse ouvir e guardar to<strong>do</strong>s os mandamentos de seu Rei.<br />

Também é preciso ser destaca<strong>do</strong> aqui que, ao conceder o status de “propriedade<br />

preciosa”, Deus o fazia basea<strong>do</strong> em sua vontade, misericórdia e<br />

amor, que estão intrinsecamente liga<strong>do</strong>s à sua aliança. 27 Não houve razão ou<br />

mérito no povo que o levasse a merecer tal atenção de Deus. 28 Ou seja, jamais<br />

deveria existir no coração da nação israelita qualquer sentimento de orgulho<br />

e superioridade em relação aos demais povos da terra, mas bendizer a Deus,<br />

que por sua decisão em compor uma aliança os fez alvo primeiro de sua graça<br />

redentora. O valor de Israel estava na manifestação <strong>do</strong> amor divino. 29<br />

A nação israelita também deveria estar ciente de que a libertação <strong>do</strong><br />

Egito se deu em face da aliança feita entre Deus e seus pais 30 e que encontra<br />

em Abraão sua maior expressão, conforme Gênesis 12.2-3: “ 2 de ti farei uma<br />

grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! 3<br />

Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em<br />

ti serão benditas todas as famílias da terra”.<br />

A aliança entre eles, portanto, não se fundamentava na natureza, mas numa<br />

aliança. A obrigação religiosa era baseada num favor antecipa<strong>do</strong> de Iahweh;<br />

por isso a aliança não dava a Israel nenhum direito de colocar Iahweh em qualquer<br />

dívida para o futuro. A aliança deveria ser mantida somente enquanto as<br />

cláusulas da soberania divina fossem observadas. 31<br />

Na aliança que faria, o povo de Israel deveria estar ciente de que não seria<br />

como um acor<strong>do</strong> entre iguais. Só lhes restava – após aceitar as condições –<br />

obedecer à proposta divina e depender exclusivamente <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s de Deus.<br />

A desobediência, por outro la<strong>do</strong>, traria consequências atrozes não apenas à<br />

vida <strong>do</strong> povo, mas se estenderia à vida de to<strong>do</strong>s os povos da terra.<br />

27 “Vê-se claramente como a aliança parte da iniciativa divina, comporta uma promessa de Deus,<br />

o qual desta forma se mostra liga<strong>do</strong> por sua própria fidelidade à palavra empenhada...” Conf. BALLA-<br />

RINI; GALBIAT; MORALDI, Introdução à Bíblia, p. 332-333. Smith dedica uma parte de seu estu<strong>do</strong><br />

para destacar o propósito da eleição e a base da escolha divina de Israel. SMITH, Ralph L. Teologia <strong>do</strong><br />

Antigo Testamento: história, méto<strong>do</strong> e mensagem. São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 130ss.<br />

28 É lógico que, enquanto escolhi<strong>do</strong> por Deus, Israel seria objeto de favores especiais, mas deveria<br />

sempre lembrar que esse favorecimento se baseava unicamente na graça, como bem descreveu Bright<br />

(BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 191, 198).<br />

29 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 110.<br />

30 “Moisés lembrou Israel de que Deus os escolhera e os resgatara da escravidão não devi<strong>do</strong> à<br />

bondade de Israel, mas unicamente porque ele o amava e era fiel às promessas feitas aos patriarcas.”<br />

HARRIS, Laird; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia.<br />

Trad. Márcio Loureiro Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, Luiz A. T. Sayão, Carlos Oswal<strong>do</strong> C. Pinto. São Paulo: Vida Nova,<br />

1998, p. 1027.<br />

31 BRIGHT, História de Israel, p. 198.<br />

17


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

Algo muito importante é que, ao declarar Israel como “propriedade”<br />

dentre to<strong>do</strong>s os povos da terra, Deus ressalta que não foram os israelitas que<br />

o escolheram como quem escolhe uma “divindade nacional”. De acor<strong>do</strong> com<br />

Bright: “Seu Deus-Rei não era nenhum gênio nacional a ele liga<strong>do</strong> por laços de<br />

sangue e culto, mas um Deus cósmico que o tinha escolhi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele mais<br />

o necessitava, e que o escolheu por um ato moral livre”. 32 Ou seja, o povo de<br />

Israel é que foi escolhi<strong>do</strong> e passou a pertencer ao Deus to<strong>do</strong>-poderoso.<br />

Continuan<strong>do</strong> o versículo 5 de Êxo<strong>do</strong> 19, lê-se: “porque toda a terra é<br />

minha”. Essa declaração divina torna inequívoco que Deus não se limitaria<br />

nem estaria confina<strong>do</strong> à nação israelita. Van Groningen afirma:<br />

To<strong>do</strong>s os povos estão incluí<strong>do</strong>s no reino cósmico, to<strong>do</strong>s se encontram num relacionamento<br />

de aliança com Yahweh, são chama<strong>do</strong>s a reconhecer o Media<strong>do</strong>r,<br />

receber os benefícios que são concedi<strong>do</strong>s por meio dele, crer nele, a<strong>do</strong>rá-lo e<br />

servi-lo. 33<br />

Ou seja, os demais povos não foram deixa<strong>do</strong>s de la<strong>do</strong> por seu Cria<strong>do</strong>r.<br />

Ao afirmar que toda a terra é sua, todas as famílias, independentemente<br />

de etnias, estão presentes, como afirma Davi no Salmo 24.1: “Ao Senhor<br />

pertence a terra e tu<strong>do</strong> o que nela se contém, o mun<strong>do</strong> e os que nele habitam”.<br />

Elas são obras das suas mãos (Sl 86.9), elas testificam de sua multiforme sabe<strong>do</strong>ria<br />

e bondade (Gn 9.16), também para os seus anseios por paz (Gn 10.1, 32),<br />

porque ele abençoou a terra depois <strong>do</strong> dilúvio, dan<strong>do</strong>-lhe a multidão de povos. 34<br />

O Deus Cria<strong>do</strong>r lança diante <strong>do</strong> seu povo israelita o desafio/responsabilidade<br />

que passaria a ter diante de to<strong>do</strong>s os povos. Israel tornou-se deve<strong>do</strong>r de<br />

toda a terra, conforme afirmou Lengrand:<br />

O povo de Israel, que reconhece que é escolhi<strong>do</strong> de Deus, também via a si<br />

mesmo coloca<strong>do</strong> entre as nações em um mun<strong>do</strong> que está sujeito ao governo<br />

daquele mesmo Deus... A eleição não corta Israel das demais nações. Ela situa<br />

aquele povo em relação a elas. 35<br />

Expon<strong>do</strong> a Israel seu propósito de fazer dele sua propriedade, Deus<br />

dava prosseguimento a seu plano redentivo de fazer seu senhorio conheci<strong>do</strong><br />

em toda a terra. Nas palavras de Samuel Terrien, “Israel, porém, não é ama<strong>do</strong><br />

32 Ibid.<br />

33 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. I, p. 87-88.<br />

34 BLAUW, A natureza missionária da igreja, p. 35.<br />

35 Apud WRIGHT, The mission of God, p. 251.<br />

18


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

num vácuo histórico. [...] Israel é ama<strong>do</strong> para que se torne o reino sacer<strong>do</strong>tal<br />

de Javé na história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”. 36<br />

1.2.2 Reino de sacer<strong>do</strong>tes – o universalismo de Israel<br />

Nem to<strong>do</strong>s concordam que haja algum fundamento missionário em Êxo<strong>do</strong><br />

19.6 ou que Israel possuísse alguma responsabilidade para com as nações de<br />

seu tempo. De acor<strong>do</strong> com Schnabel, “a lei sinaítica 37 não contém nenhuma<br />

estipulação individual para uma atividade ‘missionária’ de Israel, que seria<br />

indispensável no contexto <strong>do</strong> Código de Santidade”. 38 Argumenta ainda que os<br />

pagãos sempre são coloca<strong>do</strong>s equidistantes, sen<strong>do</strong> vistos mais como ameaça <strong>do</strong><br />

que como alvo missionário. Argumenta ainda que os profetas nunca acusaram<br />

o povo de haver si<strong>do</strong> negligente em sua tarefa missionária. 39 Para esse autor,<br />

se há algum aspecto missionário este deveria se cumprir apenas num futuro<br />

distante. Entretanto, o termo “reino de sacer<strong>do</strong>tes” tem muito a revelar sobre<br />

a tarefa missionária de Israel.<br />

Êxo<strong>do</strong> 19.6 é o único lugar em to<strong>do</strong> o Antigo Testamento em que ocorre a<br />

expressão “reino de sacer<strong>do</strong>tes”. Esse termo aplica<strong>do</strong> ao povo de Israel revela<br />

tanto uma parte de seu status e função quanto de sua atribuição e responsabilidade.<br />

O antigo Israel já possuía a denominação de “propriedade preciosa”,<br />

dan<strong>do</strong>-lhes destaque em relação aos demais povos, mas o termo “reino”, longe<br />

de significar poder político, significava que tinha a Deus como Rei, sen<strong>do</strong>,<br />

portanto, seu reino. 40 Tal termo também os lembraria de ser modelo de vida<br />

<strong>do</strong> reino de Deus para to<strong>do</strong>s os povos. 41<br />

O sacerdócio está relaciona<strong>do</strong> à tarefa de mediação entre Deus e os<br />

homens. 42 Em linhas gerais, “o sacer<strong>do</strong>te tinha que agir como media<strong>do</strong>r em<br />

36 Apud SMITH, Teologia <strong>do</strong> Antigo Testamento, p. 124.<br />

37 Por lei sinaítica, Schnabel refere-se ao Decálogo (Êxo<strong>do</strong> 20) e ao Código da Aliança (Êxo<strong>do</strong><br />

<strong>21</strong>-23). Argumenta que não há um mandamento expresso para que Israel desenvolvesse uma atividade<br />

missionária. Para esse autor, Israel é reino de sacer<strong>do</strong>tes porque podia ser capaz de se relacionar de maneira<br />

mais dedicada com Javé. Daí sua preferência pelo termo “reino sacer<strong>do</strong>tal”. SCHNABEL, Eckhard J.<br />

Early Christian mission: Jesus and the twelve. Vol. I. Downers Grove: InterVarsity; Leicester: Apollos,<br />

2002, p. 71.<br />

38 Ibid., p. 71-72.<br />

39 Ibid., p. 72.<br />

40 BALLARINI; GALBIAT; MORALDI, Introdução à Bíblia, p. 333.<br />

41 Carriker considera que a “justiça em relação ao próximo e a sua dependência de um só e único<br />

Deus serviria de modelo para as nações que a soberania <strong>do</strong> Deus Cria<strong>do</strong>r iria alcançar”. CARRIKER,<br />

Charles Timothy. Missão integral: uma teologia bíblica. São Paulo: SEPAL, 1992, p. 49.<br />

42 Ao descrever algumas atribuições da figura <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te, não se está atribuin<strong>do</strong> a este uma responsabilidade<br />

missionária. Essa responsabilidade competia ao povo de Israel. As funções <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes<br />

aqui mencionadas servem apenas para elucidar alguns princípios que também deveriam ser observa<strong>do</strong>s<br />

pela nação israelita.<br />

19


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

favor <strong>do</strong> povo, representan<strong>do</strong>-o diante de Yahweh, interceden<strong>do</strong> em favor deles,<br />

trazen<strong>do</strong> seus sacrifícios, ofertas e dádivas à presença de Deus Yahweh”. 43<br />

As tarefas <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes foram sumariadas por Moisés em três categorias:<br />

ministrar, pronunciar as bênçãos em nome de Yahweh, e decidir to<strong>do</strong>s os casos<br />

de disputa e violência (Dt. <strong>21</strong>.5). Essas três categorias resumiam as oito tarefas<br />

detalhadas: (1) fazer a expiação pelo povo, interceden<strong>do</strong> por ele e proclaman<strong>do</strong><br />

o perdão; (2) santificar e manter a santidade <strong>do</strong> povo; (3) ouvir as confissões<br />

de fé e receber as ofertas de agradecimento; (4) supervisionar o tabernáculo<br />

em to<strong>do</strong> o tempo; (5) ser ministro de misericórdia; (6) ensinar e supervisionar<br />

a instrução <strong>do</strong> povo; (7) ser o mantene<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Livro <strong>do</strong> Pacto escrito; (8) servir<br />

em capacidades judiciais. 44<br />

Naturalmente que to<strong>do</strong> esse detalhamento das funções sacer<strong>do</strong>tais não<br />

estava na mente <strong>do</strong> povo naquele momento no Sinai, sen<strong>do</strong> revela<strong>do</strong> posteriormente<br />

à família de Arão em Êxo<strong>do</strong> 28.1; 40.12-15. Porém, a função sacer<strong>do</strong>tal<br />

aplicada a Israel está diretamente relacionada ao serviço a Deus e às nações:<br />

“Como o sacer<strong>do</strong>te é intermediário entre Deus e o seu povo, da mesma forma<br />

Israel será intermediário entre Deus e to<strong>do</strong>s os outros povos”. 45<br />

Uma das atribuições <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te era ensinar o povo a andar nos caminhos<br />

de Deus, expon<strong>do</strong>-lhe os estatutos e juízos e zelan<strong>do</strong> para que os obedecessem<br />

à risca. Como “reino de sacer<strong>do</strong>tes”, Israel recebe toda instrução de Deus que<br />

lhe ensinaria como viver e agradá-lo, bem como a solução redentora para o<br />

peca<strong>do</strong> que assolou a humanidade. Como parte de sua função, deve-se refletir<br />

se cabia a Israel compartilhar o que estavam prestes a receber <strong>do</strong> Rei com os<br />

povos que nada conheciam sobre o soberano que rege as nações. Van Groningen,<br />

pensan<strong>do</strong> acerca da tarefa sacer<strong>do</strong>tal e aplican<strong>do</strong>-a à nação israelita, afirma:<br />

“Israel estava ciente <strong>do</strong> senhorio de Deus Yahweh sobre todas as nações, e era<br />

desejo de seu coração que todas as nações o conhecessem e o a<strong>do</strong>rassem e, assim,<br />

recebessem a redenção total e plena”. 46 Isto se torna muito claro no Salmo<br />

67:4: “Alegrem-se e exultem as gentes, pois julgas os povos com equidade e<br />

guias na terra as nações”.<br />

Segun<strong>do</strong> Peters, está claro que “Israel é feito media<strong>do</strong>r entre Deus e as<br />

nações. Isso para ser um reino de sacer<strong>do</strong>tes e uma nação santa a fim de mediar<br />

a revelação única de Deus que havia recebi<strong>do</strong>. Israel é chama<strong>do</strong> para ser um<br />

canal, não um depósito, de bênçãos”. 47 A aliança firmada no Sinai não deveria<br />

43 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. I, p. 360.<br />

44 Ibid., p. 397.<br />

45 BALLARINI; GALBIAT; MORALDI, Introdução à Bíblia, p. 333-334.<br />

46 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. II, p. 93.<br />

47 PETERS, A Biblical theology of missions, p. 94.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

ser vista apenas pelo prisma <strong>do</strong> privilégio de receber a mensagem e as bênçãos<br />

<strong>do</strong> verdadeiro e único Deus, mas, como afirma Carriker, “a aliança implicava,<br />

então, numa função especialmente missionária de Deus”. 48 Aquele momento<br />

compunha parte de um plano redentivo maior, <strong>do</strong> qual o povo <strong>do</strong> antigo Israel<br />

era parte fundamental.<br />

A aliança com Abraão declara que Deus faria de sua descendência uma<br />

grande nação, e abençoaria todas as famílias da terra. No Sinai fica esclareci<strong>do</strong><br />

que essa bênção chegaria por intermédio de um reino sacer<strong>do</strong>tal. “O sacerdócio<br />

<strong>do</strong> povo de Deus é então uma função missional que está em continuidade com<br />

a vocação abraâmica, e isso afeta as nações”. 49<br />

Não há porque afirmar que “o propósito original de Deus foi adia<strong>do</strong> (não<br />

desfeito ou derrota<strong>do</strong> para sempre) até os tempos <strong>do</strong> NT”. 50 Não se pode negar<br />

o aspecto missionário na função sacer<strong>do</strong>tal de Israel em Deuteronômio 4.5-8,<br />

que destaca como os estatutos e ensinos de Deus para Israel têm implicações<br />

universalistas:<br />

5<br />

Eis que vos tenho ensina<strong>do</strong> estatutos e juízos, como me man<strong>do</strong>u o Senhor, meu<br />

Deus, para que assim façais no meio da terra que passais a possuir. 6 Guardai-os,<br />

pois, e cumpri-os, porque isto será a vossa sabe<strong>do</strong>ria e o vosso entendimento<br />

perante os olhos <strong>do</strong>s povos que, ouvin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s estes estatutos, dirão: Certamente,<br />

este grande povo é gente sábia e inteligente. 7 Pois que grande nação<br />

há que tenha deuses tão chega<strong>do</strong>s a si como o Senhor, nosso Deus, todas as<br />

vezes que o invocamos? 8 E que grande nação há que tenha estatutos e juízos<br />

tão justos como toda esta lei que eu hoje vos proponho? [Grifos meus]<br />

Israel seria reconheci<strong>do</strong> como um povo sábio e inteligente pela obediência<br />

à Lei <strong>do</strong> Senhor. Os povos poderiam encontrar a sabe<strong>do</strong>ria na maneira como<br />

viam o povo israelita viver e nas palavras contidas na Lei, que não eram<br />

advindas da sabe<strong>do</strong>ria humana, mas da revelação divina. Ao seguir seus preceitos,<br />

os demais povos veriam seu testemunho e estilo de vida reta e justa, e<br />

ouviriam os estatutos que faziam com que aquela nação fosse grande. Não se<br />

trata apenas de ver, mas de ouvir o que estava na Lei como parte da missão<br />

sacer<strong>do</strong>tal de Israel.<br />

Assim, tanto o “particularismo” quanto o “universalismo” presentes no<br />

pacto destacam a posição e a missão de Israel perante as nações da terra.<br />

Como partes integrantes da aliança, é natural que esses temas apareçam em<br />

to<strong>do</strong> o Antigo Testamento, inclusive nos Salmos, como será visto a seguir.<br />

48 CARRIKER, Missão integral, p. 67.<br />

49 WRIGHT, The mission of God, p. 331.<br />

50 KAISER JR., Teologia <strong>do</strong> Antigo Testamento, p. 114.<br />

<strong>21</strong>


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

2. a relevância <strong>do</strong> pacto nos salmos para A<br />

constituição de uma teologia bíblica de missões<br />

Já faz algum tempo que o tema “missões” tem si<strong>do</strong> identifica<strong>do</strong> e estuda<strong>do</strong><br />

no livro <strong>do</strong>s Salmos. Peters encontrou no saltério mais de 175 referências<br />

relacionadas à salvação e esperança das nações, denominan<strong>do</strong>-o o maior livro<br />

missionário <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. 51 Comentan<strong>do</strong> sobre a felicidade que estaria ao alcance<br />

de to<strong>do</strong>s os povos no final <strong>do</strong> Salmo 2, Futato enfatiza que “a intenção de Deus<br />

é que Davi e seus descendentes sirvam como media<strong>do</strong>res desta vida verdadeiramente<br />

feliz”, 52 que é obtida apenas quan<strong>do</strong> se está refugia<strong>do</strong> nele. Conforme<br />

visto, o antigo Israel fora chama<strong>do</strong> para servir às nações como media<strong>do</strong>r entre<br />

elas e Deus, cumprin<strong>do</strong> sua função sacer<strong>do</strong>tal. Por isso os salmos são repletos<br />

de anseios comunitários por ver as nações curvan<strong>do</strong>-se ao Deus único.<br />

Os salmos nos apresentam um quadro das nações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se sujeitan<strong>do</strong> ao<br />

nosso Deus. Este é tão grande que as nações devem apresentar-se e a<strong>do</strong>rar diante<br />

dele. Este quadro constitui não apenas uma visão <strong>do</strong> futuro, mas algo que instiga<br />

os salmistas com uma urgência missionária real. 53<br />

Na forma de composições poéticas, esse hinário deixava vívi<strong>do</strong>, através de<br />

canções, o dever de anunciar o senhorio <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r a todas as nações. “O fiel<br />

seria grandemente enriqueci<strong>do</strong> em seu pensamento missionário len<strong>do</strong> através<br />

<strong>do</strong>s salmos e destacan<strong>do</strong> todas as referências relacionadas às nações da terra”, 54<br />

uma vez que os povos faziam parte da agenda de Israel cantada nos salmos.<br />

Mesmo que a prática missionária de Israel não tenha si<strong>do</strong> tão explícita, sua<br />

teologia estava presente tanto em expressões comunitárias quanto individuais,<br />

como se pode perceber nos Salmos 2, 33, 66, 72, 98, 117 e 145, alista<strong>do</strong>s por<br />

Peters, 55 além <strong>do</strong>s Salmos 67 e 96, que mereceram atenção especial de Kaiser Jr. 56<br />

O que levou os salmistas a produzirem tantos salmos com a tônica missionária?<br />

Certamente não foi um sentimento positivo em relação aos povos<br />

que estavam em derre<strong>do</strong>r. Para exemplificar, Van Groningen faz referência<br />

à opinião de um comentarista judeu <strong>do</strong> livro <strong>do</strong>s Salmos, chama<strong>do</strong> Hirsch:<br />

“Javé é o Senhor de Sião, para Israel somente. [...] Para Hirsch não existe<br />

evangelho para outras nações”. 57 Se esse é o pensamento presente ainda hoje<br />

51 PETERS, A Biblical theology of missions, p. 116.<br />

52 FUTATO, Mark D. Interpretação <strong>do</strong>s Salmos. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 63.<br />

53 HARMAN, Allan. Salmos. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 44.<br />

54 PETERS, A Biblical theology of missions, p. 116.<br />

55 Ibid.<br />

56 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 30, 34.<br />

57 Hirsch apud VAN GRONINGEN, Gerard Van. Criação e consumação: o reino, a aliança e o<br />

Media<strong>do</strong>r. Vol. III. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 201.<br />

22


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

num comentarista judeu, quanto mais no passa<strong>do</strong> distante, quan<strong>do</strong> o povo de<br />

Israel tinha que enfrentar guerras com seus vizinhos e viver um estilo de vida<br />

e valores opostos aos deles.<br />

Andiñach, comentan<strong>do</strong> sobre a santidade que a nação israelita deveria<br />

ter, afirma que ser separa<strong>do</strong> para uma missão é uma ideia “estranha ao Antigo<br />

Testamento”. 58 Entretanto, é inegável a existência de um tom missionário em<br />

vários salmos, o que se evidencia na compreensão que os salmistas, inspira<strong>do</strong>s<br />

pelo Espírito Santo, possuíam da <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> pacto presente na Lei <strong>do</strong> Senhor.<br />

...os poetas refletiam uma percepção de suas situações contemporâneas. Expressaram<br />

o conhecimento daquilo que Deus Javé havia dito e feito em tempos<br />

passa<strong>do</strong>s. Retrataram uma necessidade real de estarem apercebi<strong>do</strong>s daquilo que<br />

Deus Javé queria que fossem e fizessem como seu povo da aliança. Os salmos<br />

assim revelam como o povo da aliança vivia, a<strong>do</strong>rava e servia a Deus Javé em<br />

suas vidas diárias. 59<br />

Em outras palavras, to<strong>do</strong> o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s salmos está firmemente fundamenta<strong>do</strong><br />

no que os salmistas conheciam: a Torah. Tanto as instruções quanto o<br />

mo<strong>do</strong> de viver, advertências, consolo, as expressões de desabafo (como aquelas<br />

presentes nos vários “salmos de lamento”), esperança, gratidão e louvor a<br />

Deus eram repetições, explicações e aplicações <strong>do</strong>s ensinos da Lei <strong>do</strong> Senhor<br />

ao cotidiano de seu povo. Como Crenshaw destacou: “Alguns intérpretes caracterizam<br />

o livro <strong>do</strong>s Salmos como um manual da vida espiritual”. 60<br />

Não é por acaso que o saltério esteja organiza<strong>do</strong> em cinco livros: Livro<br />

1: 1-41; Livro 2: 42-72; Livro 3: 73-89; Livro 4: 90-106 e Livro 5: 107-150.<br />

Cada um desses livros termina com uma <strong>do</strong>xologia semelhante à <strong>do</strong> Salmo<br />

41.13: “Louva<strong>do</strong> seja o Senhor, o Deus de Israel, de eternidade em eternidade!<br />

Amém e amém!”. Essa divisão já estava presente na Septuaginta, sen<strong>do</strong> muito<br />

antiga. 61 Desta forma, Futato conclui: “Ao combinarmos o senti<strong>do</strong> de tôrah<br />

como ‘instrução’ com a referência de tôrat yhwh (lei <strong>do</strong> Senhor) 62 aos cinco<br />

livros de Moisés, nós concluímos que o livro <strong>do</strong>s salmos convida os crentes a<br />

meditar nos cinco livros de Moisés”. 63<br />

O Livro <strong>do</strong>s Salmos enfeixa a fé de Israel num só livro. O formato no qual<br />

aparece é novo, porém não o conteú<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s os temas <strong>do</strong> livro são enfeixa<strong>do</strong>s<br />

58 ANDIÑACH, Pablo R. O livro <strong>do</strong> Êxo<strong>do</strong>: um comentário exegético-teológico. São Leopol<strong>do</strong>:<br />

Sinodal/EST, 2010, p. 258.<br />

59 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. III, p. 156-157.<br />

60 CRENSHAW, James L. The Psalms: An introduction. Grand Rapids: Eerdmans, 2001, p. 70.<br />

61 HARMAN, Salmos, p. 24.<br />

62 Torah – Lei; Torah Yahweh – Lei <strong>do</strong> Senhor.<br />

63 FUTATO, Interpretação <strong>do</strong>s Salmos, p. 49.<br />

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Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

pelo fato de ser a confissão de Israel, pois ele constitui o cre<strong>do</strong> de Israel, canta<strong>do</strong>,<br />

não recita<strong>do</strong>. Equivale dizer, ele expressa a nós o que os crentes em Israel de<br />

outrora sabiam e sentiam sobre o Senhor em quem confiavam. 64<br />

É claro que, ao se afirmar que o saltério se constitui num cre<strong>do</strong>, não se<br />

quer dizer que seja uma exposição <strong>do</strong>utrinária sistemática. Porém, mesmo que<br />

não seja um trata<strong>do</strong> <strong>do</strong>utrinário, “os salmos ensinam <strong>do</strong>utrina”, 65 mas um ensino<br />

direciona<strong>do</strong> às mais variadas situações da vida de uma forma poeticamente<br />

vibrante. O salmista, em seu íntimo relacionamento com Deus e sua Lei, de<br />

posse das variadas dinâmicas da vida a que estava exposto, era capaz de produzir<br />

uma teologia bem alicerçada naquilo que ele cria e que fora revela<strong>do</strong> por<br />

Deus. De acor<strong>do</strong> com McCann, é preciso “elevar o conceito de tôrah para um<br />

<strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s centrais no entendimento <strong>do</strong>s Salmos. [...] os salmos devem<br />

ser ouvi<strong>do</strong>s como instrução de Deus para a fidelidade”. 66<br />

Os salmos são não apenas expressões individuais da compreensão religiosa, mas<br />

antes são distintamente expressões de fé que procedem de uma comunidade de<br />

fé. A esfera da qual os cânticos de Israel vêm era a comunidade pactual, vinculada<br />

por compromisso comum com o Senhor. [...] provém de um compromisso<br />

comum com o Deus de Israel. 67<br />

Os salmistas tecem suas composições no contexto da aliança expressa na<br />

tôrah por viverem numa comunidade pactual. “Este é o povo que fala a Deus<br />

e sobre Deus na base de estar em um relacionamento de aliança com ele”. 68<br />

Este pacto é que une os muitos temas trata<strong>do</strong>s no saltério e fornece a “lente”<br />

correta para interpretá-los. Qualquer tema trata<strong>do</strong> não estará desalinha<strong>do</strong> ou<br />

absorvi<strong>do</strong> em um quadro de referência maior. Daí a importância de se mostrar<br />

no capítulo primeiro alguns princípios nortea<strong>do</strong>res <strong>do</strong> pacto que Deus firmou<br />

com o seu povo, que faz com que se entenda o aspecto missionário presente<br />

nos salmos. Os poemas estão carrega<strong>do</strong>s de convicções teológicas pactuais,<br />

mesmo que travesti<strong>do</strong>s de sentimentos humanos.<br />

Há <strong>do</strong>is temas presentes nos salmos que merecem atenção por expressarem<br />

um caráter missionário. O primeiro, mesmo que a princípio não pareça, é<br />

a majestade e realeza de Deus. O segun<strong>do</strong> são as nações da terra como alvos<br />

da proclamação da mensagem redentora. Longe de serem explora<strong>do</strong>s exaustivamente,<br />

serão apenas destaca<strong>do</strong>s aqui.<br />

64 HARMAN, Salmos, p. 16.<br />

65 LONGMANN III, Tremper. How to read the Psalms. Doners Grove: Intervarsity, 1988, p. 52.<br />

66 McCANN, J. Clinton. A theological introduction to the book of Psalms: The Psalm as Torah.<br />

Nashville: Abing<strong>do</strong>n, 1993, p. 25.<br />

67 HARMAN, Salmos, p. 29. Grifo meu.<br />

68 LONGMANN III, How to read the Psalms, p. 57.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

2.1 A realeza de Yahweh<br />

Ao abordar a realeza de Yahweh nos salmos, Kraus afirma que “Yahweh<br />

reina sobre as nações. ...a atuação judicial <strong>do</strong> ‘rei’ Yahweh se estende às nações<br />

(Sl 96.10,13; 98.9)”. 69 Tal realeza sobre as nações aponta para o fato de que o<br />

Cria<strong>do</strong>r é o <strong>do</strong>no de toda a terra e que as nações continuam sob o seu <strong>do</strong>mínio,<br />

conforme visto anteriormente em Êxo<strong>do</strong> 19.5b: “porque toda terra é minha”.<br />

Carriker afirma que “os salmos enfatizam o <strong>do</strong>mínio real de Iahweh sobre<br />

Israel, as nações e toda a sua criação”. 70 Nada foge ao seu <strong>do</strong>mínio e governo<br />

e as divindades erigidas pelos povos não passam de í<strong>do</strong>los (Sl 96.5).<br />

Nos salmos, não são poucas as referências a esse reina<strong>do</strong> na terra. Apenas<br />

para citar algumas: “Deus reina sobre as nações; Deus se assenta no seu<br />

santo trono” (Sl 47.8); “Deus ouvirá e lhes responderá, ele, que preside desde<br />

a eternidade, porque não há neles mudança nenhuma, e não temem a Deus”<br />

(Sl 55.19). To<strong>do</strong> o Salmo 2 e outros salmos declaram a majestade e o reina<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> Senhor sobre o cosmos, sobre to<strong>do</strong>s os povos, inclusive sobre os fenômenos<br />

da natureza e as forças que ameaçam o mun<strong>do</strong> ordena<strong>do</strong>, conforme se pode<br />

ver no Salmo 29.10: “O Senhor preside aos dilúvios; como rei, o Senhor<br />

presidirá para sempre”. Neste último versículo a palavra mabbûl (dilúvio) “é<br />

uma referência mitopoética às águas caóticas <strong>do</strong> mar que ameaçam o mun<strong>do</strong><br />

bem ordena<strong>do</strong>, mas que foram subjugadas pelo Senhor”. 71 Nada foge ao seu<br />

<strong>do</strong>mínio, governo e soberania, e o mun<strong>do</strong> não está sujeito ao caos e ao acaso.<br />

Os salmos declaram de várias maneiras que o Deus vivo – o Grande Rei –<br />

não é uma divindade nacional e que seu <strong>do</strong>mínio vai para além das fronteiras<br />

<strong>do</strong> povo que escolheu para revelar e fazer dele veículo de anúncio da sua Lei.<br />

Ele é o Rei de toda a terra e todas as nações precisam saber a quem devem<br />

louvar, uma vez que é ele quem julga os povos com equidade e guia na terra as<br />

nações (Sl 67.5). Por isso a realeza <strong>do</strong> Senhor por si só já é um estímulo à obra<br />

missionária. Conforme Harman, os salmos expressam “um ar<strong>do</strong>r em seu anelo<br />

de ver todas as nações se curvan<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> Rei e se sujeitan<strong>do</strong> ao seu governo.<br />

A visão <strong>do</strong> reino final de Deus os impele com um espírito missionário real”. 72<br />

Ao tratar sobre a realeza e o governo de Deus na terra, os salmistas não<br />

estão interessa<strong>do</strong>s apenas em fazer uma declaração, mas uma conclamação a<br />

que os povos reconheçam e se submetam a ser vassalos conscientes e servos<br />

desse reino. O Salmo 2.2-4 afirma: “ Os reis da terra se levantam, e os príncipes<br />

conspiram contra o Senhor e contra o seu Ungi<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>: Rompamos os<br />

seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-se aquele que habita nos<br />

69 KRAUS, Hans-Joachim. Teologia de los Salmos. Salamanca, Espanha: Sígueme, 1985, p. 37.<br />

70 CARRIKER, Missão integral, p. 118.<br />

71 FUTATO, Interpretação <strong>do</strong>s Salmos, p. 61.<br />

72 HARMAN, Salmos, p. 45.<br />

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Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

céus; o Senhor zomba deles”. Esse salmo mostra como as nações acham que<br />

podem sobreviver sem o grande Rei, ignoran<strong>do</strong>-o ou achan<strong>do</strong>-se fora de seus<br />

<strong>do</strong>mínios. Porém, mesmo a ignorância não os livrará <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> Soberano<br />

Rei. O Senhor zomba dessa inútil tentativa de libertar-se, mas deseja que todas<br />

as nações experimentem a felicidade submeten<strong>do</strong>-se ao seu governo: “Bem-<br />

-aventura<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os que nele se refugiam” (Sl 2.12).<br />

Ainda no segun<strong>do</strong> Salmo, Futato destaca <strong>do</strong>is aspectos escatológicos que<br />

ilustram a dimensão da monarquia e governo divinos: 1. Deus governa todas<br />

as coisas a despeito de circunstâncias contrárias, exigin<strong>do</strong> fé de seus súditos;<br />

2. Não há como escapar <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> Deus to<strong>do</strong>-poderoso, por isso<br />

ele ri das nações que tentam fazê-lo (v. 4). No final de tu<strong>do</strong>, um descendente<br />

<strong>do</strong> trono de Davi (o ungi<strong>do</strong>) governará a tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s, submeten<strong>do</strong> todas as<br />

nações ao seu <strong>do</strong>mínio. Por essa razão, a mensagem de esperança às nações é<br />

que se sujeitem ao seu <strong>do</strong>mínio desde já, para que não sofram a ira <strong>do</strong> Senhor<br />

e experimentem a felicidade refugian<strong>do</strong>-se nele. 73<br />

2.2 As nações incluídas no projeto redentor<br />

O outro aspecto teológico que merece atenção é o relacionamento <strong>do</strong><br />

povo de Israel com as nações que não receberam o privilégio da revelação pactual<br />

de Deus. Na primeira parte deste artigo afirmou-se que Deus não rejeitou<br />

as nações ao tomar a Israel como sua propriedade preciosa. Pelo contrário, as<br />

fez alvo de seu amor por meio de uma tarefa designada a seu servo Israel. Foi<br />

ele quem as criou, como está descrito no Salmo 86.9: “Todas as nações que<br />

fizeste virão, prostrar-se-ão diante de ti, Senhor, e glorificarão o teu nome”.<br />

Por isso, quan<strong>do</strong> transgredia os preceitos da aliança o povo de Israel era disciplina<strong>do</strong><br />

pelo Senhor, que utilizava as próprias nações como seus instrumentos<br />

de punição, como destaca Blauw:<br />

Muitas vezes, particularmente nos livros históricos <strong>do</strong> Antigo Testamento, as<br />

nações são ameaça a Israel no campo da política e tentação com respeito à religião.<br />

Sempre que não resistiu à tentação de associar-se aos deuses das nações,<br />

e sempre que se deixou atrelar a eles, Israel perdeu seu significa<strong>do</strong> e direito de<br />

existência, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> ameaça<strong>do</strong> e derrota<strong>do</strong> por eles. 74<br />

As nações deveriam ver os atos <strong>do</strong> Senhor no meio <strong>do</strong> seu povo e ficar<br />

maravilhadas e estimuladas a ouvir acerca de quem ele é. De fato, na maioria<br />

das vezes Israel se viu perante os povos mais como uma nação privilegiada<br />

<strong>do</strong> que como uma nação deve<strong>do</strong>ra aos povos. Muitas vezes, com o desejo de<br />

conservar sua santidade, cultivou um olhar distante ou até inimigo das nações.<br />

73 FUTATO, Interpretação <strong>do</strong>s Salmos, p. 63-64.<br />

74 BLAUW, A natureza missionária da igreja, p. 25.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

O Salmo 99.1-2 afirma: “Reina o Senhor; tremam os povos. Ele está entroniza<strong>do</strong><br />

acima <strong>do</strong>s querubins; abale-se a terra. O Senhor é grande em Sião e<br />

sobremo<strong>do</strong> eleva<strong>do</strong> acima de to<strong>do</strong>s os povos”. Futato, comentan<strong>do</strong> sobre esses<br />

versículos, destaca que as nações deveriam louvar ao Senhor porque ele está<br />

exalta<strong>do</strong> acima de todas elas. “Como Israel, as nações devem exaltar ao Senhor<br />

porque ele é para elas um ‘Deus per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>r’ (v. 8), assim como ele é para<br />

Israel”. 75 As nações deveriam a<strong>do</strong>rar ao Senhor e também gozar de suas bênçãos.<br />

O Salmo 117.2 é enfático quanto ao motivo pelo qual to<strong>do</strong>s os povos e<br />

to<strong>do</strong>s os gentios são intima<strong>do</strong>s a louvar o Senhor: “Porque mui grande é a sua<br />

misericórdia para conosco, e a fidelidade <strong>do</strong> Senhor subsiste para sempre”.<br />

Novamente Futato enfatiza:<br />

A palavra “conosco” inclui as nações ou apenas Israel? Até certo nível, o “conosco”<br />

indica Israel. Como em Isaías 40-55, as nações são aqui convidadas a<br />

considerarem o amor e a fidelidade de Deus que foram demonstra<strong>do</strong>s na história<br />

de Israel. Esse convite visa levar Israel a louvar e exaltar ao Senhor. Em adição,<br />

o salmo convida as nações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a reconhecerem em um povo um penhor<br />

da generosidade e justiça <strong>do</strong> único Senhor para com to<strong>do</strong>s. 76<br />

Paulo, referin<strong>do</strong>-se ao Salmo 117.1, afirma em Romanos 15.11: “E ainda:<br />

Louvai ao Senhor, vós to<strong>do</strong>s os gentios, e to<strong>do</strong>s os povos o louvem”. Ele<br />

possuía o entendimento claro de que às nações é da<strong>do</strong> o privilégio de usufruir<br />

das mesmas bênçãos prometidas ao povo de Israel, desde o Antigo Testamento.<br />

“Israel foi abençoa<strong>do</strong> para ser uma bênção entre as nações. [...] A bênção veio<br />

a Israel como um meio de alcançar as nações”. 77<br />

Não são poucos os salmos que expressam o comissionamento de to<strong>do</strong>s<br />

os povos a louvar ao Senhor, bem como a responsabilidade de Israel com o<br />

anúncio da glória <strong>do</strong> Senhor a toda terra, como os Salmos 9.11; 45.17; 47.1,<br />

9; 66.8; 72.11, 17; 86.9; 96.3; 97.7, 10; 102.15; 105.1, dentre outros. Mesmo<br />

compostos e canta<strong>do</strong>s na nação israelita, nesses salmos não há pretensão de um<br />

<strong>do</strong>mínio político sobre as demais nações da terra, mas de que estas conheçam<br />

o Deus verdadeiro e o a<strong>do</strong>rem. Conforme afirmou Wright, “a missão de Deus<br />

é abençoar todas as nações da terra. [...] Israel no Antigo Testamento não foi<br />

escolhi<strong>do</strong> em oposição ao restante das nações, mas para abençoar todas as<br />

nações”. 78 A motivação de Israel não era uma subjugação política, mas obediência<br />

à missão que lhe havia si<strong>do</strong> confiada por Deus.<br />

75 FUTATO, Interpretação <strong>do</strong>s Salmos, p. 97.<br />

76 Ibid., p. 98-99.<br />

77 PIPER, John. Alegrem-se os povos: a supremacia de Deus em missões. São Paulo: Cultura<br />

Cristã, 2001, p. 199.<br />

78 Wright apud MOSKALA, Jirí. The mission of God’s people in the Old Testament. Journal of<br />

the Adventist Theological Society 19/1-2, 2008, p. 42.<br />

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Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

Há ainda salmos que expressam a consciência que o povo de Israel tinha<br />

de que a salvação <strong>do</strong> Senhor deveria ser anunciada às nações, como afirma o<br />

Salmo 96.3: “Anunciai entre as nações a sua glória, entre to<strong>do</strong>s os povos, as<br />

suas maravilhas”. A glória e as maravilhas de Deus não deveriam permanecer<br />

apenas na memória da nação israelita e servir de instrumento para lhes fortalecer<br />

a fé no Deus to<strong>do</strong>-poderoso que cumpre promessas e cuida <strong>do</strong>s seus.<br />

O caráter divino e suas obras deveriam ser proclama<strong>do</strong>s a todas as nações da<br />

terra. Para que fique ainda mais claro o significa<strong>do</strong> imperativo desse anúncio,<br />

Kaiser Jr. explica:<br />

A palavra hebraica para “proclamar” é no Antigo Testamento equivalente à<br />

palavra euangelizomai <strong>do</strong> Novo Testamento, “trazer boas notícias”, “anunciar<br />

boas novas” ou “anunciar o evangelho”. Como é comumente conheci<strong>do</strong>, o<br />

“anúncio das boas notícias” no Novo Testamento é aplica<strong>do</strong> à obra consumada<br />

de Cristo na cruz. E aqui ela é expressamente aplicada ao chama<strong>do</strong> para anunciar<br />

essas mesmas boas notícias sobre o Messias para as nações e povos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Certamente que isso tu<strong>do</strong> é missões. 79<br />

O versículo 10 <strong>do</strong> Salmo 96, afirma: “Dizei entre as nações: Reina o<br />

Senhor. Ele firmou o mun<strong>do</strong> para que não se abale e julga os povos com equidade”.<br />

O verbo inicial é um imperativo para que se faça a realeza <strong>do</strong> Senhor<br />

conhecida entre os povos que a ignoram. O julgamento imparcial e reto que<br />

Deus realiza sobre os povos é de grande importância para o tema missionário<br />

<strong>do</strong>s salmos, como será visto na próxima seção.<br />

Portanto, a função de media<strong>do</strong>r entre Deus e os povos é de fundamental<br />

importância na composição da identidade <strong>do</strong> povo israelita. Esse “sacerdócio<br />

real” de Israel deve ser visto como uma participação mais ativa. Mesmo reconhecen<strong>do</strong><br />

o papel de media<strong>do</strong>r, alguns teólogos não têm da<strong>do</strong> a devida ênfase,<br />

conforme comenta Kaiser Jr.:<br />

Mais recentemente, estudiosos, muito infelizmente, têm muda<strong>do</strong> e visto o papel<br />

de Israel em levar a mensagem da salvação aos gentios apenas pelo significa<strong>do</strong><br />

da mediação, mas não por um testemunho ativo. Isso faz de Israel uma testemunha<br />

meramente passiva. 80<br />

Pode-se afirmar que os vários salmos que expressam o desejo de que<br />

as nações louvem e reconheçam a realeza de Deus têm o seu fundamento na<br />

compreensão que Israel possuía de sua tarefa na aliança. Como “propriedade<br />

peculiar” e “reino de sacer<strong>do</strong>tes”, deveriam ver-se como os primeiros receptores<br />

da Lei <strong>do</strong> Senhor, acatar, andar e obedecer aos estatutos que ele ordenou e<br />

79 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 34.<br />

80 Ibid., p. 56.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

usufruir <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> e das bênçãos advindas <strong>do</strong> Senhor. Mas cabia-lhes também<br />

a missão de serem preceptores dessa Lei, desejan<strong>do</strong> ver a glória de Deus<br />

entre as nações, ansiosos por vê-las reconhecen<strong>do</strong> a majestade e o governo de<br />

Deus com louvores e ações de graças.<br />

Van Groningen, ao tratar sobre o universalismo presente nos salmos,<br />

lembra que o mandato espiritual era para ser obedeci<strong>do</strong> não apenas por Israel,<br />

mas por to<strong>do</strong>s os povos, uma vez que “o mandato espiritual foi um aspecto<br />

integral da aliança criacional. Todas as pessoas estão debaixo dessa aliança.<br />

Portanto era e é obrigatório para to<strong>do</strong>s conhecer, entender e obedecer a esse<br />

mandamento pactual”. 81 Israel possuía a revelação dessa exortação, sen<strong>do</strong>, por<br />

isso, deve<strong>do</strong>r aos povos ao seu re<strong>do</strong>r, que não receberam a mesma revelação<br />

em sua plenitude.<br />

Portanto, o tom missionário <strong>do</strong>s salmos revela a teologia da aliança que<br />

os permeia. A seguir, o Salmo 67 será utiliza<strong>do</strong> como demonstração de que<br />

seu tom missionário e de gratidão a Deus pelas bênçãos remonta claramente à<br />

aliança com Abraão, tanto quanto à aliança renovada agora com Israel como<br />

nação no Monte Sinai. O aspecto missionário presente no Salmo 67 não é<br />

acidental, mas proposital, advin<strong>do</strong> da mais nobre compreensão <strong>do</strong> privilégio<br />

e da responsabilidade <strong>do</strong> pacto.<br />

3. a memória missionária <strong>do</strong> pacto – aspectos<br />

literários e teológicos no Salmo 67<br />

Este pode ser considera<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s salmos que mais destacam aspectos<br />

<strong>do</strong> pacto que Deus havia realiza<strong>do</strong> com Abraão, sobretu<strong>do</strong> seu plano de<br />

abençoar todas as famílias da terra. Conforme descrito, a “aliança abraâmica”<br />

ganhou corpo com a sua renovação firmada entre Deus e a posteridade de<br />

Abraão quan<strong>do</strong> esta se fez povo em Êxo<strong>do</strong> 19.5-6. Robertson, comentan<strong>do</strong><br />

sobre a aliança mosaica ao pé <strong>do</strong> Monte Sinai, ressaltou isto: “A aliança da<br />

lei representa avanço na nacionalização <strong>do</strong> povo da aliança. Até essa altura, o<br />

tratamento de Deus tinha si<strong>do</strong> com uma família. Agora, ele estabelece aliança<br />

com uma nação”. 82 Como nação, as bênçãos divinas deveriam lembrá-los da<br />

responsabilidade sacer<strong>do</strong>tal de abençoar as famílias da terra.<br />

Kidner, em seu comentário sobre o Salmo 67, escreve: “Se houvesse um<br />

salmo escrito acerca das promessas feitas a Abraão, no senti<strong>do</strong> de que este seria<br />

abençoa<strong>do</strong> e transforma<strong>do</strong> em bênção para os outros, bem poderia ser como<br />

este”. 83 Esse salmo está presente na liturgia israelita para que o povo relembre<br />

os aspectos essenciais de sua constituição como povo escolhi<strong>do</strong>.<br />

81 VAN GRONINGEN, Criação e consumação, vol. III, p. 199.<br />

82 ROBERTSON, Cristo <strong>do</strong>s Pactos, p. 168.<br />

83 KIDNER, Derek. Salmos 1-72: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova; Mun<strong>do</strong> Cristão,<br />

1992, p. 258.<br />

29


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

3.1 Estrutura literária<br />

Bosma e Talstra 84 demonstraram que esse salmo possui uma estrutura<br />

concêntrica que coloca em evidência o versículo 5, o qual, por sua vez, é<br />

“emoldura<strong>do</strong>” pelos versículos 4 e 6. Com tal arranjo, o compositor destacou<br />

que as nações tinham motivo de sobra para exultar e louvar a Deus, uma<br />

vez que ele é quem as está dirigin<strong>do</strong> em seus passos de maneira justa e reta. 85<br />

Esses versículos formariam o estribilho que “provavelmente era canta<strong>do</strong> pela<br />

assembleia ou pelo coro”. 86 Se essas observações fazem senti<strong>do</strong>, então também<br />

faria senti<strong>do</strong> dizer que o ponto central da mensagem <strong>do</strong> salmo está no anseio,<br />

coloca<strong>do</strong> diante de Deus, de que as nações da terra viessem a conhecê-lo e a<br />

louvá-lo. Eis a estrutura <strong>do</strong> salmo, segun<strong>do</strong> Bosma e Talstra:<br />

Superscrição: Salmo 67.1: Ao mestre de canto. Para instrumentos de<br />

cordas. Salmo. Cântico.<br />

A<br />

1<br />

Seja Deus gracioso para conosco,<br />

e nos abençoe,<br />

e faça resplandecer sobre nós o rosto;<br />

2<br />

para que se conheça na terra (a$r$x) o teu caminho<br />

e, em todas as nações (gôyim), a tua salvação.<br />

B<br />

3<br />

Louvem-te os povos (u^


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

Kaiser Jr. observa: “A estrutura é quase uma réplica exata de Gênesis 12.2-3 –<br />

Abençoe-nos... abençoe-nos... abençoe-nos... então as nações poderão vir a<br />

conhecer o Senhor”. 87 O objetivo disso é relacionar as bênçãos não só com o<br />

sinal de reconhecimento <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> de Deus sobre a nação, como também à<br />

lembrança <strong>do</strong> comissionamento de ser bênção para os povos da terra, uma das<br />

responsabilidades embutidas na aliança.<br />

Ao montar a estrutura <strong>do</strong> Salmo 67, Bosma e Talstra também destacaram a<br />

palavra “terra”, que aparece 4 vezes e as 8 referências a nações, povos e gentes,<br />

pelo uso de 3 palavras hebraicas diferentes. Nisso também é perceptível que<br />

o autor <strong>do</strong> salmo deseja que o foco esteja sobre o universalismo, ou seja,<br />

que a salvação divina se faça conhecida em toda a terra, nos povos, gentes<br />

e nações. Tal salvação se tornará conhecida por intermédio <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong><br />

sacerdócio real de Israel.<br />

3.2 Aspectos exegéticos<br />

Quanto à categoria literária <strong>do</strong> salmo, Dorsey considera o Salmo 67 um<br />

hino de louvor. Isso porque acredita que no centro <strong>do</strong> salmo há uma oração<br />

para que todas as nações louvem a Deus. Dessa forma, o desejo <strong>do</strong> salmista<br />

por bênçãos sobre Israel teria como objetivo o louvor das nações. 88 Waiser o<br />

considera um “cântico de agradecimento a ser pronuncia<strong>do</strong> pelo povo, peça<br />

de uma celebração litúrgica festiva”. 89 Da mesma forma, Anderson acredita<br />

ser um hino de gratidão. 90 Schökel e Carniti são da opinião de que a categoria<br />

desse salmo é “bênção em forma de petição”. 91 Entretanto, onde as expressões<br />

de louvor <strong>do</strong> salmo se encaixariam nessa forma?<br />

Esses autores argumentam que a súplica pelas bênçãos de Deus expressa<br />

o reconhecimento <strong>do</strong> seu recebimento. Fica perceptível nessas abordagens que<br />

muitos elementos importantes <strong>do</strong> salmo ficam de la<strong>do</strong>. De acor<strong>do</strong> com Kraus,<br />

Gunkel classificou o salmo como “ação de graças efetuada pela comunidade”,<br />

mas acabou por fazer alguns arranjos para que se adaptasse a essa forma. Portanto,<br />

prefere optar por que o salmo não apresente uma forma definida, sen<strong>do</strong><br />

um salmo singular. 92<br />

87 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 31.<br />

88 DORSEY, David A. The literary structure of the Old Testament: a commentary on Genesis–<br />

Malachi. Grand Rapids: Baker, 1999, p. 179-180.<br />

89 WAISER, Os Salmos, p. 354.<br />

90 ANDERSON, A. A. The Book of Psalms. Psalms 1-72. Vol. I. Grand Rapids: Eedermans, 1972,<br />

p. 479.<br />

91 SCHÖKEL, Luis Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I. Traducción, introducciones y comentario.<br />

Estella: Editorial Verbo Divino, 1992, p. 864.<br />

92 KRAUS, Hans-Joachim. Los Salmos. Salmos 60-150. Vol. II. Salamanca: Sígueme, 1995, p. 68.<br />

31


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

O fato é que o salmo tem elementos de oração (fato comprova<strong>do</strong> pelos<br />

jussivos presentes 93 que expressam desejos e petições 94 ), é comunitário<br />

(encontra-se na terceira pessoa <strong>do</strong> plural) e reconhece as bênçãos <strong>do</strong> Senhor<br />

sobre si (um tom de gratidão): “a terra deu o seu fruto” (v. 6). De fato, não é<br />

um salmo simples de categorizar. Entretanto, além de não prejudicar na interpretação<br />

correta desse belíssimo salmo, atesta sua particularidade com forte<br />

ênfase missionária.<br />

Quanto à ocasião em que foi canta<strong>do</strong>, os comentaristas parecem concordar<br />

que “tenha si<strong>do</strong> composto para a festa de ação de graças pela colheita”. 95<br />

Waiser argumenta que essas festas de colheita desempenhavam papel importante<br />

na vida religiosa israelita. Porém, destaca que o foco <strong>do</strong> Salmo 67 não<br />

era simplesmente um reconhecimento de bênçãos pela colheita, mas também<br />

atestava a presença de Deus na comunidade e se tornava garantia de salvação<br />

para to<strong>do</strong>s os povos. 96 O objetivo não estava primariamente liga<strong>do</strong> ao bem-estar<br />

<strong>do</strong> homem, mas à manifestação da glória de Deus entre as nações.<br />

Harman concorda com esse parecer de Waiser: “As bênçãos materiais e<br />

espirituais parecem enfeixar-se, pois a bênção de Israel está vinculada à ideia<br />

de que os confins da terra temerão o Senhor”. 97 O Salmo 67, portanto, não é<br />

primeiramente uma expressão de gratidão de alguém que está receben<strong>do</strong> e sen<strong>do</strong><br />

beneficia<strong>do</strong> por bênçãos materiais. O reconhecimento <strong>do</strong>s benefícios divinos<br />

manifestos no salmo é uma admissão de que “nada mais importa senão a necessidade<br />

que o homem tem <strong>do</strong> próprio Deus”. 98 Tanto o povo de Israel quanto<br />

os demais povos da terra deveriam reconhecer isso.<br />

Kaiser a<strong>do</strong>ta a mesma divisão que foi proposta aqui para analisar o<br />

salmo, desmembran<strong>do</strong>-o em três momentos: versículos 1-3, 4-6 e 7-8. Sua<br />

marcação será utilizada para a exposição da mensagem <strong>do</strong> salmo, em que o<br />

salmista convida Israel e os crentes a experimentarem os propósitos divinos<br />

em abençoar todas as nações. 99<br />

93 “O jussivo é usa<strong>do</strong> para expressar vontade, desejo ou ordem de quem fala” (KELLEY, Page.<br />

Hebraico bíblico: uma gramática introdutória. São Leopol<strong>do</strong>: Sinodal/EST, 1998, p. 165). “O ‘imperativo<br />

da terceira pessoa’ é denomina<strong>do</strong> jussivo. A forma <strong>do</strong> jussivo é idêntica à <strong>do</strong> imperfeito e, na maioria<br />

<strong>do</strong>s casos, só pode ser distinguida <strong>do</strong> imperfeito pelo contexto” (BARTELT, <strong>Andrew</strong> H. Gramática <strong>do</strong><br />

hebraico bíblico: fundamentos. Canoas, RS: Ulbra, 2006, p. 1<strong>21</strong>).<br />

94 Kraus parece concordar que interpretar os imperfeitos como jussivos faz com que o salmo<br />

adquira uma forma de “cântico de oração da comunidade” (Los Salmos, p. 69).<br />

95 WAISER, Os Salmos, p. 354.<br />

96 Ibid., p. 354-355.<br />

97 HARMAN, Salmos, p. 255.<br />

98 KIDNER, Salmos 1-72, p. 258.<br />

99 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 31-32.<br />

32


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

3.2.1 O motivo de Deus abençoar a Israel está diretamente<br />

associa<strong>do</strong> ao seu anseio por ser conheci<strong>do</strong> pelos demais<br />

povos da terra – Sl 67.1-2<br />

O início <strong>do</strong> salmo é marca<strong>do</strong> por uma clara referência à bênção de Arão,<br />

com algumas modificações.<br />

Salmo 67.1 Números 6.24-25<br />

Seja Deus gracioso para conosco, e nos<br />

abençoe, e faça resplandecer sobre nós o<br />

rosto<br />

24<br />

O Senhor te abençoe e te guarde;<br />

25<br />

o Senhor faça resplandecer o rosto<br />

sobre ti e tenha misericórdia de ti<br />

A primeira modificação que salta aos olhos é que o salmista não utiliza<br />

o nome de yhwh (Javé) – em conformidade com o texto de Números – mas<br />

opta por a#Ohîm. Essa mudança não parece ser acidental, uma vez que o nome<br />

a#Ohîm (Deus) era preferi<strong>do</strong> ao abordar o relacionamento <strong>do</strong> Senhor com<br />

povos, nações e com o restante da criação, ao passo que o nome Javé (Senhor)<br />

era utiliza<strong>do</strong> pelo povo da aliança num contexto de relacionamento íntimo. 100<br />

A segunda modificação importante é a troca <strong>do</strong> sujeito da segunda pessoa<br />

<strong>do</strong> singular para a primeira <strong>do</strong> plural, destacan<strong>do</strong> ainda mais o tom de<br />

súplica comunitária para que a bênção divina fosse ministrada a toda a nação.<br />

O versículo 2 realça o motivo por que essa bênção deveria ser graciosamente<br />

atendida por Deus: “para que se conheça na terra o teu caminho e, em todas<br />

as nações, a tua salvação”. Mesmo que o bom resulta<strong>do</strong> da colheita fosse<br />

uma realidade (v. 6a), a petição não visa bênçãos para o salmista ou mesmo<br />

para Israel em si, mas para que isso sinalizasse a salvação de to<strong>do</strong>s os povos.<br />

A “Bênção Araônica”, aplicada com essa modificação, explicita a consciência<br />

que o compositor <strong>do</strong> salmo possuía <strong>do</strong> texto de Gênesis 12.1-3, onde as<br />

bênçãos advindas <strong>do</strong> Senhor seriam dadas à descendência de Abraão com a<br />

finalidade de que todas as famílias da terra também se tornassem partícipes<br />

delas, conforme se vê no v. 7: “Abençoe-nos Deus, e to<strong>do</strong>s os confins da terra<br />

o temerão”. 101 A moldura maior <strong>do</strong> salmo é o tema da “bênção”, sen<strong>do</strong> isso o<br />

que ressalta sua natureza missionária.<br />

3.2.2 O motivo de Deus abençoar a Israel está diretamente<br />

associa<strong>do</strong> ao seu anseio por ser reconheci<strong>do</strong> como guia e juiz<br />

de todas as nações – Salmo 67.3-5<br />

Há um pequeno inclusio presente entre os versículos 4 e 6:<br />

100 Ibid., p. 31.<br />

101 BLAUW, A natureza missionária da igreja, p. 26.<br />

33


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

B<br />

3<br />

Louvem-te os povos (u^


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

Duas palavras merecem destaque no v. 4: “julgas” e “guias”. A primeira<br />

palavra fala de Deus como juiz (s)p@t) <strong>do</strong>s povos. Uma leitura superficial e<br />

desatenta poderia gerar uma impressão negativa de um juiz distante disposto<br />

apenas a condenar. No entanto, o salmista afirma que isso é motivo de alegria<br />

e não de tristeza para to<strong>do</strong>s os povos: “A ação de julgar <strong>do</strong> Deus de Israel proporciona<br />

às nações ajuda salvífica em seus direitos, de maneira que em to<strong>do</strong>s<br />

os confins da terra deve reinar a alegria e o júbilo”. 106 Faz parte <strong>do</strong> caráter<br />

de Deus, como supremo Rei, julgar de maneira correta. “Ele não é Juiz num<br />

senti<strong>do</strong> jurídico/condenatório (<strong>do</strong> termo), mas um governante real que governa<br />

justamente”. 107 As nações podem se alegrar porque seu governo é justo e<br />

conduz à salvação: “Julgamento de Deus é, nesse versículo, a ordem salvífica<br />

divina, sobre a qual o homem pode edificar e confiar”. 108<br />

A outra palavra chega a ser surpreendente. “Guias” (n^j^h) demonstra<br />

que Deus não exerce apenas o papel de Rei de toda a terra como juiz, mas como<br />

pastor que conduz graciosamente as nações. O Soberano conduz toda a terra,<br />

acompanha<strong>do</strong> por uma “preocupação pastoral” que evidencia uma liderança<br />

terna e graciosa. 109 Esse termo era comumente aplica<strong>do</strong> à nação israelita como<br />

rebanho <strong>do</strong> Senhor, como se vê no Salmo 23.3, mas o Salmo 67 deixa explícito<br />

que seu pastoreio não está circunscrito ao território ou nação israelita, onde era<br />

a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>. Há razões maiores “por que ele precisa ser reconheci<strong>do</strong> como Senhor<br />

e salva<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong>s os povos da terra”. 110<br />

Alguns comentaristas optam por ler essa declaração <strong>do</strong> versículo 5 como<br />

um anseio escatológico. 111 Entretanto, à luz de toda informação apresentada, fica<br />

claro que as palavras dirigidas a Deus pela congregação de Israel expressam<br />

o anseio de vê-lo a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os povos como um anelo presente. Esse<br />

pensamento reflete o entendimento pactual que possuíam de que as próprias<br />

bênçãos divinas sobre eles teriam como fim o reconhecimento <strong>do</strong> governo de<br />

Deus por parte de todas as nações.<br />

3.2.3 O motivo de Deus abençoar a Israel está diretamente<br />

associa<strong>do</strong> ao cuida<strong>do</strong> para com o seu escolhi<strong>do</strong> –<br />

Salmo 67.6-8<br />

“A terra (a$r$x) deu o seu fruto e Deus, o nosso Deus, nos abençoa”<br />

(Sl 67.6). A fertilidade da terra, motivo pelo qual esse salmo é comumente<br />

106 KRAUS, Los Salmos, p. 70.<br />

107 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 32.<br />

108 WAISER, Os Salmos, p. 357.<br />

109 KIDNER, Salmos 1-72, p. 259.<br />

110 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 32-33.<br />

111 TERRIEN, Samuel L. The Psalms: strophic structure and theological commentary. Grand Rapids:<br />

Eerdmans, 2003, p. 484.<br />

35


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

associa<strong>do</strong> à festa da colheita, reconhece que essa bênção era uma dádiva <strong>do</strong><br />

Senhor. Era essa a bênção a que o salmista se referia no primeiro versículo<br />

quan<strong>do</strong> evocou a Bênção Araônica: “...e nos abençoe”. O fruto da terra atestava<br />

que eles haviam acha<strong>do</strong> graça diante daquele que continuava fiel à sua aliança,<br />

conforme Levítico 26.3-4: “Se andardes nos meus estatutos, guardardes<br />

os meus mandamentos e os cumprirdes, então, eu vos darei as vossas chuvas<br />

a seu tempo; e a terra dará a sua messe, e a árvore <strong>do</strong> campo, o seu fruto”.<br />

“Toda colheita é cumprimento da promessa divina”. 112<br />

Entretanto a palavra “terra” (a$r$x) não é relacionada apenas ao solo da<br />

colheita, mas ao mun<strong>do</strong> onde vivem to<strong>do</strong>s as nações, conforme o versículo 4c:<br />

“e guias na terra (a$r$x) as nações”. Pode-se deduzir, portanto, que haja uma<br />

estreita conexão entre os termos no lugar em que estão coloca<strong>do</strong>s no salmo.<br />

A fertilidade da terra não é um fim em si e nem tem por finalidade apenas<br />

promover ação de graças por parte de Israel, como esclarece Waiser:<br />

O salmo visualiza, pois, a ação de graças pela colheita de uma maneira que,<br />

para além <strong>do</strong> produto da terra, considera a bênção maior que Deus concede,<br />

levan<strong>do</strong> a efeito e consuman<strong>do</strong> sua obra salvífica. O que é passageiro torna-se<br />

promessa <strong>do</strong> que é eterno. 113<br />

A manifestação graciosa <strong>do</strong> poder de Deus conceden<strong>do</strong> uma boa colheita<br />

possui um foco bem defini<strong>do</strong>, conforme expressa o versículo 7: “Abençoe-<br />

-nos Deus, e to<strong>do</strong>s os confins da terra o temerão”. Não há um desejo egoísta<br />

de que Israel se torne um grande recipiente das bênçãos divinas. O salmista<br />

sabia que a nação israelita deveria ser o veículo por meio <strong>do</strong> qual as nações<br />

haveriam de temer o Senhor. O cuida<strong>do</strong> e a bondade de Deus sobre seu povo<br />

escolhi<strong>do</strong> não demonstravam um favoritismo, mas uma lembrança (exortativa)<br />

para Israel da maior implicação disso: “todas as famílias da terra” (Gn 12.3)<br />

seriam abençoadas pelo reino de sacer<strong>do</strong>tes (Êx 19.6). Esse cuida<strong>do</strong> divino<br />

é um “caminho chave para levar todas as nações <strong>do</strong> planeta terra a crerem<br />

nele”. 114<br />

Dessa forma, o que é passageiro (o fruto da terra) mistura-se com o que<br />

é eterno (o temor <strong>do</strong> Senhor), como destacou Waiser na citação acima. Nesse<br />

mesmo tom, afirma Harman: “As bênçãos materiais e espirituais parecem<br />

enfeixar-se, pois a bênção de Israel está vinculada à ideia de que os confins<br />

da terra temerão o Senhor”. 115<br />

112 KRAUS, Los Salmos, p. 71.<br />

113 WAISER, Os Salmos, p. 357.<br />

114 KAISER JR., Mission in the Old Testament, p. 33.<br />

115 HARMAN, Salmos, p. 255.<br />

36


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 9-38<br />

considerações finais<br />

O presente artigo visou ampliar a discussão acerca da missiologia de<br />

Israel no Antigo Testamento. A partir das expressões “propriedade peculiar”<br />

e “reino de sacer<strong>do</strong>tes” presentes em Êxo<strong>do</strong> 19.5-6, entende-se que a tarefa<br />

concedida pelo Senhor Deus ao seu escolhi<strong>do</strong> visava a que este estendesse a<br />

sua salvação a todas as famílias da terra. O “particularismo” nunca significou<br />

que Israel deveria se ver como um receptáculo privilegia<strong>do</strong> da revelação divina,<br />

mas como um canal de bênçãos para to<strong>do</strong>s os povos. Como frisou Mascarenhas,<br />

“a vocação de Israel é para ser possessão estimada de Javé através da eleição<br />

e da aliança. Ao invés de desprezar o resto da humanidade, isto aponta a salvação<br />

para o mun<strong>do</strong> inteiro”. 116 No momento da constituição de Israel como<br />

nação ficou clara a ampliação da aliança que Deus havia feito com o patriarca<br />

Abraão – de que gozaria das benesses divinas para que nele (sua posteridade)<br />

fossem benditas todas as famílias da terra (Gn 12.1-3).<br />

O teor missionário no livro <strong>do</strong>s Salmos torna-se importante porque reflete<br />

a teologia <strong>do</strong> pacto. Esses registros <strong>do</strong>s salmistas atestam o conhecimento<br />

que possuíam das obrigações, privilégios e responsabilidades diante de Deus<br />

e de to<strong>do</strong>s os povos. Foi isso que os impulsionou a cantar: “Anunciai entre as<br />

nações a sua glória, entre to<strong>do</strong>s os povos, as suas maravilhas. Porque grande<br />

é o Senhor e mui digno de ser louva<strong>do</strong>, temível mais que to<strong>do</strong>s os deuses”<br />

(Sl 96:3-4). Essas boas novas deveriam ser contadas a to<strong>do</strong>s os povos. A glória<br />

<strong>do</strong> Senhor e suas maravilhas deveriam ocupar o pensamento das nações que<br />

andavam erradas seguin<strong>do</strong> deuses que nada mais eram <strong>do</strong> que enganação.<br />

O Salmo 67 é relevante para a missiologia <strong>do</strong> Antigo Testamento. Isso<br />

porque agrega em si as petições de bênção para a nação israelita, como sinal de<br />

que Deus está com seu povo, e porque deixa claro que o motivo dessas petições<br />

é a missão <strong>do</strong> povo de Israel perante as nações. O reconhecimento da bênção<br />

material da colheita relembrava o povo de uma das suas obrigações pactuais,<br />

levan<strong>do</strong>-o a se voltar para Deus e ansiar por que to<strong>do</strong>s os povos viessem a<br />

louvá-lo e reconhecê-lo como Rei e Juiz de toda a terra. A mensagem principal<br />

encontra-se no meio <strong>do</strong> salmo, entre os versículos 5 e 6. Entretanto, é toda a<br />

sua “moldura” que dá senti<strong>do</strong> a essa mensagem.<br />

O desenvolvimento <strong>do</strong> tema de missões no Antigo Testamento também<br />

pode ser encontra<strong>do</strong> nos profetas, principalmente em Isaías. Nos textos de Isaías<br />

42.1-4 e 49.1-6, conheci<strong>do</strong>s como primeiro e segun<strong>do</strong> “Cânticos <strong>do</strong> Servo”,<br />

percebe-se ser possível aplicar o personagem <strong>do</strong> Servo sofre<strong>do</strong>r também ao<br />

povo de Israel. Tais textos são amplamente reconheci<strong>do</strong>s como missionários e<br />

igualmente muito cita<strong>do</strong>s no Novo Testamento. Tanto um quanto o outro trazem<br />

116 MASCARENHAS, Theo<strong>do</strong>re. The missionary function of Israel in Psalms 67, 96, and 117.<br />

Lanhan: University Press of America, 2005, p. 69.<br />

37


Heleno Guedes Montenegro Filho, “Abençoe-nos Deus e To<strong>do</strong>s os Confins da Terra...<br />

o elemento da “escolha/chama<strong>do</strong>” (particularismo) alia<strong>do</strong> à responsabilidade<br />

de ser luz às nações (universalismo). Além <strong>do</strong> mais, os textos proféticos são<br />

importantes porque assumem um caráter exortativo quanto à negligência de<br />

vida e missão que o povo estava viven<strong>do</strong>. A presença da exortação sinaliza a<br />

existência de algo devidamente prescrito e que não estava sen<strong>do</strong> obedeci<strong>do</strong>.<br />

O que foi relata<strong>do</strong> acima e o que foi demonstra<strong>do</strong> neste artigo mostram<br />

que o Antigo Testamento possui um vasto campo a ser explora<strong>do</strong> em sua<br />

temática missionária. Em tempos nos quais a reflexão missiológica tem-se<br />

reduzi<strong>do</strong> a discussões acerca de estratégias e práticas sobre evangelização e<br />

missões, deve-se tomar o devi<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> para não se distanciar <strong>do</strong>s princípios<br />

teológicos expressos em toda a Escritura. Nesse senti<strong>do</strong>, o Antigo Testamento<br />

tem muito a colaborar, demonstran<strong>do</strong> caminhos sóli<strong>do</strong>s a serem percorri<strong>do</strong>s<br />

para o desenvolvimento de uma missiologia fundamentada e relevante para a<br />

igreja <strong>do</strong> Senhor.<br />

abstract<br />

The theme of the mission of Israel in the Old Testament highlights<br />

Israel’s conscience of the privileges and responsibilities resulting from both<br />

the covenant God made with Abraham in Genesis 12:1-3 and its unfolding and<br />

deepening at the time of Israel’s formation as a nation in Exodus 19:4-6. The<br />

choice of Israel to be the subject of revelation of the Law and God’s blessings<br />

had in view to make the lordship of Yahweh known among all peoples. With this<br />

in mind, this article first examines the principles contained in the Abrahamic<br />

and the Sinaitic covenant that lead to a missiology. Then, it demonstrates<br />

through the Psalms how these mission principles were part of the people’s<br />

life. Finally, it uses Psalm 67 as an illustration of the covenant blessings that<br />

generated a missionary obligation of Israel to the nations.<br />

keywords<br />

Old Testament; Missiology; Centrifugal mission; Centripetal mission;<br />

Particularism; Universalism.<br />

38


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 39-52<br />

Educação e História:<br />

A Vida de Mary Parker Dascomb<br />

Jamilly Nicacio Nicolete * e Arilda Ines Miranda Ribeiro **<br />

resumo<br />

Este artigo tem como objetivo compreender a presença de uma mulher<br />

solteira, a educa<strong>do</strong>ra Mary Dascomb, na missão presbiteriana no Brasil na<br />

segunda metade <strong>do</strong> século 19 e no início <strong>do</strong> século 20 e sua participação no<br />

projeto educacional dessa instituição. O conhecimento historiográfico sobre<br />

a participação das mulheres no cenário educacional ganha ênfase nos debates<br />

contemporâneos. Entretanto, poucos são os estu<strong>do</strong>s que levam em consideração<br />

as possíveis contribuições das mulheres religiosas, solteiras ou casadas, nessa<br />

discussão. Nesse senti<strong>do</strong>, o presente estu<strong>do</strong> objetiva problematizar a presença<br />

<strong>do</strong> gênero feminino no projeto educacional presbiteriano implanta<strong>do</strong> no Brasil<br />

a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século 19. Para tanto, analisamos fontes primárias de caráter<br />

oficial, como relatórios educacionais, e <strong>do</strong>cumentos não oficiais, como<br />

cartas pessoais escritas por essa missionária e educa<strong>do</strong>ra norte-americana e<br />

outros membros da missão presbiteriana. A partir de uma extensa pesquisa<br />

<strong>do</strong>cumental e bibliográfica, apresentamos de forma inédita e resumida alguns<br />

da<strong>do</strong>s sobre sua infância, juventude, família, formação acadêmica e trabalho<br />

como educa<strong>do</strong>ra e missionária.<br />

palavras-chave<br />

Presbiterianismo no Brasil; Mulheres presbiterianas; Mary Dascomb;<br />

Educação norte-americana.<br />

* Doutoranda em Educação na Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP, Presidente Prudente.<br />

Bolsista da FAPESP.<br />

** Professora Titular <strong>do</strong> Departamento de Educação e <strong>do</strong> Programa de Pós-Graduação em Educação<br />

da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho –<br />

UNESP, Presidente Prudente; coordena<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> GPECUMA (Grupo de Pesquisa sobre Educação, Cultura,<br />

Memória e Arte) e <strong>do</strong> NUDISE (Núcleo de Diversidade Sexual na Educação).<br />

39


Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro, Educação e História<br />

introdução<br />

Ten<strong>do</strong> Mary Dascomb como foco principal de minha pesquisa <strong>do</strong>utoral e<br />

inspirada por trabalhos como o de Arilda Ribeiro sobre Carolina Florence, 1<br />

e de Carla Chamon ao estudar a trajetória de Maria Guilhermina Loureiro<br />

de Andrade, 2 parti em busca de informações sobre a vida dessa missionária<br />

educa<strong>do</strong>ra.<br />

Em 2013, comecei um trabalho árduo e minucioso de tradução <strong>do</strong>cumental.<br />

A principal fonte de pesquisa para minha tese eram as cartas escritas<br />

por Miss Dascomb e que tinham como destinatário Horace Lane, o médico e<br />

educa<strong>do</strong>r responsável pela administração <strong>do</strong> Mackenzie College. 3<br />

Inicialmente faria a tradução de algumas missivas aleatoriamente, escolhen<strong>do</strong>-as<br />

a partir de datas importantes para a missão e aniversários <strong>do</strong>s quais<br />

eu tinha conhecimento, ou buscan<strong>do</strong> à própria sorte detalhes sobre o projeto<br />

educacional presbiteriano e o trabalho desenvolvi<strong>do</strong> por Mary Dascomb no<br />

Brasil. Mas não foi possível. Decidi começar <strong>do</strong> começo e logo nas primeiras<br />

cartas entendi que havia muitas informações detalhadas e precisas. Havia, em<br />

riqueza de detalhes, mais <strong>do</strong> que eu supunha encontrar.<br />

Nas cartas Mary falava com Lane sobre tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s. Encontrei nessa<br />

vasta <strong>do</strong>cumentação relatos de viagens, notícias sobre as cidades em que ela<br />

viveu e trabalhou, sobre suas companheiras na missão e educação, a dificuldade<br />

em conseguir professores, os casamentos prematuros de suas amigas, entre<br />

outros temas. No entanto, ao falar sobre si, e em especial sobre sua família e<br />

sua origem, Mary foi discreta, sucinta e muitas de minhas perguntas permaneciam<br />

sem respostas.<br />

Como em to<strong>do</strong> trabalho desse porte, debrucei-me sobre uma ampla<br />

bibliografia, que por vezes me oferecia novos caminhos de pesquisa e influenciava<br />

positivamente minha busca. Depois de tanto tentar termos e textos<br />

em português, decidi garimpar em inglês. Minhas madrugadas tornaram-se<br />

produtivas e parti para um processo minucioso de investigação que possibilita<br />

a divulgação destes da<strong>do</strong>s.<br />

1. origens<br />

Mary Parker Dascomb, branca, solteira, sem filhos, missionária, gestora<br />

e educa<strong>do</strong>ra norte-americana, foi a primeira missionária educa<strong>do</strong>ra enviada ao<br />

1 RIBEIRO, A. I. M. A educação feminina durante o século XIX: O Colégio Florence de Campinas,<br />

1863-1889. Campinas: UNICAMP/CMU, 2006.<br />

2 CHAMON, C. S. Escolas em reforma, saberes em trânsito: a trajetória de Maria Guilhermina<br />

Loureiro de Andrade (1869-1913). Belo Horizonte: Autêntica, 2008.<br />

3 GOLDMAN, Frank. As cartas de Miss Mary P. Dascomb ao Dr. Horace Lane (1886-1907,<br />

1908-1912). In: Anais <strong>do</strong> Museu Paulista. São Paulo, 1961, vols. 15, 16.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 39-52<br />

Brasil pela Junta de Missões Estrangeiras de Nova York. Passou a sua infância<br />

e mocidade em Oberlin, Ohio.<br />

Era filha a<strong>do</strong>tiva de Marianne Parker Dascomb e James Dascomb. Sua<br />

mãe nasceu em 1º de julho de 1810, em Dunbarton, New Hampshire. Era filha<br />

de William Parker e Martha Tenney Parker. Era a sétima de oito filhos. William<br />

morreu quan<strong>do</strong> ela tinha apenas quatro anos de idade, trazen<strong>do</strong> grandes dificuldades<br />

para a família. Marianne frequentou o Ipswich Seminary (seminário<br />

de jovens senhoras em Ipswich, Massachusetts) e formou-se em 1833, dan<strong>do</strong><br />

continuidade aos estu<strong>do</strong>s em Boscawen, New Hampshire. Ela abriu uma escola<br />

em Canajoharie, Nova York, mas a deixou para se casar com o Dr. James<br />

Dascomb, um estudante de medicina no Dartmouth College, na primavera<br />

de 1834. Imediatamente após seu casamento, eles se mudaram para o norte de<br />

Ohio a fim de ensinar no recém-inaugura<strong>do</strong> Oberlin College.<br />

Em um <strong>do</strong>cumento intitula<strong>do</strong> “Eminent Women of the Age” (Mulheres<br />

Eminentes <strong>do</strong> Nosso Tempo), encontramos algumas informações sobre<br />

Marianne:<br />

Marianne Parker Dascomb é, possivelmente, a mulher mais influente nascida<br />

em Dunbarton durante o século XIX. Ela recebeu uma sólida educação, apesar<br />

de ter si<strong>do</strong> criada por uma viúva com oito filhos. Aos 23 anos, casou-se com o<br />

Dr. James Dascomb, de Wilton, e se mu<strong>do</strong>u para o recém-construí<strong>do</strong> Oberlin<br />

College, no interior de Ohio. James tornou-se professor de ciências e ela a<br />

primeira mulher presidente da instituição. Ela serviu a faculdade por 35 anos,<br />

apoiou a organização “Underground Railroad” 4 e educou a cativa Sarah Margru<br />

Kinson, vinda no navio Amistad. Para<strong>do</strong>xalmente, esta mulher aparentemente<br />

de ideias avançadas também liderou um movimento contra o sufrágio em 1870. 5<br />

Marianne Parker Dascomb tornou-se diretora <strong>do</strong> Departamento Feminino<br />

<strong>do</strong> Oberlin College. Numa carta escrita em maio de 1834, ela fala de seu trabalho<br />

e da rotina de suas alunas: “Passo três ou quatro horas por dia ouvin<strong>do</strong> as<br />

turmas de exposição oral. Sra. Wal<strong>do</strong> também auxilia na escola. As mulheres<br />

são muito interessantes; a maioria delas de outros esta<strong>do</strong>s e muitas vêm de<br />

longe. Esse departamento ainda não é separa<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro”. 6<br />

Em 1835, o anúncio <strong>do</strong> departamento foi o seguinte:<br />

Jovens senhoras de boas mentes, moral ilibada e realizações respeitáveis ​são<br />

recebidas neste departamento e colocadas sob a superintendência de uma senhora<br />

4 Rede secreta que aju<strong>do</strong>u escravos a fugirem <strong>do</strong> Sul para o Norte <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e para o<br />

Canadá nos anos anteriores à Guerra Civil Americana.<br />

5 Eminent Women of the Age. 1873. Disponível em: http://www.dunbartongardenclub.org/DFD-<br />

2010 OrderFormWebSiteA.pdf. Acesso em: 25.05.2014.<br />

6 Disponível em: http://www.mocavo.com/Oberlin-the-Colony-and-the-College-1833-1883-2/<br />

728596/314. Acesso em: 25.05.2014.<br />

41


Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro, Educação e História<br />

criteriosa, cujo dever é corrigir os seus hábitos e moldar o caráter feminino.<br />

Elas fazem as refeições no restaurante universitário e fazem trabalhos junto<br />

ao departamento, além de lavar, passar e fazer grande parte da costura para os<br />

alunos. Elas frequentam exposições orais com jovens cavalheiros em to<strong>do</strong>s<br />

os departamentos. Seus quartos são totalmente separa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s <strong>do</strong> outro sexo,<br />

e visitas em seus respectivos apartamentos não são permitidas em nenhuma<br />

circunstância. 7<br />

James Dascomb, o pai a<strong>do</strong>tivo de Mary, nasceu em <strong>21</strong> de fevereiro de<br />

1808 em Wilton, New Hampshire, filho de um fazendeiro com quem aprendeu<br />

a disciplina, o hábito <strong>do</strong> trabalho manual e gostos rurais que caracterizaram<br />

sua vida inteira. Era filho de James Dascomb Jr. e Mary Lovejoy Dascomb,<br />

e neto de James Dascomb, que se estabeleceu em Wilton em 1767. Foi educa<strong>do</strong><br />

em uma common school da Nova Inglaterra, antes de estudar medicina<br />

no Dartmouth College, em Hanover, New Hampshire, e recebeu o diploma<br />

de médico em 1833, mesmo ano em que sua esposa se formou professora. O<br />

casal não teve filhos biológicos, vin<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>tar duas meninas: Mary e Annie<br />

Parker Dascomb. 8<br />

Figura 1: James e Marianne Dascomb, pais a<strong>do</strong>tivos de Mary Dascomb<br />

7 FAIRCHILD, James Harris. Oberlin: The Colony and the College 1833-1883. ATLA Monograph<br />

Preservation Program. E. J. Goodrich, 1883, p. 42.<br />

8 Vários sites conten<strong>do</strong> árvores genealógicas, relatórios congregacionais e escolares, entre<br />

outros <strong>do</strong>cumentos, confirmam que Mary era filha a<strong>do</strong>tiva de James e Marianne Dascomb. http://<br />

www.mocavo.com/The-Tenney-Family-or-the-Descendants-of-Thomas-Tenney-of-Rowley-Massachusetts-1638-1890/456657/180;<br />

http://books.google.com.br/books?id=qj0_AAAAYAAJ&pg=PA<br />

128&lpg=PA128&dq=marianne+parker+dascomb+and+JAmes+Dascomb+Mary+Dascomb+and+<br />

Annie+Dascomb&source=bl&ots=RTxyRum63F&sig=61mpE7IghLuaJ-rd8wVkeXHDSCg&hl=pt-<br />

-BR&sa=X& ei=T6GCU8HQC66_sQTtsoCAAw&ved=0CGYQ6AEwCg#v=onepage&q=marianne%20<br />

parker%20dascomb%20and%20JAmes%20Dascomb%20Mary%20Dascomb%20and%20Annie%20<br />

Dascomb&f=false; http://books.google.com.br/books?id=RSwWAAAAYAAJ&pg=PA196&lpg=PA1<br />

96&dq=leonard+stickney+parker+1812+children&source=bl&ots=_96jtoxjKU&sig=DPSRMdgoxC<br />

kjuTvyGdJ-ihlxjYA&hl=pt-BR&sa=X&ei=nK2CU_DMKpPgsATBwYGICQ&ved=0CDoQ6AEwA<br />

g#v=onepage&q=leonard%20stickney%20parker%201812%20children&f=false, entre outros. To<strong>do</strong>s<br />

acessa<strong>do</strong>s em 25/05/2014.<br />

42


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 39-52<br />

O Dr. James Dascomb foi recruta<strong>do</strong> pelo Dr. John Jay Shiperd, para lecionar<br />

botânica, química, física, anatomia e fisiologia no Oberlin College. Ele<br />

também serviria como único médico da colônia e farmacêutico – tu<strong>do</strong> por um<br />

salário anual de US$ 250. Antes de partir para Oberlin, Dr. Dascomb casou-se<br />

com Marianne. Eles chegaram em 10 de maio de 1834, três dias após a abertura<br />

da faculdade com professores regulares. Dr. Dascomb, um homem sério,<br />

médico, professor, palestrante, responsável pela ampliação <strong>do</strong> Departamento<br />

de Medicina e por melhorias na cidade de Oberlin, era conheci<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong><br />

Fairchild, por suas posições conserva<strong>do</strong>ras. 9<br />

Marianne Dascomb estabeleceu a sua própria presença no Oberlin College:<br />

como diretora <strong>do</strong> Departamento Feminino de Oberlin (1835-1836; 1852-<br />

1870) e como membro <strong>do</strong> Conselho de Mulheres Gestoras (1836-1879). Ela<br />

também aju<strong>do</strong>u a organizar a oposição feminina local ao sufrágio feminino.<br />

Encabeçar um movimento demonstra o engajamento no qual estava envolvida<br />

a família de Mary Dascomb. Sua mãe era diretora de um departamento e<br />

organizou um movimento feminino, ainda que conserva<strong>do</strong>r. Mary Dascomb<br />

aprendeu a se posicionar politicamente dentro de casa. Ela viveu num ambiente<br />

em que os pares eram dinâmicos, pai e mãe trabalhavam fora, eram educa<strong>do</strong>res,<br />

influência para sua formação acadêmica e posições ideológicas.<br />

Na obra Historical and Genealogical Researches and Recorder of Passing<br />

Events of Merrimack Valley, publicada por Alfred Poor, entre abril de 1857 e<br />

janeiro de 1858, o autor afirma que a irmã de Mary Dascomb, “Annie”, também<br />

era filha a<strong>do</strong>tiva <strong>do</strong> casal: “Marianne (...) married James Dascomb (...)<br />

no children, except two by a<strong>do</strong>ption, viz. Mary Dascomb and Anna Eliza”. 10<br />

O pai biológico de Mary Dascomb era Leonard Stickney Parker, irmão<br />

de sua mãe a<strong>do</strong>tiva, Marianne Parker. Leonard nasceu em Dunbarton, New<br />

Hampshire, em 6 de dezembro de 1812 e estu<strong>do</strong>u na Boston Latin School. Em<br />

6 de maio de 1830 ele se uniu à igreja congregacional em Dunbarton e ingressou<br />

no Dartmouth College em 1832, mas teve que aban<strong>do</strong>nar a faculdade devi<strong>do</strong><br />

a problemas de saúde. Em 1838 voltou a estudar teologia em Oberlin, Ohio, e,<br />

antes mesmo de se formar, em 6 de dezembro de 1837, foi ordena<strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r<br />

evangelista em Fitchville, Ohio. Segun<strong>do</strong> Poor, Leonard tinha uma saúde debilitada<br />

e, por este motivo, teve que se afastar <strong>do</strong> pastora<strong>do</strong> em algumas ocasiões. 11<br />

9 FAIRCHILD, Oberlin: The Colony and the College 1833-1883, p. 42.<br />

10 Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=qj0_AAAAYAAJ&pg=PA128&lpg=<br />

PA128&dq=marianne+parker+dascomb+and+JAmes+Dascomb+Mary+Dascomb+and+Annie<br />

+Dascomb&source=bl&ots=RTxyRum63F&sig=61mpE7IghLuaJ-rd8wVkeXHDSCg&hl=pt-<br />

BR&sa=X&ei=T6GCU8HQC66_ sQTtsoCAAw&ved=0CGYQ6AEwCg#v=onepage&q=marianne%20<br />

parker%20dascomb%20and%20JAmes%20Dascomb%20Mary%20Dascomb%20and%20Annie%20<br />

Dascomb&f=false. Acesso em: 25.05.2014.<br />

11 Ibid., p. 128.<br />

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Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro, Educação e História<br />

Em minhas pesquisas, encontrei também a casa onde Mary teria passa<strong>do</strong><br />

sua infância e juventude, ao la<strong>do</strong> de sua família. Definida como uma relíquia<br />

<strong>do</strong> antigo estilo gótico, foi a residência <strong>do</strong>s Dascomb por mais de 25 anos,<br />

enquanto se dedicavam à educação em Oberlin.<br />

A casa, construída em 1853-1854, apresenta muitas das características popularizadas<br />

na obra de Alexander Jackson Davis, um <strong>do</strong>s líderes na promoção<br />

<strong>do</strong> Revival Gothic – planta cruciforme, linha <strong>do</strong> telha<strong>do</strong> íngreme, cumeeira<br />

frontal proeminente, chaminés de tijolos ousadas. Com acabamento bastante<br />

detalha<strong>do</strong>, o caráter da casa baseia-se mais na força da forma e <strong>do</strong> contorno <strong>do</strong><br />

que na decoração aplicada. Originalmente, ela ficava numa elevação da qual se<br />

via o Plum Creek (um pequeno riacho). O Dr. e Sra. Dascomb residiram aqui<br />

por mais de 25 anos. Quan<strong>do</strong> a casa pegou fogo em uma tempestade de raios<br />

em 1863 a forte estrutura da casa aguentou, e eles foram capazes de restaurá-la<br />

exatamente como era antes. Depois ela foi transferida para o outro la<strong>do</strong> da rua.<br />

Após a morte de Dascomb, em 1880, janelas foram colocadas no sótão na parte<br />

de trás e um alpendre frontal foi instala<strong>do</strong>. A casa é preservada por Warren e<br />

Adele Taylor, seus proprietários desde 1939. 12<br />

Figura 3: Dascomb House<br />

Data de construção: 1853. Localização: 227 Professor St.<br />

Fotografia de Geoffrey Blodgett<br />

A mãe biológica de Mary Dascomb era Carolina Augusta Goodale, filha<br />

de James e Eunice Wilder Goodale, de Oakham, Massachusetts, nascida<br />

em 26 de novembro de 1816. Teve três filhos com Leonard Parker: Leonard<br />

Goodale, que nasceu em 2 de agosto de 1839 e se tornou professor em Shell<br />

Rock, Iowa; Carolina Augusta, nascida em 27 de novembro de 1840, professora<br />

<strong>do</strong> Female Seminary, em Fayette, no Mississipi, e Mary Dascomb. Carolina<br />

morreu em 12 de setembro de 1842, em Providence, Rhode Island, antes que<br />

sua terceira filha completasse três meses de vida. O fato de Leonard ter a saúde<br />

12 Disponível em: http://www.oberlin.edu/external/EOG/gbslides/DascombHouse.html. Acesso<br />

em 24.05.2014.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 39-52<br />

debilitada e Mary estar ainda recém-nascida podem ter contribuí<strong>do</strong> para que<br />

sua tia Marianne a a<strong>do</strong>tasse.<br />

O pai biológico de Mary Dascomb, Leonard, casou-se pela segunda vez<br />

em Exeter, New Hampshire, em 28 de outubro 1845, com Abigail Blake French,<br />

viúva <strong>do</strong> professor Henry French, da Philips Academy, com quem teve outros<br />

três filhos: Abbie Blake, nascida em 14 de outubro de 1845; Henry French, que<br />

nasceu em 31 de julho 1848 e morreu com apenas <strong>do</strong>is anos de idade em 5 de<br />

março de 1850, e Mary Lilian, nascida em 6 de maio de 1854. Abigail era filha<br />

de Sherburne e Apphia Blake. Os irmãos biológicos de Mary Dascomb não são<br />

cita<strong>do</strong>s em suas cartas, apenas sua irmã a<strong>do</strong>tiva, Anna Elizabeth Dascomb, a<br />

quem ela chama de “Annie”.<br />

Abaixo apresentamos uma breve genealogia de Mary Dascomb: 13<br />

William<br />

Parker<br />

Hannah<br />

Parker<br />

Shubael<br />

Tenney<br />

Martha<br />

Tenney<br />

James<br />

Dascomb Jr.<br />

Mary Lovejoy<br />

Dascomb<br />

Willian<br />

Parker<br />

Martha<br />

Tenney<br />

James<br />

Dascomb<br />

Marianne<br />

Dascomb<br />

Mary<br />

Dascomb<br />

Para Mónica Bolufer, resgatar essa memória perdida faz parte de um projeto<br />

identitário, de escrever uma história na qual as mulheres <strong>do</strong> presente possam<br />

reconhecer-se e encontrar antecessoras, ou, como se dizia então, “devolver as<br />

mulheres para a história e a história para as mulheres”. 14 Além disso, este seria<br />

um ato de restituição ou de justiça, na medida em que tal esquecimento não<br />

responde a uma simples inércia, mas a formas ativas de exclusão. Segun<strong>do</strong> a<br />

autora, quem começou a escrever a história das mulheres estava vincula<strong>do</strong>(a)<br />

a escolas e correntes historiográficas intensamente críticas a respeito da história<br />

política tradicional e participava de uma vontade de escrever a história a partir<br />

“de baixo”, atento(a) às presenças coletivas e populares. 15<br />

13 Baseada no modelo disponível no Programa My Heritage Family Tree Builder, disponibilizei no<br />

Anexo 1 de minha tese uma árvore genealógica com to<strong>do</strong>s os parentes de Mary Dascomb que consegui<br />

encontrar. Tal descrição é importante, pois não existe nada publica<strong>do</strong> no Brasil conten<strong>do</strong> tais informações.<br />

14 BOLUFER, Mónica. Multitudes del yo: biografia e historia de las mujeres. Ayer. <strong>Revista</strong> de<br />

Historia Contemporánea, 2014, p. 85-116.<br />

15 Ibid., p. 90s.<br />

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Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro, Educação e História<br />

2. mary e a educação<br />

Mary Dascomb formou-se no ano de 1860 no Oberlin College, 16 instituição<br />

na qual seus pais trabalhavam, em Ohio. Lecionou durante um ano<br />

em Joliet, Illinois; um ano em Elyria, Ohio, outro em Canton, Ohio, e depois em<br />

Vassar, onde recebeu, em 1866, o convite para vir ao Brasil como professora<br />

<strong>do</strong>s filhos <strong>do</strong> presbiteriano James Monroe, cônsul americano no Rio de Janeiro,<br />

que havia si<strong>do</strong> professor em Oberlin. Durante <strong>do</strong>is anos e meio viveu com a<br />

família Monroe no Brasil, onde conheceu o Rev. Ashbel Green Simonton, que<br />

insistiu para que ela retornasse ao Brasil como missionaria. 17<br />

Segun<strong>do</strong> o periódico The Foreign Missionary, de outubro de 1869, depois<br />

de trabalhar com os Monroe, Mary voltou para os Esta<strong>do</strong>s e Uni<strong>do</strong>s e retornou<br />

definitivamente ao Brasil em 1º de setembro daquele mesmo ano para trabalhar<br />

como missionária da Junta de Missões Estrangeiras, assumin<strong>do</strong> a direção de<br />

uma escola. 18 Segun<strong>do</strong> Ferreira, a Escola Americana de São Paulo, iniciada em<br />

1870 por Mary Chamberlain, esposa <strong>do</strong> Rev. George Chamberlain, foi aberta<br />

oficialmente em 1871, à rua de São José nº 1, onde também eram celebra<strong>do</strong>s<br />

os cultos da igreja. Seria o germe <strong>do</strong> futuro Mackenzie, para o qual, posteriormente,<br />

foi designa<strong>do</strong> Horace Lane. A princípio, tinha uma classe em inglês<br />

para 23 meninos e meninas e outra classe em português, também na forma de<br />

coeducação, com 10 alunos. À frente da instituição paulistana, desde março<br />

de 1871, estava Mary Parker Dascomb. 19<br />

Em algumas cartas enviadas à Junta de Missões Estrangeiras, em Nova<br />

York, escritas pelos pastores que aqui já estavam, são feitas muitas menções à<br />

premência da educação e ao trabalho nascente em várias cidades brasileiras. No<br />

entanto, era necessário legalizar e organizar este trabalho de maneira efetiva.<br />

Em 31 de agosto de 1865, o Rev. Alexander Blackford, cunha<strong>do</strong> de Simonton,<br />

16 Fundada pelo Rev. John Jay Shipherd em 1833, no nordeste de Ohio, a Colônia e Escola de<br />

Oberlin teve como objetivo inicial preparar professores e missionários para trabalhar no então desola<strong>do</strong><br />

oeste americano. A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> como inspiração primeira o pietismo, apesar de seu conserva<strong>do</strong>rismo Oberlin<br />

tomou algumas medidas progressistas para a época, como a luta contra a escravidão, a admissão de alunos<br />

negros e a coeducação, sen<strong>do</strong> a primeira instituição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s a conferir o grau de bacharel<br />

a mulheres. Outras de suas práticas educacionais inova<strong>do</strong>ras para a época foram: educação integral, que<br />

envolve o físico, o mental e o espiritual; reforma nos hábitos de saúde, sobretu<strong>do</strong> no que diz respeito<br />

à alimentação, incluin<strong>do</strong> a dieta vegetariana; currículo centra<strong>do</strong> na Bíblia com forte crítica aos autores<br />

clássicos; instituições educacionais localizadas na zona rural e preocupação com as demais reformas<br />

sociais. O Oberlin College foi a referência principal para a constituição da filosofia educacional adventista.<br />

Disponível em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegan<strong>do</strong>/glossario/verb_c_oberlin_ college.htm.<br />

17 Todas as fontes encontradas para este artigo sobre esse perío<strong>do</strong> da vida de Mary Dascomb estão<br />

disponíveis apenas em inglês, por isso a inclusão de tantos fragmentos e a tradução, na íntegra, de muitos<br />

deles para o português.<br />

18 The Foreign Missionary, out. 1869, p. 118.<br />

19 Ferreira, Júlio Andrade. História da Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Brasil. 2. ed. São Paulo: Casa<br />

Editora Presbiteriana, 1992, p. 141-142.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 39-52<br />

o pioneiro da missão que deu origem à Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Brasil, menciona<br />

a existência de uma escola que funcionava de forma irregular e com uma<br />

frequência que variava de 4 a 17 alunos. No entanto, ela teve que ser fechada<br />

por causa de um surto de catapora e sarampo.<br />

Em 13 de março de 1868, George Chamberlain escreve ao Rev. Dr. Irving<br />

sobre a educação. Ele tinha uma irmã que poderia ser enviada para trabalhar<br />

nas escolas brasileiras:<br />

O trabalho da minha irmã em Fair Hill termina nesta semana. Ela aguarda sua<br />

decisão, não desejan<strong>do</strong> se comprometer com outra até que tal decisão esteja<br />

tomada. Caso ela seja indicada, seria naturalmente agradável tê-la comigo, mas<br />

isso, é claro, será secundário para a questão de onde ela será mais necessária.<br />

Nós deveríamos ter três escolas imediatamente. (...) A escola em São Paulo foi<br />

esquecida, acredito, na ocasião da minha ausência, eu próprio levan<strong>do</strong> comigo<br />

como colportor o jovem que vinha auxilian<strong>do</strong> no ensino, na viagem pela Província<br />

de São Paulo e <strong>do</strong> Rio, pela Sociedade Bíblica Americana. Ao término dessa<br />

viagem, fiquei no Rio com o Sr. Simonton e Sr. Blackford, não ten<strong>do</strong> podi<strong>do</strong> dar<br />

ao assunto to<strong>do</strong> o tempo que ele merecia. A escola era frequentada por crianças<br />

que estariam em suas primeiras lições, mas não tiramos uma licença e não tínhamos<br />

permissão para fazer propaganda ou receber pagamentos. Esperamos em<br />

breve ser autoriza<strong>do</strong>s por vocês a abrir uma escola para alunos mais avança<strong>do</strong>s<br />

e fazê-la assunto público, de mo<strong>do</strong> que outros possam frequentar e aqueles que<br />

puderem pagar, pagarão. A Sra. Ebert, que mantém a casa para nós, foi instada,<br />

repetidamente, por Tavares Bastos, um jovem estadista brasileiro, a abrir uma<br />

escola nos moldes das escolas daqui. Ele assegurou a ela que muitos pais se<br />

empenhariam alegremente nisso. Numa palavra, isso é inseparável <strong>do</strong> nosso<br />

trabalho e terá que vir mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde. Vou contratar uma professora<br />

por um ano para se preparar completamente no magistério para sua tarefa. Isso<br />

não implicará em despesas adicionais para acomodação, visto que as mesmas<br />

ocupadas para nosso benefício atualmente servirão. Estou receben<strong>do</strong> estimativas<br />

de um projeto, feito aqui pelo Sr. Lind, para uma construção que incluirá sob o<br />

mesmo teto nossa capela e casa de moradia, na qual um grande salão no andar<br />

térreo servirá para sala de aula. As estimativas para seu custo... serão dadas a<br />

mim em poucos dias. 20<br />

Em 25 de agosto de 1868, o Rev. Blackford escreve que a tentativa de<br />

trazer a senhorita Chamberlain não foi bem-sucedida, mas enaltece a capacidade<br />

colaborativa da senhorita Dascomb, que poderá vir no seu lugar:<br />

Ficamos desaponta<strong>do</strong>s em não ver o irmão Chamberlain, e ainda mais ao saber<br />

que sua irmã não virá. Estávamos planejan<strong>do</strong> e esperan<strong>do</strong> dar organização definitiva<br />

e permanente para uma escola logo após a chegada dela. Já temos sete ou<br />

20 CHAMBERLAIN, G. Whitehill. Relatório <strong>do</strong>s trabalhos evangélicos de G. W. Chamberlain<br />

durante o ano presbiterial de 1866-1875. Manuscrito.<br />

47


Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro, Educação e História<br />

oito garotos a quem nossos estudantes dão instrução como podem, e há algumas<br />

meninas cujos pais estão ansiosos para mandar tão logo quanto possível. Se a<br />

srta. Chamberlain não pode vir, acredito que a srta. Dascomb seja enviada. Suas<br />

qualificações permitem sem dúvida. Sinto que já adiamos muito a entrada nesse<br />

trabalho importantíssimo. <strong>21</strong><br />

Por já ter esta<strong>do</strong> no Brasil anteriormente, o jornal The Foreign Missionary<br />

menciona que “a senhorita Dascomb tinha algum conhecimento da língua”,<br />

<strong>do</strong> ensino e era qualificada. 22 Iniciou seu trabalho no Rio de Janeiro, na escola<br />

para meninos e meninas anexa à igreja, e depois foi para São Paulo, Brotas,<br />

Rio Claro, estas últimas, cidades <strong>do</strong> interior paulista, mas viveu a maior parte<br />

de sua vida em Curitiba, no Paraná. Miss Mary Dascomb, além de educa<strong>do</strong>ra,<br />

tinha outras habilidades: era organista da igreja e, ainda, regente <strong>do</strong> coral da<br />

Igreja Presbiteriana de São Paulo, forma<strong>do</strong> em 1887. 23<br />

Mary Parker Dascomb foi a primeira diretora <strong>do</strong> Mackenzie, então Escola<br />

Americana de São Paulo, em 1871. Tal informação, relevante para apontar to<strong>do</strong><br />

o seu caminho como gestora da educação institucional presbiteriana, pode ser<br />

encontrada em Annaes da 1ª Egreja Presbyteriana de São Paulo (1863-1903),<br />

de Vicente Themu<strong>do</strong> Lessa, 24 na obra de Ferreira, 25 e ainda na nona página <strong>do</strong><br />

relatório da Igreja Presbiteriana de São Paulo apresenta<strong>do</strong> pelo Rev. George<br />

Chamberlain ao Presbitério <strong>do</strong> Rio de Janeiro, na reunião de 1870. 26<br />

Em 1876, a Escola Americana de São Paulo passou a funcionar em<br />

um novo prédio à Rua de São João, esquina da Rua Ipiranga, onde, segun<strong>do</strong><br />

Lessa, funcionou por mais de quarenta anos. 27 O ensino de gramática ficava<br />

sob a responsabilidade <strong>do</strong> Rev. Eduar<strong>do</strong> Carlos Pereira, enquanto o estu<strong>do</strong> da<br />

aritmética teve sua origem com Miss Dascomb.<br />

Sant’Ana afirma que em 1872 Mary foi enviada para Brotas, para dirigir<br />

uma escola. 28 Em Rio Claro, a escola começou com nove alunos, em fevereiro<br />

<strong>21</strong> BLACKFORD, A. L. Relatório de A. L. Blackford de julho de 1867 a agosto de 1868. Relatório<br />

manuscrito apresenta<strong>do</strong> ao Presbitério <strong>do</strong> Rio de Janeiro, 1867-1875.<br />

22 The Foreign Missionary, out. 1869, p. 118.<br />

23 FIGUEIREDO, E. R. Escola Americana de Curitiba (1882-1917). In: III Congresso Brasileiro<br />

de História da Educação. História e memória da educação brasileira, Curitiba, 2004.<br />

24 LESSA, Vicente Themu<strong>do</strong>. Annaes da 1ª Igreja Presbyteriana de São Paulo. São Paulo, 1938,<br />

p. 86. Disponível em: https://archive.org/stream/annaesda1aegreja00less#page/n7/mode/2up.<br />

25 FERREIRA, História da igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Brasil, p. 141-142.<br />

26 Disponível em: http://www.executivaipb.com.br/site/museu/relatorios/Chamberlain/Chamberlain.pdf.<br />

27 LESSA, Annaes, p. 452.<br />

28 SANT’ANA, José Roberto. Ocultos e excluí<strong>do</strong>s. Ensaios sobre a história de Rio Claro no<br />

século XIX. Rio Claro, São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.aphrioclaro.sp.gov.br/wp-content/<br />

uploads/014/ 03/Ocultos-e-Exclu%C3%AD<strong>do</strong>s-Jos%C3%A9-R.-SantaAna.pdf. Acesso em: 20/04/2014.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 39-52<br />

de 1873; cinco meses depois, em julho, o número de matrículas já era de 66.<br />

A escola contava com o apoio financeiro da Missão.<br />

No 6º Relatório Anual da Woman’s Foreign Missionary Society (Sociedade<br />

Missionária Estrangeira Feminina), de 1876, há informações sobre o ano<br />

de 1875:<br />

Miss Dascomb e Miss Kuhl continuam toman<strong>do</strong> conta da escola de Rio Claro,<br />

que tem si<strong>do</strong> grande e florescente. Elas se mudaram para a nova casa construída<br />

pelo Sr. Da Gama para ser a residência, escola e capela, e para a qual arrecadamos<br />

parte <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s necessários para pagar sua dívida pessoal, e a Junta paga a<br />

outra parte. A situação dessa casa é boa, e é muito mais confortável e adequada<br />

<strong>do</strong> que a anteriormente ocupada. 29<br />

O relatório aponta que o interesse da Sociedade por duas missionárias,<br />

senhorita Dascomb de Rio Claro, Brasil, e senhorita Sellers de Ningpo, China,<br />

aumentava com o passar <strong>do</strong>s meses, à medida que suas cartas informavam de<br />

suas claras necessidades de trabalho.<br />

O trabalho de Miss Dascomb, na escola diária e na escola <strong>do</strong>minical, tem si<strong>do</strong><br />

incessante. O sucesso da escola e a conversão de alguns <strong>do</strong>s seus alunos durante<br />

o ano mostram que a boa semente não foi semeada em vão, embora a maior<br />

parte dela encontre-se escondida à espera <strong>do</strong> orvalho <strong>do</strong> céu para produzir a<br />

colheita completa. 30<br />

Miss Dascomb trabalhou em Rio Claro até 1876, quan<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> o<br />

seu Memorial Minute (1917), foi chamada aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, pois seus pais<br />

estavam <strong>do</strong>entes, e lá permaneceu até 1880, lecionan<strong>do</strong> no Wellesley College<br />

por três anos e meio. James e Marianne morreram no espaço de um ano. Depois<br />

de muitos anos de saúde debilitada, a Sra. Dascomb faleceu em 3 abril<br />

de 1879 e o Dr. Dascomb um ano depois, em 1º de abril de 1880. Os serviços<br />

fúnebres foram realiza<strong>do</strong>s na igreja congregacional e ambos estão enterra<strong>do</strong>s no<br />

cemitério de Westwood. Em sua homenagem e memória, ex-alunos e colegas<br />

estabeleceram uma cadeira de química, a Cátedra Dascomb. Em 1956, um novo<br />

alojamento de estudantes, Dascomb Hall, recebeu esse nome em homenagem<br />

a Marianne Parker Dascomb.<br />

Durante o perío<strong>do</strong> que permaneceu em sua terra natal, Mary recebeu o<br />

grau honorário de Mestre em Artes em 1878. Depois da morte <strong>do</strong>s pais, ela<br />

retomou ininterruptamente o seu trabalho no Brasil. Atuou em São Paulo,<br />

em Botucatu e, em 1892, ela e Miss Elmira (Ella) Kuhl foram transferidas<br />

para Curitiba.<br />

29 Sixth Annual Report of the Woman’s Foreign Missionary Society of the Presbyterian Church,<br />

Filadélfia, 1876, p. 20.<br />

30 Ibid., p. 46.<br />

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Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro, Educação e História<br />

Lessa afirma que havia em Botucatu um centro missionário, onde o Rev.<br />

George A. Landes trabalhou de 1881 a 1885. Nesse perío<strong>do</strong>, começou a funcionar<br />

sob a direção de Miss Dascomb uma “boa escola”. Miss Nannie Henderson<br />

era uma “assistente” e Miss Clara Hough “foi outra valiosa coadjuvante”. 31<br />

Esses termos remetem ao protagonismo de Dascomb no campo educacional<br />

da missão presbiteriana norte-americana.<br />

O 13º Relatório Anual, de 1883, da Sociedade Missionária Estrangeira<br />

Feminina da Igreja Presbiteriana, fala <strong>do</strong> progresso da escola de São Paulo<br />

desde o último relatório. Graças ao trabalho de Misses Dascomb e Kuhl o número<br />

de meninas no colégio interno <strong>do</strong>brou, “de mo<strong>do</strong> que agora 20 estão lá<br />

aprenden<strong>do</strong> a fazer o trabalho <strong>do</strong>méstico, a estudar, a a<strong>do</strong>rar a Deus e a conhecer<br />

sobre Jesus Cristo”. A escola externa – que não era um internato – também<br />

havia cresci<strong>do</strong>. O relatório afirma que as crianças da escola estavam entusiasmadas<br />

com os esforços das professoras Dascomb e Kuhl em ajudar a igreja. A<br />

senhorita Kuhl, por carta, relatou que a Sociedade Missionária Feminina (com<br />

dirigentes brasileiras) se reunia duas vezes por mês e buscava contribuições<br />

para o novo edifício da igreja. “Existem muitas sociedades aí em casa que<br />

fazem melhor?” – referin<strong>do</strong>-se aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s – “as nossas mulheres são<br />

pobres ou de meios muito modestos”. Sobre a Sociedade de Crianças, ela diz:<br />

Eles já enviaram quarenta mil-réis (vinte dólares) para Botucatu e esperam enviar<br />

mais à Província de Minas antes de 1º de janeiro de 1883. Eles arrecadam<br />

cerca de cinco dólares por mês. A lição <strong>do</strong> Japão foi extremamente interessante,<br />

oito meninos e meninas participaram, o caçula com apenas seis anos de idade. 32<br />

Em 1885, Mary Dascomb e Ella Kuhl imploravam por ajuda para a escola<br />

de São Paulo, a fim de que pudessem se preparar para entrar na grande província<br />

de Minas, onde viam possibilidades para o trabalho escolar. Três anos<br />

depois (1888), no 18º Relatório Anual da Sociedade Missionária Estrangeira<br />

Feminina, a Escola Americana de São Paulo continuava prosperan<strong>do</strong>, sob os<br />

cuida<strong>do</strong>s de Dascomb e Kuhl, que relatam: “Agora é uma das mais antigas<br />

e mais bem estabelecidas escolas naquela cidade. Das 30 meninas que foram<br />

matriculadas durante o ano, <strong>21</strong> foram mantidas ou ajudadas por fun<strong>do</strong>s da<br />

missão”. 33<br />

Muitas meninas educadas na escola eram encaminhadas para o trabalho,<br />

posteriormente. Em 1888, seis delas já trabalhavam, ensinan<strong>do</strong> nas escolas<br />

em Caldas, Botucatu, Brotas, Sorocaba, Rio de Janeiro e no externato em São<br />

31 LESSA, Annaes, p. 349.<br />

32 Thirteenth Annual Report of the Woman’s Foreign Missionary Society of the Presbyterian<br />

Church, Filadélfia, 1883, p. 9.<br />

33 Eighteenth Annual Report of the Woman’s Foreign Missionary Society of the Presbyterian<br />

Church, Filadélfia, 1888, p. 24.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 39-52<br />

Paulo. Todas as alunas aprendiam trabalhos <strong>do</strong>mésticos, o que era bem aceito<br />

pelos agricultores, que sabiam que o processo de abolição da escravatura estava<br />

em curso e, consequentemente, achavam bom que suas filhas aprendessem a<br />

trabalhar. Corte e costura foi adicionada à lista de afazeres e as meninas ficaram<br />

entusiasmadas com ele. 34<br />

Segun<strong>do</strong> o relatório, o externato também crescia e suas instalações já<br />

não eram suficientes, sen<strong>do</strong> necessário utilizar os cômo<strong>do</strong>s laterais da igreja,<br />

e muitos alunos tiveram a admissão recusada por falta de espaço. A senhorita<br />

Kuhl diz: “Nosso trabalho está fican<strong>do</strong> cada vez mais interessante. Alguns<br />

<strong>do</strong>s nossos primeiros alunos estão casa<strong>do</strong>s, e de suas casas vêm cartas cheias<br />

de amor e ternura, que alegram nossos corações”. Ao final <strong>do</strong> relatório: “Ouvimos<br />

que Miss Dascomb está bem e tão alegre como sempre. Ela precisa de<br />

um perío<strong>do</strong> de férias, mas ela mesma não percebe”.<br />

O 20º Relatório Anual da Sociedade Missionária Estrangeira Feminina<br />

da Igreja Presbiteriana, em 1890, afirma que Mary retornou ao Brasil em dezembro,<br />

depois de um tempo de descanso nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, e assumiu a<br />

direção da próspera escola de Botucatu, que estava sob os cuida<strong>do</strong>s da esposa<br />

<strong>do</strong> pastor nacional. “O atual edifício, presente de um sincero cristão brasileiro,<br />

em breve será demasia<strong>do</strong> pequeno para a escola, que já tem 89 alunos”. 35<br />

A Escola Americana de Curitiba, fundada, organizada e dirigida por Mary<br />

Dascomb e Elmira Kuhl, pode ser considerada uma expressão da pedagogia<br />

presbiteriana norte-americana observada também em outras escolas criadas<br />

no Brasil por missionários presbiterianos, no mesmo perío<strong>do</strong>. Tais escolas,<br />

segun<strong>do</strong> Hils<strong>do</strong>rf, representavam “a ponta de lança que abriria caminho para<br />

uma renovação das mentalidades e das práticas pedagógicas, e por extensão<br />

da sociedade brasileira”, pois materializavam alguns aspectos <strong>do</strong> sistema educacional<br />

norte-americano, tais como:<br />

Iniciativa privada, ensino prático, científico e comum para to<strong>do</strong>s, currículo<br />

atualiza<strong>do</strong>, cuida<strong>do</strong> com os aspectos materiais <strong>do</strong> ensino, aulas regulares diurnas<br />

e conferências públicas noturnas, atividades extraclasse, suporte financeiro e<br />

capital associa<strong>do</strong>. 36<br />

As atividades da Escola Americana de Curitiba tiveram início em 25 de<br />

fevereiro de 1892, na rua Comenda<strong>do</strong>r Araújo, nº 28, próximo ao terreno onde<br />

seria construí<strong>do</strong> o templo. O <strong>do</strong>cumento de solicitação de abertura da escola<br />

foi encontra<strong>do</strong> no Arquivo Público <strong>do</strong> Paraná, escrito à mão, de próprio punho.<br />

34 Ibid.<br />

35 Twentieth Annual Report of the Woman’s Foreign Missionary Society of the Presbyterian<br />

Church, Filadélfia, 1890, p. 30.<br />

36 HILSDORF, M. L. S. Francisco Rangel Pestana: jornalista, político, educa<strong>do</strong>r. Tese de Doutora<strong>do</strong>,<br />

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986, p. 187.<br />

51


Jamilly Nicacio Nicolete e Arilda Ines Miranda Ribeiro, Educação e História<br />

abstract<br />

This article has in view understanding the presence of a woman, the educator<br />

Mary Parker Dascomb, in the Presbyterian mission to Brazil in the second<br />

half of the 19th century and the beginning of the 20th century, as well as her<br />

participation in the educational project of that mission. The historiographical<br />

awareness of the involvement of women in the educational scenario is receiving<br />

greater emphasis in contemporary debates. However, not many analyses have<br />

taken into account the possible contribution of religious women, single or married,<br />

in such discussion. This analysis asks some questions about the presence<br />

of women in the Presbyterian educational project implanted in Brazil since the<br />

end of the 19 th century. To that purpose, the author considered primary sources<br />

of an official character, such as educational reports, and non-official <strong>do</strong>cuments,<br />

such as some personal letters written by this North-American missionary and<br />

educator and by other members of the Presbyterian mission. Departing from<br />

a broad <strong>do</strong>cumental and bibliographical analysis, the article briefly advances<br />

some little known information about Miss Dascomb’s childhood, youth, family,<br />

academic training, and work as an educator and missionary.<br />

keywords<br />

Presbyterianism in Brasil; Presbyterian women; Mary Dascomb, North-<br />

-American education.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso:<br />

Fonte de Consolo ou Mera Recitação?<br />

Anselmo Ernesto Graff * e Dirléia Fanfa Sarmento **<br />

resumo<br />

Esta pesquisa teve como objetivo revisitar as palavras da oração <strong>do</strong> Pai<br />

Nosso, segun<strong>do</strong> o texto original no evangelho de Mateus. A meto<strong>do</strong>logia<br />

constituiu em investigar estu<strong>do</strong>s exegéticos pertinentes ao texto de Mateus<br />

6.9-13. A análise indica que o Pai Nosso tem muito mais a nos dizer <strong>do</strong> que<br />

sua brevidade parece indicar. A oração, como iniciativa divina, parece consistir<br />

em manter diante de nossos olhos como se dá a nossa relação com Deus, e o<br />

Pai Nosso é a oração que melhor expressa isso. Essas poucas linhas ensinadas<br />

por Jesus servem de modelo para a oração, tanto em sua forma como em<br />

seu conteú<strong>do</strong>. Elas podem ser usadas como guia para os crentes em Cristo de<br />

to<strong>do</strong>s os povos e línguas e em todas as situações. Nas palavras de Martinho<br />

Lutero, pode ser resumida a maior descoberta desta pesquisa: “Pois ainda hoje<br />

mamo no Pai Nosso como uma criança, dele como e bebo como um adulto,<br />

não consigo me fartar dele”.<br />

palavras-chave<br />

Pai Nosso; Mateus 6.9-13; Oração; Jesus.<br />

introdução<br />

A oração <strong>do</strong> Pai Nosso talvez seja a oração mais conhecida e mais recitada<br />

no mun<strong>do</strong>. Será que to<strong>do</strong>s sabem o que se pede nessa oração ensinada pelo<br />

Senhor Jesus? Martinho Lutero afirma que “há muitos que talvez oram mil Pai<br />

* Mestre em Teologia Sistemática, <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> em Educação, professor na Universidade Luterana<br />

<strong>do</strong> Brasil – ULBRA, Canoas, RS. E-mail: anselmo.graff@ulbra.br.<br />

** Doutora em Educação, pós-<strong>do</strong>utoranda em Educação, professora no Programa de Pós-Graduação<br />

da UNILASALLE, Canoas, RS. E-mail: fanfa@unilasalle.edu.br.<br />

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Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

Nossos por ano, e mesmo que orassem por mil anos, não teriam prova<strong>do</strong> nem<br />

ora<strong>do</strong> sequer uma única letra ou pontinho”. 1 Lutero errou no diagnóstico? Será<br />

que é preciso compreender em toda a sua profundidade as petições da oração <strong>do</strong><br />

Pai Nosso para que ela produza conforto? Na avaliação de Lutero são poucos<br />

os que encontram conforto e alegria na oração ensinada pelo Senhor Jesus.<br />

Feita sem a devida devoção, ela é desvirtuada a ponto de ser considerada “o<br />

maior mártir sobre a terra”. 2<br />

1. contexto<br />

Será que essa leitura de Lutero é característica exclusiva <strong>do</strong> seu tempo?<br />

É possível sofrer <strong>do</strong> mesmo mal no século <strong>21</strong>? O Pai Nosso é mera recitação,<br />

e assim continua sen<strong>do</strong> um “mártir”, ou é fonte de consolo e paz? Certamente<br />

to<strong>do</strong>s os que oram o Pai Nosso querem extrair dele conforto e paz para as suas<br />

vidas. Porém, arriscamos dizer que há duas causas que podem gerar nessa oração<br />

um caráter de recitação mecânica, ou até de poder mágico, não funcionan<strong>do</strong><br />

como uma verdadeira fonte de alívio e de certeza de que nessa oração pedimos<br />

to<strong>do</strong> o necessário para a nossa vida espiritual, física e material.<br />

A primeira causa quem sabe seja o “excesso” de familiaridade. Muitos<br />

a repetem tantas vezes que é quase inevitável ela não adquirir ares de mecanicidade,<br />

ou até de ex opere operato, ou seja, bastaria recitá-la para obter as<br />

bênçãos decorrentes dessa oração. No entanto, e esta é a segunda causa, ainda<br />

que haja nisso uma possibilidade de contradição, esse balbuciar automático<br />

também pode estar vincula<strong>do</strong> ao fato de se conhecer tão pouco <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong><br />

de cada petição.<br />

Martinho Lutero não ficou de braços cruza<strong>do</strong>s e com a mente ociosa<br />

quan<strong>do</strong> sua leitura <strong>do</strong> contexto indicava a incompreensão das palavras de Jesus.<br />

Ele examinou em minúcia a preciosidade das petições <strong>do</strong> Pai Nosso, uma por<br />

uma, e as emoldurou em contornos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s. 3 Charles Arand concorda que as<br />

palavras <strong>do</strong> Pai Nosso às vezes se tornam tão familiares, “que nós falhamos<br />

em perceber como cada petição pode abrir um mun<strong>do</strong> inteiro de significa<strong>do</strong><br />

e providenciar uma ordem tanto para orar quanto para viver”. 4 Quem sabe<br />

nem era preciso acrescentar outros estu<strong>do</strong>s ao que já foi escrito sobre essa<br />

oração, mas nós também sabemos pela própria experiência que às vezes é<br />

1 LUTERO, Martinho. Uma singela forma de orar, para um bom amigo. In: LUTERO, Martinho.<br />

Obras selecionadas. Vol. 5. São Leopol<strong>do</strong>/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1995, p. 139.<br />

2 Ibid.<br />

3 Alguns <strong>do</strong>s textos de Lutero sobre o Pai Nosso em português são: “Uma singela forma de orar,<br />

para um bom amigo”. Obras selecionadas, vol. 5, p. 134-148. Explicações nos Catecismos Menor e Maior.<br />

Livro de Concórdia, p. 372-375 e 457-474. Obras selecionadas, vol. 9, p. 145-156, vol. 7, p. 400-418.<br />

4 ARAND, Charles. O clamor de batalha da fé: exposição <strong>do</strong> Pai Nosso nos catecismos. Trad.<br />

Fábio Werner e Clóvis Prunzel. Igreja Luterana, vol. 65, N° 2 (nov. 2006): 31-56, p. 31-32.<br />

54


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

preciso oxigenar as nossas pressuposições e leituras, a fim de vislumbrar novos<br />

horizontes no conhecimento <strong>do</strong> Pai Nosso e assim orá-lo com mais fervor e<br />

devoção. Só assim a oração mais excelente da face da terra deixará de ser o<br />

“maior mártir”, para se tornar fonte de encorajamento e paz para os cristãos<br />

que oram saben<strong>do</strong> o que estão oran<strong>do</strong>.<br />

É preciso concordar com Lutero que se alguém orasse o Pai Nosso sem<br />

nenhuma distração, este deveria ser considera<strong>do</strong> um mestre. Ele usa como<br />

ilustração desse ponto um texto de São Bernar<strong>do</strong>, que havia se queixa<strong>do</strong> para<br />

um amigo sobre sua dificuldade em orar o Pai Nosso <strong>do</strong> início ao fim sem<br />

a interferência de outros pensamentos. Seu amigo ficou surpreso. Ele nunca<br />

pensou que orar o Pai Nosso seria tão difícil. Foi então que São Bernar<strong>do</strong><br />

propôs uma aposta com esse seu amigo. Eles apostaram um cavalo de que ele<br />

não seria capaz de orar o Pai Nosso sem ser distraí<strong>do</strong> por algum pensamento<br />

paralelo. A condição era falar a verdade. O amigo começou a orar e antes que<br />

tivesse chega<strong>do</strong> ao fim <strong>do</strong> primeiro pedi<strong>do</strong> (“santifica<strong>do</strong> seja o teu nome”),<br />

perguntou se também receberia junto a sela caso ganhasse o cavalo. 5<br />

Ainda que a distração seja inerentemente natural a to<strong>do</strong> ser humano sobre<br />

a face da terra, também é possível afirmar que é o conhecimento que pode<br />

auxiliar na concentração e compreensão <strong>do</strong> que está sen<strong>do</strong> recita<strong>do</strong>. Há quem<br />

possa dizer e argumentar que o efeito da oração não está condiciona<strong>do</strong> ao<br />

conhecimento ou entendimento consciente <strong>do</strong> que é recita<strong>do</strong>. É verdade, mas<br />

isto pode soar um tanto reducionista. É verdade também que é o Espírito que<br />

assiste os cristãos permanentemente em suas orações, mas quan<strong>do</strong> o entendimento<br />

daquilo que se ora é falho ou às vezes até inexistente, o prejuízo final<br />

pode ser uma recitação mecânica e uma esterilidade na produção consciente<br />

de consolo e conforto que a oração <strong>do</strong> Senhor Jesus é capaz de produzir.<br />

2. objetivos e meto<strong>do</strong>logia empregada<br />

Os objetivos desta pesquisa visam analisar e interpretar as palavras da<br />

oração <strong>do</strong> Pai Nosso, segun<strong>do</strong> texto original no evangelho de Mateus 6.9-13,<br />

e relacionar essa explicação bíblica com reflexões feitas de forma particular<br />

por Martinho Lutero. O alvo é também extrair o significa<strong>do</strong> dessa oração<br />

e aplicá-lo na existência <strong>do</strong> ser humano no mun<strong>do</strong> e na vida de oração da<br />

igreja e <strong>do</strong>s cristãos individualmente. Nesse senti<strong>do</strong> ainda, a ideia é destacar<br />

consequências dessas abordagens, com vistas a uma reavaliação da oração <strong>do</strong><br />

Pai Nosso e consequentemente recomendar novos enfoques para a igreja cristã<br />

em sua vida de oração.<br />

Em termos meto<strong>do</strong>lógicos, a investigação será feita a partir de estu<strong>do</strong>s<br />

exegéticos de alguns autores relaciona<strong>do</strong>s à oração <strong>do</strong> Pai Nosso, bem como<br />

5 PLESS, Ewald M. What Luther says. St. Louis: Concordia Publishing House, 1994, p. 1087.<br />

55


Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

<strong>do</strong> exame de exposições de Lutero sobre o tema. Por fim, irá considerar a forma<br />

de Jesus tratar o tema da oração e relacioná-la à teologia praticada hoje na<br />

igreja e na literatura secundária, sugerin<strong>do</strong> conclusões alternativas.<br />

3. a oração <strong>do</strong> pai nosso em mateus 6.9-13<br />

O texto bíblico <strong>do</strong> evangelho de Mateus 6.9-13 nos leva a um guia ou<br />

modelo de oração. Quan<strong>do</strong> o Senhor Jesus diz “assim, pois, orai vós”, ele<br />

estabelece um paradigma de oração para a igreja cristã. As considerações<br />

exegéticas <strong>do</strong> texto da oração <strong>do</strong> Pai Nosso não poderão esgotar o senti<strong>do</strong> e o<br />

impacto dessas linhas ensinadas pelo Senhor Jesus, mas servirão como “um<br />

encorajamento, de não somente entender o que Jesus diz, mas também orar<br />

mais fervorosamente como o próprio Senhor deseja que o façamos”. 6<br />

O fato é que essas poucas linhas ensinadas por Jesus servem de modelo<br />

para a oração, tanto em sua forma como em seu conteú<strong>do</strong>. Elas podem ser<br />

usadas como guia para os crentes em Cristo de to<strong>do</strong>s os povos e línguas. Os<br />

comentários adiciona<strong>do</strong>s a cada petição não pretendem simplesmente servir<br />

como suplemento para o que é tão perfeito, mas têm como objetivo encorajar<br />

a compreender melhor o que Jesus quer dizer com cada pedi<strong>do</strong>, o que por<br />

sua vez vai gerar conforto nos que oram a fim de que possam se aquietar nos<br />

braços <strong>do</strong> nosso Pai.<br />

3.1 Mateus 6.9-13 – introdução e contexto<br />

Toda essa seção (Mt 6.1-18) está incluída no Sermão <strong>do</strong> Monte (Mt 5.2-<br />

7.29) e pode ser denominada de “vida sob o cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pai”. Essa parte contém<br />

uma tríade de tópicos 7 que precisam ser vistos separadamente para sua devida<br />

compreensão: esmolas (6.1-4), oração (6.5-15) e jejum (6.16-18).<br />

O primeiro versículo pode muito bem representar uma introdução geral<br />

ao tema. Jesus recomenda aos seus discípulos que a vida pie<strong>do</strong>sa não seja<br />

vivida na expectativa de que outros possam ficar impressiona<strong>do</strong>s por ações<br />

devotas <strong>do</strong>s indivíduos, seja através das esmolas, da oração ou <strong>do</strong> jejum. Status,<br />

honra, vergonha ou louvor de outras pessoas eram valores da época em que<br />

Jesus proferiu o Sermão <strong>do</strong> Monte, mas continuam fazen<strong>do</strong> parte da vida de<br />

to<strong>do</strong>s ainda hoje.<br />

Jesus radicaliza o tema e diz que existem apenas duas expectativas ou<br />

esperanças a serem preenchidas nesses três casos (esmolas, oração e jejum):<br />

ou se espera o louvor das pessoas ou se anseia pelas bênçãos <strong>do</strong> Pai Celestial. 8<br />

6 GIBBS, Jeffrey. A theological exposition of Sacred Scripture: Matthew 1.1-11.1. St. Louis:<br />

Concordia Publishing House, 2006, p. 3<strong>21</strong>.<br />

7 Ibid., p. 312.<br />

8 Ibid., p. 312-313.<br />

56


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

O evangelista Mateus formata e estrutura essa unidade de tal forma que<br />

é possível fazer uma representação gráfica desse texto.<br />

Quan<strong>do</strong>: Se dá esmola (6.2a) Se ora (6.5a) Ou se jejua (6.16a)<br />

Porque:<br />

Para:<br />

To<strong>do</strong>s eles:<br />

Aqueles que:<br />

Esses:<br />

Não se deve ser como os hipócritas<br />

Gostam de anunciar<br />

que estão dan<strong>do</strong> esmola<br />

(6.2b)<br />

Ficam de pé para orar<br />

(6.5b)<br />

O propósito <strong>do</strong>s hipócritas é agir para a glória humana<br />

Ser elogia<strong>do</strong>s pelas<br />

pessoas (6.2c)<br />

Ser vistos pelos outros<br />

(6.5b)<br />

O que Jesus diz sobre esse tipo de atitude?<br />

Já receberam sua<br />

recompensa (6.2c)<br />

Dão esmola e ninguém<br />

fica saben<strong>do</strong> (6.3)<br />

Serão recompensa<strong>do</strong>s<br />

pelo Pai (6.4)<br />

Já receberam sua<br />

recompensa (6.5c)<br />

Quais são as promessas de Jesus?<br />

Oram em secreto<br />

(6.6a)<br />

Serão recompensa<strong>do</strong>s<br />

pelo Pai (6.6b)<br />

Desfiguram o rosto<br />

(6.16a)<br />

Mostrar que estão<br />

jejuan<strong>do</strong> (6.16c)<br />

Já receberam sua<br />

recompensa (6.16c)<br />

Jejuam como se não<br />

estivessem jejuan<strong>do</strong><br />

(6.17-18a)<br />

Serão recompensa<strong>do</strong>s<br />

pelo Pai (6.18b)<br />

Esse é o primeiro grande e importante princípio nos ensinamentos <strong>do</strong><br />

Senhor Jesus: dar esmola, orar e jejuar são atividades legítimas e têm promessas<br />

de recompensa, na medida em que são pratica<strong>do</strong>s sem a intenção de<br />

“aparecer” diante das pessoas e são feitos tão somente na esperança de receber<br />

a recompensa <strong>do</strong> Pai Celestial. É isso que realmente conta.<br />

Esta pesquisa está direcionada a trabalhar o segun<strong>do</strong> ensino de Jesus, a<br />

oração. A advertência contra o perigo da hipocrisia e, assim, de sair de mãos<br />

vazias de diante <strong>do</strong> Pai, já foi representada acima (6.5-6). Porém, vale ainda<br />

outra observação particularmente relacionada à oração. Jesus adverte para<br />

não seguir o caminho daqueles que não são seus discípulos, chama<strong>do</strong>s aqui de<br />

gentios. Orações longas e repetidas não são garantia de que o Pai vai ouvi-las<br />

e enxergar essa “piedade extra” daqueles que assim oram. Também não faz<br />

parte de uma possível valorização da oração a aparição pública, como se<br />

isso fosse contar alguma coisa, pois a oração verdadeira é dirigida a Deus e<br />

somente ele é que pode e irá tomar conta <strong>do</strong>s nossos pedi<strong>do</strong>s. 9 O princípio da<br />

9 A expressão “entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai”, geralmente é entendida<br />

como sen<strong>do</strong> uma hipérbole, ou seja, Jesus faz uso de um exagero consciente para aumentar o efeito <strong>do</strong><br />

princípio em vista. Hipérboles na Bíblia, se não podem ser entendidas literalmente, não são para enganar<br />

ou confundir, mas para impactar. Jesus ao que parece conseguiu com essa hipérbole colocar toda a ênfase<br />

na importância da oração feita longe <strong>do</strong>s holofotes humanos.<br />

57


Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

vida sob o cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pai é que ele sabe muito bem das reais necessidades<br />

de seus filhos.<br />

Esse conhecimento antecipa<strong>do</strong> obviamente pode gerar a pergunta “por<br />

que ainda orar”. O próprio contexto de Mateus 6, de forma especial o versículo<br />

9, “portanto, vós orareis assim”, por si só já poderia responder a<br />

esse questionamento. A oração cristã é instituição de Cristo. Porém, é ainda<br />

interessante lembrar que toda a Escritura Sagrada apresenta uma coleção de<br />

passagens que incentivam à oração e de pessoas que oraram. C. S. Lewis cita<br />

Pascal para argumentar que Deus instituiu a oração, assim como o trabalho,<br />

para proporcionar às suas criaturas a dignidade da causalidade. Deus concedeu<br />

a nós, pequenas criaturas, a dignidade de sermos capazes de contribuir no curso<br />

<strong>do</strong>s eventos de nossa história por meio <strong>do</strong> trabalho e das nossas orações. 10<br />

Em outras palavras, nós podemos pedir para sermos atendi<strong>do</strong>s em nossas<br />

necessidades e Deus nos dar as bênçãos correspondentes aos nossos pedi<strong>do</strong>s.<br />

Claro, Deus mantém o princípio <strong>do</strong> “poder discricionário” sobre a oração, o<br />

que garante que ele nos concede dádivas mesmo sem a nossa oração e que não<br />

atenderá pedi<strong>do</strong>s que resultem em males ou injustiças.<br />

Assim, o conhecimento <strong>do</strong> Pai sobre as nossas necessidades não serve<br />

aqui para desestimular a prática da oração, mas é uma motivação para ir confiadamente<br />

ao Pai e lhe fazer súplicas e pedi<strong>do</strong>s que ele mesmo ensinou na<br />

oração conhecida como “Pai Nosso” ou oração <strong>do</strong> Senhor Jesus.<br />

3.2 Pai nosso<br />

“Pois assim orai vós: Pai nosso [que estás] nos céus”. 11 Jesus nos conduz<br />

à essência da oração. Há uma discussão exegética quanto à versão <strong>do</strong><br />

Pai Nosso em Mateus e a de Lucas (11.2-4), que é mais breve. A maioria<br />

<strong>do</strong>s estudiosos parece considerar a versão de Lucas como a mais original.<br />

Porém, mesmo entre aqueles que fazem esse tipo de leitura, existem aqueles<br />

que reconhecem que Jesus ensinou em mais de uma ocasião sobre o tema<br />

da oração 12 e não se deveria rejeitar a possibilidade de várias versões <strong>do</strong> Pai<br />

Nosso, 13 porém com uma só fonte, o próprio Jesus. Geralmente se conclui<br />

que a forma em Lucas seja mais primitiva, porém há alguns detalhes em<br />

10 LEWIS, C. S. Work and prayer. God in the <strong>do</strong>ck. Grand Rapids: Eerdmans, 1970, p. 104-107.<br />

11 Tradução segun<strong>do</strong>: SCHOLZ, Vilson (Org.). Novo Testamento interlinear grego-português.<br />

Barueri, SP: Sociedade Bíblica <strong>do</strong> Brasil, 2004. A tradução <strong>do</strong> texto de Mateus 6.9-13 seguirá com base<br />

nessa fonte de pesquisa.<br />

12 “Jesus pode ter muito bem ensina<strong>do</strong> mais de uma vez e em mais <strong>do</strong> que apenas uma forma”.<br />

Tasker apud MORRIS, Leon. The gospel according to Matthew. Michigan: Eerdmans, 1995, p. 143,<br />

nota 31.<br />

13 Jesus também pode ter ti<strong>do</strong> em vista um modelo e não necessariamente uma forma rígida de<br />

oração.<br />

58


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

Mateus que estão mais próximos <strong>do</strong> original. 14 Há de fato diferenças nas<br />

duas versões, mas ambas “têm simplicidade, concisão, clareza intelectual e<br />

compreensão espiritual”. 15<br />

Jesus diagnosticou que as orações de hipócritas e gentios (v. 5,7) não estão<br />

de acor<strong>do</strong> com a vontade <strong>do</strong> pai. Assim o imperativo presente tem aqui uma<br />

característica de ênfase: “Assim, pois, orai vós”. Jesus tinha se referi<strong>do</strong> com<br />

certa frequência a Deus como Pai, não somente dele próprio, mas também de<br />

to<strong>do</strong>s os discípulos e de to<strong>do</strong>s os que oram (Mt 5.16, 45, 48; 6.1, 4, 6).<br />

Nesse instante Jesus começa a ensinar seus discípulos de forma corporativa<br />

e íntima. Deus não é somente o “meu pai”, mas “nosso Pai”. De fato,<br />

a ênfase de Jesus é de que nossas orações não sejam atos solitários ou apenas<br />

expressões individuais de nosso relacionamento com Deus, mas solidárias e<br />

de toda a comunidade cristã. 16 O “nosso” implica que essa oração é feita em<br />

comunhão com to<strong>do</strong>s aqueles a quem foi feito o convite de orar e dada a permissão<br />

para fazê-lo. Karl Barth vai mais longe ainda e diz que nesta oração<br />

entramos em comunhão com aqueles que ainda nem oram, talvez com aqueles<br />

por quem somente Jesus está oran<strong>do</strong>. 17 Quan<strong>do</strong> os cristãos oram, eles são como<br />

que substitutos daqueles que ainda não oram. 18 Por outro la<strong>do</strong>, é importante salientar<br />

que Jesus não descarta de forma nenhuma a oração privada e individual,<br />

mas dá a esta oração um caráter comunitário que precisa ser considera<strong>do</strong>. 19<br />

Chamar a Deus de Pai não era uma prática tão comum nas religiões<br />

antigas. Jesus está ensinan<strong>do</strong> a seus discípulos um novo entendimento sobre<br />

a natureza de Deus. Tanto judeus como gentios tendiam a começar suas orações<br />

com títulos que enfatizavam a grandeza e o senhorio de Deus. 20 Invocar<br />

a Deus como Pai não exclui seu atributo de grandeza e soberania, mas põe<br />

em relevo o caráter íntimo no relacionamento, porque esta é também uma das<br />

expressões ou imagens que mais acentuam a ideia relacional de Deus Pai para<br />

com seus filhos. <strong>21</strong><br />

Ao dirigir-se a Deus como Pai, é possível, ainda que parcialmente, olhar<br />

para as experiências concretas de pais e filhos terrenos, que assim tornam<br />

possível compreender de forma mais precisa o que significa poder se dirigir<br />

14 MORRIS, The gospel according to Matthew, p. 143.<br />

15 Filson apud MORRIS, The gospel according to Matthew, p. 143.<br />

16 MILLER, Patrick D. They cried to the Lord: The form and theology of Biblical prayer. Minneapolis:<br />

Fortress, 1994, p. 328.<br />

17 A oração sacer<strong>do</strong>tal de Jesus em João 17 poderia dar base para essa conclusão.<br />

18 Barth apud Miller, They cried to the Lord, p. 328.<br />

19 Em outras ocasiões Jesus se dirige a Deus tão somente como “Pai” e ensina isso a seus discípulos<br />

(Mt 11.25; Mc 14.36; Lc 11.2; 23.46).<br />

20 MORRIS, The gospel according to Matthew, p. 144.<br />

<strong>21</strong> MILLER, They cried to the Lord, p. 330.<br />

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Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

a Deus como Pai. 22 A propósito, em Lucas 11.9-13 o próprio Cristo constata<br />

que se um pai terreno, que é mau (v. 13), sabe dar boas dádivas a seus filhos,<br />

quanto mais o Pai Celestial concederá o Espírito a quem assim o pedir.<br />

3.3 Que estás nos céus<br />

Jesus Cristo instruiu os cristãos a se dirigirem a Deus numa linguagem que<br />

também exalta a Deus como aquele que trouxe o ser humano à existência e tem<br />

poder para estar atento a todas as suas necessidades. Assim, a introdução sinaliza<br />

igualmente para o reconhecimento da sua infinita grandeza com o acréscimo<br />

de que este Pai está nos céus. “Que estás nos céus” é uma alusão às orações<br />

<strong>do</strong> Antigo Testamento. Foi assim na dedicação <strong>do</strong> templo com Salomão (2 Cr<br />

6.14) e outros líderes e profetas (Ne 1.4; 9.6; Is 63.7-64.11), que colocavam<br />

sua confiança no “Pai celestial” e não em pais terrenos, como Abraão e Jacó. 23<br />

Há pelo menos duas verdades expressas nessa sentença adicional ao “Pai<br />

nosso”. Em primeiro lugar, ela enfatiza o caráter onipotente de Deus e sua<br />

capacidade em ouvir a oração de to<strong>do</strong>s e a to<strong>do</strong>s responder compassivamente<br />

(Sl 103.13). Em segun<strong>do</strong> lugar, deixa claro que Deus está nos céus e quem ora<br />

está na terra (Ec 5.2). Porém, o Deus que está nos céus tem o poder para estar<br />

com suas criaturas sobre a terra. De fato, os três primeiros pedi<strong>do</strong>s são feitos<br />

no senti<strong>do</strong> de que Deus aja em favor de seu nome, reino e vontade. 24<br />

Aqui vale a observação de que nos três primeiros pedi<strong>do</strong>s os imperativos<br />

passivos na terceira pessoa 25 se referem ao “nome” de Deus, ao “reino” de<br />

Deus e à “vontade” de Deus. A oração da igreja será para que o próprio Deus<br />

aja e seja a causa de seu nome se tornar santo, seu reino ser trazi<strong>do</strong> à terra e<br />

afirmada a sua vontade. Nesse caso é preciso manter a tensão. Por um la<strong>do</strong>,<br />

essas primeiras três petições se referem ao que irá acontecer no Último Dia. 26<br />

Por outro la<strong>do</strong>, “Jesus ensina aqui os seus discípulos a orar a fim de que o Pai<br />

complete a obra de redenção e recriação que começou com a obra de Jesus”. 27<br />

Assim, é possível concluir que a existência cristã não está limitada à<br />

contemplação individual, mas os discípulos de Jesus são lembra<strong>do</strong>s a orar por<br />

22 É preciso considerar aqui que imagens humanas podem ser problemáticas na medida em que<br />

conduzem conotações negativas a partir de determinadas experiências, tanto para aqueles que não tiveram<br />

um pai terreno, como para aqueles que podem ter ti<strong>do</strong> um relacionamento problemático com seu pai.<br />

Porém, ainda assim isto não anula o caráter íntimo e a maravilhosa possibilidade se dirigir ao Senhor<br />

<strong>do</strong> Universo como Pai (cf. Salmo 27.10 e 68.5).<br />

23 MILLER, They cried to the Lord, p. 329-330.<br />

24 GIBBS, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 326.<br />

25 Como será visto a partir da quarta petição, os pronomes pessoais estão na primeira pessoa <strong>do</strong><br />

plural (“nós”, “nosso”).<br />

26 A oração <strong>do</strong> Pai Nosso exibe características escatológicas próprias <strong>do</strong> Sermão <strong>do</strong> Monte (5.3-12,<br />

19-20, 26, 29-30; 6.4,6).<br />

27 GIBBS, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 323.<br />

60


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

propósitos bem maiores e mais amplos sobre a terra. Jesus está oferecen<strong>do</strong><br />

petições que visam a conversão e a restauração de toda a humanidade e<br />

<strong>do</strong> próprio cosmos. 28<br />

Antes <strong>do</strong>s segui<strong>do</strong>res de Jesus orarem por suas necessidades mais urgentes, eles<br />

devem abrir suas mentes para uma perspectiva maior e expressar sua incondicional<br />

solidariedade com Deus e sua causa, ao orar pela santificação final <strong>do</strong><br />

divino nome, pela vinda <strong>do</strong> reino <strong>do</strong>s céus sobre a terra e a definitiva realização<br />

<strong>do</strong>s propósitos divinos. 29<br />

Nesse senti<strong>do</strong> e conclusão, cada petição adicional é colocada sob o governo<br />

e a vontade de Deus.<br />

3.4 Seja santifica<strong>do</strong> o nome teu<br />

“O nome de Deus é santo por si mesmo”. Essa é a afirmativa de Martinho<br />

Lutero. Mas o pano de fun<strong>do</strong> para essa petição (Ez 36.22-32) revela que a<br />

santificação <strong>do</strong> nome de Deus, que é realizada por ele próprio, também ocorre<br />

no e através <strong>do</strong> povo de Deus. 30 Assim esse pedi<strong>do</strong> é para que as pessoas sejam<br />

levadas a uma atitude reverente para com o nome de Deus, que em última<br />

análise significa a presença <strong>do</strong> próprio Deus (1 Rs 9.3,7; 2 Cr 7.16,20).<br />

O desejo de Deus é que suas criaturas considerem seu nome e seus caminhos<br />

salva<strong>do</strong>res como santos. Rejeitar isto é profanar o nome de Deus. É disso<br />

que está tratan<strong>do</strong> o texto de Ezequiel menciona<strong>do</strong> acima. Deus conduziu seu<br />

povo ao exílio e a conduta vergonhosa, idólatra e questiona<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> povo com<br />

a forma como Deus agiu fez com que seu nome fosse profana<strong>do</strong>. 31<br />

No senti<strong>do</strong> mais próprio desta petição, Deus é o sujeito da santificação <strong>do</strong><br />

seu próprio nome através <strong>do</strong>s seus atos de justiça. De forma especial a salvação<br />

da humanidade, vista por antecipação através da sua obra, concedida por<br />

meio da pregação <strong>do</strong> evangelho, mas cuja plenitude só será vista no Último Dia.<br />

Isto é compatível com o princípio de que estas três primeiras petições se referem<br />

ao nome de Deus, a sua atividade, sem desconsiderar, todavia, a santificação<br />

<strong>do</strong> nome de Deus nos corações <strong>do</strong>s cristãos. 32 Porém, é importante salientar<br />

que o mais refina<strong>do</strong> objetivo nesta petição é o nome de Deus ser santifica<strong>do</strong>.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, o ser humano não “aparece na foto”, para o nome de Deus ser<br />

coloca<strong>do</strong> no centro dela e ela ser preenchida com seus atos salva<strong>do</strong>res e sua<br />

presença por meio da pregação da sua Palavra.<br />

28 Ibid., p. 326.<br />

29 Gerhardsson apud GIBBS, ibid., p. 327.<br />

30 Miller, They cried to the Lord, p. 331-332.<br />

31 GIBBS, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 327.<br />

32 CARSON, D. A. The Sermon on the Mount: An evangelical exposition of Matthew 5-7. Michigan:<br />

Baker Books, 1995, p. 66-67.<br />

61


Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

3.5 Venha o reino teu<br />

Deus sempre foi o Rei que governa terra e céus (Sl 10.16; 29.10; 146.10).<br />

Ao falar no reino de Deus, também é preciso considerar o “outro reino”. A força<br />

de Satanás, as tentações e a natureza pecaminosa <strong>do</strong> ser humano são parceiras<br />

e anseiam por estabelecer seu próprio <strong>do</strong>mínio por conta própria. Somente no<br />

Último Dia se poderá ver com nitidez absoluta o triunfo <strong>do</strong> reino de Deus. Aos<br />

discípulos de Jesus é recomenda<strong>do</strong> orar por esse Dia. Nesse segun<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong>,<br />

os cristãos são convida<strong>do</strong>s a olhar para a frente e orar pela vitória de Deus<br />

sobre to<strong>do</strong>s os tipos de males e peca<strong>do</strong>s. É o dia em que Jesus voltará (1 Co<br />

15.28; Ap 11.15) e será visto o Reino em sua plenitude e a vontade de Deus<br />

será perfeitamente conhecida e realizada. A oração é para a ação de Deus, e<br />

não <strong>do</strong>s discípulos, estabelecer o Reino. “Ele pede pelo estabelecimento <strong>do</strong><br />

Reino de Deus, Deus por nós, não nós por Deus”. 33<br />

Esse caráter escatológico, contu<strong>do</strong>, não anula a dimensão e a realidade<br />

presente <strong>do</strong> Reino de Deus, nem torna necessário maximizar eventuais divergências<br />

exegéticas nesse item. Miller, por exemplo, diz que toda a história de<br />

Israel é a história <strong>do</strong> empenho de Deus em efetivar seu reino sobre a terra. 34 De<br />

fato, as três primeiras petições <strong>do</strong> Pai Nosso são basicamente escatológicas e,<br />

de forma especial, “venha o teu reino” lembra a oração litúrgica aramaica que<br />

sobreviveu nas congregações paulinas de fala grega: “Maranata” (“vem, Senhor<br />

Jesus” – 1 Co 16.22; Ap 22.17, 20). Porém, é preciso salientar que o Reino <strong>do</strong>s<br />

Céus já está presente no ministério <strong>do</strong> Senhor Jesus (Mt 4.17; 12.28), em seu<br />

sofrimento (Mt 26.42), bem como na sua morte e ressurreição, episódios em<br />

que Deus agiu em favor <strong>do</strong> seu povo para salvá-lo <strong>do</strong>s seus peca<strong>do</strong>s.<br />

Assim, o Reino <strong>do</strong>s Céus vem continuamente por meio das boas novas<br />

de Jesus, em palavras faladas <strong>do</strong> evangelho. São esses os meios pelos quais<br />

o governo gracioso de Deus é conferi<strong>do</strong> àqueles que são crentes em Cristo e<br />

aqueles que ainda são incrédulos. Até o Último Dia, os discípulos de Jesus<br />

são chama<strong>do</strong>s a orar por to<strong>do</strong>s os santos na terra e por to<strong>do</strong>s os que ainda<br />

necessitam ser converti<strong>do</strong>s à fé em Cristo. 35 Por isso, orar “venha o teu reino”<br />

é pedir para que esse reino salva<strong>do</strong>r de Jesus Cristo seja expandi<strong>do</strong> e alcance<br />

mais pessoas no tempo e no espaço.<br />

Aqui cabe uma observação prática. Desde o começo da existência da<br />

igreja cristã, houve perseguição aos crentes em Cristo Jesus. Por isso, esse<br />

aspecto escatológico <strong>do</strong> reino pode ter ti<strong>do</strong> outra significação em função <strong>do</strong><br />

outro nível de anseio. Os cristãos com certeza não têm nenhuma objeção ao<br />

retorno <strong>do</strong> Senhor Jesus e ao estabelecimento pleno <strong>do</strong> seu reina<strong>do</strong>, mas todas<br />

33 Stendhal apud MORRIS, The gospel according to Matthew, p. 145.<br />

34 MILLER, They cried to the Lord, p. 332.<br />

35 Gibbs, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 328.<br />

62


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

as graciosas bênçãos <strong>do</strong> presente acabam ofuscan<strong>do</strong> um pouco essa perspectiva<br />

de futuro, ainda que isto obviamente não interfira no teor da petição.<br />

3.6 Seja feita a vontade tua, como no céu, também sobre a terra<br />

A vontade de Deus sempre prevalece no céu e na terra. Só que em termos<br />

práticos ela não ocorre da forma como Deus deseja. Assim, Jesus pede aos<br />

seus discípulos para que orem pela ação e intervenção de Deus no senti<strong>do</strong> de<br />

combater a pretensão <strong>do</strong> Diabo e <strong>do</strong>s homens peca<strong>do</strong>res, a fim de que a graciosa<br />

e perfeita vontade de Deus se imponha, como já está acontecen<strong>do</strong> nos céus,<br />

na presença de Deus e <strong>do</strong>s seus santos anjos. 36 Nos céus a vontade perfeita<br />

de Deus já é uma realidade, pois lá não há absolutamente nada que poderia<br />

impedi-la, por isso essa oração pede por uma situação similar já aqui na terra. 37<br />

Essa petição completa o grupo <strong>do</strong>s três primeiros pedi<strong>do</strong>s e de certa<br />

forma tem relação com os <strong>do</strong>is primeiros. Ela tem a ver com a santificação <strong>do</strong><br />

nome de Deus e a vinda <strong>do</strong> seu reino. Essa é a sua vontade. Até Jesus retornar<br />

seus discípulos continuarão a orar e crer que o próprio Pai fará seu nome ser<br />

santifica<strong>do</strong> por meio de e nos seus filhos. Quan<strong>do</strong> isto é olha<strong>do</strong> da perspectiva<br />

<strong>do</strong> texto de Ezequiel, não dá para excluir o aspecto ético cristão envolvi<strong>do</strong><br />

nesse pedi<strong>do</strong>. A vontade ética de Deus também faz parte <strong>do</strong> que o Pai espera<br />

<strong>do</strong>s seus filhos aqui na terra. Não obstante um contexto onde o mal trafegue<br />

livremente, os crentes em Cristo são chama<strong>do</strong>s a ser sal e luz neste mun<strong>do</strong>.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, é a vontade <strong>do</strong> Pai que to<strong>do</strong>s se arrependam e creiam em<br />

seu Filho como Salva<strong>do</strong>r. Por isso o reino de Deus salva<strong>do</strong>r vem continuamente<br />

em Jesus Cristo e é ofereci<strong>do</strong> na pregação <strong>do</strong> evangelho. Nesse senti<strong>do</strong> se pede<br />

nessa petição que Deus continue operan<strong>do</strong> para que sua vontade prevaleça e<br />

de forma especial que nenhum <strong>do</strong>s que creem ou venham a crer nele pereça<br />

(Mt 18.14), mas to<strong>do</strong>s sejam recebi<strong>do</strong>s no reino eterno. Assim, a igreja e os<br />

cristãos individualmente são parte da resposta das suas próprias orações, pois<br />

são instrumentos de Deus Pai na proclamação <strong>do</strong>s atos salva<strong>do</strong>res de Deus por<br />

meio <strong>do</strong> seu evangelho. Dessa forma, com as três primeiras petições o cristão<br />

e a igreja também estão dizen<strong>do</strong>: “Aqui estamos. A tua causa é a nossa causa”.<br />

3.7 O pão nosso de cada dia dá a nós hoje<br />

Aqui começa a segunda parte da oração <strong>do</strong> Pai Nosso. As três primeiras<br />

petições formam uma unidade que tem como conector a expressão “como nos<br />

céus, também sobre a terra”. Nos pedi<strong>do</strong>s dessa unidade há alguns detalhes que<br />

precisam ser nota<strong>do</strong>s. O primeiro é o pronome pessoal no plural (nós e nosso).<br />

O segun<strong>do</strong> aspecto é o tempo verbal: to<strong>do</strong>s na segunda pessoa <strong>do</strong> singular, na<br />

voz ativa e dirigidas ao Pai (na primeira parte eram imperativos na terceira<br />

36 Ibid., p. 330.<br />

37 MORRIS, The gospel according to Matthew, p. 146.<br />

63


Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

pessoa). Também é necessário considerar que há uma integração nos pedi<strong>do</strong>s<br />

dessa segunda parte, sublinhada pela presença <strong>do</strong> conector kai (e per<strong>do</strong>a; e<br />

não nos conduzas...). Nessa segunda parte ocorre uma mudança no foco <strong>do</strong>s<br />

pedi<strong>do</strong>s. Não obstante o fato de que essa seção precisa ser lida à luz <strong>do</strong> Último<br />

Dia, nela Jesus ensina seus discípulos a pedir pelas necessidades importantes<br />

para o dia de hoje.<br />

O primeiro pedi<strong>do</strong> diz respeito às necessidades básicas de toda pessoa.<br />

Sustento e providência para toda a rede de necessidades, com suas variáveis e<br />

imprevisibilidades. O pão de cada dia é apenas uma forma “zipada” de pedir<br />

todas as riquezas das bênçãos necessárias para o sustento e preservação divinos.<br />

Essa expressão também pode ter como pano de fun<strong>do</strong> o maná <strong>do</strong> Antigo Testamento,<br />

o que por sua vez fornece elementos para concluir que nesse pedi<strong>do</strong><br />

implicitamente suplicamos para que não ultrapassemos o limite das aquisições<br />

justas e sejamos suga<strong>do</strong>s pela onda <strong>do</strong> consumismo e da avareza. 38 A oração<br />

de Agur se encaixa muito bem nesse princípio: “Não me dês nem a pobreza<br />

nem a riqueza; dá-me o pão que me for necessário” (Pv 30.8).<br />

As discussões sobre esse pedi<strong>do</strong> na maioria das vezes se dão em torno<br />

da palavra epiousios (de cada dia), obscura em sua natureza e de uso restrito<br />

no Novo Testamento. “Nós simplesmente não podemos estar certos sobre o<br />

que esse adjetivo significa”. 39 Uma provável paráfrase dessa petição poderia<br />

ser: “dá-nos hoje o pão para o dia que está chegan<strong>do</strong>”. 40 A indicação para isso<br />

seria o verbo usa<strong>do</strong> e que se refere à vinda <strong>do</strong> próximo dia (At 7.26; 16.11;<br />

20.15; <strong>21</strong>.18).<br />

Ainda que a leitura escatológica 41 desse pedi<strong>do</strong> não seja completamente<br />

absurda e o evangelista Mateus dê esses traços a seu texto, Gibbs alerta<br />

para o fato de que há razões para ver as duas partes como unidades distintas,<br />

sen<strong>do</strong> que essa segunda parte trata de pedi<strong>do</strong>s corporais, como já explica<strong>do</strong><br />

anteriormente. 42 Além disso, é necessário convir que seria difícil, quem sabe<br />

imprudente, formular uma teologia escatológica profunda sobre uma palavra<br />

cujo significa<strong>do</strong> e uso são tão imprecisos. 43<br />

38 Miller, They cried to the Lord, p. 333.<br />

39 Gibbs, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 331.<br />

40 Aqui reside outro aspecto controverso dessa formulação, visto que uns intérpretes creem que<br />

se refere ao “pão que está chegan<strong>do</strong>”, ou seja, o banquete celestial cuja plenitude será no Último Dia.<br />

Há ainda outros que acreditam que o epiousios é o “pão” da comunidade cristã pós-ressurreição. Ibid.,<br />

p. 331-332.<br />

41 Se houver alguma referência escatológica nesse pedi<strong>do</strong>, poderia haver um eco de Êxo<strong>do</strong> 16.4<br />

e o maná como porção diária <strong>do</strong> povo de Deus. Nesse caso o maná <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> apontaria para o maná<br />

escatológico ainda aguarda<strong>do</strong> no fim <strong>do</strong>s tempos. Ibid., p. 334.<br />

42 Ibid., p. 332.<br />

43 Ibid., p. 333.<br />

64


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

Por isso, é suficiente entender a quarta petição como sen<strong>do</strong> um humilde<br />

pedi<strong>do</strong> para receber a provisão diária das mãos <strong>do</strong> Pai. Aliás, isto pode ser sustenta<strong>do</strong><br />

pelo próprio contexto posterior em que Jesus aconselha seus discípulos<br />

a não se estressarem nem ficarem obceca<strong>do</strong>s com as necessidades materiais e<br />

físicas (Mt 6.25-34). Pedir pelo sustento diário também é uma lembrança de<br />

que nossa existência física depende <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r e não podemos tomar como<br />

certo nosso pão diário olhan<strong>do</strong> para nós mesmos, mas é necessário fitar confiantemente<br />

e em fé o Pai, que é mantene<strong>do</strong>r da existência física. 44<br />

Quanto à falta de especificidade no pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> pão, essa oração ensina<br />

e convida os discípulos a serem modestos sobre suas necessidades corporais.<br />

“O pão que está chegan<strong>do</strong>” pelas mãos <strong>do</strong> Pai é o que precisamos e é o que<br />

pedimos. Ele sabe o quanto exatamente é preciso “liberar”. No contexto de uma<br />

sociedade consumista sempre existe o perigo de confundir o que queremos com<br />

o que de fato precisamos. A indústria <strong>do</strong> momento é prover satisfação corporal<br />

plena através <strong>do</strong> comércio de produtos, muitos deles, sem precisão alguma.<br />

Assim, uma versão mais longa desse pedi<strong>do</strong> em nossos tempos poderia ser:<br />

Ensina-nos a distinguir o que verdadeiramente precisamos daquilo que é dispensável<br />

e que podemos muito bem viver sem. Dá-nos o pão que precisamos, o<br />

qual vem de Ti. Move-nos hoje a compartilhar com os outros o que lhes falta. 45<br />

3.8 E per<strong>do</strong>a a nós as nossas dívidas, como também nós temos<br />

per<strong>do</strong>a<strong>do</strong> aos nossos deve<strong>do</strong>res<br />

Essa petição de certa forma torna legítima a confissão de peca<strong>do</strong>s na<br />

oração e ressalta fortemente a necessidade <strong>do</strong> perdão diante de Deus. Ao contrário<br />

<strong>do</strong> que pode parecer à primeira vista, o nosso perdão da parte de Deus<br />

não brota <strong>do</strong> nosso perdão ao próximo, mas o perdão de Deus não pode ser<br />

espera<strong>do</strong> se o perdão humano é reti<strong>do</strong>. 46 Se a resposta desse pedi<strong>do</strong> de perdão a<br />

Deus fosse condicionada ao perdão que exercemos para com o nosso próximo,<br />

então esse pedi<strong>do</strong> seria um “monstro da incerteza”. 47 Por isso, Jesus ensina a<br />

orar mais por uma aspiração, <strong>do</strong> que uma limitação. Se assim não fosse, “nenhum<br />

de nós estaria per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>”. 48 Assim, nesse pedi<strong>do</strong> se reconhece que nós<br />

não temos direito ao perdão de Deus, se nós próprios não estamos dispostos a<br />

fazê-lo com os nossos deve<strong>do</strong>res (peca<strong>do</strong>res).<br />

Porém, é importante e fundamental enfatizar que o aoristo indicativo no<br />

grego deixa suficientemente claro que aqueles que oram o Pai Nosso podem<br />

44 MORRIS, The gospel according to Matthew, p. 147.<br />

45 GIBBS, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 335.<br />

46 Miller, They cried to the Lord, p. 333.<br />

47 Gibbs, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 335.<br />

48 Morris, The gospel according to Matthew, p. 147.<br />

65


Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

se caracterizar como pessoas que já foram per<strong>do</strong>adas antes mesmo de começar<br />

a oração. 49 Também aqui Jesus ensina que o perdão <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s sustenta a<br />

to<strong>do</strong>s, inclusive os discípulos mais próximos <strong>do</strong> Filho de Deus. Essa é uma<br />

oração que também precisa ser feita até o fim <strong>do</strong>s tempos, pois to<strong>do</strong>s pecaram,<br />

pecam, pecarão e estão carentes <strong>do</strong> perdão gracioso de Deus em Jesus Cristo.<br />

Receber e passar adiante o perdão de Deus faz parte da existência diária<br />

de to<strong>do</strong>s. Há pelo menos <strong>do</strong>is aspectos que podem ser menciona<strong>do</strong>s aqui em<br />

relação ao nosso perdão diário, a partir <strong>do</strong> fato de que somos per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s de<br />

nossas “dívidas” (peca<strong>do</strong>s) e capacita<strong>do</strong>s a per<strong>do</strong>ar os nossos “deve<strong>do</strong>res”<br />

(não as dívidas). Primeiro, em relação à dificuldade de per<strong>do</strong>ar aqueles que<br />

fazem mal contra nós. Quan<strong>do</strong> se diz “não tem perdão” ou “vou per<strong>do</strong>ar, mas<br />

não esquecer”, pode-se esquecer que Jesus espera o perdão sincero de nossa<br />

parte, porque ele é rico em per<strong>do</strong>ar, como mostra tão bem a Parábola <strong>do</strong> Cre<strong>do</strong>r<br />

Incompassivo (Mt 18.23-35). A propósito, esse texto mostra muito bem<br />

que o perdão de Jesus vem antes e é este que pode produzir o nosso perdão.<br />

Segun<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> somos movi<strong>do</strong>s ao desejo de per<strong>do</strong>ar, podemos alongar essa<br />

petição para “eu sei, Senhor, que tu queres que eu per<strong>do</strong>e! Mas eu não consigo,<br />

a não ser que tu me ajudes a fazê-lo”. 50 A esses “pobres de espírito” (Mt 5.3) a<br />

palavra é “bem-aventura<strong>do</strong> és”. O “poder” de per<strong>do</strong>ar é para to<strong>do</strong>s, a partir <strong>do</strong><br />

perdão ofereci<strong>do</strong> por Cristo.<br />

3.9 E não conduzas a nós para a tentação, mas livra a nós<br />

<strong>do</strong> maligno<br />

Essa petição também tem trazi<strong>do</strong> algum grau de dificuldade em sua interpretação.<br />

O ponto nevrálgico está associa<strong>do</strong> com o que afinal está se pedin<strong>do</strong> ao<br />

Pai. Ao olhar para a formulação desse pedi<strong>do</strong>, estamos concordan<strong>do</strong> que Deus<br />

é o sujeito de nossas tentações? É ele que deliberadamente tenta os discípulos?<br />

De início é preciso observar que a palavra “tentação” costuma ter uma<br />

conotação bastante negativa, especialmente no senti<strong>do</strong> de ser “tenta<strong>do</strong> a pecar”.<br />

Porém, essa palavra também tem traços mais neutros e seu significa<strong>do</strong><br />

por vezes é “testar”. Em qual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s se encaixa essa petição?<br />

Gibbs argumenta que peirasmós tem aqui o senti<strong>do</strong> negativo, haven<strong>do</strong> <strong>do</strong>is<br />

fatores que contribuem para essa conclusão. 51 O primeiro é que tanto o<br />

substantivo como o verbo são usa<strong>do</strong>s pelo evangelista Mateus como ten<strong>do</strong><br />

força negativa (Mt 4.1, 3; 16.1; 19.3; 22.18, 35). A propósito, o substantivo<br />

aparece somente em Mateus 26.41 e o verbo, sempre negativamente, ocorre<br />

em mais ocasiões. A partir disso, é próprio observar que essas duas petições<br />

49 Gibbs, A theological exposition of Sacred Scripture, p. 336.<br />

50 Ibid.<br />

51 Ibid., p. 338.<br />

66


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

devem ser lidas como se fosse uma, pois o “maligno” é chama<strong>do</strong> de peirázon<br />

(tenta<strong>do</strong>r) em Mateus 4.3. 52<br />

O segun<strong>do</strong> aspecto, mais por inferência, é a conclusão de que seria um<br />

tanto estranho Jesus ensinar seus discípulos a orar para que o Pai não os “teste”.<br />

O testemunho das Escrituras é que Deus prova o seu povo. Há exemplos<br />

emblemáticos <strong>do</strong> “testar” divino. Abraão foi “tenta<strong>do</strong>” a sacrificar seu filho<br />

Isaque (Gn 22.1) e a própria caminhada pelo deserto se configurou numa prova<br />

(Dt 8.2). Há ainda o “teste de fidelidade” de Jó.<br />

Antes de continuar, é preciso estabelecer e reiterar o princípio afirma<strong>do</strong><br />

pelo apóstolo Tiago: “Deus não pode ser tenta<strong>do</strong> pelo mal e ele mesmo a<br />

ninguém tenta; ao contrário cada um é tenta<strong>do</strong> por sua própria cobiça” (Tg<br />

1.13-14). Nesse senti<strong>do</strong>, a história de Caim e Abel pode servir como uma<br />

chave para compreender melhor o que se pede nessa petição, bem como servir<br />

de exemplo para a tentação no senti<strong>do</strong> negativo. Ao chamar Caim, Deus lhe<br />

concedeu uma espécie de <strong>do</strong>mínio próprio contra o peca<strong>do</strong> (Gn 4.7). Porém,<br />

Caim falhou gravemente e acabou assassinan<strong>do</strong> o seu irmão (Gn 4.8). Por isso,<br />

essa petição é um reconhecimento da completa inabilidade humana de lidar<br />

com esses sentimentos e um pedi<strong>do</strong> pela presença <strong>do</strong> Pai para ordenar nossos<br />

pensamentos e desejos a fim de que sejam coloca<strong>do</strong>s a serviço <strong>do</strong> perdão ao<br />

próximo.<br />

Esse é um la<strong>do</strong> desse pedi<strong>do</strong>. No entanto, é preciso refinar um pouco<br />

mais a investigação para ver <strong>do</strong> que trata esse pedi<strong>do</strong> afinal. Para começar essa<br />

parte se torna necessário reforçar e sublinhar o fato de que essas duas frases<br />

constroem um pedi<strong>do</strong>. Nessa direção, essa petição poderia ser assim resumida:<br />

Deus não conduz os discípulos para a tentação, mas antes ele os liberta<br />

<strong>do</strong> Maligno. Para se compreender isso, poderia se pensar no Deus ira<strong>do</strong> com<br />

o peca<strong>do</strong>r, que poderia agir segun<strong>do</strong> sua ira, mas não o faz por causa <strong>do</strong> seu<br />

coração paternal e misericordioso. Gibbs menciona o caso de Davi (Sl 51.13) 53<br />

ou ainda o exemplo <strong>do</strong> Salmo 22.20. 54 Nessas petições os salmistas reconhecem<br />

que Deus os poderia julgar e agir segun<strong>do</strong> a Lei, ou então eles temem que Deus<br />

potencialmente pudesse lhes retirar o Espírito, mas não o faz, permanecen<strong>do</strong><br />

o Deus <strong>do</strong> amor e da misericórdia, que continua aman<strong>do</strong> o peca<strong>do</strong>r. 55<br />

Assim, nesse pedi<strong>do</strong> a súplica implícita é <strong>do</strong> reconhecimento de que<br />

Deus Pai poderia agir segun<strong>do</strong> a Lei (Mt 5.22-29, 30), mas não o faz e nos<br />

livra <strong>do</strong> Maligno. Vale observar pelo contexto de Mateus 4.1-11 que Jesus foi<br />

conduzi<strong>do</strong> ao deserto para ser tenta<strong>do</strong> e abrir batalha contra o Diabo. Pode-se<br />

52 Ibid.<br />

53 “Não me repulses da tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito”.<br />

54 “Tu, porém, Senhor, não te afastes de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me”. GIBBS,<br />

A theological exposition of Sacred Scripture, p. 340.<br />

55 Ibid.<br />

67


Anselmo Ernesto Graff e Dirléia Fanfa Sarmento, A Oração <strong>do</strong> Pai Nosso<br />

concluir assim que, na oração <strong>do</strong> Pai Nosso, Jesus ensina seus discípulos que o<br />

Pai poderia conduzi-los a tempos de conflitos espirituais com o Tenta<strong>do</strong>r e suas<br />

tentações (direta e indiretamente), mas Deus providenciará to<strong>do</strong>s os elementos<br />

a fim de que seus propósitos permaneçam. 56 Além disso, é um reconhecimento<br />

da fraqueza humana para lidar com essa situação, como já foi visto acima,<br />

mediante seus próprios instrumentos. Nessa petição os cristãos pedem para<br />

não ser conduzi<strong>do</strong>s a situações ou lugares de perigo, mas se isto for inevitável<br />

e ocorrer, o pedi<strong>do</strong> é para que o Pai os liberte desse mal.<br />

Considerações finais<br />

Pois ainda hoje mamo no Pai Nosso como uma criança, dele como e bebo como<br />

um adulto; não consigo me fartar dele. Para mim ele está acima <strong>do</strong> saltério (ao<br />

qual tanto amo). O Pai Nosso é a melhor oração. Na verdade, percebe-se que foi<br />

o verdadeiro Mestre que a formulou e a ensinou, e é profundamente lamentável<br />

que essa oração de tão excelente Mestre seja recitada sem qualquer devoção, e<br />

assim desvirtuada em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Há muitos que talvez rezem mil Pai Nossos<br />

por ano, e mesmo que rezassem por mil anos, não teriam prova<strong>do</strong> nem ora<strong>do</strong><br />

uma única letra ou pontinho. 57<br />

Essas palavras de Lutero podem servir de diagnóstico ainda hoje. Muitos<br />

podem orar o Pai Nosso sem ter noção alguma das ricas bênçãos que estão<br />

sen<strong>do</strong> pedidas a cada linha, vírgula e ponto. Por isso esta pesquisa – e agora<br />

algumas recomendações práticas.<br />

O uso conveniente <strong>do</strong> Pai Nosso, a saber, a condição para que ele possa<br />

gerar consolo, conforto e esperança, é conhecer e compreender o alcance de<br />

cada pedi<strong>do</strong>. Por isso, depois de analisar o tema bíblica e teologicamente, o<br />

objetivo é recomendar uma abordagem para a vida da igreja cristã e <strong>do</strong>s cristãos<br />

individualmente em sua vida diária.<br />

Não há como prescrever antí<strong>do</strong>tos para os momentos tão normais de<br />

desconcentração nessa e em outras orações. Perderíamos a aposta se apostássemos<br />

que ficaríamos concentra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> início ao fim da oração. Porém, há<br />

especialmente <strong>do</strong>is elementos que podem ser segui<strong>do</strong>s a partir deste estu<strong>do</strong>.<br />

Primeiro e quem sabe o mais importante de tu<strong>do</strong>: é necessário ensinar<br />

continuamente a oração <strong>do</strong> Pai Nosso. Não se pode pressupor que nem nós,<br />

nem os outros já saibamos o suficiente dessa incomparável pérola. É preciso<br />

clicar em termos importantes e construções significativas para abrir uma lista<br />

de verdades e pedi<strong>do</strong>s que, com certeza, irão produzir muito consolo e tranquilidade<br />

na vida de quem está oran<strong>do</strong>. Quanto mais se compreender o Pai<br />

Nosso <strong>do</strong> ponto de vista teológico, tanto mais ele será ora<strong>do</strong> com fervor e<br />

56 Ibid., p. 344.<br />

57 LUTERO, Uma singela forma de orar, p. 139.<br />

68


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 53-69<br />

concentração. A fé cristã não está ancorada essencialmente em entendimento,<br />

ela é <strong>do</strong>m de Deus, mas a partir disso ela procura compreender o que crê.<br />

Segun<strong>do</strong>, Martinho Lutero deixou armazena<strong>do</strong>s pensamentos sobre cada<br />

petição em alguns <strong>do</strong>s seus escritos. Orar com pausa e a cada pedi<strong>do</strong> acrescentar<br />

pensamentos correspondentes aos pedi<strong>do</strong>s é uma forma de valorizar e<br />

orientar as orações pessoais e da igreja, para que o Pai Nosso perca o título de<br />

“maior mártir” e assuma a posição de consolar e produzir a certeza absoluta<br />

de que tu<strong>do</strong> o que é preciso pedir ao Pai que está nos céus, o estamos fazen<strong>do</strong><br />

por meio dessa oração. 58<br />

abstract<br />

This research had as its purpose to revisit the Lord’s Prayer according to<br />

its original in the Gospel of Matthew 6:9-13. The metho<strong>do</strong>logy consisted in<br />

investigating exegetical studies relevant to the text of Matthew. The analysis<br />

indicates that the Lord’s Prayer has much more to tell us than its brevity seems<br />

to indicate. Prayer as a divine initiative seems to consist in keeping before<br />

our eyes how our relationship with God should be and the Lord’s Prayer is<br />

the prayer that best expresses it. These few lines taught by Jesus serve as a<br />

model for prayer, both in form and in content. They can be used as a guide<br />

for believers in Christ of all peoples and languages, and in all situations. One<br />

can summarize the greatest discovery of this research in the words of Martin<br />

Luther: “For today I suck in the ‘Our Father’ as a child, from it I eat and drink<br />

as an adult, I cannot satisfy myself of it.”<br />

keywords<br />

Lord’s Prayer; Matthew 6:9-13; Prayer; Jesus.<br />

58 GIBBS sugere, por exemplo, a cada petição incluir pedi<strong>do</strong>s específicos. “Pai, faze com que em<br />

nossa igreja sejamos capacita<strong>do</strong>s a agir em amor e em verdade uns para com os outros, a fim de que teu<br />

nome seja santifica<strong>do</strong> entre nós”; “Queri<strong>do</strong> Senhor, muitos entre nós sofrem com <strong>do</strong>enças. Venha o<br />

teu Reino sobre to<strong>do</strong>s eles para lhes trazer cura e força”; “To<strong>do</strong>-Poderoso Deus, frustra os desígnios das<br />

pessoas más e faz com que a tua vontade seja feita na terra, assim como ela é nos céus”. A theological<br />

exposition of Sacred Scripture, p. 346.<br />

69


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

Laico brasileiro: Uma Breve Abordagem<br />

<strong>do</strong> Processo Histórico<br />

Sérgio Ribeiro Santos *<br />

resumo<br />

Este artigo tem por objetivo – ainda que sucintamente – entender como<br />

se deu a laicização <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> brasileiro. Este processo incluiu as políticas de<br />

imigração <strong>do</strong> governo imperial, a presença protestante e a força das novas ideias<br />

que aos poucos chegavam em terras brasileiras – como liberalismo, maçonaria<br />

e positivismo – vindas da Europa e <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, bem como as tensões<br />

existentes entre a alta direção da Igreja Católica Apostólica Romana e os poderes<br />

políticos constituí<strong>do</strong>s. Assim, busca-se reforçar, a partir da compreensão<br />

<strong>do</strong> processo político histórico brasileiro, a necessidade da preservação das<br />

instituições democráticas e refletir sobre o espaço que as religiões em geral,<br />

e o protestantismo em particular, devem ocupar neste cenário, em específico<br />

no contexto de um esta<strong>do</strong> laico.<br />

palavras-chave<br />

Liberdade religiosa; Protestantismo; Esta<strong>do</strong> Laico; Imigração; Liberalismo;<br />

Maçonaria; Positivismo; Questão Religiosa.<br />

1. liberdade religiosa, protestantismo e laicização<br />

1.1 Imigração, liberdade religiosa e protestantismo<br />

A liberdade religiosa no Brasil, a inserção protestante e, por fim, a formação<br />

de um esta<strong>do</strong> laico estão, num primeiro plano, diretamente liga<strong>do</strong>s às<br />

* Doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pastor da Igreja Presbiteriana<br />

<strong>do</strong> Pascoal Ramos em Cuiabá (MT) e professor <strong>do</strong> Instituto Bíblico “Rev. Augusto Araújo”<br />

(IBAA).<br />

71


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

imigrações para o país ocorridas durante o século 19, principalmente em sua<br />

primeira metade.<br />

Esse processo imigratório passou por diferentes fases e a primeira delas se<br />

deu logo após a abertura econômica da colônia como uma das consequências<br />

<strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s contraí<strong>do</strong>s entre Portugal e Inglaterra por ocasião da vinda da<br />

família real para o Brasil. Esses acor<strong>do</strong>s que selaram o fim <strong>do</strong> pacto colonial<br />

trouxeram para a rotina econômica e social brasileira a presença inglesa.<br />

Num segun<strong>do</strong> momento, ainda na primeira metade <strong>do</strong> século 19, ocorre<br />

a formação de colônias baseadas em pequenas propriedades de agricultores.<br />

Nessa fase, a grande presença será a alemã, principalmente no sul <strong>do</strong> país. Já na<br />

terceira etapa desse processo, a imigração não será mais um empreendimento<br />

patrocina<strong>do</strong> totalmente pela coroa, mas sim o resulta<strong>do</strong> de parcerias e posteriormente<br />

da iniciativa privada. 1 Porém, este último tipo de imigração, além de<br />

extrapolar o perío<strong>do</strong> monárquico a adentrar o perío<strong>do</strong> republicano, será concretiza<strong>do</strong><br />

muito mais a partir de italianos e asiáticos, buscan<strong>do</strong>-se assim suprir<br />

a necessidade de mão-de-obra, principalmente nas lavouras de café na região<br />

oeste de São Paulo. 2 Ademais, devi<strong>do</strong> à origem desses últimos imigrantes, o<br />

protestantismo já não será a religião <strong>do</strong>minante entre eles, diferentemente das<br />

duas fases iniciais acima mencionadas.<br />

Quanto à presença de protestantes imigrantes estrangeiros, essa está<br />

intimamente ligada à transmigração da família real portuguesa, sen<strong>do</strong> que<br />

uma das consequências deste episódio, nas palavras de Olga Pantaleão, “foi<br />

o fortalecimento no Brasil da influência britânica”. 3 Influência esta marcante<br />

no merca<strong>do</strong> financeiro, no comércio, na construção de estradas de ferro, nos<br />

utensílios de uso <strong>do</strong>méstico e em produtos <strong>do</strong>s mais varia<strong>do</strong>s tipos, desde remédios<br />

até carruagens. Segun<strong>do</strong> Gilberto Freyre, ainda que ele tenha escrito<br />

em certos aspectos a partir da realidade nordestina <strong>do</strong> Brasil, permanece a<br />

sua observação quanto à participação <strong>do</strong>s ingleses na modernização técnica<br />

<strong>do</strong> país, ao se fazerem presentes como “médicos, educa<strong>do</strong>res, engenheiros,<br />

professores, naturalistas, mecânicos de fundições, mineiros, missionários,<br />

governantes, pioneiros da renovação industrial <strong>do</strong> país, mestres da composição<br />

de jornais e livros”. 4<br />

1 FAORO, Raymun<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder: formação <strong>do</strong> patronato político brasileiro. 3ª ed. rev.<br />

São Paulo: Globo, 2001, p. 518.<br />

2 PRADO JR., Caio. História econômica <strong>do</strong> Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 183-185.<br />

3 PANTALEÃO, Olga. A presença inglesa, livro primeiro: o novo descobrimento <strong>do</strong> Brasil. In:<br />

HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História geral da civilização brasileira. 4ª ed., Tomo II, 1º vol.<br />

São Paulo, Rio de Janeiro: DIFEL, 1976, p. 64.<br />

4 FREYRE, Gilberto. Os ingleses no Brasil: aspectos da influência britânica sobre a vida, a<br />

paisagem e a cultura <strong>do</strong> Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, p. 71-73.<br />

72


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

A presença britânica também se fez sentir mediante sua influência política<br />

e intelectual, seja no contato pessoal <strong>do</strong>s políticos brasileiros com os ingleses<br />

ou com a bibliografia destes. Ainda de acor<strong>do</strong> com a análise de Freyre, essa<br />

proximidade influenciou os políticos, acadêmicos de direito e até mesmo o<br />

clero. 5 Como bem observou Pantaleão, “o século XIX, sobretu<strong>do</strong> em sua primeira<br />

metade, foi assim, no Brasil, o século inglês por excelência”. 6 Enfim, é<br />

quase redundante dizer que essa “invasão” britânica é a conseqüência prática<br />

<strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s de 1808 e 1810 entre Inglaterra e Portugal em troca da ajuda que<br />

este recebera na Europa quan<strong>do</strong> da expansão francesa conduzida por Napoleão<br />

Bonaparte.<br />

Contu<strong>do</strong>, durante as negociações desses trata<strong>do</strong>s (os aspectos jurídicos<br />

que facilitaram a inserção de imigrantes protestantes no Brasil serão considera<strong>do</strong>s<br />

mais adiante), visto que os ingleses, em sua maioria, não eram católicos,<br />

e sim anglicanos, o aspecto religioso tornou-se um importante elemento a ser<br />

considera<strong>do</strong>. Lord Strangford, negocia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s e incentiva<strong>do</strong>r da vinda<br />

da família real para o Brasil, preocupou-se com a liberdade religiosa de seus<br />

compatriotas, pois eles estariam em um país no qual o catolicismo era a religião<br />

oficial e até então a única permitida. Apesar das resistências, em grande<br />

medida advindas <strong>do</strong> núncio papal, foi concedida aos ingleses a liberdade de<br />

culto em terras brasileiras.<br />

Com isso, se perceberia a influência britânica também em termos religiosos,<br />

pois, apesar <strong>do</strong> ambiente de resistência por parte <strong>do</strong>s católicos, segun<strong>do</strong><br />

Freyre, os súditos de Sua Majestade, “acabaram organizan<strong>do</strong> seitas, espalhan<strong>do</strong><br />

bíblias, fundan<strong>do</strong> colégios, converten<strong>do</strong> católico-romanos ao evangelismo<br />

com sermões pronuncia<strong>do</strong>s num português pitorescamente erra<strong>do</strong>”. 7 Ainda<br />

que esta afirmação de Freyre, principalmente no que concerne à conversão<br />

de católico-romanos, necessite de um exame ou formulação mais precisa,<br />

permanece a constatação de que a presença inglesa no Brasil realmente trouxe<br />

transformações também em termos religiosos. 8<br />

Sobre essa influência religiosa, Reily informa que os britânicos não<br />

tinham a prática proselitista. 9 Essa postura difere <strong>do</strong> que futuramente veio a<br />

5 Ibid., p. 73-75.<br />

6 PANTALEÃO, A presença inglesa, p. 65.<br />

7 FREYRE, Os ingleses no Brasil, p. 124.<br />

8 No romance de Macha<strong>do</strong> de Assis “A mão e a luva”, publica<strong>do</strong> originalmente em 1874, uma das<br />

personagens era Mrs. Oswald, dama de companhia da “baronesa”, madrinha de Guiomar, protagonista<br />

<strong>do</strong> enre<strong>do</strong>. Em sua narrativa, Macha<strong>do</strong> de Assis a descreve como, “uma boa protestante que era, tinha<br />

a Bíblia nas pontas <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s”. ASSIS, Macha<strong>do</strong> de. A mão e a luva. Rio de Janeiro: Editora Nova<br />

Aguilar, 1994, p. 22. Logo, em alguma medida realmente havia esta influência protestante a ponto de o<br />

romancista incluir uma representante da classe em um <strong>do</strong>s seus folhetins.<br />

9 REILY, Duncan A. História <strong>do</strong>cumental <strong>do</strong> protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984,<br />

p. 25.<br />

73


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

ser conheci<strong>do</strong> como protestantismo de missão, ou seja, quan<strong>do</strong> missionários<br />

estrangeiros, principalmente norte-americanos, vieram ao Brasil com o propósito<br />

delibera<strong>do</strong> de evangelização. Por isso, o protestantismo pratica<strong>do</strong> pelos<br />

ingleses ficou conheci<strong>do</strong> como protestantismo de imigração.<br />

Em segun<strong>do</strong> lugar, a partir da liberdade concedida aos britânicos para<br />

a prática particular de culto, o anglicanismo no Brasil se “caracterizou por<br />

capelanias, ou seja, pelo atendimento religioso aos ingleses, na sua forma litúrgica<br />

tradicional [...], no idioma inglês”. 10 Aliás, antes mesmo de se construir<br />

o primeiro templo anglicano, tornaram-se comuns os cultos nas residências,<br />

inclusive na de Lord Strangford e a bor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s navios. Esses cultos orientavam-se<br />

liturgicamente pelo Livro de Oração Comum, sen<strong>do</strong> este o primeiro<br />

livro protestante de orações a ser usa<strong>do</strong> tanto na Escócia, como na América<br />

<strong>do</strong> Norte e também no Brasil. 11<br />

Já em 18 de agosto de 1819, lança-se a “pedra fundamental da Igreja de<br />

São Jorge e São João Batista, honran<strong>do</strong> assim os soberanos respectivamente<br />

da Inglaterra e de Portugal”, sen<strong>do</strong> essa inaugurada em 26 de maio de 1822. 12<br />

Posteriormente, capelas anglicanas foram construídas em Niterói, São Paulo,<br />

Santos e Recife, onde os cultos eram celebra<strong>do</strong>s somente em inglês. 13 Contu<strong>do</strong>,<br />

apesar da liberdade religiosa de que desfrutavam os ingleses, há a impressão<br />

de que estes eram negligentes em sua devoção e assistência moral e religiosa<br />

ao trabalha<strong>do</strong>r comum. 14<br />

Nesse perío<strong>do</strong> de imigração também foi marcante a presença coloniza<strong>do</strong>ra<br />

protestante alemã. Esse tipo de imigração buscava atender, segun<strong>do</strong> Oberacker,<br />

a necessidade de se constituir uma classe média – única apta a consolidar uma<br />

nação moderna –, e também a de se introduzir a policultura, sistema por meio <strong>do</strong><br />

qual se abasteceriam as cidades em crescimento ou o exército em campanha. 15<br />

Pra<strong>do</strong> Jr. também se refere a essa política coloniza<strong>do</strong>ra, na qual os imigrantes<br />

eram distribuí<strong>do</strong>s em pequenas propriedades agrupadas em núcleos, como uma<br />

tentativa da monarquia brasileira de organizar uma base social sobre a qual o<br />

trono estaria assenta<strong>do</strong>, à semelhança da Europa. 16<br />

10 Ibid.<br />

11 HAHN, Carl Joseph. História <strong>do</strong> culto protestante no Brasil. Trad. Antônio Gouvêa Men<strong>do</strong>nça.<br />

São Paulo: ASTE, 1989, p. 71.<br />

12 REILY, História <strong>do</strong>cumental, p. 25, 33.<br />

13 HAHN, História <strong>do</strong> culto protestante no Brasil, p. 72.<br />

14 FREYRE, Os ingleses no Brasil, p. 136; REILY, História <strong>do</strong>cumental, p. 36-37.<br />

15 OBERACKER JR., Carlos H. A colonização baseada no regime de pequena propriedade agrícola.<br />

In: HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.). História geral da civilização brasileira. 3ª ed. rev., Tomo II,<br />

3º vol. São Paulo: DIFEL, 1976, p. 220.<br />

16 PRADO JR., História Econômica <strong>do</strong> Brasil, p. 185.<br />

74


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

Enfim, supera<strong>do</strong>s os entraves jurídicos que impediam a <strong>do</strong>ação de terras<br />

e o estabelecimento de colônias de imigrantes não católicos, diversas colônias<br />

surgiram, principalmente no sul <strong>do</strong> país, em especial a de São Leopol<strong>do</strong>.<br />

Reily traz a informação de que até 1830, 4.800 alemães haviam chega<strong>do</strong> ao<br />

Rio Grande <strong>do</strong> Sul. 17 Dentre as vantagens oferecidas para a captação desses<br />

imigrantes em sua terra natal, havia até mesmo a promessa da subvenção por<br />

parte <strong>do</strong> governo imperial ao pastor protestante que os acompanhasse, embora,<br />

em parte, nem sempre cumprida. 18<br />

Quanto aos cultos pratica<strong>do</strong>s pelos imigrantes alemães, ainda de acor<strong>do</strong><br />

com Reily, esses eram celebra<strong>do</strong>s na língua materna, pois “entendiam que a<br />

manutenção <strong>do</strong> idioma era essencial à conservação da fé evangélica”. 19 Segun<strong>do</strong><br />

Hahn, esses cultos também seguiam “os ritos da região de Heidelberg,<br />

na Alemanha, adapta<strong>do</strong>s à situação pioneira”. 20 Sobre as práticas litúrgicas,<br />

também “há menção de que, em 1839, foi publica<strong>do</strong> em português um Manual<br />

<strong>do</strong> Culto Luterano e, um ano mais tarde, as Orações Evangélicas. Isso leva a<br />

crer que cada pastor alemão trazia a liturgia usada na sua região da Alemanha<br />

e adaptava-a às condições de fronteira”. <strong>21</strong> Em sua análise <strong>do</strong> aspecto religioso<br />

na vida social no interior das colônias alemãs, Oberacker conclui que:<br />

[...] tornaram-se os protestantes, que formavam a maioria entre os imigrantes<br />

germânicos e seus descendentes, os pioneiros na luta pela abolição da religião<br />

oficial e introdução da liberdade de consciência. Além disso, eram to<strong>do</strong>s os colonos<br />

partidários natos da abolição da escravatura e da equiparação <strong>do</strong> homem<br />

de cor, para cuja dignificação humana e cívica a sua simples presença constituía<br />

o mais veemente apelo possível à nação. 22<br />

Portanto, uma vez participantes <strong>do</strong> quadro social brasileiro, os protestantes,<br />

tanto de imigração quanto missionários ou converti<strong>do</strong>s, tornaram-se<br />

militantes em favor da causa republicana e da formação de um esta<strong>do</strong> laico<br />

com o casamento civil, a secularização <strong>do</strong>s cemitérios e a educação leiga.<br />

Isso foi feito tanto por meio das prédicas como da imprensa, e também por<br />

meio da educação, presente nas diversas instituições escolares fundadas pelos<br />

protestantes.<br />

Escreven<strong>do</strong> sobre a presença protestante no Brasil e sua influência, Antônio<br />

Máspoli de Araújo Gomes apresenta a informação de que somente para<br />

17 REILY, História <strong>do</strong>cumental, p. 38.<br />

18 OBERACKER, A colonização, p. 226.<br />

19 REILY, História <strong>do</strong>cumental, p. 38.<br />

20 HAHN, História <strong>do</strong> culto protestante no Brasil, p. 85.<br />

<strong>21</strong> Ibid., p. 88.<br />

22 OBERACKER JR., A colonização, p. 243.<br />

75


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

São Paulo vieram 2.200 norte-americanos e que os imigrantes ingleses, norte-<br />

-americanos e alemães que residiam nessa província, “geralmente liga<strong>do</strong>s ao<br />

protestantismo, <strong>do</strong>minavam to<strong>do</strong> o merca<strong>do</strong> financeiro de então e o comércio<br />

de importação e exportação de produtos manufatura<strong>do</strong>s que ainda não eram<br />

produzi<strong>do</strong>s no Brasil”. 23 Logo, o que se percebe é uma mudança no cenário<br />

social brasileiro no século 19 a partir da inserção <strong>do</strong> protestantismo, mudança<br />

essa que com o tempo só se acentuou.<br />

De acor<strong>do</strong> com Santos, na República, o Brasil se diversificou em seu<br />

senti<strong>do</strong> religioso, deixan<strong>do</strong> de ser a Igreja Católica a matriz única dessa expressão.<br />

“O protestantismo fez parte desta diversificação paralelamente a outras<br />

expressões religiosas, como as novas expressões <strong>do</strong>s cultos afro-brasileiros”. 24<br />

Enfim, essa diversificação religiosa em curso só acentuou o processo<br />

de secularização pelo qual a sociedade brasileira passava com o avanço <strong>do</strong><br />

capitalismo. No entender de Santos:<br />

Esta secularização tinha como linhas de força os avanços tecnológicos, o discurso<br />

científico, o surgimento de uma classe média mais consciente, as reformas urbanas,<br />

a industrialização, as influências <strong>do</strong> socialismo e <strong>do</strong> anarquismo no seio da<br />

classe operária, o deslocamento da Igreja Católica como matriz religiosa única,<br />

assim como a racionalidade <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> em gerir a sociedade com sua burocracia. 25<br />

Conclui-se, portanto que, ao longo <strong>do</strong> Império, os protestantes inseriram-<br />

-se na sociedade brasileira, absorven<strong>do</strong> valores e transmutan<strong>do</strong> o protestantismo<br />

americano e britânico para a realidade local. Essa presença, juntamente com<br />

outros fatores, foi determinante para a construção da nova ordem que se instalava.<br />

Uma vez proclamada a República, com to<strong>do</strong>s os seus des<strong>do</strong>bramentos,<br />

os protestantes deveriam aprender a tirar proveito dessa situação e se adaptar<br />

ao novo quadro social e político brasileiro. Como observa Ribeiro, “a euforia<br />

<strong>do</strong>s protestantes foi grande, com o advento da República”, tanto que:<br />

[...] ao iniciar seu relatório de 1890 a Mesa Administrativa da Igreja Presbiteriana<br />

<strong>do</strong> Rio, presidida pelo rev. Antônio Trajano, afirma que esse ano havia<br />

si<strong>do</strong> de bênçãos “para a causa de Cristo porque foi decretada pelo benemérito<br />

Governo Provisório a separação da igreja <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> e desta sorte concedida às<br />

igrejas plena liberdade para anunciarem o glorioso Evangelho como e onde<br />

23 GOMES, Antônio Máspoli de Araújo. Origens e imagens <strong>do</strong> protestantismo brasileiro no século<br />

XIX numa perspectiva calvinista e weberiana. <strong>Revista</strong> Ciências da Religião: História e Sociedade, v. 1,<br />

Nº 1. São Paulo: Mackenzie, 2005, p. 88-89, 105-106. Disponível em: .<br />

Acesso em: 12 maio 2009.<br />

24 SANTOS, Lyn<strong>do</strong>n de Araújo. As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>: protestantismo e cultura na primeira<br />

república brasileira. São Luís: EDUFMA; São Paulo: ABHR, 2006, p. 152.<br />

25 Ibid., p. 149.<br />

76


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

quiserem. Por este motivo devem dar mil graças ao To<strong>do</strong>-Poderoso e aproveitar<br />

a oportunidade para adiantarmos seu Reino”. 26<br />

Porém, a simples proclamação da República não significou a profunda<br />

alteração social que talvez os protestantes esperassem. Pois – continua Ribeiro<br />

–, “de 1889 a 1930 os evangélicos viveram sob a tensão de ter de fazer<br />

valer seus direitos de cidadania muitas vezes ameaça<strong>do</strong>s ou viola<strong>do</strong>s”. 27 Isso<br />

significa que nem sempre as institucionalizações terão sua correspondência<br />

literal na horizontalidade <strong>do</strong>s relacionamentos.<br />

1.2 A construção jurídica <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> laico<br />

A formação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> laico no Brasil não pode ser compreendida unicamente<br />

a partir da Constituição de 1891. Essa laicização <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> brasileiro,<br />

que só se tornou vigente na República, bem como a liberdade religiosa em<br />

to<strong>do</strong>s os seus aspectos, são elementos que foram construí<strong>do</strong>s ao longo de to<strong>do</strong> o<br />

século 19. O objetivo, como é natural no Direito, era mediar situações de ordem<br />

prática, principalmente devi<strong>do</strong> ao novo contexto econômico e social <strong>do</strong> país.<br />

Como afirma<strong>do</strong> anteriormente, o começo da liberdade religiosa e a<br />

inserção protestante no Brasil tiveram seus inícios com a vinda da família<br />

real, a qual resultou em diversas implicações jurídicas e políticas. Essa vinda,<br />

apoiada pela Inglaterra, foi seguida pela assinatura <strong>do</strong>s Trata<strong>do</strong>s de 1810, o<br />

de Aliança e Amizade e o de Comércio e Navegação.<br />

No Trata<strong>do</strong> de Aliança e Amizade, em seu artigo 9º, ficou estabeleci<strong>do</strong><br />

que a Inquisição não permaneceria instalada nos <strong>do</strong>mínios da coroa<br />

de Portugal. Já nos artigos 12º e 23º <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Comércio e Navegação<br />

estava garantida a liberdade religiosa aos súditos britânicos, sen<strong>do</strong> vedada<br />

a perseguição a estes. As únicas condições eram que os lugares reserva<strong>do</strong>s<br />

para o serviço divino não podiam ter aparência externa de templos, como a<br />

presença de torres e sinos. 28 Esses artigos sobre a liberdade religiosa haviam<br />

si<strong>do</strong> exigi<strong>do</strong>s “pelos ingleses e somente foram aceitos após um debate que<br />

envolveu Lord Strangford, o embaixa<strong>do</strong>r inglês, e Dom Lourenço Calepi, o<br />

núncio papal”. 29 Amplian<strong>do</strong> ainda mais essa liberdade religiosa e de culto,<br />

primariamente concedida aos imigrantes, a Constituição Imperial de 1824,<br />

em seu artigo 5º declarou que:<br />

26 BOANERGES, Ribeiro. Igreja evangélica e república brasileira (1889-1930). São Paulo: O<br />

Semea<strong>do</strong>r, 1991, p. xiii.<br />

27 Ibid.<br />

28 RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil monárquico. São Paulo: Pioneira, 1973, p. 17.<br />

29 MATOS, Alderi Souza de. Erasmo Braga, o protestantismo e a sociedade brasileira. São Paulo:<br />

Cultura Cristã, 2008, p. 95.<br />

77


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião <strong>do</strong> Imperio.<br />

Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto <strong>do</strong>mestico, ou<br />

particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior <strong>do</strong> Templo.<br />

Apesar da ressalva arquitetônica, o novo ordenamento jurídico brasileiro<br />

já “não garantia ao catolicismo o status de ser a única religião <strong>do</strong> país,<br />

mas somente a oficial”, pois estavam em questão interesses comerciais que<br />

inevitavelmente levariam a um debate acerca da liberdade, tanto em termos<br />

políticos, quanto comerciais ou religiosos. 30 Contu<strong>do</strong>, conforme observa José<br />

Scampini, mesmo assim exigia-se <strong>do</strong> regente, da regência e <strong>do</strong> Conselho de<br />

Esta<strong>do</strong> a manutenção da religião católica apostólica romana, e isso era algo<br />

tão importante “que no dizer da Lei de 15 de outubro de 1827” seriam “severamente<br />

puni<strong>do</strong>s os que atentassem a sua destruição”. 31<br />

Como proteção a esse novo princípio constitucional, preconiza<strong>do</strong> pelo<br />

artigo 5º, o Código Criminal brasileiro, promulga<strong>do</strong> em 16 de dezembro de<br />

1830, trazia as seguintes garantias aos praticantes de outras religiões:<br />

Art. 191. Perseguir por motivo de religião ao que respeitar a <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e não<br />

offender a moral publica. Penas - de prisão por um a tres mezes, além das mais,<br />

em que possa incorrer.<br />

Art. 277. Abusar ou zombar de qualquer culto estabeleci<strong>do</strong> no Imperio, por<br />

meio de papeis impressos, lithographa<strong>do</strong>s, ou grava<strong>do</strong>s, que se distribuirem<br />

por mais de quinze pessoas, ou por meio de discursos proferi<strong>do</strong>s em publicas<br />

reuniões, ou na occasião, e lugar, em que o culto se prestar. Penas – de prisão<br />

por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade <strong>do</strong> tempo.<br />

Ainda no texto constitucional, outro ponto que deve ser observa<strong>do</strong> diz<br />

respeito à ingerência <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r na estrutura administrativa eclesiástica e<br />

na concessão <strong>do</strong> beneplácito, o que futuramente veio a ser um <strong>do</strong>s principais<br />

motivos de discórdia na relação entre Igreja Católica e Esta<strong>do</strong>, como se observou<br />

na Questão Religiosa. Assim rezava a Carta Magna:<br />

Art. 102. O Impera<strong>do</strong>r é o Chefe <strong>do</strong> Poder Executivo, e o exercita pelos seus<br />

Ministros de Esta<strong>do</strong>.<br />

São suas principaes atribuições:<br />

II. Nomear Bispos, e prover os Beneficios Ecclesiasticos.<br />

XIV. Conceder, ou negar o Beneplacito aos Decretos <strong>do</strong>s Concilios, e Letras<br />

Apostolicas, e quaesquer outras Constituições Ecclesiasticas que se não oppozerem<br />

á Constituição; e preceden<strong>do</strong> approvação da Assembléa, se contiverem<br />

disposição geral.<br />

30 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 30.<br />

31 SCAMPINI, José. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras: estu<strong>do</strong> filosófico-jurídico<br />

compara<strong>do</strong>. Petrópolis: Vozes, 1978, p. <strong>21</strong>.<br />

78


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

Além <strong>do</strong> beneplácito régio, Scampini também salienta a possibilidade<br />

<strong>do</strong> recurso à Coroa. Juntos, estes <strong>do</strong>is instrumentos jurídicos acabaram por<br />

desgastar a relação entre o poder temporal e o poder espiritual, o que certamente<br />

criou anseios, ainda que não fosse por uma separação definitiva, pelo<br />

menos, por uma maior autonomia da Igreja Católica perante o Esta<strong>do</strong>. Esse<br />

recurso à Coroa,<br />

[...] ou no dizer <strong>do</strong>s regalistas os chama<strong>do</strong>s “recursos de forças” consistiam<br />

numa apelação contra o abuso ou improcedência <strong>do</strong>s tribunais eclesiásticos.<br />

Vinha a ser um direito que assistia a to<strong>do</strong> cidadão, inclusive os clérigos, de<br />

acudir ao juiz civil para que corrigisse as sentenças <strong>do</strong> juiz eclesiástico. O recurso<br />

à Coroa consoli<strong>do</strong>u-se pela lei de 5 de fevereiro de 1842, a qual concedia<br />

aos presidentes das províncias o direito e o dever de conhecer <strong>do</strong>s abusos das<br />

autoridades eclesiásticas. [...] O recurso à Coroa era um importante meio de<br />

direito, uma valiosa garantia que se interpunha e invocava a proteção da coroa<br />

em seu conselho de Esta<strong>do</strong> contra o uso ilegítimo da jurisdição eclesiástica.<br />

[...] Era uma salva-guarda <strong>do</strong>s direitos e liberdades públicas e individuais, que<br />

aproveitava aos próprios eclesiásticos quan<strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong>s. 32<br />

Outras áreas que até então eram totalmente monopolizadas pela Igreja<br />

Católica, tais como o casamento, o registro de óbitos e os sepultamentos,<br />

também foram objeto de legislação:<br />

Em virtude da autorização <strong>do</strong> Artigo 17 #3º da Lei 586 de 06 de setembro de<br />

1850 foi expedi<strong>do</strong> o 1º regulamento para o Registro Civil pelo decreto nº 798<br />

de 18 de janeiro de 1852 o qual declarava que não seria afeta<strong>do</strong> o Registro<br />

Religioso regula<strong>do</strong> pelas disposições <strong>do</strong> Concílio Tridentino e das Constituições<br />

<strong>do</strong> Arcebispa<strong>do</strong> da Bahia. Pela Lei nº 1144 de 11 de setembro de 1861 e<br />

regulamento nº 3069 de 17 de abril de 1863 foi instituí<strong>do</strong> o Registro <strong>do</strong>s atos<br />

referentes ao casamento leigo para os acatólicos. Em 07 de março de 1888 foi<br />

definitivamente pelo decreto nº 9886 aprova<strong>do</strong> o Regulamento <strong>do</strong> Registro<br />

Civil que pelo decreto nº 10044 de 22 de setembro de 1888 começou a vigorar<br />

à prova de nascimento, <strong>do</strong> casamento e <strong>do</strong> óbito mesmo quan<strong>do</strong> tais assentos<br />

fossem feitos pelas autoridades religiosas. Após a Proclamação da República<br />

pelo decreto nº 181 de 1890 foi instituí<strong>do</strong> o casamento civil, único reconheci<strong>do</strong><br />

oficialmente, decorren<strong>do</strong> a sua prova <strong>do</strong> próprio registro da solenidade <strong>do</strong> ato. 33<br />

Outra regulação jurídica de grandes consequências, que afetava diretamente<br />

a vitalidade da Igreja Católica e que certamente ampliava o espaço social<br />

para a inserção protestante, se deu na proibição de admissão de noviços e na<br />

extinção das ordens religiosas.<br />

32 Ibid., p. 28.<br />

33 Disponível em: http://www.cartoriosesp.com.br/historico.htm. Acesso em: 13 maio 2009.<br />

79


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

A circular de 19 de maio de 1855 foi um golpe mortal na organização <strong>do</strong> clero<br />

regular da Igreja Brasileira. Essa circular mandava cassar as licenças concedidas<br />

para a entrada de noviços em to<strong>do</strong>s os conventos <strong>do</strong> Império até que fosse<br />

resolvida a Concordata que o Governo iria propor à Santa Sé. Como, porém,<br />

nunca se cogitou de propor essa Concordata e tampouco de revogar a circular,<br />

os conventos se foram aos poucos despovoan<strong>do</strong> e extinguir-se-iam de to<strong>do</strong>,<br />

não fosse o decreto de 7 de janeiro de 1890, emana<strong>do</strong> mais tarde <strong>do</strong> Governo<br />

Provisório da República. Por carta imperial de 4 de maio de 1824 extinguiu-se<br />

indiretamente a ordem agostiniana da Bahia; pela lei de 7 de setembro de 1830<br />

eram suprimidas a Congregação Carmelitana Descalça e a Ordem Franciscana<br />

<strong>do</strong>s Capuchinhos Italianos, ambas de Pernambuco, sen<strong>do</strong> regente o Padre Feijó.<br />

A lei provincial de 8 de março de 1835 extinguia a Ordem Carmelitana Calçada<br />

de Sergipe e a 2 de junho de 1840 a mesma Ordem na Bahia. 34<br />

Enfim, nesse ambiente jurídico, comercial e político durante o perío<strong>do</strong><br />

imperial é que “foi sen<strong>do</strong> reduzida a hegemonia católica e os protestantes foram<br />

conquistan<strong>do</strong> o seu lugar no espaço social brasileiro”, espalhan<strong>do</strong> as suas<br />

bíblias e pratican<strong>do</strong> o seu culto “dentro das normas legais muito restritivas,<br />

tanto à propaganda religiosa quanto às formas arquitetônicas de seus lugares<br />

de serviço religioso”. 35 No entanto, analisan<strong>do</strong> o espaço conquista<strong>do</strong> pelos<br />

protestantes, principalmente durante o Segun<strong>do</strong> Império, Santos entende que:<br />

[...] o debate foi juridicamente favorável ao protestantismo devi<strong>do</strong> a, pelo menos,<br />

<strong>do</strong>is fatores: o espírito <strong>do</strong> ideário liberal, inculca<strong>do</strong> nas elites, e as crises institucionais<br />

vividas entre Igreja e Esta<strong>do</strong> Imperial, externadas principalmente na<br />

chamada Questão Religiosa. O protestantismo notabilizou-se pelas conquistas<br />

jurídicas e institucionais durante o segun<strong>do</strong> império. O reconhecimento público<br />

e o registro civil <strong>do</strong> casamento e enterro de pessoas não católicas foram duas<br />

dessas conquistas. 36<br />

O liberalismo político e a Questão Religiosa serão objeto de nossa análise<br />

mais à frente neste artigo, porém o que nos interessa, no momento, é reafirmar<br />

que a liberdade religiosa e a separação entre o Esta<strong>do</strong> e a Igreja Católica, estabeleci<strong>do</strong>s<br />

na Constituição de 1891, foram institutos que nasceram no Império.<br />

Culminan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> esse processo, já na República, ainda durante o governo<br />

provisório, em 7 de janeiro de 1890, foi aprova<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong> decreto 119-A<br />

o projeto de Rui Barbosa em que era aboli<strong>do</strong> o padroa<strong>do</strong> e era feita a separação<br />

entre a Igreja Católica e o Esta<strong>do</strong>. 37 O projeto ainda, como observa Sérgio<br />

34 SCAMPINI, A liberdade religiosa, p. 31.<br />

35 MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O celeste porvir: a inserção <strong>do</strong> protestantismo no Brasil. São<br />

Paulo: ASTE, 1995, p. 26.<br />

36 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 30.<br />

37 RIBEIRO, Igreja evangélica e república brasileira, p. 3.<br />

80


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

Lobo de Moura, trazia outras implicações para a já temerosa Igreja Católica.<br />

Ele contemplava “a sujeição <strong>do</strong>s bens da Igreja à lei de ‘mão morta’, [...]” 38 ,<br />

... proibição das subvenções oficiais a qualquer culto religioso, proibição de se<br />

abrirem novas comunidades religiosas, especialmente da Companhia de Jesus, inelegibilidade<br />

para o Congresso de clérigos e religiosos de qualquer confissão. 39<br />

Porém, no texto da Constituição, aprova<strong>do</strong> finalmente a 24 de fevereiro<br />

de 1891, certas concessões foram feitas com relação ao anteprojeto de 22 de<br />

junho <strong>do</strong> ano anterior:<br />

Os bens da Igreja foram poupa<strong>do</strong>s, as ordens e congregações admiti<strong>do</strong>s sem<br />

reserva alguma. Algumas medidas, cuja ratificação era inevitável em virtude <strong>do</strong><br />

que então se considerava a própria natureza <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal, foram mais tarde<br />

reinterpretadas num senti<strong>do</strong> acomodatício, favorável aos interesses da Igreja:<br />

assim foi possível à Igreja Católica receber subvenções da administração pública,<br />

durante o primeiro perío<strong>do</strong> republicano, a título de ajuda a obras de beneficência.<br />

Outras, finalmente, foram mantidas na sua integridade, e a Igreja foi forçada a<br />

resignar-se: casamento civil, ensino leigo, secularização <strong>do</strong>s cemitérios, recusa<br />

<strong>do</strong>s direitos eleitorais aos religiosos liga<strong>do</strong>s por voto de obediência (exime-se,<br />

portanto, o clero secular da cláusula restritiva). 40<br />

A redação final da primeira Constituição Republicana, em seu artigo 72º,<br />

ficou então <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>:<br />

A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade<br />

<strong>do</strong>s direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à<br />

propriedade, nos termos seguintes:<br />

§ 1º - Ninguém pode ser obriga<strong>do</strong> a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão<br />

em virtude de lei.<br />

§ 2º - To<strong>do</strong>s são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de<br />

nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas<br />

existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos<br />

e de conselho.<br />

§ 3º - To<strong>do</strong>s os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente<br />

o seu culto, associan<strong>do</strong>-se para esse fim e adquirin<strong>do</strong> bens, observadas<br />

as disposições <strong>do</strong> direito comum.<br />

§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.<br />

38 A Lei de Mão Morta regulava que os bens da Igreja seriam inalienáveis, exceto com licença <strong>do</strong><br />

governo. RIBEIRO, Igreja evangélica e república brasileira, p. 7.<br />

39 MOURA, Sérgio Lobo. A Igreja na Primeira República. In: FAUSTO, Boris (Org.). História<br />

geral da civilização brasileira. 4ª ed., Tomo III, 2º volume. Rio de Janeiro: DIFEL, 1990, p. 326-327.<br />

40 Ibid.<br />

81


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

§ 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administra<strong>do</strong>s pela autoridade<br />

municipal, fican<strong>do</strong> livre a to<strong>do</strong>s os cultos religiosos a prática <strong>do</strong>s respectivos ritos<br />

em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis.<br />

§ 6º - Será leigo o ensino ministra<strong>do</strong> nos estabelecimentos públicos.<br />

§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações<br />

de dependência ou aliança com o Governo da União ou <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s.<br />

Segue-se, portanto, que não existiria mais uma religião oficial. A liberdade<br />

religiosa e de culto estava assegurada e importantes funções que marcam a<br />

vida cultural de uma sociedade, como as que dizem respeito ao nascimento,<br />

educação, casamento e morte, antes monopolizadas pela Igreja Católica, tornavam-se<br />

agora secularizadas. De acor<strong>do</strong> com Boris Fausto, em 1893 uma lei<br />

veio completar “esses preceitos constitucionais, crian<strong>do</strong> o registro civil para o<br />

nascimento e o falecimento das pessoas”. 41 Porém, não havia si<strong>do</strong> ruim de to<strong>do</strong><br />

para a Igreja Católica, pois ela recebera os templos e outros bens religiosos,<br />

herda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Império, os sacer<strong>do</strong>tes seriam subvenciona<strong>do</strong>s pela República,<br />

ainda que temporariamente, e ela também poderia receber subvenções a título<br />

de ajuda a obras beneficentes.<br />

Enfim, a criação desse novo sistema jurídico se deveu ao conjunto de<br />

diversos fatores, porém, um que modelou a nova Constituição foi a corrente<br />

liberal, por meio de intelectuais que já manifestavam seu anticlericalismo<br />

e que lutavam pela separação entre a Igreja Católica e o Esta<strong>do</strong>, tais como<br />

Saldanha Marinho e Rui Barbosa.<br />

1.3 As novas ideias: liberalismo, maçonaria e positivismo<br />

1.3.1 Liberalismo<br />

Outro fator que também contribuiu para a liberdade religiosa no Brasil<br />

e para a inserção <strong>do</strong> protestantismo situa-se no campo das ideias, a saber, o<br />

pensamento liberal. Ainda que o termo liberal cubra um amplo leque de significa<strong>do</strong>s,<br />

neste artigo ele está muito mais vincula<strong>do</strong> à crença na liberdade<br />

individual como o melhor e mais rápi<strong>do</strong> caminho para o progresso e também<br />

na obrigação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em proteger a liberdade e os direitos individuais.<br />

Dedutivamente, esses <strong>do</strong>is princípios implicam na liberdade de consciência,<br />

crença, pensamento, expressão e na livre iniciativa econômica.<br />

Segun<strong>do</strong> José Murilo de Carvalho, foi durante o Império que o liberalismo<br />

foi implanta<strong>do</strong> no Brasil em quase toda a sua extensão.<br />

A Lei de terra de 1850 libera a propriedade rural na medida em que regulara seu<br />

registro e promovera sua venda como mecanismo de levantamento de recursos<br />

para a importação de mão-de-obra. A Lei de Sociedades Anônimas de 1882<br />

libera o capital, eliminan<strong>do</strong> restrições à incorporação de empresas. A abolição<br />

41 FAUSTO, Boris. História <strong>do</strong> Brasil. 13ª ed. São Paulo: EDUSP, 2008, p. 251.<br />

82


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

da escravidão libera o trabalho. A liberdade de manifestação de pensamento, de<br />

reunião, de profissão, a garantia da propriedade, tu<strong>do</strong> isso era parte da Constituição<br />

de 1824. No que se refere aos direitos civis, pouco foi acrescenta<strong>do</strong> pela<br />

Constituição de 1891. 42<br />

O liberalismo divulga<strong>do</strong> no Brasil também deve ser entendi<strong>do</strong> como um<br />

conjunto de sistemas filosóficos que se adaptaram ao contexto nacional em seu<br />

respectivo perío<strong>do</strong> de manifestação. Essa corrente filosófica desenvolvida no<br />

Brasil teve suas raízes também no Iluminismo europeu que havia se estabeleci<strong>do</strong><br />

em Portugal, principalmente por meio das reformas pombalinas.<br />

Como muitos <strong>do</strong>s filhos de famílias abastadas <strong>do</strong> Brasil estudavam na<br />

Universidade de Coimbra, ten<strong>do</strong> assim contato com ideias iluministas, consequentemente<br />

as mesmas foram trazidas ao Brasil. Inclusive, muitos <strong>do</strong>s próprios<br />

constituintes <strong>do</strong> Império estudaram na referida universidade, receben<strong>do</strong> assim<br />

uma influência iluminista e liberal, a qual se manifestava em suas perspectivas<br />

religiosas. 43 Também se deve mencionar que a formação de boa parte <strong>do</strong> clero<br />

brasileiro nesse perío<strong>do</strong> esteve exposta às mesmas influências, bem como ao<br />

jansenismo e ao galicanismo. Porém, o que diz respeito ao contexto eclesiástico<br />

será comenta<strong>do</strong> mais adiante.<br />

Ainda sobre o Iluminismo e sua influência na formação <strong>do</strong> pensamento<br />

liberal no Brasil, Costa observa que:<br />

O Iluminismo é, de certo mo<strong>do</strong>, um filho tardio <strong>do</strong> Humanismo renascentista.<br />

As concepções da Filosofia e da Ciência Moderna dentro de um processo de<br />

evolução intelectual contribuíram para que surgisse um novo espírito, caracteriza<strong>do</strong><br />

pela autonomia da razão em detrimento da tradição ou de qualquer outro<br />

padrão externo. A razão aqui pretendeu estender seus limites para to<strong>do</strong> o ramo<br />

<strong>do</strong> saber, negan<strong>do</strong>-se a reconhecer limites fora de si mesma; desse mo<strong>do</strong>, num<br />

gesto sem-cerimônia, ela invade os “<strong>do</strong>mínios” da ética, da epistemologia, da<br />

política e da religião, ten<strong>do</strong> como elemento aferi<strong>do</strong>r de toda a realidade a razão<br />

autônoma. Para isso, o Iluminismo rejeita qualquer “ajuda” <strong>do</strong> transcendente;<br />

deseja somente o que pode conseguir com sua razão, com os próprios esforços:<br />

seus recursos são suficientes para entender e explicar o mun<strong>do</strong> ou o que quer<br />

que seja que se lhe apresente como carente de explicação. [...] com sua ênfase na<br />

liberdade individual, não se coadunava com nenhum tipo de sanção; o homem é<br />

livre para pensar e agir conforme sua compreensão e consciência: o homem é um<br />

ser autônomo. [...]. Dessa forma, onde o Iluminismo tinha ascensão, o espírito<br />

de tolerância era um ingrediente natural e compulsório. 44<br />

42 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializa<strong>do</strong>s: o Rio de Janeiro e a República que não foi.<br />

3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 42- 43.<br />

43 COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Protestantismo no Brasil: aspectos jurídicos, culturais e<br />

sociais de sua implantação. <strong>Revista</strong> Ciências da Religião: História e Sociedade. UPM, São Paulo, vol. 3,<br />

no. 3 (2005), p. 22. Disponível em: . Acesso<br />

em: 19 jan. 2008.<br />

44 Ibid., p. 4-8.<br />

83


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

Contu<strong>do</strong>, antes de se prosseguir, cabe salientar aqui, como observa Carvalho,<br />

que o Iluminismo pre<strong>do</strong>minante no Brasil era o português, pois este não<br />

rompia com as tradições absolutistas. 45 Aliás, em sua reforma, Pombal não quis<br />

“saber <strong>do</strong> Iluminismo francês, pois este continha elementos capazes de pôr em<br />

perigo a autoridade em geral e a autoridade real em particular”. 46 Foi, portanto,<br />

essa vertente de Iluminismo que se fez presente na Colônia em seu processo<br />

de independência.<br />

Posteriormente, ao la<strong>do</strong> dessa formação acadêmica também houve outros<br />

fatores de ordem econômica e tecnológica que contribuíram para a reformulação<br />

das idéias políticas e filosóficas no Brasil, especialmente nas elites urbanas.<br />

Conforme Santos, durante a segunda metade <strong>do</strong> século 19 a “sociedade brasileira<br />

viveu um processo de inserção e de interação com o mun<strong>do</strong> capitalista e sua<br />

modernização tecnológica e avanços da produção industrial”. Nesse contexto,<br />

a “cultura amol<strong>do</strong>u-se a esse processo compon<strong>do</strong> um conjunto complexo de<br />

expressões, no qual a religiosidade foi uma de suas faces”. 47<br />

Logo, esse perío<strong>do</strong> que se segue até o final da Primeira República é marca<strong>do</strong><br />

por profundas transformações econômicas, sociais, filosóficas e religiosas, o que<br />

conjuntamente contribuiu para a formação <strong>do</strong> que temos chama<strong>do</strong> de pensamento<br />

liberal, o qual por sua vez foi decisivo na formação de um Esta<strong>do</strong> laico. Nesse<br />

espaço social, portanto, constituí<strong>do</strong> principalmente de profissionais liberais e<br />

jornalistas, cuja emergência se deve ao desenvolvimento urbano e <strong>do</strong> ensino,<br />

é que foi formada a base social <strong>do</strong> republicanismo. 48 De acor<strong>do</strong> com Faoro:<br />

[...] ser culto, moderno, significa, para o brasileiro <strong>do</strong> século XIX e começo<br />

<strong>do</strong> XX, estar em dia com as idéias liberais, acentuan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio da ordem<br />

natural, perturba<strong>do</strong>ra sempre que o Esta<strong>do</strong> intervém na atividade particular.<br />

Com otimismo e confiança será conveniente entregar o indivíduo a si mesmo,<br />

na certeza de que o futuro aniquilará a miséria e corrigirá o atraso. 49<br />

Portanto, nesse ambiente, o liberalismo, junto a outras correntes, como<br />

o positivismo e a maçonaria, concorreria para a elaboração de um imaginário<br />

que atingisse, segun<strong>do</strong> Carvalho, o “coração, isto é, as aspirações, os me<strong>do</strong>s<br />

e as esperanças” <strong>do</strong> povo. 50 Por meio dessa construção seriam defini<strong>do</strong>s iden-<br />

45 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras:<br />

a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 67-68.<br />

46 Ibid., p. 67. Sobre o Iluminismo português, ver: COSTA, H. M. P. A reforma pombalina. In:<br />

Raízes da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 337-385.<br />

47 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 271.<br />

48 Ibid., p. 228.<br />

49 FAORO, Os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder, p. 567.<br />

50 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990,<br />

p. 10.<br />

84


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

tidades, objetivos e inimigos. Seria também organiza<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong>, presente<br />

e futuro da sociedade brasileira. Nesse novo mo<strong>do</strong> de pensar deveria haver a<br />

pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> interesse individual e a busca da felicidade pessoal, bem<br />

como a combinação <strong>do</strong> interesse público com o interesse priva<strong>do</strong>. 51 Dentro<br />

dessa nova concepção política e filosófica, certamente a liberdade religiosa<br />

seria um <strong>do</strong>s elementos de discussão.<br />

Esse pensamento liberal no país, que no final <strong>do</strong> século 18 deitava raízes<br />

no Iluminismo Português, passa agora a ser formata<strong>do</strong> pelas ideias francesas<br />

que chegavam ao Brasil por meio de jornais e revistas, ou por meio de brasileiros<br />

que estudavam na Europa. Contu<strong>do</strong>, esse ciclo, num segun<strong>do</strong> momento,<br />

após a pre<strong>do</strong>minância da influência intelectual francesa no início <strong>do</strong> século 19,<br />

conforme João Cruz Costa, passa a seguir o padrão inglês, vin<strong>do</strong> a estabelecer-<br />

-se definitivamente, em sua fase final, nos moldes americanos. 52<br />

Antes da ascensão <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s sobre o Brasil, segun<strong>do</strong> Vieira,<br />

tanto as “ideias liberais, as merca<strong>do</strong>rias inglesas, como o sistema inglês <strong>do</strong><br />

bipartidarismo e o parlamentarismo foram to<strong>do</strong>s importa<strong>do</strong>s para o Brasil e<br />

aceitos como a última criação da sabe<strong>do</strong>ria humana”. 53 Logo, devi<strong>do</strong> a essa<br />

presença inglesa, que de certa forma imprimia um padrão cultural, o protestantismo<br />

também passou a ser caracteriza<strong>do</strong> como uma religião superior, “asseada,<br />

metódica, intelectualizada e possivelmente ética”. 54<br />

No entanto, esse modelo inglês seria substituí<strong>do</strong> pelo modelo americano,<br />

o que indubitavelmente se refletiria no mo<strong>do</strong> político e filosófico de pensar<br />

e também no tipo de protestantismo que seria implanta<strong>do</strong> no Brasil. Para se<br />

comprovar essa tese, basta-se olhar para o modelo de constituição a<strong>do</strong>tada<br />

como padrão em 1891 e para a origem da maioria absoluta <strong>do</strong>s missionários<br />

protestantes presentes no país, que era norte-americana. Porém, deve-se também<br />

perguntar como se deu esse deslocamento de paradigma, uma vez que as<br />

relações entre Portugal e, consequentemente o Brasil, e a Inglaterra já vinham<br />

de longa data. Sem se deter nas minúcias desse tema, o que fugiria ao propósito<br />

deste artigo, pelo menos <strong>do</strong>is motivos devem ser considera<strong>do</strong>s. O primeiro está<br />

no campo diplomático e o segun<strong>do</strong> no campo comercial.<br />

A mudança <strong>do</strong> eixo diplomático de Londres para Washington é algo que<br />

tem as suas raízes no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>. Em 1876 o Impera<strong>do</strong>r viaja aos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s e – no entender de E. Bradford Burns – há certo encantamento<br />

mútuo, quan<strong>do</strong> cada país começa a tomar consciência um <strong>do</strong> outro, aquele pelo<br />

51 Ibid., p. 18-19.<br />

52 COSTA, João Cruz. Contribuição à história das idéias no Brasil: o desenvolvimento da filosofia<br />

no Brasil e a evolução histórica nacional. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1956, p. 179.<br />

53 VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília:<br />

Editora UNB, 1980, p. 52.<br />

54 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 269.<br />

85


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

gigante crescente da América <strong>do</strong> Norte e este pelo filósofo <strong>do</strong>s trópicos. 55 Essa<br />

reciprocidade inicial alcança seus contornos definitivos após a proclamação da<br />

República, pois os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s foram a primeira grande potência a receber<br />

o Brasil “no seio da fraternidade republicana”, ainda mais por que a Constituição<br />

aqui promulgada tinha como modelo a Constituição Americana de 1787. 56<br />

Por fim, já na República, a partir <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> Barão <strong>do</strong> Rio Branco,<br />

consolidan<strong>do</strong> esse relacionamento inicia<strong>do</strong> há décadas, são elevadas à condição<br />

de embaixadas as legações <strong>do</strong> Brasil e <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s: “a primeira<br />

embaixada <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na América <strong>do</strong> Sul e a primeira embaixada <strong>do</strong><br />

Brasil num país estrangeiro”, sen<strong>do</strong> Joaquim Nabuco o primeiro embaixa<strong>do</strong>r<br />

brasileiro nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. 57<br />

O segun<strong>do</strong> motivo para essa aproximação entre Brasil e Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />

situa-se na área comercial. Evidentemente que a área diplomática se reflete na<br />

área comercial e vice-versa. Porém, o que importa registrar é que a partir <strong>do</strong><br />

final <strong>do</strong> século 19 “os norte-americanos surgiram como os melhores fregueses<br />

das três principais exportações brasileiras: café, borracha e cacau”, tanto que<br />

“<strong>do</strong> ponto de vista brasileiro, as relações comerciais com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />

foram praticamente perfeitas durante quase toda a Primeira República”. Somente<br />

para exemplificar, segun<strong>do</strong> Burns, no início <strong>do</strong> século 20 os Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s compravam mais de 50% <strong>do</strong> café brasileiro, quase 60% da borracha<br />

comercializada em Nova York era brasileira e os norte-americanos eram os<br />

maiores consumi<strong>do</strong>res de cacau <strong>do</strong> país. Resumin<strong>do</strong>, no início da República,<br />

os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s compravam 36% das exportações brasileiras, ao passo que<br />

a Grã-Bretanha, o segun<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, importava 15%. 58<br />

Fazen<strong>do</strong> uma avaliação das relações entre Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Brasil nesse<br />

perío<strong>do</strong>, Matos conclui que, a segunda metade <strong>do</strong> século 19<br />

[...] foi a época em que a influência comercial e política norte-americana se<br />

tornou mais forte no Brasil, toman<strong>do</strong> impulso entre os liberais a ideia de que o<br />

país precisava de qualquer coisa que a nação mais próspera <strong>do</strong> Norte tivesse a<br />

oferecer, inclusive a sua religião. 59<br />

Sen<strong>do</strong> assim, por volta da virada <strong>do</strong> século, a corrente que definiu a natureza<br />

<strong>do</strong> novo regime foi o liberalismo à americana. 60 Isso acarretou as mais<br />

55 BURNS, E. Bradford. As relações internacionais <strong>do</strong> Brasil durante a Primeira República. In:<br />

FAUSTO, Boris (Org.). História geral da civilização brasileira. 4ª Ed., Tomo III, 2º vol. Rio de Janeiro:<br />

DIFEL, 1990, p. 378.<br />

56 Ibid., p. 378-379.<br />

57 Ibid., p. 380.<br />

58 Ibid., p. 377-378.<br />

59 MATOS, Erasmo Braga, p. 57.<br />

60 CARVALHO, A formação das almas, p. 9.<br />

86


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

diversas consequências, inclusive de caráter religioso, o que em certa medida<br />

fez com que a aceitação ou rejeição <strong>do</strong> protestantismo fosse proporcional à<br />

visão de alguns sobre os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, seja como um país que proporcionasse<br />

desenvolvimento e modernidade ou como uma manifestação de imperialismo. 61<br />

No entanto, essa desconfiança – ainda de acor<strong>do</strong> com Santos – era manifesta<br />

mais por parte das elites eclesiásticas e da ala política mais conserva<strong>do</strong>ra.<br />

Quanto às camadas mais baixas da sociedade, outros ingredientes foram bem<br />

mais decisivos para a aceitação ou rejeição <strong>do</strong> protestantismo <strong>do</strong> que o mero<br />

“casuísmo oportunista das elites”. 62<br />

Portanto, numa época em que se buscava a modernização <strong>do</strong> país, a fé<br />

reformada era inserida dentro de um discurso pelos defensores e propaga<strong>do</strong>res<br />

da mesma – em oposição ao catolicismo – como uma religião irradia<strong>do</strong>ra de<br />

luz responsável pela transformação social nos principais países capitalistas<br />

desde o século 18. Rubem Alves, ao estudar essa imagem criada em torno <strong>do</strong><br />

protestantismo, sintetiza dizen<strong>do</strong> que o mesmo<br />

[...] se entende como o espírito da liberdade, da democracia, da modernidade e<br />

<strong>do</strong> progresso. O Catolicismo, por oposição, é o espírito que teme a liberdade<br />

e que, como conseqüência, se inclina sempre para soluções totalitárias e se opõe<br />

à modernidade. 63<br />

Logo, essa nova religião também seria responsável pela transformação<br />

social de que tanto o país necessitava, pon<strong>do</strong> dessa maneira um fim aos séculos<br />

de obscurantismo a que o catolicismo havia submeti<strong>do</strong> a sociedade brasileira.<br />

Essa, inclusive, era a prédica <strong>do</strong>s missionários, associada à crença de que o<br />

protestantismo, alia<strong>do</strong> aos ideais democráticos de liberdade pessoal e tolerância,<br />

traria ao Brasil aquilo que ele desesperadamente necessitava. 64 Resumin<strong>do</strong>: “A<br />

configuração <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de ser evangélico na sociedade brasileira estava em<br />

consonância com o imperativo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> relativo à modernização, à modernidade<br />

e ao moderno. Enfim, afeita à civilidade”. 65<br />

61 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 158-159.<br />

62 Ibid., p. 29.<br />

63 ALVES, Rubem A. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1982, p. 38.<br />

64 MATOS, Erasmo Braga, p. 55.<br />

65 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 153. Um exemplo marcante da associação <strong>do</strong> protestantismo<br />

ao progresso pode ser percebi<strong>do</strong> por meio da militância <strong>do</strong> deputa<strong>do</strong> alagoano Tavares Bastos<br />

(1839-1875), que defendia a imigração anglo-saxônica, a abertura <strong>do</strong> Amazonas à navegação internacional,<br />

o casamento civil e a liberdade de culto, entre outras questões. Por seus posicionamentos, foi um<br />

<strong>do</strong>s maiores defensores <strong>do</strong>s missionários protestantes no país e amigo pessoal <strong>do</strong> Rev. James Cooley<br />

Fletcher. VIEIRA, O protestantismo.<br />

87


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

1.3.2 Maçonaria<br />

As concepções filosóficas maçônicas – no entender de Célia de Barros<br />

Barreto – refletem toda “uma filosofia liberal tomada à Ilustração <strong>do</strong> século<br />

XVIII”. 66 Ainda de acor<strong>do</strong> com Barreto, “segun<strong>do</strong> o Syllabus Maçônico, a<br />

liberdade de pensamento e o racionalismo são princípios fundamentais da sociedade”.<br />

Tanto que, a partir de seus ideais liberal-democráticos, a “maçonaria<br />

vai manter uma posição política caracterizada pelo combate aos poderes absolutos”.<br />

Princípios revolucionários como, liberdade, igualdade e fraternidade<br />

são de inspiração maçônica. Aliás, são esses posicionamentos que ajudam a<br />

entender a grande difusão da maçonaria. 67<br />

No Brasil, a maçonaria esteve intimamente ligada ao processo de independência,<br />

tanto que, de acor<strong>do</strong> com Sérgio Buarque de Holanda, “a palavra<br />

pedreiro-livre se tornou um pouco de sinônimo de patriota”. 68 Aliás, não somente<br />

no Brasil, mas na América como um to<strong>do</strong>, a maçonaria era profundamente<br />

liberta<strong>do</strong>ra, buscan<strong>do</strong> assim combater o absolutismo em terras coloniais. 69 A<br />

diferença deu-se apenas nos mo<strong>do</strong>s como esses ideais foram a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong><br />

que em alguns locais “encontramos soluções profundamente revolucionárias<br />

em determina<strong>do</strong>s grupos, e mais brandas e concilia<strong>do</strong>ras em outros”. 70<br />

Quanto à data da chegada da maçonaria no Brasil não há consenso, porém,<br />

institucionalmente, a primeira grande loja brasileira, filiada ao Grande Oriente<br />

da França, foi instalada em 1801 na Bahia. Outras lojas foram fundadas posteriormente<br />

em Pernambuco e Rio de Janeiro. Nota-se também que, durante<br />

a primeira metade <strong>do</strong> século 19, quan<strong>do</strong> diversas lojas foram fundadas, o rito<br />

segui<strong>do</strong> era o francês.<br />

Segun<strong>do</strong> Barreto, a prática de se enviar os filhos da aristocracia brasileira<br />

para estudarem em Coimbra, sen<strong>do</strong> que em muitos casos esses estu<strong>do</strong>s<br />

eram completa<strong>do</strong>s na Inglaterra ou na França, sobretu<strong>do</strong> na Universidade de<br />

Montpellier, considerada um <strong>do</strong>s focos maçônicos da época, se constituiu<br />

em um canal de penetração da maçonaria, assim como foi <strong>do</strong> Iluminismo. 71<br />

Conforme comenta João Cruz Costa, a intelectualidade francesa exerceu uma<br />

ação “emancipa<strong>do</strong>ra e educa<strong>do</strong>ra sobre a inteligência brasileira”, 72 sacudin<strong>do</strong>-se<br />

66 BARRETO, Célia de Barros. Ação das sociedades secretas. In: HOLANDA, Sérgio Buarque<br />

de (Org.). História geral da civilização brasileira. 4ª ed. Tomo II, 1º vol. Rio de Janeiro: DIFEL, 1976,<br />

p. 193.<br />

67 Ibid., p. 193.<br />

68 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Da maçonaria ao positivismo. In: HOLANDA, Sérgio Buarque<br />

(Org.). História geral da civilização brasileira. 2ª ed., Tomo II, 5º vol. São Paulo: DIFEL, 1977, p. 177.<br />

69 BARRETO, Ação das sociedades secretas, p. 195.<br />

70 Ibid., p. 196.<br />

71 Ibid., p. 197-198.<br />

72 COSTA, João Cruz. As novas idéias. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História geral<br />

da civilização Brasileira. 4ª ed., Tomo II, 3º vol. Rio de Janeiro: DIFEL, 1976a, p. 179.<br />

88


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

assim a tutela intelectual portuguesa, o que pode ser observa<strong>do</strong> também a<br />

partir da completa falta de êxito <strong>do</strong> delega<strong>do</strong> <strong>do</strong> Grande Oriente Português em<br />

convencer as lojas brasileiras a se ligarem à maçonaria lusitana. 73<br />

Após esse perío<strong>do</strong> influente da maçonaria na primeira metade <strong>do</strong> século<br />

19, o que se observa é um declínio da mesma. 74 Como também sugere Holanda,<br />

o que se verá então ao la<strong>do</strong> da maçonaria, e confundin<strong>do</strong>-se com ela, será<br />

uma <strong>do</strong>utrina que “visava a nada menos <strong>do</strong> que a regeneração da Humanidade<br />

pela Ciência”, 75 o Positivismo. A favor dessa ideia, Vieira também entende<br />

que “a partir da década de 1860 a maçonaria passou a ser influenciada pelo<br />

republicanismo norte-americano e sincretizada com conceitos positivistas. 76<br />

A<strong>do</strong>ta-se então, na maioria das lojas, o rito escocês. Com isso a Bíblia passa<br />

a receber especial consideração, sen<strong>do</strong> colocada no altar maçônico. Logo, não<br />

é de se estranhar que grandes defensores das Escrituras e protetores de protestantes<br />

fossem maçons.<br />

1.3.3 Positivismo<br />

Como anteriormente menciona<strong>do</strong>, o positivismo passou a influenciar a<br />

formação intelectual brasileira a partir da segunda metade <strong>do</strong> século 19. Essa<br />

corrente de pensamento tem a sua base na obra <strong>do</strong> francês Augusto Comte<br />

(1798-1857), também considera<strong>do</strong> o precursor da Sociologia e o primeiro a se<br />

utilizar desse termo. 77 Suas principais obras são Curso de Filosofia Positiva<br />

e Sistema de Política Positiva, a primeira publicada em 1839 e a segunda entre<br />

1852 e 1854. Comte entendia que era possível impor ao estu<strong>do</strong> da sociedade<br />

o mesmo princípio que se aplicava em outras áreas <strong>do</strong> conhecimento, como<br />

física, química e biologia. Ou seja, que a partir das observações empíricas seria<br />

possível descobrir as leis universais que governavam os fenômenos sociais.<br />

De acor<strong>do</strong> com Gardiner, essa abordagem consideraria apenas os fenômenos<br />

observáveis; não trabalharia com causas a priori ou conceitos metafísicos e<br />

nem se preocuparia com as causas finais desses fenômenos. 78<br />

Uma vez que se pudesse conhecer essas leis, haveria condições de se<br />

controlar e predizer os fenômenos sociais, inclusive modelan<strong>do</strong> e melhoran<strong>do</strong><br />

o bem-estar da humanidade. Ou seja, segun<strong>do</strong> o positivismo, seria possível<br />

prever em que direção a sociedade caminharia. 79 Comte também tinha uma<br />

73 VIEIRA, O protestantismo, a maçonaria, p. 43.<br />

74 HOLANDA, Da maçonaria ao positivismo, p. 289.<br />

75 Ibid., p. 289.<br />

76 VIEIRA, O protestantismo, a maçonaria, p. 43.<br />

77 GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2005, p. 28.<br />

78 GARDINER, Patrick. Teorias da história. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984,<br />

p. 89.<br />

79 GIDDENS, Sociologia, p. 28.<br />

89


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

concepção evolucionista da história e afirmava que o conhecimento humano,<br />

em seu processo de desenvolvimento e entendimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, percorria<br />

o caminho que ele chamou de lei <strong>do</strong>s três estágios. Estes são o teológico, o<br />

metafísico e o positivo.<br />

Segun<strong>do</strong> o próprio Comte, nos <strong>do</strong>is primeiros estágios, a preocupação<br />

fundamental <strong>do</strong> ser humano está relacionada com a origem e causa primeira<br />

<strong>do</strong>s fenômenos da natureza. Porém, esses <strong>do</strong>is estágios, num determina<strong>do</strong><br />

momento da história, seriam substituí<strong>do</strong>s pelo esta<strong>do</strong> positivo, no qual<br />

[...] o espírito humano, reconhecen<strong>do</strong> a impossibilidade de obter noções absolutas,<br />

renuncia a procurar a origem e o destino <strong>do</strong> universo e a conhecer as causas<br />

íntimas <strong>do</strong>s fenômenos, para se consagrar unicamente à descoberta, pelo uso<br />

bem combina<strong>do</strong> <strong>do</strong> raciocínio e da observação, das suas leis efetivas, a saber,<br />

das suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança. A explicação <strong>do</strong>s<br />

fatos, reduzida então aos limites reais, nada mais é, <strong>do</strong>ravante, que a ligação<br />

estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais cujo<br />

número tende, cada vez mais a diminuir. 80<br />

No Brasil, de acor<strong>do</strong> com João Cruz Costa, o apreço pelas ideias positivistas<br />

está liga<strong>do</strong> preponderantemente à formação técnico-profissional, principalmente<br />

no último quartel <strong>do</strong> século 19. 81 Os filhos da incipiente burguesia<br />

urbana e os que não possuíam recursos financeiros para investir na formação<br />

intelectual procuravam as escolas profissionais, as faculdades de Medicina e<br />

a Escola Central Militar, sobretu<strong>do</strong> esta última. Serão esses militares, médicos<br />

e engenheiros que, profissionalmente, por estarem mais próximos das ciências<br />

positivas, formarão a classe da qual surgirá o movimento positivista. Uma vez<br />

que o contexto político, econômico e social <strong>do</strong> Brasil era diferente da França,<br />

berço da nova filosofia, como observa Carvalho, aqui o positivismo encontrou<br />

adeptos entre militares e profissionais liberais, enquanto lá, o mesmo teve os<br />

seus segui<strong>do</strong>res entre o proletaria<strong>do</strong>. 82<br />

Contu<strong>do</strong>, Holanda chama atenção para uma distinção importante a se fazer<br />

no positivismo que se instalou no Brasil, pois o mesmo não era homogêneo,<br />

sen<strong>do</strong> perceptível a existência de <strong>do</strong>is grupos. 83 O primeiro, lidera<strong>do</strong> por Miguel<br />

Lemos e Raimun<strong>do</strong> Teixeira Mendes, era de cunho mais sectário e religioso, a<br />

partir <strong>do</strong> qual foi fundada em 11 de maio de 1881 a Igreja Positivista <strong>do</strong> Brasil,<br />

80 COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. Os pensa<strong>do</strong>res. Trad. José Arthur Giannotti e<br />

Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 3.<br />

81 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque<br />

(Org.). História geral da civilização brasileira. 3ª ed. rev., Tomo II, 3º vol. São Paulo: DIFEL, 1976b,<br />

p. 3<strong>21</strong>.<br />

82 CARVALHO, A formação das almas, p. 128.<br />

83 HOLANDA, Da maçonaria ao positivismo, p. 289.<br />

90


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

e que aceitava to<strong>do</strong> o corpo de <strong>do</strong>utrinas filosóficas de Comte, inclusive sua<br />

“religião da humanidade”. O outro, inclusive considera<strong>do</strong> pelo primeiro como<br />

hetero<strong>do</strong>xo, era composto por aqueles que não foram tão influencia<strong>do</strong>s pela<br />

questão filosófica ou religiosa <strong>do</strong> positivismo, e sim pelo esta<strong>do</strong> de espírito e<br />

o clima de opinião, ou seja, o espírito <strong>do</strong> cientificismo da época. 84<br />

Esse tipo de positivismo, que João Cruz Costa chama de “difuso” ou<br />

“cientismo”, teve maior alcance na sociedade brasileira, devi<strong>do</strong> ao seu senti<strong>do</strong><br />

de utilidade, imediatismo e de estar volta<strong>do</strong> para a ação. 85 Benjamin Constant,<br />

figura destacada na proclamação da República, após ser desliga<strong>do</strong> da Igreja<br />

Positivista por Miguel Lemos, encaixa-se muito mais no segun<strong>do</strong> grupo <strong>do</strong><br />

que no primeiro.<br />

A importância de se compreender o positivismo no Brasil, para o estu<strong>do</strong><br />

da história <strong>do</strong> protestantismo, deve-se mais ao fato de que a agenda política<br />

positivista interessava a este <strong>do</strong> que às afinidades de conceitos filosóficos e<br />

teológicos. Ainda que ambas correntes de pensamento tivessem pressupostos<br />

teóricos diferentes, a agenda positivista incluía a liberdade espiritual e o fim<br />

<strong>do</strong> monopólio eclesiástico sobre a crença popular, o que certamente era interessante<br />

à causa protestante<br />

De acor<strong>do</strong> com Carvalho, o “arsenal teórico positivista trazia muitas armas<br />

úteis”. 86 Entre outras, eles condenavam a Monarquia em nome <strong>do</strong> progresso,<br />

pois, de acor<strong>do</strong> com a lei <strong>do</strong>s três estágios, a República seria a encarnação da<br />

fase positiva. Por sua vez, esta República deveria garantir a ordem material, o<br />

que incluiria a liberdade espiritual e apontava para a quebra <strong>do</strong>s monopólios<br />

da Igreja Católica e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> sobre a educação, a religião e a ciência. Isso<br />

certamente conduziria a um Esta<strong>do</strong> laico. 87<br />

Contu<strong>do</strong>, ainda que o positivismo no Brasil tenha contribuí<strong>do</strong> para a renovação<br />

<strong>do</strong>s padrões de cultura e política nacionais, tanto J. C. Costa 88 quanto<br />

Holanda 89 chamam a atenção para a importância em não se supervalorizar o<br />

papel <strong>do</strong> positivismo, principalmente o religioso, na Proclamação da República,<br />

pois, segun<strong>do</strong> a filosofia positivista, a mudança de regime deveria ocorrer por<br />

meio da evolução e não da revolução. Logo, o positivismo manifesta<strong>do</strong> no<br />

Brasil apresentou-se muito mais como uma negação <strong>do</strong> regime político então<br />

vigente. 90 Talvez seja por isso que, ao descrever esse grupo, Faoro o caracteriza<br />

84 Ibid.<br />

85 COSTA, O pensamento brasileiro sob o Império, p. 333, 337.<br />

86 CARVALHO, A formação das almas, p. 27.<br />

87 Ibid., p. 42.<br />

88 COSTA, O pensamento brasileiro sob o Império, p. 332, 336.<br />

89 HOLANDA, Da maçonaria ao positivismo, p. 302.<br />

90 Ibid.<br />

91


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

como “positivistas <strong>do</strong>utrinários a se acotovelarem com os liberais, perturban<strong>do</strong><br />

a sociedade hierárquica com as idéias de igualdade, misturada com o “nivelamento”<br />

e dela afastada com evasivas cautelosas”. 91<br />

Por fim, segun<strong>do</strong> Carvalho, após o 15 de novembro, o liberalismo à americana,<br />

o jacobinismo à francesa e o positivismo disputaram intensamente entre<br />

si, sob qual das três correntes se organizaria e se justificaria racionalmente o<br />

novo regime. Ainda que a primeira delas tenha si<strong>do</strong> vitoriosa, foi o positivismo<br />

que habilmente manipulou o imaginário, crian<strong>do</strong>-se assim um discurso que<br />

tinha por objetivo organizar o novo regime, definin<strong>do</strong> inclusive identidades,<br />

objetivos, inimigos e organizan<strong>do</strong> a partir deste discurso o passa<strong>do</strong>, o presente<br />

e o futuro. 92<br />

1.4 A religiosidade e a igreja brasileira<br />

1.4.1 Características gerais da Igreja Católica no século 19<br />

Destacan<strong>do</strong> o ambiente religioso, Léonard entende que a maior contribuição<br />

para a formação de um Esta<strong>do</strong> laico e a inserção <strong>do</strong> protestantismo<br />

deve-se ao tipo de catolicismo existente no Brasil durante o século 19. 93 O<br />

relacionamento tenso com o Esta<strong>do</strong> e a falta de uniformidade na formação<br />

<strong>do</strong> clero e nas práticas religiosas entre os fiéis católicos tornaram o ambiente<br />

muito mais propício à presença das convicções reformadas.<br />

Quanto às tensões entre Igreja Católica e Esta<strong>do</strong>, pode-se mencionar<br />

o regime <strong>do</strong> padroa<strong>do</strong> como o principal elemento a fomentar essa delicada<br />

relação. O padroa<strong>do</strong>, sistema antigo de cooperação entre a Igreja Católica e a<br />

Coroa, foi concedi<strong>do</strong> pelo Papa Leão X em 1514 por meio da bula Deum fidei<br />

constantiam, que durou até a proclamação da República. 94 Contu<strong>do</strong>, esse tipo<br />

de relacionamento entre o poder temporal e o espiritual que concedia o direito à<br />

Coroa de nomear sacer<strong>do</strong>tes para os cargos eclesiásticos <strong>do</strong> reino, a necessidade<br />

<strong>do</strong> beneplácito <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r para que os decretos papais tivessem validade<br />

no Brasil, crian<strong>do</strong> assim dependência financeira e política da Igreja Católica<br />

perante o Esta<strong>do</strong>, certamente contribuiu para a fragilização dessa instituição<br />

milenar. Fragilidade esta que ainda é agravada pelo decreto da expulsão <strong>do</strong>s<br />

jesuítas por Pombal em 12 de janeiro de 1759, privan<strong>do</strong> desse mo<strong>do</strong> os <strong>do</strong>mínios<br />

portugueses <strong>do</strong> braço mais aguerri<strong>do</strong> e missionário da Igreja Católica,<br />

principalmente porque cria<strong>do</strong> no contexto de Contrarreforma.<br />

91 FAORO, Os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder, p. 514.<br />

92 CARVALHO, A formação das almas, p. 9-10.<br />

93 LEONARD, Émile-Guillaume. O protestantismo brasileiro: estu<strong>do</strong> de eclesiologia e história<br />

social. 2ª ed. Trad. Linneu de Camargo Schützer. Rio de Janeiro/São Paulo: JUERP/ASTE, 1981, p. 205.<br />

94 FRAGOSO, Hugo. A Igreja na formação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Liberal. In: BEOZZO, José Oscar (Org.).<br />

História da Igreja no Brasil: segunda época, a Igreja no Brasil no século XIX. Tomo II, vol. 2. Petrópolis:<br />

Vozes, 1980, p. 238.<br />

92


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

Sobre o perfil da Igreja Católica, pode-se dizer que ele estava longe da<br />

uniformidade, tanto por parte <strong>do</strong> clero quanto por parte <strong>do</strong>s fiéis. Uma das<br />

características encontradas, e que acentuava essa falta de uniformidade, era o<br />

jansenismo, o qual esteve presente na formação de boa parte <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes<br />

e da religiosidade brasileira, pelo menos até o início da segunda metade <strong>do</strong><br />

século 19. 95<br />

Esse movimento dentro <strong>do</strong> catolicismo, que deriva o seu nome de Fleming<br />

Cornelius Otto Jansen (1563-1638), bispo de Ypres, pregava a reforma e o reavivamento<br />

na Igreja Católica. Em Portugal, os jansenistas ganharam espaço<br />

com as reformas de Pombal e no Brasil a sua influência deu-se por intermédio<br />

de diversos padres que estudaram em Coimbra, tais como Dom José Joaquim<br />

da Cunha de Azere<strong>do</strong> Coutinho (1742-18<strong>21</strong>) e Dom Francisco de Lemos de<br />

Farias Pereira Coutinho (1753-1822). O Seminário de Olinda, estabeleci<strong>do</strong> em<br />

1800 por Dom Azere<strong>do</strong> Coutinho, teve um quadro de professores trazi<strong>do</strong>s de<br />

Coimbra por esse prela<strong>do</strong>. 96<br />

A influência jansenista criou um ambiente favorável ao protestantismo<br />

no Brasil, pois a sua pregação de uma piedade austera, da leitura diária da<br />

Bíblia e de independência de Roma, de certa forma preparou o terreno para a<br />

mensagem protestante. 97<br />

Essa proximidade entre jansenistas e evangélicos pode ser emblematicamente<br />

ilustrada mediante a figura <strong>do</strong> clérigo Antônio Diogo Feijó (1784-1843),<br />

regente <strong>do</strong> império entre 1835 e 1837. Ele manteve um relacionamento cordial<br />

com os protestantes, entre eles o missionário metodista e distribui<strong>do</strong>r de Bíblias<br />

Daniel P. Kidder. Essa aproximação chegou ao ponto de Feijó ordenar ao ministro<br />

plenipotenciário brasileiro em Londres, o Marquês de Barbacena, para<br />

que entrasse em contato com a comunidade protestante <strong>do</strong>s Irmãos Morávios,<br />

famosos por seu trabalho de evangelização entre os índios norte-americanos,<br />

para que eles enviassem missionários ao Brasil a fim de catequizar os índios, o<br />

que acabou por não ocorrer. 98<br />

Já em relação às práticas religiosas encontradas entre os fiéis, Matos<br />

observa que a piedade religiosa católica fora influenciada pelo movimento<br />

devocional basea<strong>do</strong> na Devotio Moderna, 99 inseri<strong>do</strong> no contexto religioso<br />

95 Ibid.<br />

96 VIEIRA, O protestantismo, a maçonaria, p. 30.<br />

97 LEONARD, O protestantismo brasileiro, p. 38.<br />

98 VIEIRA, O protestantismo, a maçonaria, p. 31.<br />

99 A Devotio Moderna foi um movimento religioso surgi<strong>do</strong> na Holanda em 1370 e que se difundiu<br />

rapidamente pela Europa, inclusive em Portugal. Populariza<strong>do</strong> pelo clássico de Thomas Kempis,<br />

A imitação de Cristo, pregava a santidade de vida e criticava a estrutura hierárquica e sacramental da<br />

Igreja. MATOS, Erasmo Braga, p. 48.<br />

93


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

brasileiro no início <strong>do</strong> século 18, durante a corrida <strong>do</strong> ouro. 100 Certamente<br />

esse ambiente místico foi favorável ao protestantismo, cuja pregação era mais<br />

introspectiva e menos sacramental e ritualística.<br />

Também é comum, ao se estudar a história da religião no país, identificar<br />

uma divisão no catolicismo brasileiro entre um mais romaniza<strong>do</strong>, presente nas<br />

estruturas oficiais da igreja e nas ordens religiosas, e outro mais popular, presente<br />

nas camadas inferiores da população, espalha<strong>do</strong> pelo extenso território<br />

brasileiro, e em muitos casos, centraliza<strong>do</strong> nas pequenas capelas <strong>do</strong>miciliares<br />

existentes anexas às casas grandes <strong>do</strong>s senhores de engenho. Esse tipo de catolicismo,<br />

por sua vez, era muito mais afeito às festas, procissões e devoção<br />

aos santos. Não se pode também esquecer a influência das culturas indígenas<br />

e africanas e os respectivos sincretismos no sistema religioso brasileiro.<br />

Sobre a Igreja Católica em si, como instituição eclesiástica, algumas considerações<br />

também devem ser feitas a fim de explicar a falta de uma resistência<br />

mais sistemática e eficiente à inserção protestante e à formação de um esta<strong>do</strong><br />

laico. Vieira enumera quatro áreas em que aquela instituição havia se torna<strong>do</strong><br />

deficitária, fragilizan<strong>do</strong> assim as suas estruturas. Essas fraquezas situavam-se<br />

nos planos espiritual/moral, político e econômico. 101<br />

A questão moral e espiritual se refere à negligência espiritual e a práticas<br />

nada pie<strong>do</strong>sas por parte de muitos sacer<strong>do</strong>tes, os quais eram conheci<strong>do</strong>s por<br />

viverem em concubinato, se envolverem em disputas pelo poder local, como<br />

verdadeiros coronéis, e pelo relacionamento nada ascético com as riquezas. 102<br />

Comentan<strong>do</strong> sobre as características <strong>do</strong> clero ao longo <strong>do</strong> século 19, Léonard<br />

acrescenta a falta de preparo moral e espiritual da parte deste, a ponto de ele<br />

sustentar que o ambiente religioso no Brasil era semelhante ao da Europa na<br />

pré-reforma, o que só facilitou a inserção <strong>do</strong> novo movimento religioso. 103<br />

Sobre a formação intelectual, Moura destaca a sua fragilidade ao fazer<br />

uma comparação com outros movimentos no Brasil, tais como o positivismo<br />

e o liberalismo, em que cada qual tinha os seus expoentes, algo que não era<br />

perceptível no meio católico. Ainda em sua análise sobre o clero católico,<br />

Moura constata que:<br />

[...] na medida em que a Igreja percebeu que os cristãos não influenciavam o<br />

Esta<strong>do</strong>, o que permitia a atuação de elementos anticlericais na direção política<br />

<strong>do</strong> país, tomou consciência da importância de sua presença, temerosa de uma<br />

laicização que se anunciava. Alguns de seus membros, escritores empenha<strong>do</strong>s<br />

na luta pelo fortalecimento da fé contra os liberais indiferentes, maçons e<br />

100 MATOS, Erasmo Braga, p. 46-47.<br />

101 VIEIRA, O protestantismo, a maçonaria, p. 27.<br />

102 FRAGOSO, A Igreja na formação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Liberal, p. 238.<br />

103 LEONARD, O protestantismo brasileiro, p. 205.<br />

94


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

positivistas, terão pouca influência e repercussão: Carlos de Laet, Felício <strong>do</strong>s<br />

Santos, Eduar<strong>do</strong> Pra<strong>do</strong> e Afonso Celso vão se perder em polêmicas e denúncias<br />

daquilo que lhes parece erra<strong>do</strong>, carecen<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, de uma formação filosófica<br />

e política mais segura, para uma visão mais penetrante <strong>do</strong>s problemas. Assim,<br />

o catolicismo brasileiro permanece como uma vaga religiosidade, sem consistência,<br />

apegada a manifestações exteriores. O clero é reduzi<strong>do</strong> em seu nível<br />

intelectual, de mo<strong>do</strong> geral, pouco profun<strong>do</strong>. O pequeno número de escritores<br />

católicos, sem expressão, não conhece a fun<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrina que sustenta. A grande<br />

maioria da intelectualidade brasileira é positivista, evolucionista, ou manifesta<br />

indiferença religiosa. 104<br />

Quanto à situação econômica da Igreja Católica, era evidente a falta de<br />

recursos financeiros, uma vez que essa estava atrelada ao Esta<strong>do</strong> por meio<br />

<strong>do</strong> regime <strong>do</strong> padroa<strong>do</strong>. Observa Vieira que to<strong>do</strong> o clero, “desde o Arcebispo<br />

da Bahia e Primaz <strong>do</strong> Brasil até o padre da paróquia mais pobre, era pago pelo<br />

Esta<strong>do</strong>. As côngruas tendiam a ser mesquinhas e permaneceram as mesmas por<br />

diversas décadas, a despeito da inflação e de um aumento constante no custo de<br />

vida”. 105 Esta situação é tão marcante que, no final <strong>do</strong> Império, havia pouco<br />

mais de 700 sacer<strong>do</strong>tes, em sua maioria seculares, para uma população de 14<br />

milhões num país de território tão extenso como o Brasil. 106<br />

Obviamente, como já foi assinala<strong>do</strong>, esta situação era decorrente <strong>do</strong> contexto<br />

político. A Igreja Católica estava enfraquecida e subserviente ao Esta<strong>do</strong><br />

e muitos sacer<strong>do</strong>tes começaram a trocar a sua vocação clerical pela vocação<br />

política. Diante de to<strong>do</strong> esse quadro, conclui Léonard que “a fraqueza numérica<br />

<strong>do</strong> clero católico, trazen<strong>do</strong> como conseqüência esmorecimento e lassidão, tanto<br />

espiritual como moral, fora – no plano humano – a maior razão <strong>do</strong> êxito <strong>do</strong><br />

protestantismo no Brasil”, durante os seus primeiros setenta anos. 107<br />

Nesse ambiente, principalmente nos aspectos da moralidade e educação,<br />

não se demorou em construir um discurso, apropria<strong>do</strong> e enfatiza<strong>do</strong> constantemente<br />

pelos protestantes, de que a religião católica era a responsável pelo<br />

atraso econômico, moral e intelectual <strong>do</strong> país. Ao se comparar a realidade<br />

brasileira com a <strong>do</strong>s países protestantes europeus e com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />

a conclusão era de que “o progresso [...] estava intimamente liga<strong>do</strong> ao cre<strong>do</strong><br />

religioso <strong>do</strong> povo. A moralidade e a instrução popular seriam os instrumentos<br />

para o progresso, sem os impedimentos e retrocesso da religião romana”. 108<br />

104 MOURA, A Igreja na Primeira República, p. 339.<br />

105 VIEIRA, O protestantismo, a maçonaria, p. 27.<br />

106 MATOS, Erasmo Braga, p. 23.<br />

107 LÉONARD, O protestantismo brasileiro, p. 205.<br />

108 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 156.<br />

95


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

1.4.2 A Questão Religiosa e o ultramontanismo<br />

Um conflito durante a década de 1870 que contribuiu para a laicização<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> foi a chamada “Questão Religiosa”. Essa disputa entre o poder temporal<br />

e o espiritual tem as suas raízes na luta entre os líderes políticos liberais<br />

brasileiros e os bispos ultramontanos 109 pelo controle da Igreja Católica, sen<strong>do</strong><br />

a maçonaria a instituição principal a fomentar este embate.<br />

Desde a expulsão <strong>do</strong>s jesuítas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mínios portugueses em 1759 por<br />

Pombal, o clero brasileiro passou a ter características jansenistas, liberais e<br />

nacionalistas. Cumpre, antes, porém observar, segun<strong>do</strong> Carvalho, que<br />

[...] boa parte de motivação <strong>do</strong> marquês no combate aos jesuítas vincula-se à<br />

posição desses padres com referência à autoridade real. [...] Os jesuítas eram<br />

ultramontanos e constitucionalistas, se não favoráveis à ideia <strong>do</strong> consentimento<br />

popular como base da legitimidade <strong>do</strong> governo. Juntas, essas duas características<br />

não favoreceriam a criação de uma elite homogênea e possui<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> tipo<br />

de treinamento que se pudesse adequar às tarefas de construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 110<br />

No entanto, a partir da segunda metade <strong>do</strong> século 19 a Igreja Católica<br />

começou a passar por uma reformulação, o que lhe daria, em parte, uma nova<br />

configuração. Sacer<strong>do</strong>tes estrangeiros de diversas ordens religiosas, inclusive<br />

jesuítas, ingressam novamente no Brasil. Outro elemento que também deve ser<br />

leva<strong>do</strong> em consideração, é que os futuros clérigos brasileiros estavam sen<strong>do</strong><br />

educa<strong>do</strong>s principalmente em Roma, receben<strong>do</strong> assim um <strong>do</strong>utrinamento muito<br />

mais conserva<strong>do</strong>r e ultramontano <strong>do</strong> que os estudantes de Coimbra pós-reforma<br />

pombalina. Dentre esses estudantes, podemos mencionar os futuros bispos<br />

de Olinda, Dom Francisco Car<strong>do</strong>so Aires e Dom Vital Maria Gonçalves de<br />

Oliveira; de Belém, Dom Antônio de Mace<strong>do</strong> Costa; <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul,<br />

Dom Sebastião Dias Laranjeiras; e <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de<br />

Lacerda, entre outros. 111 Com a prerrogativa que os bispos tinham de suspender<br />

e nomear padres e professores <strong>do</strong>s seminários, os mesmos começaram<br />

a contratar clérigos estrangeiros para lecionar, forman<strong>do</strong> assim uma nova<br />

mentalidade eclesiástica e tradição ultramontana no Brasil, que se faria sentir<br />

até mesmo após a proclamação da República. 112 Essa tradição ultramontana<br />

alegava para si o pleno direito para conduzir a sociedade em termos morais,<br />

pedagógicos e religiosos.<br />

Essa tensão, no entanto, tem origens mais profundas, pois se a Constituição<br />

de 1824 consagrava o catolicismo como a religião oficial <strong>do</strong> Império,<br />

109 O termo ultramontano, que significa “além <strong>do</strong>s montes”, é uma referência a Roma.<br />

110 CARVALHO, A construção da ordem, p. 68, 71.<br />

111 MENDONÇA, O celeste porvir, p. 373.<br />

112 Ibid., p. 376.<br />

96


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

a mesma reservava ao Esta<strong>do</strong> o direito de conceder ou negar validade aos<br />

decretos eclesiásticos.<br />

Logo, a partir das novas diretrizes <strong>do</strong> Vaticano em condenar as “liberdades<br />

modernas” e afirmar o pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> poder espiritual sobre o poder<br />

temporal, estavam presentes no Brasil to<strong>do</strong>s os ingredientes necessários para<br />

o conflito, tais como o liberalismo, o republicanismo, o protestantismo e,<br />

agora, o ultramontanismo. A questão torna-se ainda mais acirrada porque em<br />

1870 o Concílio Vaticano proclama o <strong>do</strong>gma da infalibilidade papal. Enfim,<br />

no “Brasil, a política <strong>do</strong> Vaticano incentivou uma atitude mais rígida <strong>do</strong>s<br />

padres em matéria de disciplina religiosa e uma reivindicação de autonomia<br />

perante o Esta<strong>do</strong>”. 113<br />

Diante das orientações da Santa Sé, ou seja, com base na encíclica Quanta<br />

Cura, de 8 de dezembro de 1864, e <strong>do</strong> Syllabus Errorum, no qual, entre outros,<br />

o liberalismo e a maçonaria eram condena<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> considera<strong>do</strong>s incompatíveis<br />

com a fé católica, o bispo de Olinda, Dom Vital, e o bispo <strong>do</strong> Pará, Dom<br />

Antônio Mace<strong>do</strong> Costa, decidem proibir o ingresso de maçons nas irmandades<br />

religiosas, exigin<strong>do</strong> inclusive que estas expulsassem os maçons <strong>do</strong> seu meio.<br />

Por se recusarem a obedecer aos bispos, as irmandades e suas igrejas foram por<br />

eles interditadas. Porém, como salienta Fausto, “apesar de numericamente<br />

pequena, a maçonaria tinha influência nos círculos dirigentes. O Visconde<br />

<strong>do</strong> Rio Branco, por exemplo, que presidia então o Conselho de Ministros, era<br />

maçom”. 114 Logo, por se sentir desrespeita<strong>do</strong>, o Esta<strong>do</strong> toma parti<strong>do</strong> a favor<br />

das irmandades e manda prender os respectivos bispos, condenan<strong>do</strong>-os a quatro<br />

anos de trabalhos força<strong>do</strong>s. Posteriormente, num arranjo político, os bispos<br />

foram per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s. 115<br />

To<strong>do</strong> esse debate serviria para fortalecer a idéia da separação entre a<br />

Igreja Católica e o Esta<strong>do</strong>, pois um não queria submeter-se ao outro. De um<br />

la<strong>do</strong>, havia um clero muito mais fiel a Roma, e <strong>do</strong> outro, uma facção liberal-<br />

-maçônica usan<strong>do</strong> de toda a sua influência política possível. Num outro plano,<br />

republicanos presenciavam nessa briga o enfraquecimento da monarquia, e,<br />

segun<strong>do</strong> Vieira, na tese que defende em sua obra, os protestantes também<br />

se viam envolvi<strong>do</strong>s nessa questão ao municiarem os antagonistas <strong>do</strong> clero<br />

por meio de suas propagandas em favor da separação entre Igreja Católica<br />

e Esta<strong>do</strong>. 116 Por fim, após resoluções diplomáticas e aplaca<strong>do</strong>s os ânimos, a<br />

laicização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> só viria a ocorrer mesmo por ocasião da Proclamação<br />

da República.<br />

113 FAUSTO, História <strong>do</strong> Brasil, p. 230.<br />

114 Ibid., p. 230<br />

115 MATOS, Erasmo Braga, p. 64.<br />

116 VIEIRA, O protestantismo, a maçonaria, p. 375.<br />

97


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

1.4.3 Desafios e oportunidades no Esta<strong>do</strong> laico<br />

Como já menciona<strong>do</strong>, a Igreja Católica experimentou a partir da segunda<br />

metade <strong>do</strong> século 19 uma reação ultramontana que serviu em boa medida<br />

para acirrar os ânimos entre Igreja e Esta<strong>do</strong>. Paralelamente a esta reação e já<br />

no contexto da proclamação da República, surge um movimento dentro da<br />

Igreja Católica chama<strong>do</strong> Redentorista. Os redentoristas encontram-se entre<br />

“os principais agentes religiosos promotores <strong>do</strong> processo de romanização da<br />

Igreja no Brasil”. 117 Um <strong>do</strong>s nomes desse movimento foi o <strong>do</strong> Padre Júlio Maria<br />

(1850-1916), <strong>do</strong>utor em Direito, que percorreu to<strong>do</strong> o território nacional, com<br />

exceção de Goiás e Mato Grosso, pregan<strong>do</strong> “o cristianismo integral contra o<br />

cristianismo incompleto” e afirman<strong>do</strong> “a supremacia da Igreja e <strong>do</strong> Papa”.<br />

Justificava a “religião ante os avanços da ciência e da filosofia” e provan<strong>do</strong> a<br />

“veracidade da Igreja e seus <strong>do</strong>gmas”. 118 Para ele, o protestantismo era o fracionamento<br />

<strong>do</strong> cristianismo através das seitas dissidentes, por isso, mutila<strong>do</strong>. 119<br />

Essa reação diante de uma possível laicização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da inserção<br />

protestante fez parte <strong>do</strong> discurso elabora<strong>do</strong> pela Igreja Católica nos anos finais<br />

<strong>do</strong> Império e iniciais da República. Criou-se também uma retórica nacionalista<br />

e antiprotestante, pois este era visto como um ingrediente ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> liberalismo,<br />

e que a pretensa defesa da tolerância religiosa estava sen<strong>do</strong> utilizada<br />

simplesmente por conveniências políticas e econômicas.<br />

Além <strong>do</strong> que, segun<strong>do</strong> esse mesmo discurso, o romanismo representava<br />

a maioria absoluta <strong>do</strong>s brasileiros, enquanto que o protestantismo restringia-<br />

-se, em termos numéricos, a uma minoria praticamente imperceptível. Caracterizava-se<br />

também a nova religião como algo fragmenta<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> às suas<br />

diversas denominações, enquanto que a Igreja Católica se estabelecia pela<br />

uniformidade e coletividade, sobrepon<strong>do</strong>-se ao individualismo presente na<br />

modernidade. Sen<strong>do</strong> assim, nessa linha de raciocínio, o catolicismo deveria<br />

continuar hegemônico. 120<br />

Deste mo<strong>do</strong>, a proclamação da República, com todas as suas implicações<br />

políticas e jurídicas, se apresentou à Igreja Católica como um momento de<br />

desafios, mas ao mesmo tempo de oportunidades. Apesar de não ser mais a<br />

religião oficial <strong>do</strong> país, ela se vê livre <strong>do</strong> padroa<strong>do</strong> e experimenta uma “liberdade<br />

de movimentos até então desconhecida no Brasil, cujas vantagens foram<br />

por ela [a Igreja Católica] aproveitadas sob vários aspectos”. 1<strong>21</strong> Somente para<br />

exemplificar o que isso significou em termos de liberdade para o catolicismo,<br />

117 Ibid., p. 124.<br />

118 MOURA, A Igreja na Primeira República, p. 334.<br />

119 SANTOS, As outras faces <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, p. 123-124.<br />

120 Ibid., p. 1<strong>21</strong>.<br />

1<strong>21</strong> MOURA, A Igreja na Primeira República, p. 330.<br />

98


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 71-100<br />

em 1889 existiam no Brasil uma arquidiocese e onze dioceses. No final da<br />

Primeira República já eram dezesseis arquidioceses, cinquenta dioceses e vinte<br />

prelazias ou prefeituras apostólicas.<br />

Porém, um aspecto a ser salienta<strong>do</strong> é que, mesmo que a religião da maioria<br />

não fizesse mais parte <strong>do</strong> aparelhamento estatal, ela era necessária para o<br />

Esta<strong>do</strong>, pois era um “valioso instrumento na manutenção da ordem, que sacraliza<br />

e abençoa aos olhos <strong>do</strong> povo”, [...] exercen<strong>do</strong> assim “sobre o conjunto da<br />

população certo tipo de autoridade não oficial, mas implicitamente reconhecida<br />

pelo regime e por ele valorizada dentro de seus limites”. 122 Não existia mais o<br />

padroa<strong>do</strong> e nem a possibilidade de recurso à Coroa. “O clero estava entregue<br />

aos bispos, estes ao Vaticano, e fala pela Igreja exclusivamente a Hierarquia”. 123<br />

Enfim, conclui Moura que o cenário religioso que se afigurava diante<br />

da Igreja Católica era de uma “crescente descristianização das camadas<br />

superiores da população, enquanto que as expressões religiosas da camada<br />

popular conservavam sua fé tradicional, apesar de marcadas pelos vícios de<br />

uma formação religiosa mais sentimental que racional” e que essa passava a<br />

enfrentar novos obstáculos, “provin<strong>do</strong>s tanto da indiferença religiosa geral, [...],<br />

da interferência das seitas protestantes e <strong>do</strong> surto inquietante <strong>do</strong> espiritismo e<br />

<strong>do</strong>s cultos fetichistas africanos entre o povo, e de novas filosofias agnósticas<br />

ou anticatólicas nas elites”. 124<br />

considerações finais<br />

A partir desta breve abordagem, percebe-se que a construção de um Esta<strong>do</strong><br />

laico foi resulta<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> um processo histórico para o qual confluíram<br />

diversos elementos. A importância deste conhecimento dá-se pela realidade<br />

de que cada vez menos os líderes evangélicos ou protestantes demonstram<br />

uma clara e definida filosofia política, contribuin<strong>do</strong> cada vez mais para o fisiologismo<br />

entre aqueles que se propõem a representantes <strong>do</strong> povo. Basta uma<br />

rápida pesquisa para se verificar que a falta de delimitação clara entre a esfera<br />

política e religiosa nunca trouxe, nem a médio ou a longo prazo, benefícios<br />

dura<strong>do</strong>uros para a causa cristã.<br />

Enfim, no Brasil, a linha que separa o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> círculo religioso, conhecida<br />

como laicidade, tem se torna<strong>do</strong> cada vez mais tênue e esta divisão tem<br />

se constituí<strong>do</strong> numa larga faixa fronteiriça nebulosa e indefinida. A falta de<br />

nitidez nesta demarcação tem leva<strong>do</strong> as relações entre as diversas confissões<br />

religiosas e os seguimentos políticos a proximidades cada vez mais complexas<br />

e compromete<strong>do</strong>ras. Trocas de favores políticos por votos ou o acesso<br />

122 Ibid.<br />

123 RIBEIRO, Igreja evangélica e república brasileira, p. 4.<br />

124 MOURA, A Igreja na Primeira República, p. 332, 334.<br />

99


Sérgio Ribeiro Santos, O protestantismo e a Construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico brasileiro<br />

a privilégios e a esferas de poder têm deforma<strong>do</strong> a concepção de um Esta<strong>do</strong><br />

laico, resulta<strong>do</strong> de uma conquista que necessitou de décadas aqui no Brasil<br />

ao longo de boa parte <strong>do</strong> século 19. Vê-se descontruir em poucos anos o que<br />

necessitou de décadas para ser forma<strong>do</strong>. Fica, portanto, a divina advertência:<br />

“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.<br />

abstract<br />

This article has in view – however briefly – to understand how the laicization<br />

of the Brazilian state came about. This process included the immigration<br />

policies of the imperial government, the protestant presence, and the force of<br />

new ideas that slowly arrived in Brazil – such as liberalism, freemasonry, and<br />

positivism – coming from Europe and the United States, as well as the tensions<br />

prevailing between the top authorities of the Roman Catholic Apostolic<br />

Church and the existing political powers. Departing from the understanding<br />

of the Brazilian political and historical process, the author seeks to reinforce<br />

the need to preserve democratic institutions and to reflect about the space that<br />

religions in general, and Protestantism in particular, should take in this scenario,<br />

particularly in the context of a lay state.<br />

keywords<br />

Religious free<strong>do</strong>m; Protestantism; Lay state; Immigration; Liberalism;<br />

Freemasonry; Positivism; “Religious Question”.<br />

100


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão:<br />

Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

Leandro Lima *<br />

resumo<br />

O artigo retoma a antiga discussão sobre a questão <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> de alguns<br />

anjos com mulheres em Gênesis 6.1-4, e seu aprisionamento, à luz <strong>do</strong>s textos<br />

de 1Pedro 3.18-22, Judas 6 e também 2Pedro 2.4. Considera o desenvolvimento<br />

histórico <strong>do</strong> assunto e suas controvérsias, especialmente entre os primeiros<br />

pais da igreja até Agostinho, e a retomada <strong>do</strong> mesmo na época atual entre os<br />

principais comentaristas conserva<strong>do</strong>res e reforma<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s livros de Judas e<br />

Pedro. O relacionamento <strong>do</strong>s anjos com as mulheres é sustenta<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong><br />

texto de Gênesis 6.1-4 por meio da literatura apócrifa e pseu<strong>do</strong>epígrafa. O artigo<br />

defende que essa interpretação é sustentada também pelos livros de 1 e 2<br />

Pedro e Judas, a partir de uma comparação textual, exegética e teológica dessas<br />

passagens com o livro de 1Enoque. O artigo discute algumas implicações<br />

dessa teoria e oferece explicações para alguns <strong>do</strong>s pontos mais controversos.<br />

palavras-chave<br />

Espíritos em prisão; Anjos caí<strong>do</strong>s; Gênesis 6.1-4; Peca<strong>do</strong> com as mulheres;<br />

Literatura apócrifa; 1Pedro 3.18-22; Judas 6.<br />

introdução<br />

Quem são os espíritos em prisão aos quais Cristo fez uma proclamação<br />

após ter si<strong>do</strong> “morto na carne”, porém “vivifica<strong>do</strong> em espírito”? (1Pe 3.18-19).<br />

Quem são os anjos que pecaram, segun<strong>do</strong> Judas 6, os quais foram “algema<strong>do</strong>s”<br />

e “aprisiona<strong>do</strong>s nas trevas” ou, de acor<strong>do</strong> com 2Pedro 2.4, foram “precipita<strong>do</strong>s<br />

no tártaro” em “abismos de trevas”? Trata-se <strong>do</strong>s mesmos personagens?<br />

* Mestre em Teologia pelo CPAJ e <strong>do</strong>utor em Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie;<br />

professor de Novo Testamento no CPAJ.<br />

101


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

Quan<strong>do</strong> eles pecaram, e qual foi o peca<strong>do</strong> deles? Esse, sem dúvida, é um <strong>do</strong>s<br />

assuntos mais difíceis em discussão na história da teologia cristã, ten<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong><br />

grande destaque especialmente nos primeiros séculos <strong>do</strong> cristianismo,<br />

quan<strong>do</strong> a influência <strong>do</strong> judaísmo era mais sentida nos círculos cristãos. Porém,<br />

o assunto saiu de cena posteriormente, e hoje é visto com certa suspeita por<br />

muitos cristãos, quase como se fosse um tópico que não se deveria comentar.<br />

Há alguma razão fundamentada para esse “quase” temor? Ou, como pergunta<br />

VanGemeren: por que cristãos que creem em tantos fatos sobrenaturais da Bíblia<br />

têm dificuldade em crer que, de algum mo<strong>do</strong>, anjos caí<strong>do</strong>s se relacionaram<br />

com mulheres e foram puni<strong>do</strong>s por Deus? 1<br />

Muitos <strong>do</strong>s primeiros “pais da igreja” 2 seguiram a interpretação judaica<br />

que relacionava espíritos aprisiona<strong>do</strong>s com anjos que haviam se relaciona<strong>do</strong><br />

com mulheres antes <strong>do</strong> dilúvio, conforme relata o texto de Gênesis 6.1-2. 3<br />

Porém, aos poucos, a ideia de que Cristo teria i<strong>do</strong> ao inferno 4 após a morte e<br />

1 VanGemeren, W. A. The sons of God in Genesis 6:1-4: an example of evangelical demythologization.<br />

The Westminster Theological Journal 43, 2 (1981), 320-348, p. 320.<br />

2 Justino (100-165), no segun<strong>do</strong> século, diz que os anjos tinham uma função de cuidar <strong>do</strong>s homens,<br />

“mas, os anjos transgrediram esse mandamento, e tornaram-se cativos pelo amor de mulheres,<br />

e geraram filhos que foram aqueles que foram chama<strong>do</strong>s demônios” (Justin MARTYR, The Second<br />

Apology of Justin, 5. In: ROBERTS, Alexander; DONALDSON, James; COXE, A. Cleveland (Eds.).<br />

The Ante-Nicene Fathers. Buffalo, NY: The Christian Literature Company, 1885, vol. 1, p. 190). Irineu<br />

(130-202) igualmente diz que o dilúvio teve o propósito “de extinguir aquela mais infame raça de homens<br />

que existiu, que não podia frutificar para Deus, uma vez que os anjos haviam peca<strong>do</strong> e se mistura<strong>do</strong> com<br />

eles” (Irenaeus of Lyons, Against Heresies, IV.36.4; The Ante-Nicene Fathers, vol. 1, p. 516).<br />

Clemente de Alexandria (150-<strong>21</strong>5) escreveu: “Um exemplo disso são os anjos, que renunciaram à beleza<br />

de Deus pela beleza que perece, e então caíram <strong>do</strong> céu para a terra” (Clement of Alexandria,<br />

The Instructor, III.2; The Ante-Nicene Fathers, vol. 2, p. 274). Orígenes (c. 185) também reconhece esse<br />

ensino judaico, apesar de mencioná-lo indiretamente em sua obra Contra Celso, por causa <strong>do</strong>s abusos<br />

cometi<strong>do</strong>s pelo opositor (OrigEN, Against Celsus, 5.55; The Ante-Nicene Fathers, vol. 4, p. 567). E<br />

Tertuliano (160-220), comentan<strong>do</strong> o texto de Paulo sobre as mulheres precisarem usar véu por causa<br />

<strong>do</strong>s anjos, entende que isso tem relação com o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos com as mulheres em Gênesis 6 (Tertullian,<br />

On Prayer 22; The Ante-Nicene Fathers, vol. 3, p. 688). Ele menciona isso explicitamente<br />

em outro texto, quan<strong>do</strong> fala da condenação <strong>do</strong>s anjos que “desceram <strong>do</strong> céu para as filhas <strong>do</strong>s homens”<br />

(TertULLIAN, De cultu feminarum 1.2; The Ante-Nicene Fathers, vol. 4, p. 15).<br />

3 Segun<strong>do</strong> Peter H. Davids, entretanto, a interpretação <strong>do</strong>s anjos permaneceu unânime até o século<br />

3º. Davids, Peter H. The letters of 2 Peter and Jude. The Pillar New Testament Commentary. Grand<br />

Rapids, MI: Eerdmans, 2006, p. 49. Segun<strong>do</strong> Richard Bauckham, só desapareceu no século 5º. Porém,<br />

desapareceu antes disso no judaísmo, no tempo <strong>do</strong> rabino Simeon B. Yohai, na metade <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> século,<br />

que passou a identificar os filhos de Deus com homens. Bauckham, Richard J. 2 Peter, Jude. Word<br />

Biblical Commentary. Dallas: Word, 1998, vol. 50, p. 51.<br />

4 Isso pode ser visto, provavelmente, no próprio Cre<strong>do</strong> Apostólico, que menciona a descida de<br />

Cristo ao Hades. Porém, é discutível se essa expressão conteria o significa<strong>do</strong> de uma proclamação para<br />

almas. Inclusive, a própria expressão <strong>do</strong> cre<strong>do</strong> é discutível, pois ela não se encontra nas versões mais<br />

antigas, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> incluída, até onde se sabe, por Rufino, a partir <strong>do</strong> século IV, porém apenas substituin<strong>do</strong><br />

os termos “crucifica<strong>do</strong>, morto e sepulta<strong>do</strong>”. Posteriormente, a partir <strong>do</strong> século VII, a frase se tornou um<br />

acréscimo. Ver Campos, Heber Carlos de. Descendit ad inferna: uma análise da expressão “desceu ao<br />

Hades” no cristianismo Histórico. <strong>Fides</strong> Reformata 4/1 (1999), p. 103-128.<br />

102


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

antes da ressurreição, e lá prega<strong>do</strong> para almas, começou a <strong>do</strong>minar a interpretação.<br />

É contra isso que Agostinho (354-430) se revoltou no quinto século, ao<br />

demonstrar acertadamente que não faria nenhum senti<strong>do</strong> Cristo ir ao inferno<br />

e pregar a apenas um grupo de condena<strong>do</strong>s, deixan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os demais sem<br />

pregação. 5 A influência de Agostinho se fez sentir nos séculos seguintes, quan<strong>do</strong><br />

essa teoria foi praticamente varrida da teologia cristã. 6 Porém, de certo mo<strong>do</strong>,<br />

Agostinho não atacou o significa<strong>do</strong> original pretendi<strong>do</strong> pela interpretação, o<br />

qual não dizia respeito à pregação <strong>do</strong> Evangelho para almas de mortos no inferno,<br />

mas a outro tipo de pregação para outro tipo de espírito, e em outro lugar. No<br />

entanto, deve ser nota<strong>do</strong> que essa teoria reapareceu, principalmente durante<br />

os estu<strong>do</strong>s críticos no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> movimento liberal no século 19. E, por esse<br />

motivo, acabou sen<strong>do</strong> ainda mais rejeitada dentro de muitos círculos conserva<strong>do</strong>res,<br />

pois ficou associada com a crítica liberal da Escritura, ou seja, um<br />

mo<strong>do</strong> de dizer que os autores <strong>do</strong> Novo Testamento interpretaram mal o Antigo<br />

Testamento, e se basearam em mitos pagãos.<br />

Entretanto, o assunto ressurgiu mais uma vez nos últimos vinte anos,<br />

agora dentro <strong>do</strong> ambiente conserva<strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> vários estudiosos evangélicos<br />

de primeira linha <strong>do</strong> Novo Testamento voltaram seus olhos com mais atenção<br />

para os referi<strong>do</strong>s textos, especialmente o texto de Judas 6, e reconheceram<br />

com grande probabilidade que o autor apoiou a intepretação judaica de que,<br />

no texto de Gênesis 6, anjos se relacionaram com mulheres. Por exemplo,<br />

o exegeta Thomas R. Schreiner, comentan<strong>do</strong> Judas 6, assevera que: “Nós<br />

podemos estar quase certos de que Judas se referiu aqui ao peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos<br />

5 “Como foi que Cristo, encontran<strong>do</strong> aqueles no inferno, não pregou para eles, mas pregou<br />

somente para aqueles que foram incrédulos nos dias de Noé, quan<strong>do</strong> a arca estava em preparação? Ou<br />

se ele pregou a to<strong>do</strong>s, por que Pedro mencionou apenas esses, e deixou de la<strong>do</strong> a inúmera multidão de<br />

outros”. Augustine of Hippo, The Confessions and Letters of St. Augustin with a Sketch of His<br />

Life and Work. In: SCHAFF, Philip (Ed.). Nicene and Post-Nicene Fathers, Buffalo, NY: The Christian<br />

Literature Company, 1886, vol. 1, p. 515). Recusan<strong>do</strong>-se a aceitar que pudesse haver uma oferta de<br />

perdão para pessoas no inferno, Agostinho entendeu que Pedro estava apenas fazen<strong>do</strong> uma comparação<br />

entre as pessoas desobedientes <strong>do</strong>s dias de Noé e os desobedientes <strong>do</strong>s dias de Pedro. Porém, Agostinho<br />

não ignorava as dificuldades da passagem: “também as dificuldades me previnem de pronunciar uma<br />

opinião definitiva neste assunto”. Ibid., p. 518.<br />

6 Agostinho interpretou o texto de 1Pedro 3.18-19 como o ato de Cristo, antes da encarnação,<br />

de pregar em espírito, através de Noé, aos seus contemporâneos: “Tu<strong>do</strong> o que o apóstolo Pedro diz<br />

a respeito <strong>do</strong>s espíritos em prisão, que foram incrédulos nos dias de Noé, pode ter si<strong>do</strong> escrito sem<br />

qualquer referência ao inferno, mas para aqueles tempos” (Ibid., p. 519). Ele conclui: “ Para os homens<br />

<strong>do</strong>s tempos de Noé, o evangelho foi prega<strong>do</strong> em vão, porque eles não creram enquanto a longanimidade<br />

de Deus aguardava por eles durante os muitos anos em que a arca estava sen<strong>do</strong> construída<br />

(pois a construção da arca foi em si mesma em um certo senti<strong>do</strong> uma pregação de misericórdia” (Ibid.,<br />

p. 520). Atualmente, o maior defensor dessa teoria de que Cristo pregou em espírito por meio de Noé<br />

provavelmente seja: GRUDEM, Wayne. 1 Peter. Leicester/Grand Rapids: InterVarsity/Eerdmans,<br />

1995, p. 157-162.<br />

103


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

em Gn 6.1-4”. 7 Do mesmo mo<strong>do</strong>, Peter H. Davids reconhece que “Judas,<br />

então, se refere aos anjos (também chama<strong>do</strong>s de “Vigilantes” em 1Enoque<br />

e outras literaturas), como os anjos, os filhos <strong>do</strong> céu”. 8 E também J. N. D.<br />

Kelly: “Esses são os “filhos de Deus” de acor<strong>do</strong> com Gn 6.1-4, que cederam<br />

à atração das “filhas <strong>do</strong>s homens” e formaram união com elas”. 9 Este também<br />

é o entendimento de Richard Bauckham 10 e de I. Howard Marshall, que<br />

admite que os “espíritos em prisão” aos quais Cristo fez uma proclamação<br />

após sua ressurreição foram aqueles anjos que “seduziram a humanidade nos<br />

dias anteriores ao dilúvio”. 11 Douglas J. Moo assevera que, “desde que Judas<br />

cita este livro (Livro de Enoque) nos versos 14-15, nós temos quase certeza<br />

em identificar esta história como a que ele tem em mente no verso 6”. 12 E<br />

acrescenta que essa é a opinião da maioria <strong>do</strong>s comentaristas recentes. 13<br />

Portanto, há um renova<strong>do</strong> interesse no assunto, com muitos exegetas <strong>do</strong><br />

Novo Testamento se posicionan<strong>do</strong> a favor da teoria <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos como<br />

ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> relações sexuais com mulheres, e isso exige que visitemos outra<br />

vez o assunto. Nesse senti<strong>do</strong>, o título <strong>do</strong> artigo é uma espécie de trocadilho<br />

por causa da visita de Jesus aos espíritos em prisão. A posição deste texto é<br />

que a Bíblia como um to<strong>do</strong> favorece o entendimento de que anjos caí<strong>do</strong>s se<br />

relacionaram com mulheres e foram aprisiona<strong>do</strong>s por causa disso. Esse assunto<br />

não é de pouco interesse, pois a compreensão dele contribui para um melhor<br />

entendimento da cosmovisão bíblica e da própria redenção realizada por Cristo.<br />

No entanto, no nosso entendimento, o assunto não deve servir de “cavalo de<br />

batalha”, nem como pretexto para ataques pessoais. É um tema que precisa<br />

ser trata<strong>do</strong> academicamente, com respeito e moderação, diante das opiniões<br />

contrárias. Não pretendemos aqui dar uma palavra final sobre o tema, mas<br />

apenas chamar a atenção para alguns pontos que são frequentemente ignora<strong>do</strong>s<br />

por muitos leitores <strong>do</strong> Novo Testamento.<br />

1. os “filhos de deus” de Gênesis 6<br />

Apesar <strong>do</strong> assunto da visita de Jesus aos espíritos em prisão estar no<br />

Novo Testamento, ela na verdade é dependente <strong>do</strong> texto de Gênesis 6.1-4, o<br />

7 Schreiner, Thomas R. 1, 2 Peter, Jude. The New American Commentary. Nashville: Broadman<br />

& Holman, 2003, 37:447-448.<br />

8 Davids, The letters of 2 Peter and Jude, p. 49.<br />

9 KELLY, J. N. D. The Epistles of Peter and of Jude. Black’s New Testament Commentary.<br />

Lon<strong>do</strong>n: Continuum, 1969, p. 256.<br />

10 BAUCKHAM, 2 Peter, Jude, 50:50-53.<br />

11 MARSHALL, Howard. 1 Peter. Downers Grove: Intervarsity, 1991, p. 125.<br />

12 MOO, Douglas J. 2 Peter, Jude. The NIV Application Commentary. Grand Rapids: Zondervan,<br />

1996, p. 241.<br />

13 Ibid.<br />

104


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

debati<strong>do</strong> texto que menciona o relacionamento entre os filhos de Deus e as<br />

filhas <strong>do</strong>s homens. Portanto, a pergunta que precisa ser respondida é se Judas<br />

e Pedro seguiram a interpretação judaica de que os anjos aprisiona<strong>do</strong>s foram<br />

aqueles que haviam se prostituí<strong>do</strong> com as mulheres em Gênesis 6. Porém,<br />

antes de tentar responder essa pergunta, precisamos ver o que o próprio texto<br />

diz. No entanto, essa análise será breve, pois nosso foco está nas epístolas de<br />

Judas e Pedro.<br />

Geralmente se diz que a simples leitura de Gênesis 6 não parece suficiente<br />

para definir a questão. Porém, não se pode deixar de notar alguns indícios que<br />

apontam no senti<strong>do</strong> de identificar “filhos de Deus” com seres celestiais, como<br />

reconhece Bruce Waltke em seu celebra<strong>do</strong> comentário de Gênesis. 14<br />

O texto de Gênesis diz: “Como se foram multiplican<strong>do</strong> os homens na<br />

terra, e lhes nasceram filhas, ven<strong>do</strong> os filhos de Deus que as filhas <strong>do</strong>s homens<br />

eram formosas, tomaram para si mulheres, as que, entre todas, mais lhes<br />

agradaram” (6.1-2).<br />

Se, por um la<strong>do</strong>, é verdade que, superficialmente, a passagem poderia<br />

ser aplicada à mistura de raças, ou seja, que os descendentes de Sete se casaram<br />

com as descendentes de Caim, quan<strong>do</strong> se observa mais detalhadamente<br />

a passagem isso se torna bastante difícil de ser sustenta<strong>do</strong>. Desde os tempos<br />

antigos, muitos intérpretes judeus tiveram dificuldade em aceitar essa posição,<br />

e um <strong>do</strong>s motivos era o fato de que apenas “homens” da descendência de<br />

Sete teriam então se casa<strong>do</strong> com “mulheres” da descendência de Caim. Por<br />

que não vice-versa? Se alguém ler o capítulo anterior, por várias vezes filhas<br />

são mencionadas na descendência de Sete (Gn 5). Então, por que agora, no<br />

capítulo 6, limita-se o termo apenas às filhas de Caim? Além disso, o texto<br />

não menciona “filhas de Caim”, mas “filhas de Adão” (~d"êa'h)" twOnæB.-ta,), que<br />

pode ser toma<strong>do</strong> como “filhas <strong>do</strong> homem”, ou seja, descendentes humanas.<br />

Não há nenhuma razão gramatical para restringir isso às “filhas de Caim”.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, percebe-se que, no Antigo Testamento, o termo “filhos de<br />

Deus” ( é~yhil{a/h'(-ynEb.) não é aplica<strong>do</strong> diretamente aos homens. 15 Na verdade,<br />

14 Bruce K. Waltke argumenta que a ideia de casamento entre grupos humanos, como raças distintas,<br />

ou seja, descendentes de Sete e descendentes de Caim, precisa ser rejeitada “por razões filológicas”<br />

(Gênesis. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 139). Ele argumenta que a filologia <strong>do</strong> texto favorece a<br />

ideia de “seres divinos”, e não humanos. Entretanto, Waltke rejeita a ideia de que anjos pudessem tomar<br />

esposas e se reproduzir, e reconhece o valor parcial da tese de Meredith Kline a respeito <strong>do</strong>s “reis da<br />

antiguidade” que tomavam mulheres para si. Ver: KLINE, M. G. Divine Kingship and Sons of God in<br />

Genesis 6.1-4. Westminster Theological Journal 24 (1962) p. 187-204. Waltke propõe uma interpretação<br />

mista, ou seja, “os tiranos eram possessos de demônios” (2010, p. 141). Ainda assim, deve ser nota<strong>do</strong><br />

que Waltke segue uma interpretação “sobrenatural” da passagem, pois, de algum mo<strong>do</strong>, os nefilins, filhos<br />

gera<strong>do</strong>s naquele perío<strong>do</strong>, precisam ser reconheci<strong>do</strong>s como filhos de demônios.<br />

15 Exceto em Oseias 1.10, uma profecia que só parece ter cumprimento no Novo Testamento.<br />

105


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

fora de Gênesis 6, o termo só aparece no livro de Jó e no Salmo 29.1. Em Jó,<br />

ele é claramente aplica<strong>do</strong> aos anjos, entre os quais estava Satanás: “Num dia<br />

em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também<br />

Satanás entre eles”. No Salmo 29.1, o termo pode se aplicar também aos anjos<br />

reuni<strong>do</strong>s em assembleia celeste. De qualquer mo<strong>do</strong>, a única referência explícita<br />

<strong>do</strong> termo no Antigo Testamento é para anjos. Além disso, o Gênesis narra o<br />

aparente estranho resulta<strong>do</strong> daquela união: “Ora, naquele tempo havia gigantes<br />

(~yliúpiG>h; ) na terra; e também depois, 16 quan<strong>do</strong> os filhos de Deus possuíram as<br />

filhas <strong>do</strong>s homens, as quais lhes deram filhos; estes foram valentes, varões de<br />

renome, na antiguidade” (Gn 6.4). Esses gigantes ou “nefilins” (~yliúpiG>h; ), que<br />

é o termo hebraico para “gigantes”, parecem ser o resulta<strong>do</strong> direto daqueles<br />

casamentos impróprios; <strong>do</strong> contrário, a aparição deles no texto soaria desconexa.<br />

Provavelmente, o termo nefilim vem da raiz hebraica “cair” ou “caí<strong>do</strong>”. 17<br />

É evidente que todas essas expressões, como observa VanGemeren, apontam<br />

para algo não natural, algo que extrapola a ideia de uma simples “mistura de<br />

genealogias”. 18 De fato, nem sequer havia uma proibição anterior na Bíblia a<br />

que os filhos de Sete não se casassem com as filhas de Caim. Por isso, uma<br />

simples mistura de raças não parece ser motivo suficiente para a corrupção<br />

descrita no capítulo 6 de Gênesis, e para a própria ira de Deus sobre os homens,<br />

ao ponto de decidir destruir tu<strong>do</strong>. Algo muito mais grave e terrível parece ter<br />

aconteci<strong>do</strong>.<br />

2. judas e a literatura apócrifa<br />

Certamente alguém poderia dizer: o texto de Gênesis 6.1-4 não permite<br />

fechar a questão, e o simples fato de os rabinos judeus, ou grandes intérpretes<br />

<strong>do</strong> Antigo Testamento como Waltke e VanGemeren, crerem que não eram<br />

homens, mas anjos ou demônios, não prova nada. Em resposta a isso pode<br />

ser dito que, mesmo que admitamos que o texto de Gênesis, em si mesmo,<br />

não fecha a questão, não se pode deixar de notar que as objeções à mistura<br />

16 O senti<strong>do</strong> da expressão “e também depois” não parece indicar que os nefilins estavam na terra<br />

“antes” <strong>do</strong>s filhos de Deus se unirem às filhas <strong>do</strong>s homens. O texto começa explican<strong>do</strong> que os nefilins<br />

estavam sobre a terra naqueles dias, ten<strong>do</strong> já menciona<strong>do</strong> que os filhos de Deus tomaram mulheres para<br />

si. Portanto, o “também depois” quer explicar que os nefilins continuaram existin<strong>do</strong> na terra “também”<br />

após aquele acontecimento da união. Eles só seriam destruí<strong>do</strong>s no dilúvio.<br />

17 WALTKE, Bruce. Gênesis. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 142.<br />

18 O interessante artigo de VanGemeren questiona a dificuldade <strong>do</strong>s exegetas conserva<strong>do</strong>res em<br />

aceitar que Gênesis 6.1-4 esteja falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> relacionamento de anjos caí<strong>do</strong>s com mulheres como um<br />

caso de “desmitologização” evangélica. Ou seja, uma vez que o assunto parece “racionalmente” difícil<br />

de ser aceito, muitos exegetas evangélicos simplesmente o rejeitam, buscan<strong>do</strong> soluções mais racionais.<br />

VANGEMEREN, The sons of God in Genesis 6:1-4, p. 320-348. O autor questiona: “Por que os evangélicos<br />

preferem uma explicação naturalista e racional da passagem?” (p. 322).<br />

106


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

de raças são muito fortes no próprio texto. Quanto à questão da interpretação<br />

judaica expressa principalmente nos livros apócrifos de 1Enoque, Jubileus e<br />

Testamento <strong>do</strong>s Doze Patriarcas, é preciso reconhecer prontamente que esses<br />

livros não são inspira<strong>do</strong>s e, portanto, não são fonte de autoridade para a<br />

teologia cristã. No entanto, eles podem conter verdades. A questão, portanto, é:<br />

o Novo Testamento reconhece algumas verdades desses livros, especialmente<br />

no que diz respeito ao peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos em Gênesis 6? Se o Novo Testamento<br />

reconhece isso como verdadeiro, então o teólogo cristão precisa admitir que<br />

essa é a interpretação correta de Gênesis 6, não importa se os livros apócrifos<br />

tenham interpretações mais fantasiosas sobre isso. O peso da inspiração <strong>do</strong><br />

Novo Testamento precisa ser respeita<strong>do</strong>, quer o intérprete goste ou não da intepretação.<br />

Portanto, a questão não é apelar para os livros apócrifos para sustentar<br />

a teoria, e sim reconhecer que o Novo Testamento a reconhece. Portanto, é a<br />

autoridade <strong>do</strong> Novo Testamento que define a questão.<br />

No nosso entendimento, e também no da vasta maioria <strong>do</strong>s eruditos conserva<strong>do</strong>res<br />

atuais <strong>do</strong> Novo Testamento, há fortíssimos indícios de que o Novo<br />

Testamento confirma essa interpretação judaica de Gênesis 6. Mas, antes de<br />

avaliar esses indícios, é preciso ver com mais detalhes a teoria judaica de que<br />

anjos se relacionaram com mulheres.<br />

Como é de conhecimento amplo, essa teoria sobreviveu especialmente<br />

na tradição apocalíptica judaica. Há três livros bem conheci<strong>do</strong>s que mencionam<br />

o fato. O livro <strong>do</strong>s Jubileus, o Testamento <strong>do</strong>s Doze Patriarcas e o<br />

Livro de Enoque. Esses três livros foram compostos entre o segun<strong>do</strong> e o<br />

primeiro séculos antes de Cristo. Também aparecem menções no Documento<br />

de Damasco, no livro <strong>do</strong> Eclesiástico, em 3Macabeus e em fragmentos<br />

<strong>do</strong>s manuscritos <strong>do</strong> Mar Morto, os quais compreendem um perío<strong>do</strong> maior<br />

de tempo, poden<strong>do</strong> inclusive ser parcialmente data<strong>do</strong>s como posteriores a<br />

Cristo. Esses livros judaicos interpretam que anjos, chama<strong>do</strong>s de guardiões,<br />

se relacionaram com as mulheres, geran<strong>do</strong> gigantes demoníacos, os quais<br />

foram extermina<strong>do</strong>s no dilúvio. 19 A questão que surge é a seguinte: uma vez<br />

que essa interpretação era amplamente conhecida nos dias de Jesus e <strong>do</strong> Novo<br />

Testamento, como as provas <strong>do</strong>cumentais atestam, se ela estivesse errada, o<br />

Novo Testamento deveria condená-la de alguma maneira, já que a menciona.<br />

Porém, não só o Novo Testamento não a condena, como há fortes indícios de<br />

que a aprova, em pelo menos quatro livros, que são as duas cartas de Pedro,<br />

19 As almas desses gigantes permaneceram na terra após a destruição deles como espíritos malignos.<br />

Essa seria a origem <strong>do</strong>s demônios no Novo Testamento. De fato, a terminologia utilizada nos<br />

evangelhos sugere isso, mas não há apoio explícito a essa teoria. No entanto, nesse caso, o argumento<br />

<strong>do</strong> silêncio parece favorecer a teoria, pois sen<strong>do</strong> ela bem conhecida, novamente se esperaria <strong>do</strong> Novo<br />

Testamento algum repúdio.<br />

107


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

a carta de Judas e indiretamente também o livro <strong>do</strong> Apocalipse, pois to<strong>do</strong>s<br />

esses livros mencionam anjos ou espíritos em prisão (1Pe 3.18-20; 2Pe 2.4;<br />

Judas 6; Apocalipse 9).<br />

A questão, portanto, é: de onde vem esse conceito de anjos em prisão<br />

que to<strong>do</strong>s esses textos mencionam? E a resposta mais plausível é: daqueles<br />

livros apócrifos menciona<strong>do</strong>s acima. Isso é algo que pode ser <strong>do</strong>cumentalmente<br />

comprova<strong>do</strong>. O autor da carta de Judas cita explicitamente o livro de<br />

1Enoque, que é o principal livro da tradição apocalíptica judaica que defende<br />

o relacionamento <strong>do</strong>s anjos caí<strong>do</strong>s com mulheres: “Quanto a estes foi que<br />

também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizen<strong>do</strong>: Eis que veio o<br />

Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo contra to<strong>do</strong>s e para fazer<br />

convictos to<strong>do</strong>s os ímpios, acerca de todas as obras ímpias que impiamente<br />

praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que ímpios peca<strong>do</strong>res<br />

proferiram contra ele” (Judas 14-15). Esse texto, que inclusive cita Enoque<br />

como seu autor, está integralmente em 1Enoque 1.9: “Ele virá com milhares de<br />

Santos, para exercer o julgamento sobre o mun<strong>do</strong> inteiro e aniquilar to<strong>do</strong>s os<br />

malfeitores, reprimir toda carne pelas más ações tão iniquamente perpetradas<br />

e pelas palavras arrogantes que os peca<strong>do</strong>res insolentemente proferiram contra<br />

Ele”. 20 Apesar <strong>do</strong>s esforços de alguns intérpretes em dissociar os <strong>do</strong>is textos, <strong>21</strong><br />

uma olhada nos textos gregos mostra que Judas citou com bastante precisão o<br />

texto <strong>do</strong> livro de 1Enoque. O seguinte quadro nos ajuda a ver as semelhanças<br />

tanto em português quanto em grego:<br />

20 As citações de 1Enoque deste trabalho são extraídas de: Apócrifose Pseu<strong>do</strong>-epígrafos da Bíblia,<br />

tradução Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Novo Século, 2004. No entanto, deve ser nota<strong>do</strong> que a<br />

numeração <strong>do</strong>s versos pode variar em relação a outras versões.<br />

<strong>21</strong> Um grande “esforço” nesse senti<strong>do</strong> é feito por Kistemaker. Porém ele se contenta em dizer<br />

que “sem dúvida, devemos evitar dar grande importância às tradições que vinculam a queda <strong>do</strong>s anjos<br />

com o casamento entre ‘os filhos de Deus’ e ‘as filhas <strong>do</strong>s homens’ (Gn 6.2)”. Kistemaker chega a<br />

essa conclusão por causa da seguinte premissa: “Os anjos são seres espirituais, e por isso não possuem<br />

corpo físico e não têm a possibilidade de procriar”. Kistemaker, Simon J. 1 y 2 Pedro, Judas.<br />

Grand Rapids: Libros Desafio, 1994, p. 432. Para corroborar isso, ele cita a passagem de Mt 22.30.<br />

Ou seja, a rejeição da teoria se dá por motivos teológicos, porém não sob verdadeira base exegética.<br />

Mesmo reconhecen<strong>do</strong> a dependência gramatical que Judas tem em relação a 1Enoque, ao comparar<br />

frases <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is livros, Kistemaker recusa-se a admitir o óbvio: “Ainda que a linguagem da Epístola<br />

de Judas se pareça verbalmente com as passagens selecionadas de 1Enoque, Judas não apresenta nenhuma<br />

evidência de que sua intenção é dizer que os anjos caí<strong>do</strong>s são os filhos de Deus que se uniram<br />

às filhas <strong>do</strong>s homens (Gn 6.2). Judas conhece esta interpretação, porém notamos que não en<strong>do</strong>ssa esta<br />

ideia em sua epístola” (p. 434). Mas, como já dissemos, se ele não en<strong>do</strong>ssava, tinha toda a obrigação<br />

de demonstrar isso, uma vez que citou com aprovação passagens <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> livro. O silêncio, nesse<br />

senti<strong>do</strong>, seria conivente.<br />

108


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

Judas 14-15 1Enoque 1.9<br />

Eis que veio o Senhor entre suas santas<br />

miríades, para exercer juízo contra<br />

to<strong>do</strong>s e para fazer convictos to<strong>do</strong>s os<br />

ímpios, acerca de todas as obras ímpias<br />

que impiamente praticaram e acerca de<br />

todas as palavras insolentes que ímpios<br />

peca<strong>do</strong>res proferiram contra ele.<br />

Judas 14-15: 14Προεφήτευσεν δὲ καὶ<br />

τούτοις ἕβδομος ἀπὸ Ἀδὰμ Ἑνὼχ λέγων·<br />

ἰδοὺ ἦλθεν κύριος ἐν ἁγίαις μυριάσιν<br />

αὐτοῦ 15ποιῆσαι κρίσιν κατὰ πάντων καὶ<br />

ἐλέγξαι πᾶσαν ψυχὴν περὶ πάντων τῶν<br />

ἔργων ἀσεβείας αὐτῶν ὧν ἠσέβησαν καὶ<br />

περὶ πάντων τῶν σκληρῶν ὧν ἐλάλησαν κατ̓<br />

αὐτοῦ ἁμαρτωλοὶ ἀσεβεῖς.<br />

Ele virá com milhares de Santos, para<br />

exercer o julgamento sobre o mun<strong>do</strong><br />

inteiro e aniquilar to<strong>do</strong>s os malfeitores,<br />

reprimir toda carne pelas más ações<br />

tão iniquamente perpetradas e pelas<br />

palavras arrogantes que os peca<strong>do</strong>res<br />

insolentemente proferiram contra ele.<br />

1 En 1.9: Ὅτι ἔρχεται σὺν ταῖς μυριάσιν<br />

[αὐτοῦ καὶ τοῖς] ἁγίοις αὐτοῦ, ποιῆσαι<br />

κρίσιν κατὰ πάντων, καὶ ἀπολέσαι πάντας<br />

τοὺς ἀσεβεῖς, καὶ (ἐ)λέγξαι πᾶσαν σάρκα<br />

περὶ πάντων ἔργων τῆς ἀσεβείας αὐτῶν ὧν<br />

ἠσέβησαν καὶ σκληρῶν ὧν ἐλάλησαν λόγων<br />

κατʼ αὐτοῦ ἁμαρτωλοὶ ἀσεβεῖς.<br />

Parece inútil tentar fechar os olhos para essa evidência. 22 Judas citou o<br />

livro apócrifo de 1Enoque. 23 Peter Davids está certo ao resumir que “Judas é<br />

claramente dependente da forma encontrada em 1Enoque, não somente porque<br />

ele explicitamente cita esta obra nos versos 14-15, mas também por causa <strong>do</strong><br />

estreito paralelo entre Judas 6 e o conteú<strong>do</strong> de 1Enoque 6-19”. 24 Um grande<br />

número de judeus <strong>do</strong> tempo em que o Novo Testamento foi escrito conhecia<br />

aquele livro. Então, a questão ressurge: Judas claramente conhece o Livro de<br />

1Enoque, pois o está citan<strong>do</strong> literalmente, e o tal livro fala <strong>do</strong> relacionamento<br />

<strong>do</strong>s anjos com as mulheres. Então, o que Judas tem a dizer a respeito? Ora,<br />

ele menciona os anjos peca<strong>do</strong>res no verso 6. Então, ele não ignorou o fato,<br />

nem manteve silêncio. Não seria uma excelente ocasião para desmentir a tão<br />

conhecida interpretação judaica, e colocar um fim a esse equívoco de uma vez<br />

por todas? Mas, no nosso entendimento, ele faz o contrário. Ele menciona o<br />

peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos como sen<strong>do</strong> prostituição, e cita novamente o Livro de Enoque<br />

diversas vezes para confirmar isso.<br />

22 Em seus dias, Calvino desconhecia a existência <strong>do</strong> Livro de Enoque. Por esse motivo, ao explicar<br />

Judas 14, disse: “Eu acho melhor pensar que esta profecia não foi registrada, mais <strong>do</strong> que tenha si<strong>do</strong><br />

tomada de um livro apócrifo” (CALVIN, John e OWEN, John. Commentaries on the Catholic Epistles.<br />

Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2010, p. 442–443). Porém, deve ser nota<strong>do</strong> que uma versão<br />

etíope <strong>do</strong> livro foi descoberta e publicada em 18<strong>21</strong>, pelo arcebispo Lawrence, ou seja, quase três séculos<br />

depois de Calvino.<br />

23 Se alguém disser que, então, Judas citou uma mentira, pois a frase é <strong>do</strong> falso Enoque e não<br />

<strong>do</strong> verdadeiro, em resposta podemos dizer que a frase talvez seja <strong>do</strong> Enoque verdadeiro, mas que foi<br />

preservada até ser escrita no livro de 1Enoque através da tradição oral. De qualquer mo<strong>do</strong>, temos um<br />

autor <strong>do</strong> Novo Testamento, inspira<strong>do</strong> pelo Espírito Santo, confirman<strong>do</strong> essa parte <strong>do</strong> ensino <strong>do</strong> Livro<br />

de Enoque. Precisamos aceitar, portanto, que essa parte é verdadeira, ou rejeitarmos a carta de Judas.<br />

24 Davids, The letters of 2 Peter and Jude, p. 49.<br />

109


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

Agora é o momento de analisarmos o texto de Judas com mais detalhes:<br />

Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tu<strong>do</strong> uma vez por todas,<br />

que o Senhor, ten<strong>do</strong> liberta<strong>do</strong> um povo, tiran<strong>do</strong>-o da terra <strong>do</strong> Egito, destruiu,<br />

depois, os que não creram; e a anjos, os que não guardaram o seu esta<strong>do</strong> original,<br />

mas aban<strong>do</strong>naram o seu próprio <strong>do</strong>micílio, ele tem guarda<strong>do</strong> sob trevas,<br />

em algemas eternas, para o juízo <strong>do</strong> grande Dia; como So<strong>do</strong>ma, e Gomorra,<br />

e as cidades circunvizinhas, que, haven<strong>do</strong>-se entrega<strong>do</strong> à prostituição como<br />

aqueles, seguin<strong>do</strong> após outra carne, são postas para exemplo <strong>do</strong> fogo eterno,<br />

sofren<strong>do</strong> punição (Judas 5-7).<br />

Judas está mencionan<strong>do</strong> três maus exemplos de atitudes condenáveis, lá<br />

<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, que Deus não per<strong>do</strong>ou. Ele menciona esses exemplos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong><br />

para que seus leitores percebam que os falsos mestres <strong>do</strong> presente igualmente<br />

não serão poupa<strong>do</strong>s. Os três exemplos são: o exemplo da geração que saiu<br />

<strong>do</strong> Egito, o exemplo <strong>do</strong>s anjos e o exemplo de So<strong>do</strong>ma e Gomorra. Antes de<br />

entrarmos especificamente nos termos aplica<strong>do</strong>s aos anjos, deve ser observa<strong>do</strong><br />

que Judas diz algo interessante ao mencionar o peca<strong>do</strong> de So<strong>do</strong>ma e<br />

Gomorra: “que, haven<strong>do</strong>-se entrega<strong>do</strong> à prostituição como aqueles, seguin<strong>do</strong><br />

após outra carne”. Quem são “aqueles” que se entregaram à prostituição em<br />

termos semelhantes ao “ir após outra carne” de So<strong>do</strong>ma e Gomorra? Ele só<br />

mencionou <strong>do</strong>is exemplos antes, o exemplo da geração que saiu <strong>do</strong> Egito e<br />

o exemplo <strong>do</strong>s anjos que pecaram. Então, precisa ser um desses <strong>do</strong>is grupos.<br />

“Aqueles” é um pronome demonstrativo adjetival masculino plural. Nesse<br />

senti<strong>do</strong>, realmente poderia ser aplica<strong>do</strong> a qualquer <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is grupos anteriores,<br />

apesar de fazer mais senti<strong>do</strong> referir-se ao grupo mais próximo já menciona<strong>do</strong>,<br />

que é exatamente o grupo <strong>do</strong>s anjos. E note que o peca<strong>do</strong> da geração <strong>do</strong> Egito<br />

foi explicitamente menciona<strong>do</strong> acima: “incredulidade”. Eles não creram que<br />

Deus poderia dar a terra de Canaã, pois ficaram com me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s povos que lá<br />

residiam. O peca<strong>do</strong> da geração <strong>do</strong> Egito não tem relação com “prostituição”<br />

ou “ir após outra carne”, pois o próprio Judas disse que foi incredulidade, e o<br />

Pentateuco confirma isso. Alguns argumentam que, quan<strong>do</strong> Moisés estava no<br />

Sinai, o povo lá embaixo se entregou à prostituição. Isso é verdade, porém,<br />

tal fato não os impediu de entrar em Canaã, pois Deus per<strong>do</strong>ou aquele peca<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> povo. E Judas está menciona<strong>do</strong> peca<strong>do</strong>s que Deus “não per<strong>do</strong>ou”. Eles não<br />

entraram em Canaã porque ficaram com me<strong>do</strong> <strong>do</strong> relato <strong>do</strong>s espias. Foram<br />

incrédulos. E por causa disso toda aquela geração morreu no deserto. Somente<br />

Josué e Calebe entraram na terra, justamente porque creram. Então, o peca<strong>do</strong><br />

da geração que saiu <strong>do</strong> Egito não foi “ir após outra carne”, mas uma atitude de<br />

falta de fé no poder e provisão divinos. Por outro la<strong>do</strong>, o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos não<br />

foi menciona<strong>do</strong> explicitamente. Portanto, logicamente e exegeticamente, quan<strong>do</strong><br />

ele diz que “aqueles” se prostituíram e foram após outra carne, em termos<br />

110


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

semelhantes a So<strong>do</strong>ma e Gomorra, ele está falan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos, 25 e explican<strong>do</strong><br />

o peca<strong>do</strong> deles. Assim, “Judas conecta isso à prévia discussão <strong>do</strong>s anjos com<br />

a expressão “de um mo<strong>do</strong> semelhante”, indican<strong>do</strong> que o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos e o<br />

peca<strong>do</strong> das cidades são similares”. 26<br />

O peca<strong>do</strong> <strong>do</strong> homossexualismo de So<strong>do</strong>ma foi de fato um “ir após outra<br />

carne”, 27 pois foi algo contrário à natureza <strong>do</strong>s homens. Do mesmo mo<strong>do</strong>,<br />

o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos com as mulheres foi algo contrário à natureza angélica,<br />

uma espécie de também “ir após outra carne”. E, por sua vez, “é paralelo à<br />

apostasia <strong>do</strong>s interlocutores na congregação, que aban<strong>do</strong>naram seus lugares<br />

na comunidade por sua própria imoralidade”. 28<br />

Esse peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos é justamente o peca<strong>do</strong> que o Livro de Enoque<br />

menciona, o livro que Judas está citan<strong>do</strong> literalmente. Na verdade, e agora<br />

avançamos ainda mais nessa compreensão, cada uma das palavras usadas por<br />

Judas para descrever a transgressão <strong>do</strong>s anjos no verso 6 é encontrada ou derivada<br />

de termos utiliza<strong>do</strong>s no Livro de Enoque. Destaco abaixo as principais<br />

palavras e os temas correspondentes que aparecem no Livro de Enoque, tanto<br />

em português quanto em grego:<br />

25 Tomar “aqueles” (τούτοις) como uma referência aos oponentes <strong>do</strong> verso 4 é linguisticamente<br />

inaceitável. BLACK, David Alan; BARNWELL, Katharine G. L. e LEVINSOHN, Stephen H. Linguistics<br />

and New Testament interpretation: essays on discourse analysis. Nashville, TN: Broadman Press, 1992,<br />

p. 297.<br />

26 Davids, The letters of 2 Peter and Jude, p. 52.<br />

27 Richard Bauckham defende que o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens de So<strong>do</strong>ma foi a tentativa de se relacionar<br />

com os próprios anjos, negan<strong>do</strong> assim que fosse “homossexualismo”. Bauckham, 2 Peter, Jude,<br />

50:54. De fato, se isso pudesse ser comprova<strong>do</strong>, seria um argumento a mais para enfatizar a semelhança<br />

entre o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos e o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens de So<strong>do</strong>ma. Peca<strong>do</strong>s sexuais não foram os únicos em<br />

So<strong>do</strong>ma e Gomorra. O livro de Ezequiel diz que o peca<strong>do</strong> de So<strong>do</strong>ma foi soberba, fartura de pão e próspera<br />

tranquilidade, mas nunca amparou o pobre e o necessita<strong>do</strong> (Ez 16.49). Outros textos mencionam<br />

também arrogância, injustiça, orgulho e ódio aos estrangeiros (Sir 16:8, 3 Mac 2:5, Ant Josefo. 1.194).<br />

Entretanto, certamente há um destaque nos textos antigos sobre homossexualidade. Por “abominações”<br />

em Ezequiel 16.50, pode haver uma referência indireta ao homossexualismo condena<strong>do</strong> na Lei com essa<br />

expressão. O mesmo Josefo que menciona orgulho e ódio aos estrangeiros, claramente diz que So<strong>do</strong>ma<br />

foi também punida por homossexualismo (Ant. 1.200-201). Filo também repercute isso (T. Ab. 134-36;<br />

T. Mos. 2.58). O Testamento de Naftali certamente fala de homossexualismo em relação a So<strong>do</strong>ma ao<br />

mencionar que So<strong>do</strong>ma “aban<strong>do</strong>nou a ordem da natureza” (3.4). Imoralidade sexual ainda é nominada<br />

como o peca<strong>do</strong> de So<strong>do</strong>ma nos Jubileus (16:5; 20:5-6) e no Testamento de Benjamin (9:1). Disso se<br />

conclui que há mais evidência <strong>do</strong>cumental de que o peca<strong>do</strong> de So<strong>do</strong>ma foi mesmo homossexualismo.<br />

Quanto à tese de Bauckham, ela esbarra num ponto intransponível: o texto de Gênesis não diz que os<br />

homens de So<strong>do</strong>ma sabiam que eram anjos que estavam na casa de Ló. Eles pedem que “os homens”<br />

lhes sejam entregues (Gn 19.5).<br />

28 Davids, The letters of 2 Peter and Jude, p. 50.<br />

111


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

Judas<br />

Judas 6 – ele tem guarda<strong>do</strong> sob trevas, em<br />

algemas eternas, para o juízo <strong>do</strong> grande<br />

Dia.<br />

εἰς κρίσιν μεγάλης ἡμέρας δεσμοῖς ἀϊδίοις<br />

ὑπὸ ζόφον τετήρηκεν·<br />

Judas 6 – e a anjos, os que não guardaram<br />

o seu esta<strong>do</strong> original, mas aban<strong>do</strong>naram o<br />

seu próprio <strong>do</strong>micílio.<br />

ἀγγέλους τε τοὺς μὴ τηρήσαντας τὴν<br />

ἑαυτῶν ἀρχὴν ἀλλὰ ἀπολιπόντας τὸ ἴδιον<br />

οἰκητήριον·<br />

Judas 6 – e a anjos, os que não guardaram<br />

o seu esta<strong>do</strong> original, mas aban<strong>do</strong>naram o<br />

seu próprio <strong>do</strong>micílio, ele tem guarda<strong>do</strong><br />

sob trevas, em algemas eternas, para o<br />

juízo <strong>do</strong> grande Dia. ἀγγέλους τε τοὺς<br />

μὴ τηρήσαντας τὴν ἑαυτῶν ἀρχὴν ἀλλὰ<br />

ἀπολιπόντας τὸ ἴδιον οἰκητήριον εἰς κρίσιν<br />

μεγάλης ἡμέρας δεσμοῖς ἀϊδίοις ὑπὸ ζόφον<br />

τετήρηκεν·<br />

Judas 6 – e a anjos, os que não guardaram<br />

o seu esta<strong>do</strong> original, mas aban<strong>do</strong>naram o<br />

seu próprio <strong>do</strong>micílio.<br />

ἀγγέλους τε τοὺς μὴ τηρήσαντας τὴν<br />

ἑαυτῶν ἀρχὴν ἀλλὰ ἀπολιπόντας τὸ ἴδιον<br />

οἰκητήριον<br />

Judas 6 – e a anjos, os que não guardaram<br />

o seu esta<strong>do</strong> original, mas aban<strong>do</strong>naram o<br />

seu próprio <strong>do</strong>micílio.<br />

ἀγγέλους τε τοὺς μὴ τηρήσαντας τὴν<br />

ἑαυτῶν ἀρχὴν ἀλλὰ ἀπολιπόντας τὸ ἴδιον<br />

οἰκητήριον<br />

1Enoque<br />

1 En 10.12 – amarra-os por sete gerações<br />

nos vales da terra, até o dia <strong>do</strong> seu<br />

julgamento, até o dia <strong>do</strong> Juízo Final!<br />

δῆσον αὐτοὺς ἑβδομήκοντα γενεὰς εἰς τὰς<br />

νάπας τῆς γῆς μέχρι ἡμέρας κρίσεως<br />

1 En 12.4 – Escriba da justiça, vai<br />

e anuncia aos Guardiões <strong>do</strong> céu que<br />

perderam as alturas <strong>do</strong> paraíso e os lugares<br />

santos e eternos.<br />

ὁ γραμματεὺς τῆς δικαιοσύνης Πορεύου<br />

καὶ εἰπὲ τοῖς ἐγρηγόροις τοῦ οὐρανοῦ<br />

οἵτινες ἀπολιπόντες τὸν οὐρανὸν τὸν<br />

ὑψηλόν<br />

1 En 14.5 – Daqui por diante nunca<br />

mais havereis de subir ao céu; mas foi<br />

determina<strong>do</strong> que sejais acorrenta<strong>do</strong>s aqui<br />

na terra por to<strong>do</strong>s os tempos.<br />

ἵνα μηκέτι εἰς τὸν οὐρανὸν ἀναβῆτε ἐπὶ<br />

πάντας τοὺς αἰῶνας, καὶ *ἐν τοῖς δεσμοῖς<br />

τῆς γῆς ἐρρέθη δῆσαι ὑμᾶς εἰς πάσας τὰς<br />

γενεὰς τοῦ αἰῶνος<br />

1 En 15.3 – Por que motivo aban<strong>do</strong>nastes<br />

o alto <strong>do</strong> céu, santo e eterno.<br />

διὰ τί ἀπελίπετε τὸν οὐρανὸν τὸν ὑψηλὸν<br />

τὸν ἅγιον τοῦ αἰῶνος<br />

1 En 15.7 – Por isso eu não criei para vós<br />

mulheres, pois os espíritos <strong>do</strong> céu possuem<br />

no céu a sua morada.<br />

καὶ διὰ τοῦτο οὐκ ἐποίησα ἐν ὑμῖν<br />

θηλείας· τὰ πνεύμα(τα) τοῦ οὐρανοῦ, ἐν<br />

τῷ οὐρανῷ ἡ κατοίκησις αὐτῶν.<br />

Ou seja, praticamente cada uma das expressões e palavras de Judas 6<br />

pode ser encontrada no livro de 1Enoque. Claramente o conceito de anjos que<br />

aban<strong>do</strong>naram sua morada celeste, e agora estão aprisiona<strong>do</strong>s por terem peca<strong>do</strong>,<br />

é um conceito explícito <strong>do</strong> livro de 1Enoque que Judas repercute não apenas<br />

tematicamente, mas textualmente, usan<strong>do</strong> os mesmos termos para definir o<br />

peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos. Como já foi dito, neste livro de 1Enoque é defendi<strong>do</strong> que<br />

esse peca<strong>do</strong> foi o relacionamento deles com mulheres em Gênesis 6. Novamente<br />

deve ser dito: se Judas entendesse que isso estava erra<strong>do</strong>, uma vez que<br />

112


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

citou o referi<strong>do</strong> livro e mencionou textualmente as partes em que o livro diz<br />

que o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos com as mulheres foi o ato de aban<strong>do</strong>nar sua morada<br />

no céu para pecar com as mulheres, e posteriormente serem aprisiona<strong>do</strong>s nas<br />

trevas, se ele não concordasse com essa interpretação, então tinha a obrigação<br />

de esclarecer seus leitores de que aquela história era falsa. 29 Porém, não apenas<br />

ele não faz isso, como claramente confirma a história ao usar os mesmos<br />

termos de 1Enoque!<br />

Isso não significa que Judas considerasse o livro de 1Enoque inspira<strong>do</strong>,<br />

nem que tu<strong>do</strong> o que está escrito no referi<strong>do</strong> livro seja verdade, mas deve ser<br />

entendi<strong>do</strong> que aquela parte <strong>do</strong> livro de Enoque é verdade porque é verdade de<br />

Deus, independente da fonte. É preciso lembrar que “uma apropriação geral<br />

de uma tradição não é a mesma coisa que aceitar cada detalhe dessa tradição”. 30<br />

Ou, como pontua Michael Green, Judas não en<strong>do</strong>ssa necessariamente to<strong>do</strong><br />

o livro; o que faz, no entanto, como qualquer prega<strong>do</strong>r sábio, é empregar<br />

a linguagem e formas de pensamento correntes no seu tempo para inculcar<br />

nos seus leitores, em termos altamente significativos para eles, os perigos da<br />

concupiscência e <strong>do</strong> orgulho. 31 Porém, é praticamente impossível negar que<br />

Judas está dan<strong>do</strong> apoio à interpretação judaica de que alguns anjos pecaram<br />

com mulheres em Gênesis 6, e por isso foram aprisiona<strong>do</strong>s.<br />

Na verdade, a própria estrutura que Judas usa, de citar os três exemplos<br />

<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, ou seja, a geração <strong>do</strong> Egito, a geração de So<strong>do</strong>ma e os anjos <strong>do</strong><br />

dilúvio, segue um padrão que pode ser encontra<strong>do</strong> em vários outros livros. 32<br />

E na maioria desses livros se reconhece que o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anjos é o relacionamento<br />

com mulheres. Como Judas poderia usar a mesma estrutura amplamente<br />

conhecida pelos judeus se quisesse provar algo diferente, sem mostrar que<br />

estava queren<strong>do</strong> provar algo diferente?<br />

3. as cartas de pedro<br />

Talvez por esse motivo, muitos cristãos preferiram não incluir Judas no<br />

cânon <strong>do</strong> Novo Testamento. Mas não adiantaria tirar Judas <strong>do</strong> cânon. O apóstolo<br />

Pedro confirma o ensinamento de Judas e <strong>do</strong> livro de Enoque sobre anjos em<br />

prisão, também usan<strong>do</strong> termos <strong>do</strong> livro de Enoque, e ainda por cima parece<br />

ligar o fato diretamente com o dilúvio:<br />

29 Schreiner nota acertadamente que “Judas quase que certamente precisaria explicar que ele estava<br />

aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> a visão judaica estabelecida de Gn 6.1-4 se ele não concordasse com a tradição judaica.<br />

A brevidade <strong>do</strong> verso suporta a ideia de que ele concordava com a tradição judaica”. Schreiner, 1,<br />

2 Peter, Jude, vol. 37, p. 448.<br />

30 Ibid., p. 450.<br />

31 GREEN, Michael. II Pedro e Judas. São Paulo: Vida Nova e Mun<strong>do</strong> Cristão, 1988, p. 157-158.<br />

32 Cairo Damascus (CD–A Col. ii:13); Eclesiástico 16.7-10; 3Mac 2.4-7; Testamento de Naftali<br />

3.4-5; m. Sanhedrin 10:3).<br />

113


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

Ora, se Deus não poupou anjos quan<strong>do</strong> pecaram, antes, precipitan<strong>do</strong>-os no inferno,<br />

os entregou a abismos de trevas, reservan<strong>do</strong>-os para juízo; e não poupou<br />

o mun<strong>do</strong> antigo, mas preservou a Noé, prega<strong>do</strong>r da justiça, e mais sete pessoas,<br />

quan<strong>do</strong> fez vir o dilúvio sobre o mun<strong>do</strong> de ímpios... (2Pe 2.4-5).<br />

Quan<strong>do</strong> o autor diz que Deus “não poupou aqueles anjos”, ele está<br />

fazen<strong>do</strong> uma menção direta ao fato de que, apesar de aqueles anjos terem<br />

pedi<strong>do</strong> clemência e misericórdia no referi<strong>do</strong> livro, Deus não os poupou e os<br />

aprisionou no abismo.<br />

A seguinte citação nos revela o contexto literário da afirmação de Pedro:<br />

Enoque, tu, o Escriba da Justiça, vai e anuncia aos Guardiões <strong>do</strong> céu que perderam<br />

as alturas <strong>do</strong> paraíso e os lugares santos e eternos, que se corromperam<br />

com mulheres à moda <strong>do</strong>s homens, que se casaram com elas, produzin<strong>do</strong> assim<br />

grande desgraça sobre a terra; anuncia-lhes: “Não encontrareis nem paz nem<br />

perdão”. Da mesma forma como se alegram com seus filhos, presenciarão<br />

também o massacre <strong>do</strong>s seus queri<strong>do</strong>s, e suspirarão com a sua desgraça. Eles<br />

suplicarão sem cessar, mas não obterão nem clemência nem paz! (1Enoque 12).<br />

Várias vezes no livro de 1Enoque se menciona que Deus não os pouparia,<br />

nem concederia clemência e que eles seriam aprisiona<strong>do</strong>s em abismos de trevas,<br />

e seus filhos destruí<strong>do</strong>s. Pedro usa o termo tártaro para definir o local em que<br />

esses anjos estão aprisiona<strong>do</strong>s. Literalmente ele diz que os anjos foram “em<br />

abissais cadeias tenebrosas, lança<strong>do</strong>s no tártaro” (σειραῖς ζόφου ταρταρώσας).<br />

O termo tártaro, oriun<strong>do</strong> da mitologia grega, traduz bem o senti<strong>do</strong> da mais<br />

terrível de todas as prisões <strong>do</strong> submun<strong>do</strong>.<br />

O texto de 2Pedro 2.1-22 é um forte paralelo teológico e textual de Judas<br />

3-19. Uma simples leitura paralela das duas passagens deixa isso totalmente<br />

evidente. Claramente, um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is autores fez uso <strong>do</strong> outro e acrescentou<br />

detalhes. Portanto, os anjos em prisão destaca<strong>do</strong>s em 2Pe 2.4 só podem ser<br />

os mesmos menciona<strong>do</strong>s em Judas 6, ou <strong>do</strong> contrário, toda lógica desaparece.<br />

Defendemos que em Judas 6, eles são os “filhos de Deus” de Gênesis 6 que<br />

pecaram com as mulheres e por causa disso foram aprisiona<strong>do</strong>s. Portanto,<br />

2Pedro 2.4 faz menção a esse mesmo grupo. Mas será que os “espíritos em<br />

prisão” menciona<strong>do</strong>s na Primeira Carta de Pedro, para quem Cristo fez uma<br />

proclamação, também se referem ao mesmo grupo?<br />

No nosso entendimento trata-se <strong>do</strong> mesmo grupo, pois Pedro diz que são<br />

“espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quan<strong>do</strong> a<br />

longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé” (1Pe 3.19-20). Ou seja,<br />

os temas de “prisão” e “dilúvio” aparecem aqui também. E, novamente, precisamos<br />

perguntar: de onde vinham esses conceitos quan<strong>do</strong> Pedro escrevia a<br />

primeira carta, a respeito de alguém que havia si<strong>do</strong> aprisiona<strong>do</strong> por ter feito<br />

algo erra<strong>do</strong> no tempo que antecedeu o dilúvio? A segunda carta que ele escreveu<br />

114


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

e também a carta de Judas já nos responderam isso: <strong>do</strong> livro de 1Enoque, da<br />

história <strong>do</strong>s anjos que pecaram com as mulheres em Gênesis 6.<br />

O texto está dizen<strong>do</strong> que Jesus, após sua ressurreição, no poder <strong>do</strong> Espírito,<br />

foi até esse lugar de prisão, e proclamou 33 sua vitória sobre aqueles espíritos<br />

que, noutro tempo, ou seja, no passa<strong>do</strong>, foram desobedientes, nos dias de Noé.<br />

Portanto, Cristo não foi “desencarna<strong>do</strong>” fazer alguma proclamação em algum<br />

lugar, mas após a ressurreição ele foi e anunciou sua vitória aos espíritos em<br />

prisão. E após fazer isso, ele subiu ao céu, deixan<strong>do</strong> os principa<strong>do</strong>s e potestades<br />

debaixo de seus pés (1Pe 3.22).<br />

Contrarian<strong>do</strong> essa noção, Wayne Grudem argumenta que o texto deveria<br />

ser traduzi<strong>do</strong> de outra forma, ou seja: “espíritos que agora estão em prisão”<br />

(isto é, durante o tempo em que Pedro estava escreven<strong>do</strong>), que foram pessoas<br />

na terra no tempo de Noé, quan<strong>do</strong> Cristo pregou a eles. 34 A sequência da frase<br />

também recebe nova tradução de Grudem: “quan<strong>do</strong> eles anteriormente desobedeceram”.<br />

Assim, Grudem conclui que Cristo, na verdade, pregou através<br />

“<strong>do</strong>s lábios de Noé”. 35<br />

No entanto, essa interpretação é extremamente forçada e gramaticalmente<br />

incerta. A interpretação de que Jesus “pregou através de Noé”, nos dias <strong>do</strong> próprio<br />

Noé, como nota I. Howard Marshall, “enfrenta dificuldades insuperáveis”,<br />

pois a passagem mais naturalmente se refere a um incidente que tomou lugar<br />

depois que Cristo foi “feito vivo”. 36 Além disso, Grudem precisa interpretar<br />

forçadamente o verso 19, chaman<strong>do</strong> de “espíritos em prisão” pessoas que<br />

viveram nos dias de Noé, o que sem dúvida é um tratamento absolutamente<br />

estranho, ainda mais quan<strong>do</strong> se considera o fato de que os leitores de Pedro<br />

tinham outra ideia muito clara de quem eram esses espíritos aprisiona<strong>do</strong>s.<br />

33 O termo “proclamou” é toma<strong>do</strong> por alguns autores como sen<strong>do</strong> uma referência à “pregação <strong>do</strong><br />

Evangelho”. Embora, sem dúvida, o termo possa ser usa<strong>do</strong> nesse senti<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> Novo Testamento,<br />

é o contexto da afirmação em 1Pedro que deve nortear o entendimento. Edmund Clowney expõe uma<br />

argumentação que pode esclarecer isso: Uma vez que Pedro está fazen<strong>do</strong> alusão aos espíritos aprisiona<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>s dias de Noé, cujo conhecimento é proveniente <strong>do</strong> livro de Enoque, então fica mais claro o<br />

senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> termo. A crença <strong>do</strong>s dias de Pedro era de que Enoque havia si<strong>do</strong> uma espécie de intercessor<br />

daqueles espíritos aprisiona<strong>do</strong>s. Ele subiu ao céu para levar até Deus a súplica por perdão. No entanto,<br />

Deus respondeu, segun<strong>do</strong> relata o livro, que aqueles anjos não seriam poupa<strong>do</strong>s, e nem a descendência<br />

deles (ver 2Pe 2.4: “Deus não poupou anjos…”). Então, Enoque foi incumbi<strong>do</strong> de levar a mensagem<br />

de condenação a eles. Ao dizer que Jesus é quem de fato fez essa proclamação, Pedro está mostran<strong>do</strong><br />

que esse papel não pertenceu a Enoque, mas a Cristo. Assim “não Enoque, mas Cristo, é aquele que<br />

confronta as forças angélicas e demoníacas <strong>do</strong> mal”. Clowney, Edmund. The Message of 1 Peter.<br />

Downers Grove: Inter-Varsity, 1989, p. 161. Porém, é preciso reconhecer que Clowney inclina-se mais<br />

para a ideia de que Cristo tenha prega<strong>do</strong> aos espíritos em prisão por meio de Noé, conforme segue sua<br />

argumentação no comentário.<br />

34 Grudem, 1 Peter, p. 159.<br />

35 Ibid., p. 160.<br />

36 Marshall, 1 Peter, p. 124.<br />

115


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

A associação geralmente feita entre essa passagem e 2Pedro 2.5, ou seja, de que<br />

Noé foi um “proclama<strong>do</strong>r da justiça” e, portanto, seria correto dizer que Jesus<br />

pregou por meio dele a seus contemporâneos, mais uma vez é forçada, pois não<br />

há respal<strong>do</strong> no restante da Escritura para o fato de que Noé tenha proclama<strong>do</strong><br />

alguma coisa a seus contemporâneos, ou ofereci<strong>do</strong> alguma oportunidade de<br />

salvação a eles. Ao contrário, pois Deus claramente disse que havia determina<strong>do</strong><br />

destruir “toda carne” (Gn 6.13), e ordenou que Noé construísse a arca,<br />

pois somente ele e a sua família seriam salvos entre os homens (Gn 6.14-18).<br />

Não há nenhum manda<strong>do</strong> de Deus para que ele pregasse a seus semelhantes.<br />

O texto, então, relata que Noé simplesmente fez “consoante a tu<strong>do</strong> o que Deus<br />

lhe ordenara” (Gn 6.22). O autor da carta aos Hebreus confirma que “pela fé,<br />

Noé, divinamente instruí<strong>do</strong> acerca de acontecimentos que ainda não se viam<br />

e sen<strong>do</strong> temente a Deus, aparelhou uma arca para a salvação de sua casa; pela<br />

qual condenou o mun<strong>do</strong> e se tornou herdeiro da justiça que vem da fé” (Hb<br />

11.7). Portanto, a proclamação que Noé fez ao mun<strong>do</strong> não foi uma oferta de<br />

salvação, mas justamente uma proclamação da justiça condenatória de Deus.<br />

Essa justiça destruiu o mun<strong>do</strong>. Por esse motivo, é bastante provável que a<br />

expressão “da justiça” aplica<strong>do</strong> a Noé como proclama<strong>do</strong>r (2Pe 2.5), não tenha<br />

relação com algum conteú<strong>do</strong> proclama<strong>do</strong> por ele, mas à sua própria postura<br />

perante o mun<strong>do</strong>, uma característica dele próprio, 37 como um testemunho da<br />

justiça punitiva de Deus.<br />

Porém, se o preconceito contra a ideia de que anjos pecaram com mulheres<br />

é posto de la<strong>do</strong>, a leitura <strong>do</strong> texto de 1Pe 3.18-<strong>21</strong> fica muito simples e<br />

sequencial. O ensino da passagem é que Jesus morreu na carne, mas ressuscitou<br />

no Espírito, então foi e pregou aos espíritos aprisiona<strong>do</strong>s, aqueles que no<br />

passa<strong>do</strong> foram rebeldes no tempo <strong>do</strong> dilúvio. Depois disso, Cristo foi para o<br />

céu, e agora to<strong>do</strong>s os anjos e principa<strong>do</strong>s estão debaixo de seus pés. Assim, a<br />

sequência <strong>do</strong> texto é:<br />

1) Os cristãos devem estar prepara<strong>do</strong>s para sofrer injustamente (1Pe<br />

3.17).<br />

2) Cristo também sofreu injustamente e morreu na carne (1Pe 3.18).<br />

3) Porém, ele ressuscitou no espírito e triunfou sobre seus inimigos,<br />

poden<strong>do</strong> proclamar aos piores dentre eles sua vitória (1Pe 3.19).<br />

4) Então, ele subiu ao céu, e agora to<strong>do</strong>s os anjos, bons e maus, estão<br />

sob seu <strong>do</strong>mínio (1Pe 3.22).<br />

5) Por isso, os cristãos devem estar prepara<strong>do</strong>s para sofrer na carne,<br />

aguardan<strong>do</strong> o julgamento de Deus sobre os inimigos (1Pe 4.1-5).<br />

37 DALTON, William J. Christ’s proclamation to the spirits. Melbourne: Catholic Theological<br />

College, 1989, p. 158.<br />

116


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

Deste mo<strong>do</strong>, a exortação de Pedro aos seus leitores é para que não revidem<br />

as agressões, mas aguardem o momento em que Deus lhes dará a vitória<br />

e o triunfo sobre os adversários.<br />

Em último lugar, é preciso observar que o único argumento efetivo usa<strong>do</strong><br />

contra a ideia é o que Jesus disse em Lucas 20:35-36:<br />

... mas os que são havi<strong>do</strong>s por dignos de alcançar a era vin<strong>do</strong>ura e a ressurreição<br />

dentre os mortos não casam, nem se dão em casamento. Pois não podem<br />

mais morrer, porque são iguais aos anjos e são filhos de Deus, sen<strong>do</strong> filhos da<br />

ressurreição.<br />

Note-se, porém que Jesus está falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> futuro, quan<strong>do</strong> os crentes ressuscitarem,<br />

e, mesmo ten<strong>do</strong> corpos, não se casarão mais. A questão, entretanto,<br />

não parece ser a impossibilidade teórica de que isso aconteça, mas o fato de<br />

que Deus decidiu que isso não deve acontecer. 38 Assim como nós hoje podemos<br />

nos casar, mas no futuro não poderemos mais, poderia ser possível dizer que<br />

aqueles anjos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> desobedeceram, e fizeram aquilo que não devia ser<br />

feito, e a partir de então perderam essa possibilidade. Portanto, essa passagem,<br />

ao invés de contradizer o assunto, até mesmo o reforça, pois chama os crentes<br />

ressuscita<strong>do</strong>s de “iguais aos anjos, filhos de Deus”, o título da<strong>do</strong> a eles em Jó<br />

1.6 e em Gênesis 6.1.<br />

considerações finais<br />

Provavelmente, uma das maiores dificuldades de muitos evangélicos em<br />

aceitar a teoria <strong>do</strong> relacionamento <strong>do</strong>s anjos com as mulheres é a noção de que<br />

isso mudaria o conceito bíblico sobre a queda <strong>do</strong>s anjos em geral. Se aquele<br />

peca<strong>do</strong> representa a queda original <strong>do</strong>s anjos, portanto, ela não teria aconteci<strong>do</strong><br />

antes de Gênesis 3. Porém, deve ser nota<strong>do</strong> que apenas Satanás é menciona<strong>do</strong><br />

em Gênesis 3, e nenhum outro anjo. De qualquer mo<strong>do</strong>, o peca<strong>do</strong> daqueles<br />

anjos no tempo <strong>do</strong> dilúvio não precisa ser necessariamente a queda original<br />

<strong>do</strong>s anjos, mas um aprofundamento da mesma, por parte de alguns anjos que<br />

já poderiam estar seguin<strong>do</strong> Satanás em sua rebelião anterior. O fato de que somente<br />

esses anjos foram aprisiona<strong>do</strong>s sugere que Satanás e outros rebeldes não<br />

participaram <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> de Gênesis 6, por isso não foram lança<strong>do</strong>s no tártaro.<br />

Outro temor que causa rejeição de muitos a esse entendimento é a dúvida<br />

sobre se isso ainda poderia acontecer hoje. Porém, nesse caso a resposta é<br />

não. Deus lançou to<strong>do</strong>s aqueles anjos no tártaro (2Pe 2.4). Deus não permite<br />

mais que anjos se relacionem com mulheres, como o próprio Cristo declarou.<br />

38 “Na verdade, Mateus não diz que anjos não tem sexualidade, mas que eles não podem se casar<br />

ou ser da<strong>do</strong>s em casamento”. Schreiner, 1, 2 Peter, Jude, 37:451.<br />

117


Leandro Lima, Revisitan<strong>do</strong> os Espíritos em Prisão: Uma Análise de 1Pedro 3.18-22 e Judas 6<br />

Não cabe aqui especular qual foi a forma utilizada: se eles assumiram<br />

forma humana ou se possuíram homens como Bruce Waltke defende. O fato<br />

é que não temos nenhuma informação na Bíblia sobre como isso se deu, mas<br />

sabemos que anjos podiam comer e exercer atividades físicas próprias de um<br />

homem (Gn 18.7-8; Hb 13.2).<br />

Um último questionamento sobre esse assunto diz respeito aos motivos da<br />

proclamação de Cristo àquele grupo específico de anjos. Por que somente para<br />

eles? Mas, o fato é que a proclamação específica que Pedro está registran<strong>do</strong> é,<br />

na verdade, um mo<strong>do</strong> de explicar que “ninguém” das forças hostis ficou de fora.<br />

O ensino <strong>do</strong> Novo Testamento é que, através da cruz, Jesus triunfou sobre os<br />

principa<strong>do</strong>s e potestades e os expôs ao ridículo (Cl 2.15). Pedro conclui o ensino<br />

da passagem dizen<strong>do</strong> que, após subir aos céus na ascensão, Cristo se colocou<br />

acima de to<strong>do</strong>s aqueles poderes hostis, os quais lhe ficaram subordina<strong>do</strong>s (1Pe<br />

3.22). Portanto, o relato da proclamação aos espíritos aprisiona<strong>do</strong>s completa<br />

essas narrativas, ou seja, ninguém ficou de fora <strong>do</strong> senhorio de Cristo, nem<br />

mesmo aqueles antigos anjos caí<strong>do</strong>s que estavam há tanto tempo aprisiona<strong>do</strong>s.<br />

O ensino geral de todas essas passagens referidas, quais sejam Judas 6,<br />

1Pe 3.18-22 e 2Pe 2.4 é o mesmo: a vitória <strong>do</strong> Evangelho e a derrota <strong>do</strong>s poderes<br />

hostis. Enquanto os antigos poderes permanecem aprisiona<strong>do</strong>s, e os anjos<br />

caí<strong>do</strong>s são agora submeti<strong>do</strong>s ao senhorio de Cristo, uma verdade é exaltada:<br />

“O Senhor ressuscita<strong>do</strong> é o evangelho vivo”. 39 Sua vitória sobre a morte, sua<br />

passagem pelo tártaro após sua ressurreição e sua subida ao céu “acima de<br />

to<strong>do</strong>s os principa<strong>do</strong>s” é a grande evidência de que o Evangelho venceu.<br />

E, por último, voltamos à pergunta de VanGemeren: por que cristãos<br />

que creem em tantos fatos sobrenaturais da Bíblia têm dificuldades em crer<br />

que, de algum mo<strong>do</strong>, anjos caí<strong>do</strong>s se relacionaram com mulheres e foram<br />

puni<strong>do</strong>s por Deus? 40 Portanto, a compreensão desse assunto nos leva a uma<br />

compreensão maior <strong>do</strong> próprio ensino bíblico sobre os poderes malignos, e a<br />

um resgate da cosmovisão bíblica, sem ceder ao <strong>do</strong>gmatismo <strong>do</strong> racionalismo,<br />

que não seduz apenas o la<strong>do</strong> liberal da teologia, mas muitas vezes também<br />

o conserva<strong>do</strong>r. Esse triunfo e proclamação de Cristo aos espíritos em prisão<br />

mostra que os efeitos <strong>do</strong> Evangelho são muito maiores <strong>do</strong> que normalmente<br />

imaginamos. Quan<strong>do</strong> entendemos esse assunto, compreendemos melhor o<br />

tamanho da vitória de Cristo.<br />

abstract<br />

The article retakes the old discussion on the sin that some fallen angels<br />

committed with women in Genesis 6:1-4, and their imprisonment, in the light<br />

39 Dalton, Christ’s proclamation to the spirits, p. 19.<br />

40 VanGemeren, The sons of God in Genesis 6:1-4, p. 320.<br />

118


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 101-119<br />

of 1 Peter 3:18-22, Jude 6, and also 2 Peter 2:4. It considers the historical development<br />

of the subject and the controversies around it, especially among the<br />

church fathers until Augustine, and its reconsideration in our time among<br />

the main conservative and reformed commentators on the letters of Jude and<br />

Peter. The relationship of angels and women is defended on the basis of Genesis<br />

6:1-4 by means of apocryphal and pseu<strong>do</strong>-epigraphical literature. Through a<br />

textual, exegetical, and theological comparison of the passages in 1 Peter,<br />

2 Peter, and Jude with the book of 1 Enoch, the articles argues that such<br />

interpretation is also supported by these New Testament books. The article<br />

discusses some implications of this theory and offers explanations for some<br />

of its most controversial aspects.<br />

keywords<br />

Spirits in prison; Fallen angels; Genesis 6:1-4; Sin with women; Apocryphal<br />

literature; 1Peter 3:18-22; Jude 6.<br />

119


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

Covenant Theology in the Thought<br />

of John Calvin: From the Mosaic Covenant<br />

to the New Covenant<br />

Breno Mace<strong>do</strong> *<br />

abstract<br />

Covenant theology was not the central point in Calvin’s teaching neither<br />

was it the “foundational stone” on which his theological system was built.<br />

However, it is undeniable that the Genevan reformer possessed a profound<br />

understanding of this subject and extracted from it theological convictions of<br />

high importance to his thought. Following from where a previous article has<br />

left, the present work investigates Calvin’s views on three covenantal dealings:<br />

Mosaic, Davidic, and the new covenant. The conclusion is that for Calvin,<br />

after the fall, there is only one covenant: the covenant of grace. This, however,<br />

presents itself in the progressive unfolding of the Abrahamic covenant. The<br />

Mosaic, Davidic, and new covenants are but a progressive revelation of what<br />

Yahweh initiated with the patriarchs.<br />

keywords<br />

John Calvin; Theology; Covenant; Mosaic covenant; Davidic covenant;<br />

New Covenant.<br />

introduction<br />

Although covenant theology was not the central <strong>do</strong>gma in Calvin’s thought,<br />

it certainly occupied a prominent place in his theological system. In another<br />

* The author earned his M.Div. degree from Greenville Presbyterian Theological Seminary, his<br />

Th.M. from Puritan Reformed Theological Seminary, and is a <strong>do</strong>ctoral candidate (Ph.D.) at the University<br />

of Free State, South Africa, in the area of historical theology. He is an assistant pastor at Igreja<br />

Presbiteriana Semear, Brasília, Brazil.<br />

1<strong>21</strong>


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

article, it has been demonstrated that Calvin held to a matured view of three<br />

covenantal dealings which would acquire a more developed form at the end<br />

of the 17 th century: the covenant of works, the Noahic covenant, and the<br />

Abrahamic covenant. 1 In spite of the further development in the understanding<br />

of those particular covenants in later years, the substance of those dealings did<br />

not change and, therefore, what later theologians added to covenant theology<br />

was in line with what was already present in Calvin’s thought. 2<br />

In this article, the remaining dispensations of the Covenant of Grace<br />

will be analyzed in light of Calvin’s thought. As it has already been stated,<br />

for Calvin, after the fall of man salvation and relationship with God is only<br />

possible through a different covenant, a new covenant made between Yahweh<br />

and man, the Covenant of Grace. Such covenant was not administered in the<br />

same manner through history and, having examined the first two dispensations<br />

of such covenant, the last three remain to be studied: the Mosaic covenant, the<br />

Davidic covenant, and the new covenant in Christ. As in the previous article,<br />

the goal is to systematize Calvin’s thought in terms of the basic elements of a<br />

covenantal relationship: the existence of a covenant, its parties, characteristics,<br />

promises, and threats.<br />

1. the mosaic covenant in the thought of<br />

john calvin<br />

The starting point in this investigation is Calvin’s teaching on the dispensation<br />

of the covenant of grace during the time of Moses and under his<br />

ministry. In his comments on Exodus 19, Calvin expresses his recognition<br />

that the relationship which will be established between God and the people of<br />

Israel is that of a covenantal dealing. In fact, he affirms it to be a new covenant:<br />

And this is the main and principal thing which the prophets celebrate in the<br />

redemption of the people; and in this, as in a mirror, propose for consideration<br />

the image of the renewed Church, that God made known His testimonies to<br />

His redeemed, and bound the people, who He had purchased, to Himself by a<br />

new covenant. 3<br />

In spite of considering this deal between God and Israel at Sinai a new<br />

covenant, Calvin establishes continuity between the Mosaic covenant and the<br />

1 See “Covenant Theology in the Thought of John Calvin: From the Covenant of Works to the<br />

Abrahamic Covenant”. <strong>Fides</strong> Reformata XX-1 (2015): 89-105.<br />

2 For the continuity between Calvin’s covenantal thought and that of his successors, see: WOOSEY,<br />

<strong>Andrew</strong> A. Unity and Continuity in Covenantal Thought: A Study in the Reformed Tradition to the<br />

Westminster Assembly. Grand Rapids, MI: Reformation Heritage Books, 2012.<br />

3 CALVIN, John. Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a<br />

Harmony, trans. Charles William Bingham, vol. 1 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 313.<br />

It is interesting to note that here Calvin maintains his view that Old Testament Israel is the Church.<br />

122


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

Abrahamic covenant. The reformer affirms that the unbreakable Abrahamic<br />

administration is completely functional in Moses’ time, but it has fallen in the<br />

disregard of the people. God, then, <strong>do</strong>es not annul the previous dealing, but<br />

restores it in the people’s memory through its renewal. For Calvin, the Mosaic<br />

covenant is a renovation of the Abrahamic covenant.<br />

He [God] had indeed made with Abraham an eternal, and inviolable covenant;<br />

but because it had grown into disregard from the lapse of time, and the carelessness<br />

of mankind, it became needful that it should be again renewed. To this<br />

end, then, it was engraved upon the tables of stone, and written in a book, that<br />

the marvelous grace, which God had conferred on the race of Abraham, should<br />

never sink into oblivion. 4<br />

This connection between the Mosaic and the Abrahamic covenant demonstrates<br />

more than the principle of the continuity of the plan of redemption<br />

in Calvin’s thought. Because God’s action towards Israel is a covenantal response,<br />

Calvin eliminates the idea of merit as a reward in relation to Israel’s<br />

participation in the covenant. God’s motivation for his special dealing with<br />

the Hebrews is not due to any special status they hold before the Lord, but his<br />

own covenantal obligation with the patriarchs with whom he had previously<br />

established his special relationship.<br />

As to what is added, that “God remembered his covenant,” it is the explanation<br />

of the cause why he heard their groaning, viz., that he might ratify his gratuitous<br />

promise made to Abraham and his descendants. He expressly mentions the three<br />

patriarchs, because God lodged his covenant with them, that it might continue<br />

firm for perpetual generations. 5<br />

Thus, James Veninga rightly concludes: “Since the time of Abraham, the<br />

covenant was handed <strong>do</strong>wn to each generation because God was faithful to this<br />

promise, not because of the merit on the part of the people. The deliverance<br />

from Egypt was a testimony to his grace.” 6<br />

In the making of the covenant, Calvin identifies two parties participating<br />

in the dealing. The first one is, obviously, the Lord, dictating the blessings and<br />

conditions of the covenant. Still in his comments on Genesis 19, the reformer<br />

finds that it is the Lord himself promising to remain the same, ever blessing<br />

his chosen people. 7 The second party Calvin identifies is the people, giving the<br />

4 Ibid., 1:313.<br />

5 Ibid., 1:58.<br />

6 VENINGA, James Frank. “Covenant Theology and Ethics in the Thought of John Calvin and<br />

John Preston” (PhD diss., Rice University, 1980), 53.<br />

7 Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, 1:318-319.<br />

123


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

positive assent in acceptance of the terms of the covenant. The Israelites here,<br />

as a whole nation, engage in a commitment, a promise “that they would be<br />

obedient in all things…declaring that they would <strong>do</strong> whatsoever God required.”<br />

This positive assent, adds Calvin, was not the fruit of deceitfulness in the hearts<br />

of people, in which they tried to manipulate the Lord, but “God inclined their<br />

minds to this <strong>do</strong>cility, in order to establish the <strong>do</strong>ctrine of His law.” 8 Therefore<br />

the active role of Yahweh is not limited to creating the covenant, establishing<br />

its parameters, and inviting the Israelites into such relationship, but he is also<br />

responsible for the transformation of the people (for their conversion) so they<br />

can positively accept their new status, thus reinforcing the unilateral character<br />

of the covenant in Calvin’s thought.<br />

From this notion of a unilateral covenant flows Calvin’s understanding<br />

of the inviolability and unconditionality of the covenant. The Mosaic administration<br />

cannot be destroyed or nullified because it was originated by the divine<br />

initiative and in total disregard to human merit. Therefore, Veninga explains,<br />

“the covenant throughout its entire history remains inviolable, in spite of the sin<br />

of the people.” 9 Calvin clearly expresses this idea in his comments on Exodus<br />

32, the golden calf episode. There, he speaks of a “temporary rupture” that<br />

would be suspended upon the people’s acknowledgment of sin and eventual<br />

repentance. This rupture, nevertheless, <strong>do</strong>es not violate the covenantal relationship.<br />

In Calvin own words:<br />

Meanwhile, it must be borne in mind, that the covenant of God was not altogether<br />

annulled, but only as it were interrupted, until the people had heartily<br />

repented. Still this temporary rupture, if I my so call it, did not prevent the<br />

covenant itself from remaining inviolable. In the same manner also afterward<br />

God put away His people, as if He had utterly renounced them, yet His grace<br />

and truth never fails; so that He at least had some hidden roots from the<br />

Church sprang up anew. 10<br />

Because of his people’s sin, God is forced to repudiate and to punish them.<br />

This reaction on the part of God results from the covenantal relationship with<br />

Israel and <strong>do</strong>es not terminate Yahweh’s gracious dealing. On the contrary, it<br />

is the unilateral character of the covenant that secures its perpetual nature and<br />

invites, even motivates, the bonded people, into repentance. Calvin, again,<br />

affirms in his comments of Deuteronomy 4:<br />

8 Ibid., 1:320.<br />

9 Veninga, “Covenant Theology and Ethics in the Thought of John Calvin and John Preston,”<br />

62-63.<br />

10 CALVIN, John. Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a<br />

Harmony, trans. Charles William Bingham, vol. 3 (Grand Rapids, MI: Baker, 2005), 348.<br />

124


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

He [God] tells them that after they shall have been afflicted by the curses of<br />

God, if they sought after Him, they should find Him: and further, he gives them<br />

grounds for hope both in God’s nature and in His covenant. He assures them<br />

that God will be willing to be appeased, because He is by nature merciful; but<br />

he adds another confirmation of this, which is more certain and familiar, viz.,<br />

because God had a<strong>do</strong>pted them by a perpetual covenant. 11<br />

However, one can also find mutuality in Calvin’s idea of the Mosaic<br />

administration. In his comments on Exodus 24, he affirms: “Inasmuch as<br />

mutual consent is required in all compacts, so when God invites his people to<br />

receive grace, He stipulates that they should give Him the obedience of faith,<br />

so as to answer, Amen.” 12 The embracement of the covenant is interpreted by<br />

Calvin as a deliberate act of the people in which they bind themselves to the<br />

stipulations and conditions of the covenant. In Calvin’s words: “It is, therefore,<br />

unquestionable that the elect of God embraced by faith the substance and truth<br />

of the sha<strong>do</strong>ws when they voluntarily offered themselves to keep the covenant<br />

of God.” 13 As the people accept the condition of obedience, God also commits<br />

himself to keep and fulfill his promises. Calvin then concludes:<br />

As I observed elsewhere, there is always to be presupposed a mutual relation<br />

and correspondence between the covenant of God and our faith. In order that the<br />

unfeigned consent of the latter may answer to the faithfulness of the former. 14<br />

From the idea of mutuality flows the notion of conditionality of the<br />

covenant in the Mosaic administration. The law, according to Calvin in his<br />

comments on Exodus 19, was written upon tablets of stone and given to the<br />

people so that they would not forget it anymore, as they did with the Abrahamic<br />

covenant, and could keep it.<br />

To this end, then, it was engraved upon tables of stone, and written in a book,<br />

that the marvelous grace, which God had conferred on the race of Abraham,<br />

should never sink into oblivion. But in the first place we must observe that,<br />

although the Law is a testimony of God’s gratuitous a<strong>do</strong>ption, and teaches that<br />

salvation is based upon His mercy, and invites men to call upon God with sure<br />

confidence, yet it has this peculiar property, that it covenants conditionally. 15<br />

Calvin further explains the necessity to distinguish between these two<br />

<strong>do</strong>ctrines: Moses’ exhortation to approach God by faith in his par<strong>do</strong>ning<br />

11 Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, 3:271.<br />

12 Ibid., 3:3<strong>21</strong>.<br />

13 Ibid., 3:3<strong>21</strong>.<br />

14 Calvin’s comment on Psalm 78:37 as cited in HOEKEMA, Anthony A., “Covenant of Grace in<br />

Calvin’s Teaching,” Calvin Theological Journal 2, no. 2 (November 1967): 145. Emphasis mine.<br />

15 Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, 1:313. Emphasis mine.<br />

125


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

nature and merciful character, which leads the Holy Lord to offer free par<strong>do</strong>n<br />

of sins; and Moses’ imposition of righteousness according to the demands of<br />

the Law. Regarding this aspect of Calvin’s thought, Antony Hoekema rightly<br />

concludes:<br />

Once again we see the Scriptural balance of Calvin’s thought: when the Bible<br />

speaks of covenant conditions, it <strong>do</strong>es not mean that we merit any of God’s<br />

blessings, least of all salvation, by keeping these conditions. We are saved by<br />

grace alone, through the work of Jesus Christ. But salvation by grace is no<br />

excuse for laxity. 16<br />

Out of this notion of the mutuality and conditionality of the covenant flow<br />

two <strong>do</strong>ctrines that find their harmony in Calvin, in spite of the accusations of the<br />

reformer’s critics: the sovereignty of God and the responsibility of man. Hoekema<br />

explains that Calvin is frequently accused of “being a theologian completely<br />

<strong>do</strong>minated by the idea of predestination. He is frequently made out a fatalist<br />

who leaves no room whatever for significant and responsible human decision.” 17<br />

However, Calvin’s understanding of the Mosaic covenant completely refutes<br />

such accusation. In a sermon on Deuteronomy 1:34-40, the reformer affirms:<br />

There must be as it were an accord and melody between God and us, so that<br />

when he imparts his benefits to us, we must estimate them so highly that we<br />

endeavor to serve and honor him for them, considering that he calls us to him<br />

to pluck us back from our sins. If we <strong>do</strong> so, the good that he has <strong>do</strong>ne for us<br />

shall be confirmed more and more. Otherwise it must needs be that our malice<br />

shall cut off the course of his goodness. 18<br />

In Calvin, therefore, <strong>do</strong>ctrines that for others are incompatible find harmony.<br />

Instead of nullifying God’s sovereignty (as in Arminianism) or man’s<br />

responsibility (as in Hypercalvinism), he sticks to the biblical-theological truth<br />

of those <strong>do</strong>ctrines in spite of their apparent logical contradiction. Hoekema,<br />

once again, enlightens this aspect of Calvin’s theology:<br />

The covenant of grace of Calvin is a fruit of God’s undeserved mercy, but at<br />

the same time it calls for a response of faith and obedience from man. Though<br />

God owes us nothing, and though we owe him full obedience by virtue of the<br />

fact that he is our Creator, yet God has voluntarily condescended to make with<br />

man his covenant, in which he promises to be God of his people and therefore<br />

to shower upon them every needful blessing for this life and the life to come,<br />

with the understanding that man, in turn, is obligated by this covenant to show<br />

16 Hoekema, “Covenant of Grace in Calvin’s Teaching,” 158.<br />

17 Ibid., 140.<br />

18 Quoted in Hoekema, “Covenant of Grace in Calvin’s Teaching,” 145.<br />

126


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

his thankfulness for God’s grace by being faithful to his covenant obligations.<br />

The balance of Calvin’s thought is evident: in the covenant of grace both God’s<br />

sovereignty and man’s responsibility meet. 19<br />

The conditionality and mutuality of the covenant in the Mosaic administration<br />

also leads to another important aspect in Calvin’s theology that flows<br />

from his view of the covenant in Moses’ time: the role of the law in that<br />

covenant. Calvin devotes a whole chapter in his Institutes to the explanation<br />

of his view of the threefold use of the law in the covenant of grace as a full<br />

organic dispensation. 20 The first use is that of revealing who man truly is. The<br />

law functions as a mirror in which man’s sinfulness is pointed, his liability to<br />

condemnation is confirmed, and his conscience is convicted.<br />

The first part is this: while it shows God’s righteousness, that is, the righteousness<br />

alone acceptable to God, it warns, informs, convicts, and lastly condemns,<br />

every man of his own unrighteousness. <strong>21</strong><br />

The second use of the law is that of restraining evil in man. This controlling<br />

power of the law results from its threats. These threats are not apprehended by<br />

the fallen human minds as a path to that which is good and right, but afraid of<br />

its punishments they refrain from breaking them.<br />

The second function of the law is this: at least by fear of punishment to restrain<br />

certain men who are untouched by any care for what is just and right unless<br />

compelled by hearing the dire threats in the law. 22<br />

The third and final use of the law is reserved to true believers, those in<br />

whom the Holy Spirit of God has made God’s calling effectual. The law teaches<br />

them in the way they must behave as members of the covenant; it serves as a<br />

teacher to instruct and exhort them.<br />

The third and principal use, which pertains more closely to the proper purpose of<br />

the law, finds its place among believers in who hearts the Spirit of God already<br />

lives and reigns. For even though they have the law written and engraved upon<br />

their hearts by the finger of God, that is, have been so moved and quickened<br />

through the directing of the Spirit that they long to obey God, they still profit<br />

by the law in two ways. 23<br />

19 Ibid., 144.<br />

20 Calvin, John. Institutes of the Christian Religion, ed. John T. McNeill, trans. Ford Lewis<br />

Battles, vol. 1 (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 1960), 348-366. Book II, 7.<br />

<strong>21</strong> Ibid., 1:354; Book II, 7, 6.<br />

22 Ibid., 1:358; Book II, 7, 10.<br />

23 Ibid., 1:360; Book II, 7, 12.<br />

127


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

When one looks to Calvin’s view of the law in the Mosaic dispensation<br />

specifically, it is possible to find those same three functions already in function.<br />

The law in the time of Moses <strong>do</strong>es reveal the sinful nature of the people:<br />

If it is true that in the law we are taught the perfection of righteousness, this<br />

also follows: the complete observance of the law is perfect righteousness before<br />

God. By it man would evidently be deemed and reckoned righteous before the<br />

heavenly judgment seat. Therefore Moses, after he had published the law, did<br />

not hesitate to call heaven and earth to witness that he had “set before Israel<br />

life and death, good and evil.” 24<br />

It also functions as a tool for the restriction of Israel’s natural inclination<br />

to sin due to its condemnations, curses, and punishments. In the Israelite context<br />

this restriction was most important due to the promised blessings they would<br />

achieve. As they acquired material richness, the law continued to remind them<br />

of who they were and restrained them from unfaithfulness to the terms of the<br />

covenant:<br />

For scarcely shall we find one person in a hundred in who satiety <strong>do</strong>es not<br />

generate headiness…It was needful, then, that a restraint should be put on<br />

such refractory begins, nay, that they should have their wantonness still more<br />

tightly repressed in their prosperity. But we may, and it is well to, extend this<br />

<strong>do</strong>ctrine to ourselves also, since prosperity intoxicates almost all of us, so that<br />

we intemperately grow wanton against God and forget ourselves and Him. 25<br />

And it also is a tool for the covenant members to guide their life, how they<br />

ought to act in their daily dealings within the community of Israel. This idea is<br />

clearly expressed in Calvin’s comments on the preamble words of Exodus 19:<br />

This chapter informs us by what means God rendered the people attentive and<br />

teachable when He would promulgate His laws. He had, indeed, previously<br />

delivered the rule of a just and pious life, but by writing the Law on tables, and<br />

by then adding its exposition, He not only embrace the perfect <strong>do</strong>ctrine of piety<br />

and righteousness, but ratified it by solemn rite, so that the recognition of it<br />

might remain and flourish in future times.<br />

24 Ibid., 1:351; Book II, 7, 3.<br />

25 Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, 1:397. Note that Calvin here applies<br />

a principle extracted from the Mosaic Covenant to those who are under the New Covenant. The same<br />

idea is also present, and maybe even more evident, in Calvin, Commentaries on the Four Last Books<br />

of Moses, 3:203. “We now perceive how the authority of the Law was confirmed by the promises; but<br />

because we are not only in<strong>do</strong>lent but also refractory, He added on the other side threats which might<br />

inspire terror, both to subdue the obstinacy of the flesh and to correct the security in which we are too<br />

apt to indulge.”<br />

128


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

Given that three functions of the law in view of the covenant of grace<br />

as a whole are found specifically in Calvin’s view of the Mosaic covenant, it<br />

seems safe to conclude that to place a particular emphasis on Calvin’s view<br />

of the law in Moses is a misapprehension of his theology. Mark Karlberg takes<br />

the position that “the ministration of law under the Mosaic Covenant serves to<br />

increase transgression in the economy of God’s dealings with his Old Covenant<br />

people. The law is Israel’s pedagogue until the coming of Christ.” 26 While it<br />

is indeed true that Calvin perceives such function of the law in the Mosaic<br />

covenant, to reduce the reformer’s perspective to it alone is to restrict too much<br />

Calvin’s original thought.<br />

It also seems safe to affirm that the functions of the law in Calvin’s<br />

thought, even in the Mosaic administration, are only spiritual. The promises<br />

of prosperity, land inheritance, and richness, which are indeed present in the<br />

covenant, are not conditioned to Israel’s faithfulness to the law. This seems<br />

even more obvious when Calvin’s view of Leviticus 18:5 is considered. In<br />

that particular passage, Calvin affirms that the expression “which if a man <strong>do</strong>,<br />

he shall live in them” possess only a soteriological connotation. He affirms:<br />

Consequently God voluntarily promises, in order to arouse them from their sloth,<br />

that if men obey His Law, He will repay them … For we must bear in mind the<br />

declaration of Christ, that when we have fulfilled the whole Law, we still deserve<br />

nothing; since God claims for Himself our entire services. (Luke 17:10.) However<br />

we may strive, therefore, even beyond our strength, and devote ourselves<br />

entirely to keep the Law, still God lies under no obligation to us, except in so<br />

far as He has Himself voluntarily agreed, and made Himself our spontaneous<br />

debtor. And this has been pointed out even by the common theologians, that the<br />

reward of good works <strong>do</strong>es not depend upon their dignity or merit, but upon<br />

His covenant. Still, as we shall see soon see, such promises would not avail us<br />

the least if God rewarded every one according to its works; but, because this<br />

defect is adventitious, God’s great mercy nevertheless shines forth in the fact<br />

that He has deigned to encourage us to obedience by setting before us the hope<br />

of eternal life. And hence He reproves the ingratitude of the Israelites by Ezekiel,<br />

(xx.<strong>21</strong>;) because they had despised his good commandments, of which it was<br />

said that “if a man <strong>do</strong> them, he should live in them” 27<br />

On the other hand, obedience to the Law should be the fruit of a grateful<br />

heart for both material and spiritual blessings. Because God would freely grant<br />

Israel what it did no merit, the land promised (also without merit) to Abraham,<br />

the covenanted people should be motivated to obedience and to covenantal<br />

26 KARLBERG, Mark W. “Reformed Interpretation of the Mosaic Covenant,” The Westminster<br />

Theological Journal 43, no. 1 (September 1980): 14.<br />

27 Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, 3:202-203. Emphasis mine.<br />

129


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

faithfulness. Conformity to the law flowing out of a grateful heart permeates<br />

Calvin’s thought.<br />

Since, then they were appointed to inherit the land, Moses, when he invites<br />

them to this enjoyment, commands them gladly to embrace the <strong>do</strong>ctrine, for<br />

the sake of which they were a<strong>do</strong>pted; and to devote themselves on their side to<br />

obedience to God by whose gratuitous goodness they have been prevented. 28<br />

And again:<br />

Therefore Moses not only commands the Israelites not to be ungrateful to God,<br />

but warns them to guard themselves (for he uses this word for to beware) from<br />

that impious ingratitude. He immediately after uses this same word for the<br />

keeping of the Law. But this is the sum, that they needed the utmost care and<br />

attention to beware lest forgetfulness of God should steal over them in happy<br />

circumstances, and thus they should shake off His fear, and cast away His yoke,<br />

and indulge themselves in the lusts of their flesh. For he shews that contempt of<br />

the Law would be a token of ingratitude; because it could not be but that they<br />

would submit themselves to God, and keep His Law, if they only reflected that<br />

it was to nothing but His blessing that they owed their prosperity. 29<br />

This principle of “inheritance-work” (keeping the law because of an already<br />

secured inheritance) seems to contradict Karlberg’s reading of Calvin.<br />

He affirms that the reformer recognizes in the pre-fall Adamic administration<br />

a “works-inheritance” principle which was governed by Adam’s original<br />

righteousness. According to this principle, “the reward for faithfulness, based<br />

upon man’s obedience, was eternal life.” 30 He, then, reads this “works-<br />

-inheritance” principle into Calvin’s interpretation of the Mosaic covenant. He<br />

affirms that, for Calvin,<br />

the peculiarity of the Mosaic Covenant was seen in the emphasis on earthly<br />

and temporal benefits which served to direct the Israelites to the heavenly and<br />

eternal realities. This accounted for the status of childhood for the Old Covenant<br />

Church. The people of God were restricted under the tutelage of the law of Moses.<br />

Physical blessings and punishments were related to the principle of works-<br />

-inheritance, appropriate to the typical picture of the Mosaic administration. 31<br />

28 Ibid., 1:395.<br />

29 Ibid., 1:397.<br />

30 KARLBERG, Mark W. “The Mosaic Covenant and the Concept of Works in Reformed Hermeneutics:<br />

A Historical-Critical Analysis with Particular Attention to Early Covenant Eschatology” (PhD<br />

diss., Westminster Theological Seminary, 1980), 76.<br />

31 Ibid., 80-81.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

By reading the “works-principle” into the material blessings of the Mosaic<br />

covenant, Karlberg is affirming that, for Calvin, Israel needed to keep God’s law<br />

in order to receive those blessings while Calvin himself seems to be affirming<br />

that obedience stems out of a grateful heart for a blessing already received. It<br />

is true that Calvin may understand that Israel’s maintenance in the covenant<br />

may flow not only from God’s blessing but also from covenant keeping, but<br />

the idea of reward seems to be absent from Calvin’s thought.<br />

Another evidence seems to point toward the validity of the “inheritance-<br />

-works” principle, which is exactly the opposite to that proposed by Karlberg,<br />

and it flows from Calvin’s view of the unity of the covenant. Such unity was<br />

already evidenced by the harmonious threefold use of the law which is the<br />

same in the whole administration of the covenant of grace, even in the new<br />

covenant. Since it is true that the physical and material blessings of the Mosaic<br />

covenant represent higher spiritual blessings that would be unveiled with the<br />

inauguration of the New Covenant in Christ, and since the geographical land to<br />

be inherited by the people of Israel pointed to the spiritual land to be inherited<br />

by the Church of Christ, it seems very arbitrary to believe that as the people<br />

of Israel should keep the law in order to enter the land, the Church of Christ<br />

must keep the law to dwell in the new Jerusalem. In fact, because the Church<br />

is “already” in the land, out of a grateful heart, Christians are commanded to<br />

keep the Law of Moses even in the New Covenant.<br />

2. the davidic covenant in the thought of<br />

john calvin<br />

After considering Calvin’s thought on the Mosaic covenant, the next step<br />

in this investigation is to unveil the reformer’s view of the covenant with David.<br />

Calvin readily recognizes the existence of such covenant. In his introductory<br />

remarks on Psalm 89 he affirms that in that text the psalmist “again returns to<br />

the covenant made with David, in which God promised to continue his favor<br />

toward that people forever, for the sake of their king.” 32<br />

With these words, Calvin also expresses his view of the relationship<br />

between the Davidic covenant and the past covenants. In his promises to David,<br />

according to Calvin, God was continuing a gracious dealing he had already<br />

started in the past. He traces the origins of the promises of this covenant all the<br />

way back to the patriarchs, specifically to Jacob and the blessings pronounced<br />

on the house of Judah in Genesis 49:10:<br />

For the prophecy of Jacob, which served them as an exposition of this promise,<br />

explained that this is how it would have to be. Long before the people were<br />

32 CALVIN, John. Commentary on the Book of Psalms, trans. James Anderson, vol. 3 (Grand<br />

Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 417. See also 3:4<strong>21</strong>.<br />

131


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

given possession of their heritage, and even before they had been brought out of<br />

captivity in Egypt, listen to Jacob, who declared that “the scepter would remain<br />

in the house of Judah, and the law-giver would be in his loins.” 33<br />

Therefore, for Calvin, the Davidic administration stands in continuity<br />

with the covenant as expressed in the time of the patriarchs, which are further<br />

expressions and developments of the Abrahamic covenant.<br />

Calvin makes it even more clear that the promises to David were a further<br />

administration of the Abrahamic covenant when, in his comments on Psalm<br />

89:4, he explains that choosing a particular man to be king over the descendants<br />

of Abraham did not represent a rupture with the promises made to that great<br />

patriarch. On the contrary, God’s selected one to rule over many for the good<br />

and profit of all and as a preparation for the coming of the Messiah. The Davidic<br />

covenant further unrolls the Abrahamic covenant in its immediate aspect<br />

to the nation of Israel and also in its eschatological aspect in the progress of<br />

the history of redemption.<br />

In ordaining one man to be king, God assuredly did not have a respect to one<br />

house alone, while he forgot and neglected the people with who he had before<br />

made his covenant in the person of Abraham. But he conferred the sovereign<br />

power upon David and his children, that they might rule for the common good of<br />

all the rest, until the throne might the truly established by the advent of Christ. 34<br />

James Veninga affirms that in its most immediate context, the covenant<br />

with David, for Calvin, promoted “the fulfillment of the material promises<br />

made to Abraham and Moses.” 35 He came to this conclusion from comments<br />

the reformer made on Psalm 89:25, in which Calvin explained that the sinfulness<br />

of the people of Israel after the occupation of the land under the leadership<br />

of Joshua, as described in the book of Judges, “blocked” God’s promises<br />

from their total fulfillment and the land they had conquered so far was only<br />

a limited demonstration of the full potential of the promise. “But now God<br />

declares, that during the reign of David, it will be again enlarged, so that the<br />

people possess the whole country, from the sea even to the river Euphrates.”<br />

Calvin concludes his thoughts on this issue by making a complete connection<br />

between the Abrahamic, Mosaic, and Davidic covenants. “From this we gather,”<br />

33 CALVIN, John. Sermons on 2 Samuel: Chapters 1-13, trans. Douglas F. Kelly (Edinburgh: The<br />

Banner of Truth Trust, 1992), 325.<br />

34 Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 2005, 3:422.<br />

35 Veninga, “Covenant Theology and Ethics in the Thought of John Calvin and John Preston,”<br />

66.<br />

132


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

he explains, “that what God had promised by Moses was fulfilled only in the<br />

person of David, that is to say, from his time.” 36<br />

Concerning the parties of the covenant, Calvin points, first and foremost,<br />

to Jehovah God as the gracious maker of the covenant. He expresses God’s<br />

unique role in the administration of the divine promises in a sermon on 2 Samuel<br />

7: 12-17 in which he explains that it is only because of Yahweh’s gratuitous<br />

election that he rejects Saul and choses David to rule over his people. God’s<br />

choice of David is but a demonstration of the unilateral nature of the covenant<br />

and of how God deals with anyone whom he a<strong>do</strong>pts.<br />

Now here David is compared to Saul: both were kings and received the anointing<br />

by the hand of the prophet. Saul, indeed, was first and seemed to be well worthy<br />

of it. Still, one of them was cut off, and God removed his mercy from him, but<br />

it is said here that it would never be taken from David, nor from his successors.<br />

By this, therefore, God wanted to magnify this mercy which he bestows on us<br />

who are his children, for when we consider the unbelievers; we see that they<br />

are of the same mass as we. So why is our condition not the same? 37<br />

Calvin expresses the same idea of the unilateral nature of the covenant,<br />

independent from any human merit, in his comments on Psalm 132:11. Explaining<br />

the expression “Jehovah sware unto David” he affirms: “Here he brings<br />

out the ideal still more clearly, that the only thing he had respect to in David<br />

was the free promise which God had made to him.” 38<br />

From the unilateral nature of the Davidic covenant flow two further aspects:<br />

its un-conditionality and its inviolability. Because the choice of David<br />

to be the king of Israel was later transformed in a promise of eternal perpetuity<br />

of David’s house upon the throne, without any requisition on God’s part, the<br />

covenant becomes unconditional. On this regard, Veninga rightly remarks that<br />

“Calvin recognizes that the covenant is clearly unconditional in that it promises<br />

perpetuity of succession of the Davidic line; God would always have a<br />

descendant from David upon the throne, not merely for one age, but forever.” 39<br />

The covenant is also inviolable for regardless of the infidelity of David or of<br />

the people to the covenant, God will sustain his promises. Calvin comments<br />

on Psalm 89:30 about this aspect of the covenant become very clear:<br />

36 Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 2005, 3:436.<br />

37 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 342.<br />

38 Calvin, Commentary on the Book of Psalms, vol. 5, 153. Calvin is even more emphatic in his<br />

comments on Psalm 78:70. He writes: “It serves in no small degree to magnify the grace of God, that a<br />

peasant was taken from his mean shepherd’s cot, and exalted to the dignity of a king. Nor is this grace<br />

limited to the person of David. We are taught that whatever worth there was in the children of Abraham,<br />

flowed from the fountain of God’s mercy.” Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 3:280.<br />

39 Veninga, “Covenant Theology and Ethics in the Thought of John Calvin and John<br />

Preston,” 74.<br />

133


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

The prophet proceeds yet father, declaring that although the posterity of David<br />

should fall into sin, yet God had promised to show himself merciful towards<br />

them, and that he would not punish their transgression to the full extent of their<br />

desert…God, therefore, seeing that it could not be otherwise, but that the posterity<br />

of David, in so far as it depended upon them-selves, would frequently fall<br />

from the covenant, by their own fault, has provided a remedy for such cases,<br />

in his par<strong>do</strong>ning grace. 40<br />

In the Institutes, Calvin attributes this inviolability to the final beneficiaries<br />

of the covenant. Not Israel as a nation, but Christ, and his Church with him. 41<br />

The second party of the covenant is king David. It has already been remarked<br />

above that Calvin <strong>do</strong>es acknowledge God dealing directly with David. But it is<br />

important to consider the context in which the covenant was made. According to<br />

II Samuel 7, David proposes to build a house for God and God rejects it. David<br />

will not <strong>do</strong> it, but his descendant will. This descendant will also have a special<br />

status before God; he will be a son to him. David’s descendant will enjoy the<br />

benefits of the covenant only because of David. This puts the king in a position<br />

similar to a mediator. David represents his son and his posterity after him.<br />

Calvin notes this function of David as a mediator in his comments on<br />

Psalm 132:1. He explains that the psalmist can call upon Jehovah on the basis<br />

of David’s name because the covenant God had made directly with him was<br />

not for him alone but for all the people of Israel and, ultimately, for the whole<br />

Church. The psalmist plea is grounded only on “the covenant which God had<br />

made with David, knowing well that though given to one man, it was with the<br />

understanding that it should be communicated to all.” 42 But how can the New<br />

Testament church use the same claim of the citizens of the king<strong>do</strong>m of Israel<br />

since many of them are not Israelites? Calvin explains:<br />

…let us be aware that we are of the house of David. We are not part of it according<br />

to the flesh. We are not descendants of his race. But yet by faith we<br />

are united to him (Rom. 4:11, 16). We are to belong to the household of God in<br />

the same way. 43<br />

Calvin, thus, concludes from Psalm 132 that the role of David as a party<br />

in the covenant was typological. It pointed to the supreme King Jesus Christ.<br />

40 Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 3:438-439.<br />

41 Calvin, Institutes, 1:342-343; Book II, 6, 2.<br />

42 Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 5:144. In his comment of verse 10 of this same<br />

Psalm, Calvin affirms: “The favor is asked for David’s sake, only because God had made a covenant<br />

with him…The prayer, in short, is to the effect that God in remembrance of his promise would show<br />

favor to the posterity of David, for though this prayer for the Church must be considered as dictated to<br />

each of the kings, the foundation was in the person of David.” Ibid., 5:153.<br />

43 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 351.<br />

134


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

It was ultimately with him that God was making a covenant. “The Church was<br />

thus taught figuratively that Christ, as Mediator, would make intercession for<br />

all his people.” 44<br />

Now that both the existence of the covenant and its parties has been examined,<br />

it is time to consider the terms of the covenant, its promises and threats.<br />

The promises of the covenant, according to II Samuel 7, are three: king<strong>do</strong>m,<br />

seed, and temple. As already mentioned above, Calvin sees an interruption<br />

of God’s blessings upon the expansion of Israel’s <strong>do</strong>minion in the Promised<br />

Land. The sins of the people during the time of the Judges hindered them from<br />

enjoying complete free<strong>do</strong>m from their enemies and from the total bounty of<br />

the land. It is not that God’s promise had failed. In light of Psalms 44:3 and<br />

80:9, Calvin firmly affirms: “God had brought back his people out of Egypt,<br />

and they did not gain the land by their arms nor by their swords, but by the<br />

favor which he gave them.” 45<br />

However, one element is missing. Calvin understands the emphasis of<br />

the promise to be not on the possession of the land but on having peace in the<br />

land. Calvin sees a concept of rest in the covenant that was yet to be fulfilled.<br />

46<br />

It would begin with David, find a certain maturity in Solomon, but its full<br />

manifestation will appear in the king<strong>do</strong>m of Christ.<br />

David spoke in this way (Psalm 60:8) to show that fulfillment of what he had<br />

been promised, namely, that God would give a permanent place to all his people.<br />

That began in the time of Solomon, who did not even have wars with foreigners,<br />

for in fact they all paid him tribute, and were his subjects…Moreover, in order<br />

to understand this, we must remember that the king<strong>do</strong>m of our Lord Jesus Christ<br />

is spiritual. Under the guidance of David, it was necessary for the people to<br />

have a visible rest in human terms, especially because they had not reached this<br />

perfection to which the Son of God has brought us. 47<br />

The king<strong>do</strong>m, therefore, becomes a type of the Messiah’s king<strong>do</strong>m, where<br />

peace abounds and the enemies of the people of God are destroyed.<br />

Calvin connects the peacefulness of the king<strong>do</strong>m with its special king<br />

and here he articulates the second promise of the covenant: the seed. He understands<br />

the seed as a typological term. It points primarily to king Solomon<br />

44 Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 5:153.<br />

45 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 318.<br />

46 The concept of rest Calvin develops from his sermons on II Samuel is different from that present<br />

in his commentary on the letter to the Hebrews. In the former, Calvin places the emphasis on absence<br />

of war and conflict; in the later, on the entering of Canaan under Joshua.<br />

47 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 318–319. See also Calvin, Commentary on the Book of<br />

Psalms, 3:440. Emphasis mine.<br />

135


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

and finds its immediate fulfillment in him. In commenting verses 11 and 12<br />

of II Samuel 7, Calvin explains that<br />

where it says that would build a house for David, it is using a figure of speech<br />

which is fairly frequently found in Scripture. ‘To build a house’ is to give an<br />

estate to someone. That, therefore, <strong>do</strong>es not mean person or multitudes of goods,<br />

but it means that God will make David prosper not only in his person, but in his<br />

offspring, as we see by the flow of the text. 48<br />

Solomon, the immediate offspring of David, takes part in the fulfillment<br />

of the covenant promises for it is in him that the rest concept is experienced<br />

on earth by the Israelites. The peace of the king<strong>do</strong>m is achieved because the<br />

king himself is incredibly peaceable.<br />

For what happened to the line of David in the time of Solomon? Now here, first,<br />

was a king of Israel who was so peaceable that none could have been more so.<br />

All the foreign princes paid him tribute. There were no Philistines, or Moabites,<br />

or Idumeans, or any others (indeed, even including the Si<strong>do</strong>nians and Ziphites)<br />

who did not have to give home to Solomon and to pay him tribute. Thus, we<br />

clearly see that God so magnified his king<strong>do</strong>m that this promise was indeed fulfilled<br />

in it; that he was the first-born king whom God established in excellence. 49<br />

Nevertheless, the peacefulness of the king<strong>do</strong>m of Solomon <strong>do</strong>es not last<br />

long. The king dies and with him the peace which the people experienced.<br />

It is here that Calvin brings the idea of a peaceful king<strong>do</strong>m associated with<br />

an eternal king<strong>do</strong>m. A temporal king<strong>do</strong>m can never fulfill the promise of the<br />

Davidic covenant. Kings come and go, and no matter how great they are,<br />

the characteristics of their king<strong>do</strong>m disappear with them. Calvin concludes:<br />

“The temporal king<strong>do</strong>m, therefore, which involved the house of David, was<br />

only a type, so that the substance and ultimate reality of what is contained in<br />

this prophecy cannot be found in it.” 50<br />

As hinted in the last citation, Calvin rightly appeals to typology to solve<br />

this dilemma. Only an eternal king will establish a forever peaceable king<strong>do</strong>m.<br />

Thus, Calvin takes the last step in his interpretation of the covenantal promises<br />

and applies their fulfillment ultimately to Christ.<br />

But when we see that there was no-one but Solomon and his son – who was<br />

supposed to succeed him, but who in fact lost the greatest part of his subjects<br />

and of his country, was rejected by the majority – then we realize that God did<br />

not have Solomon in mind nor those who came after him, except insofar as the<br />

48 Ibid., 320.<br />

49 Ibid., 349-350.<br />

50 Ibid., 325. Emphasis mine.<br />

136


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

Redeemer should finally be raised up from the tribe of David, whose king<strong>do</strong>m<br />

is perpetual. 51<br />

From the eternality of the king<strong>do</strong>m also flows Calvin’s view of the spirituality<br />

of the king<strong>do</strong>m. The reigns of David and Solomon as types functioned<br />

as sha<strong>do</strong>ws and pointed to the king<strong>do</strong>m of the Son of God which is the true<br />

promised reality. Christ reigns eternally in heaven and nothing can destroy his<br />

<strong>do</strong>minion. From there he subdues his enemies and will finally destroy them<br />

in the eschaton.<br />

It says, however, that the king<strong>do</strong>m of our Lord Jesus Christ ‘will be for ever’<br />

(2 Sam. 7:16). Let us note that his throne is not here below today. Under the<br />

moon, there is nothing but what is changeable, but the seat of our Lord Jesus<br />

Christ is above the heavens. 52<br />

The use of the king<strong>do</strong>m as type is justified in man’s limitation to aspire to<br />

a heavenly king<strong>do</strong>m. It is part of God’s condescension with man in his progressive<br />

revelation. Solomon’s peaceful king<strong>do</strong>m worked as a symbol that, once<br />

experienced and removed, would draw the eyes of the people to the Messiah’s<br />

king<strong>do</strong>m. It has a revelatory-soteriological function towards the people of Israel.<br />

Since men cannot aspire to the heavenly king<strong>do</strong>m of God, it was necessary for<br />

the type of the king<strong>do</strong>m of our Lord Jesus Christ to be removed, in order to<br />

draw upward those whose hearts are here below. Nevertheless, there had to be<br />

some figure in the absence of our Lord Jesus Christ, that is, in the time before<br />

he was made manifest. For if the Jews had not had some previous taste of this<br />

promise, they would have been unable to draw the definite conclusion that they<br />

should hope for the coming of the Redeemer to receive full salvation. 53<br />

The third and last promise of the covenant is the building of the temple<br />

and Calvin, again, appeals to typology for its complete fulfillment. He <strong>do</strong>es<br />

not hesitate to associate the building promised in 2 Samuel 7 with the one<br />

Solomon built. That magnificent work of engineering, nevertheless, was only<br />

part of the promise. Like the king<strong>do</strong>m and the king, it was a symbol, a sha<strong>do</strong>w<br />

of true reality that is found in Jesus, the Christ.<br />

Well, finally it says that ‘Solomon will build a temple for God’ (2 Sam. 7:13). We<br />

have already mentioned how Solomon had built a material temple, yet this was<br />

51 Ibid., 225. See also Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 3:422, 434, 437. See<br />

Veninga’s assessment of Calvin’s use of typology in: Veninga, “Covenant Theology and Ethics in<br />

the Thought of John Calvin and John Preston,” 71-74.<br />

52 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 352.<br />

53 Ibid., 339-340.<br />

137


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

not the main thing noted here but only a small illustration which God uses – a<br />

mere sha<strong>do</strong>w of the reality. Therefore, we must come to our Lord Jesus Christ.<br />

For in fact, this temple which Solomon built would have been nothing in itself<br />

if it had not been founded on the person of the Redeemer, and if it had not been<br />

a type of this spiritual temple of which we have spoken, and thus it was that the<br />

temple of Solomon was totally ruined. 54<br />

The destruction of Solomon’s temple and the inferiority of all the other<br />

buildings later constructed upon its site were further indications of its symbolic<br />

and transitional nature, raising the expectation of Old Testament believers for a<br />

permanent temple. Calvin sees the complete fulfillment of the temple promises<br />

in Christ: “…God has chosen our Lord Jesus Christ, not to build him a house<br />

but that he is the very temple of his divinity.” 55<br />

The temple, however, <strong>do</strong>es not only typify Christ. It also represents all<br />

the elect who are in Christ. Calvin extends his interpretation of the typology<br />

of the temple and applies it to each individual believer. He sees this particular<br />

promise of the Davidic administration fulfilled in the indwelling presence of the<br />

Holy Spirit which transforms man, body and soul, into the place of habitation<br />

of God. 56 In this manner, Christ and the Church constitute a much superior<br />

temple than that built by Solomon.<br />

Therefore, we see how our Lord Jesus Christ built the spiritual temple in a<br />

manner much more worthy and more noble than Solomon did. There was stone<br />

and wood in that temple. It was exquisitely sumptuous. Its workmanship was<br />

very great and excellent. But here is a kind of house which is far more perfect<br />

than the build which was on the mountain of Zion. It is a temple in which so<br />

many men and women who have been converted to the faith of the Gospel are<br />

like numerous stones which have been assembled so that God might dwell<br />

throughout all the earth, so that his name might be honored and worshipped by<br />

all, and so that everyone might offer him a free-will sacrifice. 57<br />

One more aspect deserves attention in Calvin’s view of the Davidic<br />

covenant; it is that of discipline in the covenant. In spite of all the beautiful<br />

and powerful promises that God proclaimed to his people, the reformer also<br />

accounts for the “curses” of the covenant. In the text of 2 Samuel 7, Yahweh<br />

54 Ibid., 3<strong>21</strong>-322.<br />

55 Ibid., 314.<br />

56 Ibid., 328.<br />

57 Ibid., 328. In the remainder of this sermon Calvin will use the temple promises as a motivation<br />

to grateful obedience to God. It is significant to consider how Calvin, not only as a theologian but as<br />

a pastor of souls, worries to connect the <strong>do</strong>ts and to move his hearers from theology to application. In<br />

his own words: “We are bound to glorify God, because his promise has finally been fulfilled in us, who<br />

only deserved to be built into a pigsty, since we were so full of infection and rot!”<br />

138


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

promises to correct his son when he commits iniquity. Calvin readily dissociates<br />

the holy person of Jesus from this part of the covenant. He explains that<br />

Christ, being the “fountain of all purity”, the “mirror of all obedience”, the<br />

“living image of God”, the fulfiller of the Law, and having nothing but “total<br />

perfection and justice” in his being, could not be directly the recipient of this<br />

threat. Calvin concludes that the threat is directed to all believers who truly<br />

are in a covenantal relationship with God. The reason why Christ is included<br />

in the threat is because the Church is his body.<br />

Well, let us come to the second part of the promise where it says that ‘when he<br />

behaves badly, I will visit his iniquities with the stripes of men (2 Sam. 7:14).<br />

We have already shown that since this <strong>do</strong>es not refer to the person of our Lord<br />

Jesus Christ, it must refer to us who are members of him; and it is spoken in<br />

common of him and of us, because it pleases him for us to be his body. 58<br />

Discipline in the covenant <strong>do</strong>es not mean exclusion from it. As it has<br />

already been stated above, for Calvin, the Davidic covenant is unconditional<br />

and inviolable. However, because of the nature that constitutes a covenantal<br />

relationship, that of a<strong>do</strong>ption, God binds himself to the role of father, and as<br />

such he promises to guide his children, even via punishment, all the way until<br />

the full enjoyment of the covenant promises. Discipline in the context of<br />

the covenant is a reflection of God’s true love and mercy and he encourages<br />

believers promising that his “lovingkindness shall never depart from” them.<br />

For even after God has claimed us as his children, still we <strong>do</strong> not fail to be subjects<br />

to many vices, so that we offend him every day, and hence the covenant<br />

which God made with us would be broken from morning to evening and every<br />

minutes, unless we rested on his goodness. Therefore, God certainly had to add<br />

this grace that ‘he would not remove his mercy’ from us, although we are poor<br />

sinners…Hence, we must have these two sentences joined together; that is,<br />

that God will never fail to be gracious to us while we are poor sinners, and<br />

yet that he will chastise us with stripes. 59<br />

And it is exactly in this context of discipline in the covenant that Calvin<br />

finds the conditionality of the Davidic administration. The king<strong>do</strong>m of Christ<br />

and the a<strong>do</strong>ption of believers, Calvin affirms, were promises made “on the<br />

58 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 333. See also Ibid., 329. Calvin, Commentary on the Book of<br />

Psalms, 3:439.<br />

59 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 334. In the Institutes Calvin makes a clear distinction between<br />

God’s judgment in vengeance and God’s judgment in chastisement. The former is used to punish unbelievers<br />

and to give them a foretaste of hell, the later is used to correct believers and to improve their<br />

behavior aiming ultimately at their salvation. Calvin, Institutes, 1:658-664; Book III, 4, 31-34.<br />

139


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

condition that when we are made children of God, we must be subjected to<br />

his chastisements.” 60<br />

3. the new covenant in calvin’s thought<br />

After considering Calvin’s thought on the Old Testament covenant dispensations,<br />

the last part of this investigation is the reformer’s view of the New<br />

Testament covenant, named in sacred Scripture as the New Covenant. Ironically,<br />

a study of the new covenant necessitates a return to the Old Testament, where<br />

it was first prophesied. In Calvin’s comments on Jeremiah 31:31 he promptly<br />

recognizes the existence of such a new dealing in the context of a discouraged<br />

nation in the midst of the Babylonian captivity.<br />

Here then he sets before them a new covenant, as though he had said, that they<br />

ought not to look farther or higher, not to measure the benefit of God, of which<br />

he had spoken, by the appearance of the state of things at that time, for God<br />

would make a new covenant. 61<br />

Calvin explains that the promise of a new covenant in the context of the<br />

captivity functioned as a source of hope and encouragement for the Israelites<br />

who had become a divided nation, expelled from the land of promise and who<br />

had not experienced the rest concept of the covenant. 62<br />

The parties of this new covenant, different from the Davidic covenant,<br />

in which the promises were directed to one person representing the people,<br />

are God and the whole Church. Calvin affirms that the new covenant is made<br />

between Jehovah and the believers. Nevertheless, he also acknowledges the<br />

presence of a mediator. The true mediator of whom Abraham, Moses, and<br />

David were only sha<strong>do</strong>ws. The new covenant is made in the person of Christ.<br />

In his comments on Hebrews 8:7, Calvin writes:<br />

He confirms what he had said of the Excellency of the covenant which God<br />

hath made with us through Christ; and he confirms it on this ground, because<br />

the covenant of the Law was neither valid nor permanent; for if nothing was<br />

wanting in it, why was another substituted for it? 63<br />

60 Calvin, Sermons on 2 Samuel, 335. In this development of Calvin’s idea of the conditionality<br />

of the covenant it is important to note that he maintains the “inheritance-works” principle already present<br />

in the Mosaic administration. David, as the representative and mediator of the Israelite nation, receives<br />

the promises of an eternal king<strong>do</strong>m, temple and seed on the basis of God’s grace alone. Obedience is<br />

required from both David and the people not to receive the promises but because of the promises.<br />

61 CALVIN, John. Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, trans. John<br />

Owen, vol. 4 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 125.<br />

62 Ibid., 4:126.<br />

63 CALVIN, John. Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Hebrews, trans. John<br />

Owen (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 186.<br />

140


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

But, for Calvin, what is new about the new covenant? The quotation above<br />

seems to imply that in Calvin’s thought there was a complete rupture between<br />

old and new covenant. The former was obsolete and wanting; the latter was<br />

perfect and completely replaced the old. However, in light of Calvin’s comments<br />

on Jeremiah 31 it is possible to affirm that the reformer did not put the old and<br />

new administrations in complete antithesis. In fact, there is no opposition at<br />

all between both covenants.<br />

Now, as to the new covenant, it is not so called, because it is contrary to the first<br />

covenant; for God is never inconsistent with himself, nor is he unlike himself.<br />

He, then, who once made a covenant with his chosen people, had not changed<br />

his purpose, as though he had forgotten his faithfulness. 64<br />

On this basis, Calvin goes on to explain two fundamental points on his<br />

idea of the covenant that have already been mentioned above: the continuity<br />

and the inviolability of the covenant. The continuity of the covenant is based<br />

on its foundational first dispensation, the Abrahamic covenant. Calvin argues<br />

that this covenant was renewed in Moses, that every blessing and promise of<br />

salvation flows from the descendent promised to Abraham, that believers are<br />

called children of Abraham on the basis of the same faith of the Old Testament<br />

patriarch. In other words, there is no other covenant than that made with<br />

Abraham, which was ratified in Moses and carried on through the history of<br />

redemption until Christ. And because the new covenant is, in fact, the covenant<br />

with Abraham, it derives its inviolability from it.<br />

These things no <strong>do</strong>ubt sufficiently shew that God has never made any other<br />

covenant than that which he made formerly with Abraham, and at length<br />

confirmed by the hand of Moses. This subject might be more fully handled;<br />

but it is enough briefly to shew, that the covenant which God made at first is<br />

perpetual. 65<br />

However, there might be something “new” about the new covenant. Calvin<br />

explains that the covenant is the same in terms of substance, or of <strong>do</strong>ctrine,<br />

“for God in the Gospel brings forward nothing but what the Law contains.”<br />

But in reference to the form (the manner) of administration, everything is<br />

new. The new form of the covenant is found in three elements: “first Christ,<br />

64 Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, 4:126.<br />

65 Ibid., 4:127. “The new covenant is not new, then, in an absolute sense, but in the sense that<br />

the old one is renewed. Moses and Christ must not be separated, for by itself the law kills; joined to the<br />

Gospel, it makes alive.” EENIGENBURG, Elton M. “The Place of the Covenant in Calvin’s Thinking,”<br />

Reformed Review 10, no. 4 (June 1957): 17.<br />

141


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

then the grace of the Holy Spirit, and the whole external way of teaching.” 66<br />

Christ, as one of the new elements of the covenant, replaces the Old Testament<br />

sacrificial system. This is what Calvin means by the word “Law” in the present<br />

context. The Law is composed by “the rule of a perfect life” and also by those<br />

“types and figures that led the people to Christ.” It is to this latter element of<br />

the Law that Calvin refers when he talks about the newness of the covenant.<br />

“God made a new covenant, when he accomplished through his Son whatever<br />

had been sha<strong>do</strong>wed forth under the Law.” It is in the incarnation of Jesus that all<br />

those ceremonies, which were instituted “so that the faith might have some taste<br />

of salvation”, find their fulfillment and become obsolete. 67 Calvin concludes<br />

from the letter to the Hebrews: “All the sacrifices were destined for this end,<br />

that they might lead men to Christ; as the eternal salvation of the soul through<br />

Christ, so these were true witnesses of this salvation.” 68<br />

Christ’s incarnation also discontinues the priestly office for he is its fulfillment;<br />

he is the supreme high priest. Calvin argues that no mere mortal can<br />

achieve reconciliation between man and God. The insufficiency of the earthly<br />

priesthood becomes even more evident when one considers the corruption of<br />

the office, “that for the most part the priests not only became degenerate, but<br />

altogether sacrilegious.” 69 The deficiencies of the human priests are totally<br />

overcome by the divine Jesus. In his comments on Hebrew 9:11, Calvin explains<br />

the similarities between Christ and the high priest, yet emphasizing his<br />

superiority. The high priest brought temporal blessings which did not secure<br />

the perpetuity of his ministry; Christ brought eternal blessings which secured<br />

his office forever. The high priest entered the Holy of Holies through a physical<br />

sanctuary once every year; Christ entered heaven through the sanctuary<br />

of his body once and for all! The high priest offered blood of animals and this<br />

sacrifice was efficacious for expiation for the period of only one year. Christ<br />

offered his own blood and performed a sacrifice whose efficacy is eternal. 70 In<br />

the Institutes, Calvin summarizes it in this way: “The priestly office belongs to<br />

66 Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, 4:127. These threefold<br />

division of what is new about the new covenant must not be confused, in spite of its similarities and<br />

overlappings with the five differences between the Old and New Testaments the reformer points out in<br />

his Institutes, Book II, 11. The three differences considered here, according to Calvin, are only those<br />

considered in the context of the prophet Jeremiah and his prophecy. He points the same three characteristics<br />

in his comments on Hebrews 8:10 : “There are two main parts in this covenant; the first regards<br />

the gratuitous remission of sins; and the other, the inward renovation of the heart; there is a third which<br />

depends on the second, and that is the illumination of the mind as to the knowledge of God.” Calvin,<br />

Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Hebrews, 188.<br />

67 Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, 4:127.<br />

68 Calvin, Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Hebrews, 204.<br />

69 Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, 4:260.<br />

70 Calvin, Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Hebrews, 201.<br />

142


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

Christ alone because by the sacrifice of his death he blotted out our own guilt<br />

and made satisfaction for our sins (Heb. 9:22).” 71<br />

The grace of the Holy Spirit, the second element which characterizes the<br />

form of the new covenant, is related to the regeneration of the believer and<br />

the inscription of the law in his heart. Calvin affirms:<br />

But the coming of Christ would not have been sufficient had not regeneration<br />

by the Holy Spirit been added. It was, then, in some respects, a new thing, that<br />

God regenerated the faithful by his Spirit, so that it become not only a <strong>do</strong>ctrine<br />

as to the letter, but also efficacious, which not only strikes the ear, but penetrates<br />

into the heart, and really forms us for the service of God. 72<br />

In his comments on Jeremiah 31:31, Calvin explains the relationship<br />

between Law and Spirit. The Law in itself is an instrument that only quickens<br />

the eyes and ears. But in face of the disobedience of his people that leads<br />

them to expulsion from the land and captivity under a pagan nation, Yahweh<br />

promises that he will make his people to obey his law in a supernatural way.<br />

He will soften their hearts in such a way that the law will command their lives<br />

and thoughts with zeal, love, and desire. This is the work of regeneration <strong>do</strong>ne<br />

by the Holy Spirit. 73<br />

Is Calvin affirming then that the Holy Spirit was absent from the Old<br />

Covenant? That the ancient Israelites did not experience the ministry of the<br />

Spirit? He discusses this issue more clearly in his comments on Hebrews 8:11<br />

by affirming that the difference between the Holy Spirit’s regenerative work<br />

and ministry in the old and in the new dispensation is one of degree and not<br />

of existence. Calvin acknowledges that the patriarchs did<br />

worshipped God with a sincere heart and a pure conscience, and that they walked<br />

in his commandments, and this could not have been the case except they had<br />

been inwardly taught by the Spirit. 74<br />

But when God promises to Jeremiah that he will write his law on the<br />

hearts of the people in the new covenant, he is making “a comparison between<br />

the less and the greater.” 75 The inclusion of all nations, the massive entrance<br />

of the gentiles into the king<strong>do</strong>m of Christ thought the action of the same Spirit<br />

that converted the fathers, renders the old dispensation inferior and grants a<br />

new aspect to the covenant.<br />

71 Calvin, Institutes, 1:502. Book II, 15, 6.<br />

72 Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, 4:127.<br />

73 Ibid., 4:133.<br />

74 Calvin, Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Hebrews, 190-191.<br />

75 Ibid., 191.<br />

143


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

As then the Father hath put forth more fully the power of his Spirit under<br />

the king<strong>do</strong>m of Christ, and has poured for the more abundantly his mercy on<br />

mankind, this exuberance renders insignificant the small portion of grace which<br />

he had been pleased to bestow on the fathers. 76<br />

The third and last element that characterizes the differences between the<br />

two covenants is the clarity in teaching. Calvin here uses Paul’s metaphor of<br />

Moses’ veil and affirms that in the new covenant God openly speaks to the<br />

believer, face to face, through Christ, the fulfillment of the law, unlike with<br />

the old covenant believers, through the sha<strong>do</strong>ws of the law. 77 In his comments<br />

on 2 Corinthians 3:12-18, he explains this point in more detail. The giving of<br />

the Law by Moses was accompanied by a veil which covered the face of the<br />

great prophet so that fear would not assail the hearts of the Israelites. That<br />

same veil, nevertheless, hindered the people from seeing all the glory of<br />

the Law and it, then, functioned as a prediction of the Israelites’ blindness to the<br />

coming of Christ, the end of the law.<br />

This kind of scruple the Apostle removes, by instructing them, that their blindness<br />

had been prefigured even from the beginning, inasmuch as they could not<br />

behold the face of Moses, except through the medium of a veil. As, therefore,<br />

he had stated previously, that the law was rendered glorious by the luster of<br />

Moses’ countenance, so now he teaches, that the veil was an emblem of the<br />

blindness that was to come upon the people of Israel, for the person of Moses<br />

represents the law. 78<br />

Calvin, thus, protects the importance of the law and its beauty as long as<br />

it shines forth the splen<strong>do</strong>r of Christ. In the new covenant, however, this veil,<br />

which became a type of the people’s unbelief, is removed by Christ, through<br />

the ministry of the Holy Spirit. Alone, the letter of the Law brings only death. But<br />

when Christ animates the law in the mind and soul of the believers, making them<br />

understand and believe, than what David says of it in Psalm 19:7,8 becomes<br />

reality: “The law of the Lord is perfect, reviving the soul; the testimony of the<br />

76 Ibid. Veninga explains that, for Calvin, “the extraordinary gift of the Spirit, which was experienced<br />

only in limited ways during the Hebraic period, means that God’s <strong>do</strong>ctrine not only sounds in<br />

the ear, but also penetrates into the heart. The Spirit works effectively in the believer, forming anew the<br />

affection, so that the Christian will not depart from God.” Veninga, “Covenant Theology and Ethics<br />

in the Thought of John Calvin and John Preston,” 81. See also Eenigenburg, “The Place of the<br />

Covenant in Calvin’s Thinking,” 16. For an excellent discussion on Calvin’s view of the law/gospel and<br />

letter/spirit distinction see Hesselink, John I. Calvin’s Concept of the Law (Allison Park, PA: Wipf<br />

& Stock Pub, 1992), 155-202.<br />

77 Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, 4:128.<br />

78 CALVIN, John. Commentary on the Epistles of Paul the Apostle to the Corinthians, trans. John<br />

Pringle, vol. 2 (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 2005), 181.<br />

144


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

Lord is sure, making wise the simple; the precepts of the Lord are right, rejoicing<br />

the heart; the commandment of the Lord is pure, enlightening the eyes.” 79<br />

As in the previous covenantal dealings, Calvin also finds the place for<br />

conditions in the new covenant. In his sermon on Deuteronomy 32:44-47, he<br />

explains that the newness of the new covenant implies the sovereign rule of God<br />

in the heart of the believer, making him fulfill the conditions of the covenant<br />

because of its blessings and promises.<br />

God also binds himself to his people, on condition that he will govern them by<br />

his Holy Spirit, and write his word in their hearts; moreover, when he has so<br />

touched them, he will also be favorable to them in bearing with their infirmities<br />

and in forgiving their sins. 80<br />

The condition of the new covenant, therefore, remains the same: obedience<br />

to the law. However, the promise of the new covenant is that God himself,<br />

through the inscription of the law in the hearts of the believers will make them<br />

obedient to his precepts. This understanding of obligation in the covenantal<br />

dealing completely obstructs the way for any idea of works-righteousness. As<br />

Elton Eenigenburg explains:<br />

Calvin puts constant emphasis upon the creative power of God’s Spirit in the<br />

believer’s life, whether he was talking about faith, the person and work of the<br />

Holy Spirit, the Scriptures, the sacraments, or any of the other great biblical<br />

themes…The first duty of the believer, then, is with the help of God to keep<br />

the covenant. He is not forced to <strong>do</strong> so by any external compulsion, but he is<br />

constantly exhorted to <strong>do</strong> so, both by the external admonitions of the biblical<br />

revelation, and by the internal persuasions of the Holy Spirit. 81<br />

One last aspect of Calvin’s idea of the new covenant must be examined:<br />

the sacraments. In Book 4 of the Institutes, the reformer offers a lengthy<br />

discussion on this specific topic. Peter Lillback explains that “the greatest<br />

frequency of his words for covenant occurs here. In chapter XVI in his discussion<br />

of infant baptism, his covenantal words are used 53 times!” 82 That<br />

the sacraments are strictly related to the covenant in the mind of Calvin is<br />

also confirmed by his approval of Chrysostom’s nomenclature on the sings<br />

and seals of the new covenant. The father of the church “called them ‘covenants,’<br />

by which God leagues himself with us, and we pledge ourselves to<br />

79 Ibid., 2:181-183.<br />

80 Cited from Hoekema, “Covenant of Grace in Calvin’s Teaching,” 146.<br />

81 Eenigenburg, “The Place of the Covenant in Calvin’s Thinking,” 10-11.<br />

82 LILLBACK, Peter A. The Binding of God: Calvin’s Role in the Development of Covenant<br />

Theology. Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2001, 242.<br />

145


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

purity and holiness of life, since there is interposed here a mutual agreement<br />

between God and ourselves.” 83<br />

For Calvin, “a sacrament is a seal by which God’s covenant, or promise,<br />

is sealed.” 84 Examples of sacraments in the old covenant are: the tree of life for<br />

Adam, 85 the rainbow for Noah, 86 and circumcision for Abraham. 87 A sacrament<br />

is also a sign which grants the believer assurance on the fulfillment of God’s<br />

covenantal promises. The sacraments “are exercises which make us more certain<br />

of the trustworthiness of God’s Word.” 88 And because the sacraments are<br />

signs and seals they only hold a declaratory function: “they <strong>do</strong> not bestow<br />

any grace of themselves, but announce and tell us, and (as they are guarantees<br />

and tokens) ratify among us, those things given us by divine bounty.” 89 In<br />

other words, they are not to be confused as the grace of God and are not to be<br />

identified as channels of salvation.<br />

In the new covenant, the sacraments Jesus instituted are baptism and the<br />

Lord’s Supper. Each of them has specific functions in the church: “Baptism<br />

should be, as it were, an entry into the church, and an initiation into faith;<br />

but the Supper should be a sort of continual food on which Christ spiritually<br />

feeds the household of his believers.” 90 In baptism, the believer vows allegiance<br />

to the law of God and commits to its obedience. Here is the summary of the<br />

vow: “that, renouncing Satan, we yield ourselves to God’s service to obey<br />

his holy commandments but not to follow the wicked desires of our flesh.” 91<br />

Along with the vow, the believer is certified that God has delivered him from<br />

the bondage of sin. This assurance of cleansing, according to Calvin, has an<br />

old covenant bearing: “for as the Lord covered them with a cloud and gave<br />

them coolness, that they might not weaken and pine away in the merciless heat<br />

of the sun, so <strong>do</strong> we recognize that in baptism we are covered and protected<br />

by Christ’s blood.” 92<br />

Calvin’s view of the Lord’s Supper also held covenantal roots. He associates<br />

both baptism and the supper with the Old Testament circumcision and<br />

Passover and thus articulates the continuity of the covenant between the old<br />

83 Calvin, Institutes of the Christian Religion, vol. 2, 1296; Book IV, 14, 19.<br />

84 Ibid., 2:1450; Book IV, 19, 2.<br />

85 Ibid., 2:1296; Book IV, 14, 18.<br />

86 Ibid., 2:1296; Book IV, 14, 18.<br />

87 Ibid., 2:1280; Book IV, 14, 5.<br />

88 Ibid., 2:1281; Book IV, 14, 6.<br />

89 Ibid., 2:954. Book IV, 14, 17.<br />

90 Ibid., 2:1446. Book IV, 18, 19.<br />

91 Ibid., 2:1259. Book IV, 13, 6.<br />

92 Ibid., 2:1310. Book IV, 15, 9.<br />

146


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 1<strong>21</strong>-148<br />

and new dispensations in both sacraments, maintaining the consistency of his<br />

argumentation even in relation to the participants.<br />

Circumcision, which is known to corresponds to our baptism, had been appointed<br />

for infants [Genesis 17:12]. But the Passover, the place of which has<br />

been taken by the Supper, did not admit all guests indiscriminately, but was<br />

eaten only by those who were old enough to be able to inquire into its meaning<br />

[Exodus 12:26]. 93<br />

Participation in the supper signifies the covenantal bond of the believer<br />

with Christ. This bond is the Holy Spirit himself, who unites Christ in body,<br />

spirit, and soul with the believers and bestows upon them all the blessings and<br />

benefits of the covenant. 94 It also signifies the bond among the members of<br />

the bride of Christ.<br />

For as often as we partake of the symbol of the Lord’s body, as a token given<br />

and received, we reciprocally bind ourselves to all the duties of love in order that<br />

none of us may permit anything that can harm our brother, or overlook anything<br />

that can help him, where necessity demands and ability suffices. 95<br />

Thus, the new covenant in the mind of Calvin forms a unity, in diversity,<br />

with all the previous covenants, being the climax of God’s redemptive plan,<br />

and the fulfillment of all prophecies and types of the old dispensation.<br />

conclusion<br />

Calvin in fact did not write a treatise on covenant theology like Witsius,<br />

nor did he use the covenant as the central ideal of his theological system like<br />

Bullinger or Olevianus, but it is obvious that the covenant occupied a very<br />

prominent place in his thought. It was such an influential concept that it permeates<br />

all his writings and specific <strong>do</strong>ctrinal subjects.<br />

In the theological production of the reformer, it is possible to find all<br />

distinctive covenantal dealings, detailed information about them, their relationship<br />

with each other, and their importance for the church. Calvin’s covenantal<br />

thought shows how the French theologian viewed Scripture as a full story<br />

in which the central plot is the redemption of the elect back to their original<br />

relationship to their Creator lost in Adam.<br />

93 Ibid., 2:1353. Book IV, 16, 30.<br />

94 Ibid., 2:1373. Book IV, 17, 12.<br />

95 Ibid., 2:1046. Book IV, 17, 44.<br />

147


Breno Mace<strong>do</strong>, Covenant Theology in the Thought of John Calvin<br />

resumo<br />

A teologia <strong>do</strong> pacto não foi o ponto central <strong>do</strong> pensamento de Calvino nem<br />

a “pedra fundamental” para a construção <strong>do</strong> seu sistema teológico. Entretanto,<br />

é inegável que o reforma<strong>do</strong>r de Genebra possuía um profun<strong>do</strong> entendimento<br />

<strong>do</strong> assunto e extraia dele convicções teológicas de extrema importância. Dan<strong>do</strong><br />

sequência ao estu<strong>do</strong> inicia<strong>do</strong> em um artigo passa<strong>do</strong>, este artigo visa investigar<br />

o pensamento de Calvino em três administrações pactuais: mosaica, davídica<br />

e a nova aliança. A conclusão é que, para Calvino, após a queda existe apenas<br />

um pacto: o pacto da graça. Este, entretanto, é o des<strong>do</strong>bramento consecutivo<br />

<strong>do</strong> pacto abraâmico. Os pactos mosaico, davídico e a nova aliança constituem<br />

a progressiva revelação divina iniciada com os patriarcas.<br />

palavras-chave<br />

João Calvino; Teologia; Pacto; Pacto mosaico; Pacto davídico; Nova<br />

Aliança.<br />

148


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 149-152<br />

Resenha<br />

João Batista <strong>do</strong>s Santos Almeida*<br />

KALSBEEK, L. Contornos de uma filosofia cristã – Uma introdução<br />

ao pensamento de Herman Dooyeweerd. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.<br />

Para qualquer estudioso sério <strong>do</strong> pensamento reforma<strong>do</strong>, é irrelevante gostar<br />

ou não <strong>do</strong> jurista e filósofo holandês Herman Dooyeweerd – o fato é que ele<br />

deve ser minimamente conheci<strong>do</strong>. Guilherme de Carvalho, editor da primeira<br />

obra desse pensa<strong>do</strong>r publicada no Brasil, ressalta, na introdução, a existência<br />

de uma verdadeira “comunidade intelectual internacional e transdisciplinar”, 1<br />

atuante em áreas como artes, economia, política, linguística e teoria da história,<br />

física, hermenêutica e judaísmo, teoria jurídica, fenomenologia e filosofia<br />

crítica, teoria social e estética filosófica, entre outras, que testemunha tanto<br />

sobre a influência de Dooyeweerd como também sobre o fôlego e a fertilidade<br />

da sua filosofia. Além disso, o filósofo holandês até certo ponto influenciou<br />

o pensamento de grandes reforma<strong>do</strong>s, como Cornelius Van Til 2 e Francis<br />

Schaeffer, 3 entre outros.<br />

Dooyeweerd é um pensa<strong>do</strong>r profun<strong>do</strong> e difícil, sen<strong>do</strong> importante, para<br />

o entendimento da sua obra, que sejam bem esclareci<strong>do</strong>s, além das estruturas<br />

* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Teológico <strong>Presbiteriano</strong> Rev. José Manoel da<br />

Conceição e mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.<br />

1 DOOYEWEERD, H. No crepúsculo <strong>do</strong> pensamento. São Paulo: Hagnos, 2010, p. 14.<br />

2 Na introdução ao seu A Christian Theory of Knowledge (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed,<br />

1969, p. 50, 51), Van Til inclui Dooyeweerd na lista <strong>do</strong>s que o influenciaram no campo filosófico.<br />

Contu<strong>do</strong>, William Edgard afirmou, em 2003, que a história completa da relação entre Van Til e a filosofia<br />

de Amsterdã, especialmente com Dooyeweerd, “ainda não foi contada”. EDGARD, William (Org.). In:<br />

VAN TIL, Cornelius. Apologética cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 48, n. 2.<br />

3 Acerca da influência da obra de Dooyeweerd sobre Rookmaaker e a influência literária e cultural<br />

de Rookmaaker sobre Schaeffer, ver: AMORIM, R. O senhorio de Cristo e a redenção das artes. In: RA-<br />

MOS, Leonar<strong>do</strong>; CAMARGO, Marcel; AMORIM, Ro<strong>do</strong>lfo (Orgs). Fé cristã e cultura contemporânea.<br />

Viçosa, MG: Ultimato, 2009, p. 97-136, especialmente 105-109.<br />

149


Contornos de uma filosofia cristã<br />

maiores <strong>do</strong> seu pensamento, também seus muitos neologismos e alguns termos<br />

filosóficos conheci<strong>do</strong>s, mas que foram ressignifica<strong>do</strong>s em seus escritos. L.<br />

Kalsbeek enfrentou o desafio não só de entender o pensamento <strong>do</strong>oyeweerdiano,<br />

mas de explicá-lo em seus pontos fundamentais. E ele estava bem equipa<strong>do</strong><br />

para essa tarefa.<br />

Bernard Zylstra, editor das Obras Selecionadas de Dooyeweerd (que<br />

incluem o livro de Kalsbeek entre seus suplementos), apresenta as seguintes<br />

informações na introdução de Contornos, sobre o autor da obra:<br />

150<br />

Kalsbeek não é filósofo por profissão; ele foi professor e diretor de uma escola<br />

cristã de gramática por cinquenta anos até sua aposenta<strong>do</strong>ria. Ele é um pensa<strong>do</strong>r<br />

autodidata, que publicou um livro sobre Fé e Ciência, em 1962 e outro sobre<br />

Criação e Evolução em 1968, anteriores a este, de 1970. Eu penso que Kalsbeek<br />

escreveu o tipo de introdução a Dooyeweerd que o mun<strong>do</strong> externo ao território<br />

holandês necessita precisamente por não ser um filósofo profissional e, sim, um<br />

excelente educa<strong>do</strong>r que explica um sistema muito complexo de uma maneira<br />

pedagogicamente responsável, ou seja, passo a passo (p. 30).<br />

Kalsbeek esboça o básico da Filosofia da Ideia de Lei, como é conheci<strong>do</strong><br />

o pensamento de Dooyeweerd, fornecen<strong>do</strong> uma explicação lúcida e abrangente<br />

sobre os pontos essenciais dessa filosofia. Além <strong>do</strong> texto escrito pelo autor, a<br />

obra também inclui uma introdução sobre o contexto cultural em que o pensamento<br />

de Dooyeweerd se desenvolveu, escrita por Zylstra (p. 13-29), além<br />

de um glossário de termos e um índice de assuntos.<br />

O livro possui 38 capítulos relativamente curtos, distribuí<strong>do</strong>s ao longo<br />

das 220 páginas que constituem o corpo <strong>do</strong> livro (sem os paratextos) em português,<br />

numa média de pouco mais de cinco páginas para cada capítulo. O autor<br />

começa tratan<strong>do</strong> sobre a natureza da filosofia em si (cap. 1) e, na sequência,<br />

aborda inúmeros tópicos caros ao pensamento de Dooyeweerd: o coração humano<br />

(cap. 2), a Lei como limite entre Deus e a criação (cap. 7), as esferas de<br />

soberania (cap. 10), a relação sujeito-objeto (cap. 15), o processo de abertura<br />

cultural (cap. 18), as importantes questões <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> conhecimento (caps.<br />

20 e <strong>21</strong>), as estruturas da família, <strong>do</strong> casamento e <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> (caps. 28, 29 e 30)<br />

e a questão da encapse (caps. 36 e 37), dentre outros.<br />

Por todas as páginas de sua obra, Kalsbeek assume a postura de facilita<strong>do</strong>r<br />

ou media<strong>do</strong>r, procuran<strong>do</strong> explicar os conceitos básicos da filosofia cosmonômica.<br />

A abertura <strong>do</strong> capítulo 3 (Imanência e Transcendência), por exemplo, dá<br />

uma amostra <strong>do</strong> esforço didático empreendi<strong>do</strong> pelo autor:<br />

Muitas pessoas resistem ao estu<strong>do</strong> da filosofia assim que leem palavras estranhas,<br />

o que as convence de que ce<strong>do</strong> ou tarde se defrontarão com conceitos<br />

extremamente difíceis. De fato, as palavras podem soar estranhas e difíceis de<br />

pronunciar, mas os conceitos por trás delas são normalmente muito simples.<br />

Por exemplo, tomemos os <strong>do</strong>is termos filosóficos <strong>do</strong> título <strong>do</strong> capítulo (p. 46).


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 149-152<br />

Em sua escrita, como bom professor, Kalsbeek apresenta conceitos difíceis<br />

alternan<strong>do</strong>-os com exemplos, revelan<strong>do</strong> assim seu objetivo de elucidar<br />

ao máximo as questões, na maior parte das vezes dentro <strong>do</strong> próprio capítulo.<br />

Somente em alguns casos, devi<strong>do</strong> à profundidade de um assunto em particular,<br />

ele anuncia que dará um tratamento adicional em outra parte da obra.<br />

Independente disso, seu desejo de tornar claros os tópicos pode ser senti<strong>do</strong><br />

em cada página <strong>do</strong> livro.<br />

Contornos foi lança<strong>do</strong> originalmente em holandês (1970 4 ), quase sete<br />

anos antes da morte de Dooyeweerd. Uma obra dedicada ao esforço filosófico<br />

de um pensa<strong>do</strong>r ainda vivo (e, no caso <strong>do</strong> filósofo holandês, tão produtivo 5 ),<br />

tende naturalmente a ter, ao menos em certo grau, um caráter provisório. Um<br />

exemplo disso pode ser observa<strong>do</strong> no glossário da obra, que, embora excelente,<br />

necessita em muitos pontos ser robusteci<strong>do</strong>. 6 Kalsbeek revela consciência<br />

dessa limitação <strong>do</strong> seu trabalho ao admitir, no prefácio que escreveu para o<br />

lançamento da obra em inglês (1974), que Contornos oferece apenas “uma<br />

representação incompleta da obra de Dooyeweerd” (p. 7). 7<br />

Além da consciência <strong>do</strong>s seus limites, o autor admite haver questões no<br />

pensamento <strong>do</strong>oyeweerdiano que “não foram satisfatoriamente respondidas”<br />

(p. 6), especialmente no importante campo da epistemologia. Por isso, ele toma<br />

o cuida<strong>do</strong> de descrever sua afinidade com essa filosofia “mais em termos de<br />

uma pertença espiritual <strong>do</strong> que de aderência” (p. 6).<br />

Quanto à diagramação da obra em português, está excelente. Com um<br />

espaçamento maior entre os parágrafos, ela promove um efeito agradável<br />

na leitura, sen<strong>do</strong> ideal para aqueles que apreciam fazer anotações internas<br />

ou marginais. Continuo achan<strong>do</strong> que a editora Cultura Cristã devia a<strong>do</strong>tar a<br />

encadernação com capa dura em livros como Contornos, já que essa obra tem<br />

muito para se tornar leitura obrigatória e ser bastante manuseada em seminários<br />

e institutos bíblicos. Por último, senti falta da lista de obras recomendadas aos<br />

que desejam se aprofundar no pensamento <strong>do</strong>oyeweerdiano. Uma breve relação<br />

4 Título original: De Wijsbegeerte der Wetsidee: Proeve van een christelijke filosofie. Amsterdã:<br />

Buijten & Schipperheijn, 1970.<br />

5 Dooyeweerd foi editor, até sua morte, da revista Philosophia Reformata, fundada por ele em 1936.<br />

6 Atualmente, esse glossário, elabora<strong>do</strong> originalmente pelo filósofo Albert Wolters, foi enriqueci<strong>do</strong><br />

com outros tópicos pelo pastor e filósofo brasileiro Guilherme de Carvalho. Ele pode ser encontra<strong>do</strong><br />

no final da primeira obra de Dooyeweerd lançada no Brasil, No crepúsculo <strong>do</strong> pensamento (São Paulo:<br />

Hagnos, 2010). Com isso, não deprecio o glossário encontra<strong>do</strong> em Contornos; viso apenas informar aos<br />

leitores interessa<strong>do</strong>s sobre o progresso dessa filosofia, inclusive entre estudiosos brasileiros.<br />

7 Isso talvez explique o senti<strong>do</strong> da primeira palavra <strong>do</strong> subtítulo da obra em holandês, proeve,<br />

que carrega o senti<strong>do</strong> de espécime ou ensaio (VAN WELY, F. Prick. Van Goor’s English-Dutch and<br />

Dutch-English dictionary. New York: David Mckay Company, 1956, p. 84, 550), dan<strong>do</strong> mais a entender<br />

a ideia de amostragem <strong>do</strong> que sugere o termo inglês Contours (Contornos), que pode dar a impressão<br />

de algo acaba<strong>do</strong>, esboça<strong>do</strong>.<br />

151


Contornos de uma filosofia cristã<br />

delas consta na obra em holandês. 8 Há também uma bibliografia robusta em<br />

três línguas, selecionada por Zylstra e publicada na obra em inglês, 9 mas que<br />

por algum motivo não se encontra no texto em português. Certamente seria<br />

bom para to<strong>do</strong>s ver essa bibliografia publicada em edições futuras dessa obra.<br />

Encerro com uma nota de apreciação à Editora Cultura Cristã, pelo seu<br />

esforço na divulgação de importantes títulos visan<strong>do</strong> o benefício não só <strong>do</strong><br />

povo de Deus em geral, mas <strong>do</strong>s ministros reforma<strong>do</strong>s e estudantes da filosofia<br />

cristã em particular.<br />

8 Disponível em: http://www.reformationalpublishingproject.com/pdf_books/scanned_books_pdf/<br />

dewijsbegeerte derwetsidee.pdf, p. 289-292 Acesso em: 25 abr. 2016.<br />

9 KALSBEEK, L. Contours of a Christian philosophy – An introduction to Herman Dooyeweerd’s<br />

thought. Toronto: Wedge Publishing Foundation, 1975, p. 307-345. A bibliografia inclui publicações<br />

<strong>do</strong> próprio Dooyeweerd, obras favoráveis e contrárias ao seu pensamento, além de publicações sobre<br />

seus precursores (Groen van Prinsterer, Kuyper e Bavinck) e também uma lista de materiais sobre o<br />

transfun<strong>do</strong> religioso, cultural, social e histórico relaciona<strong>do</strong> à vida <strong>do</strong> filósofo.<br />

152


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 153-160<br />

Resenha<br />

Breno Mace<strong>do</strong> *<br />

KELLER, TIMOTHY. Preaching: Communicating Faith in an Age<br />

of Skepticism. New York: Viking/Penguin Ran<strong>do</strong>m House, 2015.<br />

Um <strong>do</strong>s grandes problemas que os prega<strong>do</strong>res enfrentam é a pretensão de<br />

pensar que depois que saíram <strong>do</strong> seminário não precisam mais aprender sobre<br />

pregação. Eles tendem a pensar que tu<strong>do</strong> o que precisam para ocupar o púlpito<br />

já foi adquiri<strong>do</strong> nos seus anos de treinamento na academia. Nada poderia estar<br />

mais longe da verdade. Apesar de o seminário oferecer ferramentas fundamentais<br />

para a construção <strong>do</strong> sermão, elas são equivalentes às rodinhas de um<br />

triciclo. Elas são suficientes para se começar a andar; entretanto, a destreza e o<br />

<strong>do</strong>mínio vêm apenas com a prática contínua e o amadurecimento progressivo<br />

<strong>do</strong> que foi aprendi<strong>do</strong>. Eis aí o motivo pelo qual a homilética, a principal função<br />

<strong>do</strong> presbítero <strong>do</strong>cente, precisa ser uma área de atenção constante em sua<br />

vida ministerial. Há duas maneiras simples que um prega<strong>do</strong>r pode utilizar para<br />

melhorar seus sermões: escutar com frequência outros prega<strong>do</strong>res melhores <strong>do</strong><br />

que ele e continuar a estudar literatura que trate sobre o assunto. É exatamente<br />

nesse aspecto que o livro Preaching, de Timothy Keller, se enquadra. De maneira<br />

relevante e clara, Keller vai além <strong>do</strong> programa básico de pregação <strong>do</strong>s<br />

seminários e leva à atenção <strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r moderno aspectos bíblicos e culturais<br />

que o farão melhorar em muito os seus sermões.<br />

Longe de ser um manual de como pregar, o principal foco <strong>do</strong> livro é<br />

oferecer uma teologia e prática de pregação que utilize teologia bíblica e que<br />

responda a aspectos filosóficos da modernidade. Aqueles que buscam um<br />

material que ensine os aspectos básicos da construção <strong>do</strong> sermão não serão<br />

atendi<strong>do</strong>s por esse livro a não ser pelas breves observações contidas em seu<br />

* Obteve o grau de M.Div. no Greenville Presbyterian Theological Seminary, o de Th.M. no Puritan<br />

Reformed Theological Seminary e é aluno de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> (Ph.D.) na University of Free State, África <strong>do</strong><br />

Sul, na área de teologia histórica. É pastor assistente na Igreja Presbiteriana Semear, em Brasília.<br />

153


Preaching: Communicating Faith in an Age of Skepticism<br />

apêndice. Nele, de maneira objetiva e sucinta, Keller oferece um excelente<br />

resumo daquilo que ele chama de “conjunto de aspectos essenciais irredutíveis<br />

de como pregar um bom sermão expositivo” (p. <strong>21</strong>3). 1 De acor<strong>do</strong> com Keller,<br />

esses aspectos essenciais, de forma resumida, são: (1) discernir o objetivo <strong>do</strong><br />

texto fazen<strong>do</strong> uma investigação das informações nele contidas e buscan<strong>do</strong><br />

a ideia principal sustentada por todas as outras ideias; (2) selecionar o tema<br />

principal <strong>do</strong> sermão que apresenta a ideia central <strong>do</strong> texto alinhada de forma<br />

específica aos ouvintes; (3) desenvolver um esboço relaciona<strong>do</strong> com o tema,<br />

que se encaixe com o texto e caminhe para um clímax; (4) enriquecer cada<br />

ponto com argumentos, ilustrações, exemplos e aplicações práticas (p. <strong>21</strong>4).<br />

Apesar das explicações claras e úteis fornecidas pelo autor nessa seção, ela de<br />

maneira alguma é suficiente para substituir um manual homilético. 2<br />

O livro contém 7 capítulos agrupa<strong>do</strong>s em 3 seções. A primeira seção contém<br />

3 capítulos e destina-se a esboçar uma teologia da pregação e a utilização<br />

de teologia bíblica na confecção de sermões. A segunda seção também tem 3<br />

capítulos e foca no engajamento entre o prega<strong>do</strong>r, a cultura e os ouvintes em<br />

particular. A última seção tem apenas um capítulo focan<strong>do</strong> na dependência<br />

<strong>do</strong> Espírito Santo para a execução <strong>do</strong> exercício homilético. O livro é bem<br />

distribuí<strong>do</strong> e, apesar de inicialmente o leitor poder ter a impressão de pouco<br />

equilíbrio entre estratégias homiléticas e dependência <strong>do</strong> Espírito, Keller trata<br />

tu<strong>do</strong> a seu tempo. A principal crítica ao livro diz respeito ao seu formato. A<br />

publica<strong>do</strong>ra escolheu colocar as notas de cada capítulo no final <strong>do</strong> livro ao<br />

invés de dispô-las no rodapé das páginas. Além <strong>do</strong> desconforto de ter que ir<br />

para o final <strong>do</strong> livro o tempo to<strong>do</strong>, o leitor desavisa<strong>do</strong> corre o sério risco de não<br />

dar a devida atenção a conteú<strong>do</strong>s muito importantes. Destacam-se as notas 2 e<br />

3 <strong>do</strong> capítulo 3, nas quais Keller oferece um excelente resumo das diferentes<br />

abordagens da teologia bíblica e como aplicá-las na interpretação <strong>do</strong> texto e na<br />

exposição. Também são dignas de atenção a nota 28 <strong>do</strong> capítulo 4, na qual Keller<br />

oferece uma minuciosa ilustração de como contextualizar sermões por meio da<br />

pregação de Jonathan Edwards durante seu perío<strong>do</strong> de missão aos índios, e a<br />

nota 20 <strong>do</strong> capítulo 6 em que o autor arrola detalhadamente os tipos de ouvintes<br />

que os prega<strong>do</strong>res precisam ter em mente na hora de preparar aplicações.<br />

O capítulo 1 destina-se a explicar o que é pregação e qual é a melhor<br />

maneira de fazê-la. Keller explica que, apesar <strong>do</strong>s vários tipos de pregação que<br />

alguns acadêmicos identificam, há apenas <strong>do</strong>is tipos: a expositiva e a tópica<br />

1 O livro ainda não está disponível na língua portuguesa. Todas as traduções são de autoria <strong>do</strong><br />

resenhista.<br />

2 Exemplos de excelentes manuais homiléticos em português são: CHAPELL, Bryan. Pregação<br />

cristocêntrica: restauran<strong>do</strong> o sermão expositivo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, e ROBINSON,<br />

Had<strong>do</strong>n W. Pregação bíblica: o desenvolvimento e a entrega de sermões expositivos. São Paulo: Shedd<br />

Publicações, 2002.<br />

154


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 153-160<br />

(p. 30). Para Keller ambas são úteis e devem ser usadas no contexto da igreja<br />

de acor<strong>do</strong> com a necessidade. O autor toma como base o discurso de Paulo<br />

no Areópago e afirma que, no julgamento <strong>do</strong> apóstolo, “não era apropria<strong>do</strong><br />

oferecer uma cuida<strong>do</strong>sa exposição da Bíblia para uma plateia que não apenas<br />

desacreditava da Bíblia, mas também era profundamente ignorante quanto a<br />

suas pressuposições mais básicas” (p. 30). Keller conclui que “toda pregação<br />

expositiva é parcialmente tópica” e que “qualquer sermão tópico que é fiel à<br />

Escritura consistirá de diversas ‘pequenas exposições’ de vários textos” (p. 31).<br />

Ele, então, oferece a seguinte definição de pregação expositiva:<br />

...fundamenta a mensagem no texto de tal maneira que to<strong>do</strong>s os pontos <strong>do</strong><br />

sermão são pontos <strong>do</strong> texto e enfoca as principais ideias <strong>do</strong> texto. Ela alinha<br />

a interpretação <strong>do</strong> texto com as verdades <strong>do</strong>utrinárias de toda a Bíblia (sen<strong>do</strong><br />

assim sensível à teologia sistemática). E ela sempre posiciona a passagem dentro<br />

da narrativa bíblica, mostran<strong>do</strong> como Cristo é o cumprimento final <strong>do</strong> tema <strong>do</strong><br />

texto (sen<strong>do</strong> assim sensível à teologia bíblica) (p. 32).<br />

O restante <strong>do</strong> capítulo se propõe a persuadir o leitor à prática da pregação<br />

expositiva, apresentan<strong>do</strong> seis argumentos: (1) essa é a melhor maneira de<br />

apresentar sua convicção de que toda a Bíblia é verdadeira; (2) dessa maneira os<br />

ouvintes claramente reconhecem que a autoridade <strong>do</strong> que se comunica não é <strong>do</strong><br />

prega<strong>do</strong>r, mas <strong>do</strong> próprio Deus falan<strong>do</strong> na Bíblia; (3) a pregação expositiva faz<br />

com o que o próprio Deus estabeleça a agenda de sua igreja; (4) ela também<br />

faz com o que texto estabeleça a agenda <strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r, evitan<strong>do</strong> a influência de<br />

suas preferências; (5) ensina aos ouvintes como eles devem ler e interpretar<br />

suas Bíblias; (6) permite a clara visualização <strong>do</strong> tema único da Escritura. Keller<br />

elabora um excelente argumento em favor da pregação expositiva; entretanto,<br />

sua visão intercambiável dessa modalidade de sermão com a pregação tópica não<br />

parece convencer. Poder-se-ia argumentar que o que Paulo fez no Areópago<br />

não foi exatamente um sermão, e sim uma palestra, um discurso, um tipo de<br />

aula. Quan<strong>do</strong> se pensa em pregação, a associação <strong>do</strong> exercício com o culto<br />

público e com a comunidade <strong>do</strong> pacto reunida no Dia <strong>do</strong> Senhor é inevitável.<br />

A pergunta que precisa ser respondida é: a pregação tópica é o exemplo bíblico<br />

daquilo que acontecia nesse tipo de contexto?<br />

No capítulo 2, Keller lembra que o evangelho precisa estar sempre presente<br />

em qualquer sermão. Segun<strong>do</strong> ele: “Todas as vezes que você expõe um<br />

texto bíblico, não terá termina<strong>do</strong> a não ser que demonstre como ele nos mostra<br />

que não podemos salvar a nós mesmo e que apenas Jesus pode fazê-lo” (p. 48).<br />

Em outro lugar, Keller explica que pregar o evangelho é “pregar a Cristo e sua<br />

obra e graça salvífica” (p. 66). Dois grandes inimigos ameaçam o prega<strong>do</strong>r no<br />

cumprimento dessa obrigação: o legalismo e o antinomismo. Basean<strong>do</strong>-se em<br />

155


Preaching: Communicating Faith in an Age of Skepticism<br />

uma recente obra de autoria <strong>do</strong> renoma<strong>do</strong> Sinclair Ferguson, 3 Keller discorre<br />

sobre esses <strong>do</strong>is perigos afirman<strong>do</strong> que são “gêmeos não idênticos de um<br />

mesmo ventre” (p. 52). Legalismo é<br />

... bem mais <strong>do</strong> que uma crença consciente de que “eu posso ser salvo por<br />

minhas boas obras”. É uma teia de atitudes <strong>do</strong> coração e da personalidade. É o<br />

pensamento de que o amor de Deus por nós é condiciona<strong>do</strong> a algo que podemos<br />

ser ou fazer. É a atitude na qual eu ofereço certas coisas – minha bondade ética,<br />

minha esquiva <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> delibera<strong>do</strong>, minha fidelidade à Bíblia e à igreja – que<br />

dão apoio à obra de Cristo e contribuem para que Deus seja benevolente para<br />

comigo (p. 49-50).<br />

Por outro la<strong>do</strong>, antinomismo é<br />

... mais <strong>do</strong> que apenas a crença formal de que “eu não preciso obedecer a lei de<br />

Deus”. É pensar que, uma vez que Deus me ama independentemente da minha<br />

folha corrida, ele não se preocupa com o quão moralmente ou imoralmente eu<br />

vivo. É o pensamento de que “Deus me aceita <strong>do</strong> jeito que sou; ele apenas deseja<br />

que eu seja eu mesmo” (p. 50).<br />

Apesar de serem extremos opostos, Keller identifica que ambas as posições<br />

têm a mesma raiz: “Tanto para o legalista quan<strong>do</strong> para o antinomista, a<br />

obediência à lei é simplesmente a maneira de receber coisas de Deus, não uma<br />

maneira de ter Deus, nem uma maneira de parecer-se, conhecer, deleitar-se e<br />

amá-lo por ele mesmo” (p. 55). Sen<strong>do</strong> assim, a maneira mais ineficaz de combater<br />

um desses <strong>do</strong>is erros é tentar eliminar um com o outro. A única saída é<br />

pregar o evangelho no qual o amor de Deus é revela<strong>do</strong> aos peca<strong>do</strong>res por meio<br />

da perfeita obediência de Cristo, e o amor de Deus revela<strong>do</strong> em Cristo é o que<br />

leva peca<strong>do</strong>res a responderem em obediência.<br />

O capítulo 3 é dedica<strong>do</strong> a incentivar e demonstrar a necessidade e o valor<br />

da teologia bíblica aplicada à pregação. O prega<strong>do</strong>r precisa estar atento a<br />

como a passagem que será pregada se encaixa de uma maneira mais ampla no<br />

contexto canônico. Keller propõe seis maneiras diferentes de como Cristo pode<br />

ser prega<strong>do</strong> em qualquer texto usan<strong>do</strong> a teologia bíblica. A primeira maneira<br />

é pregar Cristo através de cada gênero ou seção da Bíblia. Assim, cada livro é<br />

analisa<strong>do</strong> à luz de sua posição no progresso da história redentiva, buscan<strong>do</strong><br />

identificar aquilo que está sen<strong>do</strong> revela<strong>do</strong> acerca <strong>do</strong> Messias espera<strong>do</strong>. A segunda<br />

maneira é pregar Cristo através de cada tema da Escritura. Assuntos como<br />

pacto, reino, terra, descanso, julgamento de justiça, presença de Deus, dentre<br />

outros, são temas que estão presentes em toda a Bíblia e se desenvolvem em<br />

3 FERGUNSON, Sinclair. The whole Christ: legalism, antinomianism, and Gospel assurance –<br />

Why the Marrow Controversy still matters. Illinois: Crossway, 2016.<br />

156


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 153-160<br />

torno da expectativa messiânica. A terceira maneira é pregar Cristo através <strong>do</strong>s<br />

principais personagens bíblicos. Ao se deparar com figuras como Adão, Abraão,<br />

Jacó, Moisés, Davi e Jonas, o prega<strong>do</strong>r precisar estar pronto para identificar<br />

as conexões entre eles e Cristo. A quarta maneira é pregar Cristo através da<br />

tipologia bíblica, figuras e imagens que simbolizam e apontam para Jesus como<br />

seu cumprimento. A circuncisão, a cordeiro pascoal, a serpente de bronze e a<br />

árvore da vida são exemplos de imagens que encontram seu significa<strong>do</strong> maior<br />

cumpri<strong>do</strong> em Cristo. A quinta maneira de ser pregar a Cristo é por meio das<br />

várias histórias de libertação encontradas na Bíblia. Aqui o prega<strong>do</strong>r precisa<br />

estabelecer conexões entre essas histórias e obra redentora de Cristo. Como um<br />

exemplo, Keller presenteia os leitores com uma rica análise sobre o episódio<br />

<strong>do</strong> confronto entre Davi e Golias. Contrarian<strong>do</strong> a aplicação comumente feita<br />

pelos prega<strong>do</strong>res que relaciona Davi e os ouvintes na tentativa de estimulá-<br />

-los a vencerem seus gigantes, Keller afirma que “até que eu veja que Jesus<br />

combateu os verdadeiros gigantes por mim, jamais terei a coragem de lutar<br />

contra os gigantes comuns da vida (sofrimento, decepções, falhas, críticas,<br />

dificuldades)”. É primeiramente Cristo quem deve ser apresenta<strong>do</strong> por meio<br />

dessa narrativa. Ele e sua perfeita obra redentora. Keller conclui:<br />

Se eu considerar Davi simplesmente como meu exemplo, a história nunca me<br />

ajudará a lutar contra falhas/gigantes. Mas se eu ver Davi apontan<strong>do</strong> para Jesus<br />

como meu substituto, cuja vitória é imputada a mim, então eu posso ficar de pé<br />

perante a falha/gigante (p. 84).<br />

Keller conclui esse capítulo propon<strong>do</strong> uma última maneira de se pregar<br />

Cristo: por instinto. A ideia é que quanto mais o prega<strong>do</strong>r <strong>do</strong>mina a cinco<br />

primeiras maneiras de encontrar Cristo na Bíblia ele se torna mais sensível<br />

ao conteú<strong>do</strong> e instintivamente começa a enxergar Cristo onde antes não o<br />

encontrava.<br />

O capítulo 4 oferece ao leitor uma boa introdução acerca da interação<br />

entre o prega<strong>do</strong>r e a cultura. Keller explica que vivemos em dias de crescente<br />

indiferença à religião. Não se trata de pessoas que necessariamente são hostis<br />

à fé, mas aquelas que “não veem a necessidade de explorar possíveis soluções<br />

religiosas para qualquer um <strong>do</strong>s seus problemas” (p. 94). Keller então propõe<br />

que ao mesmo tempo em que a pregação continua sen<strong>do</strong> o meio relevante para<br />

comunicar o evangelho mesmo diante desse cenário, o prega<strong>do</strong>r precisa contextualizar<br />

sua pregação para a cultura na qual se encontra. Paulo é o exemplo<br />

para o qual Keller apela. Ele explica que ao pregar em Atenas o apóstolo utilizou<br />

vocabulário e temas apropria<strong>do</strong>s e de interesse daquela cultura específica<br />

na busca por persuasão (p. 100). Outro exemplo explora<strong>do</strong> por Keller é o de<br />

Jonathan Edwards, que mu<strong>do</strong>u sua linguagem e ilustrações para se adequar<br />

aos índios para quem pregou no seu perío<strong>do</strong> de missões (p. 101-103). Para ser<br />

157


Preaching: Communicating Faith in an Age of Skepticism<br />

bem-sucedi<strong>do</strong> nesse processo de contextualização, Keller sugere que o prega<strong>do</strong>r<br />

precisa utilizar um vocabulário acessível e bem explica<strong>do</strong>. Ele também<br />

deve buscar autoridades que são respeitadas pelos ouvintes seculares e que ao<br />

mesmo tempo corroboram com o seu argumento. Também precisa ser profun<strong>do</strong><br />

conhece<strong>do</strong>r das objeções das dúvidas modernas contra o cristianismo. De<br />

acor<strong>do</strong> com Keller, também é necessário interagir com as várias “narrativas<br />

culturais” existentes no nosso meio. Ele aplica essa nomenclatura ao grupo de<br />

ideias que são tidas como “verdades universais” pela cultura moderna: “to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> tem direito a ter sua própria opinião” ou “você tem que ser você mesmo”<br />

(p. 115). Keller sugere que o prega<strong>do</strong>r precisa interagir com essas verdades e<br />

mostrar que o Cristianismo é o que melhor as explica ou o que tem melhores<br />

respostas a oferecer para os desafios que surgem a partir delas. O objetivo é<br />

mostra na pregação que “o evangelho não é apenas a maneira pela qual somos<br />

salvos, mas também é sempre a solução para qualquer problema e a maneira<br />

de avançar em to<strong>do</strong>s os estágios da vida cristã” (p. 119).<br />

Interagir com a cultura é importante, mas não é o suficiente. É necessário<br />

entender a filosofia corrente da pós-modernidade. O capítulo 5 é uma ótima<br />

introdução ao secularismo e aos seus principais representantes e combatentes.<br />

Um <strong>do</strong>s principais benefícios desse capítulo é apresentar ao leitor o filósofo<br />

Charles Taylor e o teólogo James K. A. Smith. Por meio da pena desses homens<br />

o pensamento secularista da modernidade tem si<strong>do</strong> desafia<strong>do</strong> e desmascara<strong>do</strong>. 4<br />

Keller explica que a era pós-moderna “é marcada pela perda da crença de que<br />

podemos alcançar uma ordem racional e controlável, ou de chegarmos a certezas<br />

de qualquer tipo que seja” (p. 122). Sen<strong>do</strong> essa a disposição filosófica<br />

da modernidade, a religião se torna a sua pior inimiga. Como interagir, então,<br />

com ouvintes modernos? Keller propõe que o prega<strong>do</strong>r precisa conhecer<br />

bem as principais narrativas culturais que expressam o pensamento secular e<br />

abordá-las durante o sermão, questionan<strong>do</strong>-as e mostran<strong>do</strong> o evangelho como<br />

a única alternativa possível. São elas: (1) a narrativa da racionalidade (crê<br />

que o mun<strong>do</strong> natural é a única realidade e que há causas físicas e explicações<br />

racionais para todas as coisas); (2) a narrativa histórica (a suposição de que tu<strong>do</strong><br />

o que é antigo deve ser rejeita<strong>do</strong>); (3) a narrativa da sociedade (o propósito da<br />

ordem social é promover a liberdade <strong>do</strong> indivíduo para viver da maneira como<br />

quiser, livre de qualquer empecilho desde que não prejudique a liberdade de<br />

outrem de viver como quer); (4) a narrativa da justiça ou da moralidade (os<br />

seres humanos são agentes morais e responsáveis, entretanto eles determinam<br />

suas próprias normas de acor<strong>do</strong> com suas próprias escolhas); (5) a narrativa<br />

da identidade (a dignidade humana é baseada no valor que cada indivíduo dá<br />

a si mesmo à medida que expressa e satisfaz a sua vontade) (p. 129-133).<br />

4 TAYLOR, Charles. A secular age. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2007.<br />

SMITH, James K. A. How (not) to be secular: Reading Charles Taylor. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2014.<br />

158


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 153-160<br />

Keller propõe que o prega<strong>do</strong>r moderno precisa abordar essas narrativas em seus<br />

sermões, na medida em que o texto bíblico que está sen<strong>do</strong> prega<strong>do</strong> o permitir,<br />

desconstruin<strong>do</strong>-as, mostran<strong>do</strong> suas inconsistências e oferecen<strong>do</strong> o evangelho<br />

como a única resposta.<br />

Até este ponto o leitor pode se sentir um pouco desestimula<strong>do</strong>, pensan<strong>do</strong><br />

que Keller enfoca apenas os ouvintes não-crentes. Mas será esse o principal<br />

grupo com o qual o prega<strong>do</strong>r interage <strong>do</strong>minicalmente? Não deveria o prega<strong>do</strong>r<br />

estar pronto para pregar a Bíblia para aqueles que creem? Os <strong>do</strong>is últimos<br />

capítulos <strong>do</strong> livro suprem essa possível lacuna e levam o leitor de volta à pregação<br />

aplicada ao povo de Deus, a igreja. No capítulo 6, Keller trata sobre a<br />

aplicação <strong>do</strong> sermão ao coração <strong>do</strong> ouvinte. Ele explica que o conceito bíblico<br />

de coração é bem diferente daquele ofereci<strong>do</strong> pelos gregos. “Na Bíblia”, afirma<br />

Keller, “o coração é a sede da mente, da vontade e das emoções, todas juntas”<br />

(p. 158). Portanto, conclui o autor,<br />

... tu<strong>do</strong> aquilo que atrai a confiança e o amor <strong>do</strong> coração controla os sentimentos<br />

e o comportamento. Aquilo que o coração mais deseja a mente entende como<br />

razoável, as emoções entendem como valioso e a vontade aceita como realizável<br />

(p. 159).<br />

O grande objetivo <strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r precisa ser atingir o coração. Para tanto,<br />

Keller resgata o pensamento de Jonathan Edwards na sua obra clássica As<br />

Afeições Religiosas. 5 “Afeições são as inclinações de uma pessoa como um<br />

to<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> percebe a beleza e a excelência de um objeto” (p. 160). Como,<br />

então, provocar as afeições <strong>do</strong>s ouvintes? Keller afirma que o prega<strong>do</strong>r pode<br />

fazer isso pregan<strong>do</strong> das seguintes maneiras: afeiçoadamente, imaginativamente,<br />

assombrosamente, memoravelmente, cristocentricamente e praticamente. O<br />

restante <strong>do</strong> capítulo é dedica<strong>do</strong> a expandir cada uma dessas formas.<br />

Keller conclui o livro apontan<strong>do</strong> ao prega<strong>do</strong>r a sua dependência no<br />

Espírito Santo para que seus sermões sejam eficazes. A preparação pessoal é<br />

de crucial importância, “mas para o ato da pregação em particular existe algo<br />

ainda mais central para provocar persuasão: a percepção <strong>do</strong>s seus ouvintes <strong>do</strong><br />

Espírito Santo trabalhan<strong>do</strong> em você e através de você” (p. 192). Aqui a ênfase<br />

de Keller é em quanto, primeiramente, os sermões afetam o prega<strong>do</strong>r. O quanto<br />

eles são transforma<strong>do</strong>s pelo Espírito ao compor seus próprios sermões. Essa<br />

transformação é comunicada de duas maneiras: por meio <strong>do</strong> que os prega<strong>do</strong>res<br />

fazem (magnificar a Cristo e não somente mostrar seus <strong>do</strong>ns de oratória)<br />

e <strong>do</strong> que eles são (mais <strong>do</strong> que hábeis, eles são transforma<strong>do</strong>s pelo Espírito<br />

<strong>do</strong> Cristo que eles pregam). Aqui Keller lança um alerta muito importante:<br />

5 EDWARDS, Jonathan. Religious affections. The Works of Jonathan Edwards, vol. 2. New Haven<br />

e Londres: Yale University Press, 2009.<br />

159


Preaching: Communicating Faith in an Age of Skepticism<br />

os <strong>do</strong>ns de um prega<strong>do</strong>r podem facilmente esconder a ausência da ação <strong>do</strong><br />

Espírito em suas vidas. “Dons são comumente confundi<strong>do</strong>s com maturidade<br />

espiritual, não apenas pelos ouvintes, mas até mesmo pelos ora<strong>do</strong>res”, afirma<br />

Keller. Eis o motivo pelo qual tantos ministros bem-sucedi<strong>do</strong>s em seu trabalho<br />

são apanha<strong>do</strong>s em falhas morais terríveis (p. 195). O prega<strong>do</strong>r, então, precisa<br />

buscar a piedade aos pés <strong>do</strong> Espírito. Para pregar ao coração é preciso pregar<br />

<strong>do</strong> coração e isso somente é possível quan<strong>do</strong> o prega<strong>do</strong>r experimenta pessoalmente<br />

a mensagem da Escritura pelo poder <strong>do</strong> Espírito. Essa espiritualidade<br />

pessoal é expressa para os ouvintes naquilo que Keller chama de subtexto. Em<br />

contraste com o texto, que é aquilo registra<strong>do</strong> na Bíblia, e o contexto, que é a<br />

realidade <strong>do</strong>s ouvintes, o subtexto “é a mensagem por baixo da mensagem. É<br />

o senti<strong>do</strong> real e deseja<strong>do</strong> (consciente ou inconscientemente) da mensagem, o<br />

qual é mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o senti<strong>do</strong> superficial das palavras” (p. 201). Há<br />

vários tipos de subtexto: o de reforço (cujo intento é afirmar a identidade e<br />

o senso de participação em um da<strong>do</strong> grupo); o de desempenho (cujo intento<br />

é entregar uma mensagem com perfeição e afirmar o prega<strong>do</strong>r como alguém<br />

que deve ser ouvi<strong>do</strong>); e o de treinamento (cujo objetivo é aumentar o conhecimento<br />

<strong>do</strong>s ouvintes para que eles vivam de certa maneira) (p. 204). Entretanto,<br />

o subtexto mais completo, e aquele que precisa ser busca<strong>do</strong> pelo prega<strong>do</strong>r, é o<br />

de a<strong>do</strong>ração. Seu objetivo é alterar aquilo em que o coração <strong>do</strong>s ouvintes mais<br />

coloca suas afeições. Esse subtexto somente está presente quan<strong>do</strong> o prega<strong>do</strong>r<br />

é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de verdadeira piedade.<br />

Você “sente Cristo em seu coração” à medida que prega? Você, de certa forma,<br />

medita sobre ele e o contempla durante o ato da pregação? Você o a<strong>do</strong>ra à medida<br />

que fala sobre ele ser digno de ser a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>? Você se humilha ao falar <strong>do</strong><br />

seu próprio peca<strong>do</strong>? A resposta será bastante evidente para qualquer ouvinte<br />

atencioso. E essas coisas serão realidade em sua pregação somente se você<br />

regularmente as cultiva em sua rotina diária de oração e meditação, além da<br />

tarefa da preparação <strong>do</strong> sermão (p. 205).<br />

To<strong>do</strong> prega<strong>do</strong>r precisa continuar aprenden<strong>do</strong> a pregar. A necessidade de<br />

desenvolver a arte homilética nunca morre. Preaching, de Timothy Keller, é um<br />

ótimo lembrete disso. O livro é uma ferramenta indispensável para prega<strong>do</strong>res<br />

antigos aprenderem novos conceitos e para prega<strong>do</strong>res jovens se familiarizarem<br />

com as necessidades contemporâneas. De uma maneira clara, objetiva<br />

e interessante o autor consegue comunicar princípios altamente relevantes<br />

que, se aplica<strong>do</strong>s, farão a igreja experimentar as Escrituras de forma viva e<br />

experimental, e desafiarão a sociedade moderna, cética e secular a encarar o<br />

cristianismo como a única maneira de sua vida e existência terem verdadeiro<br />

senti<strong>do</strong>.<br />

160


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 161-171<br />

Resenha<br />

Allen Porto *<br />

ROOKMAAKER, H. R. A arte moderna e a morte de uma cultura.<br />

Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2015.<br />

O que a arte tem a dizer sobre o mun<strong>do</strong> à sua volta? Existe a possibilidade<br />

de se encarar as expressões artísticas como instrumentos de entretenimento,<br />

desconecta<strong>do</strong>s da realidade e cria<strong>do</strong>s para oferecer mun<strong>do</strong>s paralelos, os<br />

quais o aprecia<strong>do</strong>r habitará em seus momentos de fuga. Mas, sem negar que<br />

a arte pode criar universos imaginários que permitem a ruptura com traços da<br />

realidade presente, também existe a possibilidade de a arte perscrutar e revelar<br />

o “agora”, tornan<strong>do</strong> palpáveis os pressupostos e a cosmovisão de um artista e<br />

de uma época. Nessa segunda perspectiva, as expressões artísticas funcionam<br />

como um rico campo de pesquisa para quem deseja conhecer os homens <strong>do</strong><br />

seu tempo e as ideias vigentes na sociedade.<br />

Este é o caminho a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por Hans Rookmaaker para demonstrar a crise<br />

da cultura contemporânea. Como se chegou ao presente esta<strong>do</strong> de coisas? Por<br />

meio das artes, Rookmaaker demonstrará a história das ideias e o seu impacto<br />

na vida humana, bem como os desafios para o cristianismo.<br />

Mas quem foi Rookmaaker? O nome se tornou mais popular a partir de<br />

uma música composta pelo grupo Palavrantiga. Cristãos brasileiros <strong>do</strong>s mais<br />

diferentes tons <strong>do</strong>utrinários ouviram e cantaram “eu leio Rookmaaker…”,<br />

talvez sem muita noção <strong>do</strong> homem por trás <strong>do</strong> nome.<br />

Henderik Roelof Rookmaaker, ou “Hans”, como era chama<strong>do</strong> pelos amigos,<br />

nasceu na cidade de Haia, na Holanda, em 27 de fevereiro de 1922. Era o<br />

terceiro filho, com duas irmãs mais velhas. Passou a infância na região sul das<br />

Índias Holandesas, que, após a independência, vieram a se chamar In<strong>do</strong>nésia.<br />

* Mestre em Teologia (S.T.M.) pelo <strong>Centro</strong> <strong>Presbiteriano</strong> de Pós-Graduação <strong>Andrew</strong> <strong>Jumper</strong>;<br />

pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana <strong>do</strong> Renascença, em São Luís, Maranhão.<br />

161


A arte moderna e a morte de uma cultura<br />

Na década de 1930, sua família retornou à Holanda, para ali viver definitivamente.<br />

Rookmaaker obteve formação técnica e se formou, em 1939, como<br />

cadete naval <strong>do</strong> exército holandês. No ano seguinte, a Holanda foi invadida<br />

pela Alemanha sob Hitler. Rookmaaker tinha um relacionamento com Hendrika<br />

Beatrix Spetter, ou Riki, uma judia. Em 1941, Hans foi preso por seis meses<br />

e meio, por estar com literatura considerada “antialemã”. Depois disso, já em<br />

1942, foi novamente deti<strong>do</strong> e envia<strong>do</strong>, junto a outros prisioneiros de guerra, para<br />

um campo de concentração na região de Nuremberg, na Bavária. Foi durante<br />

esse perío<strong>do</strong> que Rookmaaker experimentou sua conversão ao cristianismo.<br />

Até então, em toda a sua criação, a religião não tinha si<strong>do</strong> algo importante.<br />

Hans seguiu se comunican<strong>do</strong> com Riki através de cartas, mas ainda em 1942<br />

a comunicação foi rompida. Ao retornar à Holanda, Rookmaaker procurou sua<br />

amada, apenas para descobrir, posteriormente, que ela e sua família haviam<br />

si<strong>do</strong> enviadas ao campo de extermínio de Auschwitz. 1<br />

Hans foi converti<strong>do</strong> mediante a leitura da Bíblia na solidão de sua prisão.<br />

Transferi<strong>do</strong> para Stanislaw, na atual Ucrânia, conheceu, em 1944, o capitão<br />

Johan Meekes. Este atuou como mentor e discipula<strong>do</strong>r <strong>do</strong> jovem, ajudan<strong>do</strong>-o<br />

na compreensão da Bíblia e apresentan<strong>do</strong> para ele a filosofia cosmonômica. 2<br />

Meekes havia estuda<strong>do</strong> com Herman Dooyeweerd e Dirk Vollenhoven, funda<strong>do</strong>res<br />

e expoentes da filosofia reformacional (outro termo que designa a filosofia<br />

cosmonômica). Isso determinou uma mudança na vida <strong>do</strong> jovem. Liberto em<br />

1945, dedicou-se ao estu<strong>do</strong> das artes, trilhan<strong>do</strong> uma carreira acadêmica. Veio<br />

a se tornar professor <strong>do</strong> departamento de História da Arte, na Universidade<br />

Livre de Amsterdã.<br />

Rookmaaker se tornou um expoente da aplicação da filosofia cosmonômica<br />

no campo das artes. Sua atuação como acadêmico demonstrou que o<br />

1 Para informações adicionais sobre Hans Rookmaaker, ver: AMORIM, Ro<strong>do</strong>lfo. O senhorio<br />

de Cristo e a redenção das artes: um olhar sobre a vida, obra e pensamento de Hans Rookmaaker.<br />

In: AMORIM, Ro<strong>do</strong>lfo et al. Fé cristã e cultura contemporânea: cosmovisão cristã, igreja local e<br />

transformação integral. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2009, p. 97-135; GASQUE, Laurel. Rookmaaker:<br />

arte e mente cristã. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2012; e GASQUE, Laurel. H. R. (Hans)<br />

Rookmaaker: art historian and reformational thinker. Disponível em: http://www.artway.eu/content.<br />

php?id=695&lang=en&action=show. Acesso em: 22 abr. 2016.<br />

2 O termo filosofia cosmonômica vem da obra “A filosofia da ideia de lei”, publicada originalmente<br />

por Herman Dooyeweerd, em holandês, em 1935-36. A tradução para a língua inglesa trouxe o título<br />

“Uma nova crítica <strong>do</strong> pensamento teórico”. Segun<strong>do</strong> Andree Troost, pastor e professor na Universidade<br />

Livre de Amsterdã, “a filosofia cristã conhecida pelo nome de ‘filosofia reformacional’ é definida como<br />

um sistema filosófico distinto por seu ponto de partida na fé cristã e pelo caráter antropocêntrico de sua<br />

perspectiva da realidade”. Ver a introdução de Guilherme de Carvalho à primeira obra de Dooyeweerd<br />

publicada no Brasil: DOOYEWEERD, Herman. No crepúsculo <strong>do</strong> pensamento ocidental: estu<strong>do</strong>s sobre<br />

a pretensa autonomia <strong>do</strong> pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010. p.10; TROOST, Andree. What<br />

is reformational philosophy? An introduction to the cosmonomic philosophy of Herman Dooyeweerd.<br />

Grand Rapids, MI: Paideia Press, 2012, p. 2-3.<br />

162


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 161-171<br />

cristianismo estimula o rigor intelectual. Para além <strong>do</strong> trabalho da academia,<br />

Rookmaaker iniciou o L’Abri da Holanda, atuan<strong>do</strong> intensamente em hospitalidade,<br />

evangelização e discipula<strong>do</strong>. Faleceu em 13 de março de 1977, ten<strong>do</strong><br />

deixa<strong>do</strong> um grande lega<strong>do</strong>. Exemplo disso é A Arte Moderna e a Morte de uma<br />

Cultura, publica<strong>do</strong> em 1970. O livro se tornou um best-seller e foi escolhi<strong>do</strong><br />

pelo jornal britânico The Observer como um <strong>do</strong>s melhores livros daquele ano.<br />

Esse artigo também foi publica<strong>do</strong> na revista Esquire em 1971.<br />

O que diz o livro? A autoridade estabelecida de Rookmaaker no campo<br />

das artes convida o observa<strong>do</strong>r cristão a ouvir a sua mensagem. Em A Arte<br />

Moderna e a Morte de uma Cultura, Rookmaaker define um caminho para<br />

compreender o presente esta<strong>do</strong> de coisas, um méto<strong>do</strong> para apreciar as artes e<br />

um chama<strong>do</strong> para os cristãos se engajarem no contexto cultural.<br />

Logo na introdução, a meta é apresentada: “Meu objetivo neste livro é<br />

mostrar a relação entre a grande revolução cultural <strong>do</strong> nosso tempo e o espírito<br />

geral da época”, afirma o autor (p. 19). O programa é complementa<strong>do</strong> no<br />

início <strong>do</strong> primeiro capítulo: “O objetivo deste livro é discutir a arte moderna,<br />

seu significa<strong>do</strong> e sua relação com o cenário cultural contemporâneo em geral”<br />

(p. <strong>21</strong>). A tese subjacente, portanto, é que a arte não é um esforço ingênuo e<br />

desconecta<strong>do</strong> <strong>do</strong> campo das ideias e cosmovisões; pelo contrário, existe uma<br />

relação fundamental entre a arte e o espírito da época. Para cumprir o seu<br />

projeto, Rookmaaker escolhe um caminho histórico. Sua trajetória na obra<br />

revelará um passeio pelas escolas artísticas e movimentos ao longo <strong>do</strong>s séculos,<br />

demonstran<strong>do</strong> as etapas pelas quais o pensamento humano passou, e suas<br />

implicações para o campo artístico.<br />

Inicialmente, em “A mensagem no meio” (p. <strong>21</strong>), Rookmaaker busca<br />

demonstrar que, por meio de tema e técnica (qualidades artísticas), as obras<br />

de arte oferecem “uma visão particular da realidade, uma filosofia” (p. 31). A<br />

tese fundamental <strong>do</strong> capítulo pretende demistificar a visão da arte como mera<br />

cópia da natureza, destituída de pressupostos nortea<strong>do</strong>res. O foco de Rookmaaker<br />

está na pintura, e é comentan<strong>do</strong> várias peças deste tipo de arte que ele<br />

sustenta a sua proposta.<br />

Aqueles que pensam que uma pintura deve ser uma réplica da natureza para<br />

ser realista estão engana<strong>do</strong>s: a arte nunca imita a natureza, mas sempre retrata<br />

a realidade de uma forma humana. Isso significa que essa pintura não imita a<br />

natureza como faria uma câmera, mas representa uma experiência humana,<br />

uma interpretação humana, uma percepção e uma emoção <strong>do</strong> que é a verdade<br />

sobre a realidade. Fala de uma forma artística sobre a realidade, como fazem<br />

todas as pinturas.<br />

No seu tour pela história da arte, o autor holandês inicia comentan<strong>do</strong> a<br />

arte antiga de Duccio di Buoninsegna, um pintor de ícones, e segue comentan<strong>do</strong><br />

a arte <strong>do</strong> pré-iluminismo, como na Renascença, Reforma e Contrarreforma.<br />

163


A arte moderna e a morte de uma cultura<br />

Pintores como Rubens, Rembrandt, Jan Van Goyen, Poussin e Jan Steen figuram<br />

entre os artistas não apenas comenta<strong>do</strong>s, como também ilustra<strong>do</strong>s por<br />

meio da inserção de suas pinturas ao longo <strong>do</strong> texto.<br />

O roteiro de Rookmaaker segue no senti<strong>do</strong> de demonstrar as etapas cumpridas<br />

para se chegar ao presente esta<strong>do</strong> de coisas. No segun<strong>do</strong> capítulo, “As<br />

raízes da cultura contemporânea” (p. 39), o holandês providencia uma série<br />

de conceitos importantes para se discernir o fluxo da história. Ele identifica<br />

o problema fundamental <strong>do</strong> afastamento <strong>do</strong>s cristãos em relação às artes e<br />

rastreia tal postura no curso <strong>do</strong> tempo. Aqui o gnosticismo e o misticismo são<br />

anuncia<strong>do</strong>s como experiências de fragmentação da realidade, bem como o<br />

dualismo natureza e graça. Percebe-se, neste ponto, a influência da filosofia<br />

reformacional sobre a compreensão de Rookmaaker, pois o pano de fun<strong>do</strong><br />

para a identificação de tais conceitos são os motivos religiosos básicos identifica<strong>do</strong>s<br />

por Dooyeweerd. 3 Rookmaaker demonstra como os dualismos causam<br />

conflitos na interpretação e interação com a realidade, e apresenta a atitude da<br />

Reforma como uma postura de integração. O impacto da Reforma produziu<br />

consequências para toda a Europa.<br />

A grandeza e a plenitude da cultura <strong>do</strong> século 17, sua arte, ciência e profundidade<br />

de pensamento, sua riqueza e poder, não eram consequências apenas <strong>do</strong><br />

esforço humano, como se os cristãos tivessem feito dessas coisas seu principal<br />

objetivo. Não, eram resulta<strong>do</strong>s de atitudes cristãs básicas e, em última análise,<br />

bênçãos e <strong>do</strong>ns de Deus (p. 51).<br />

A cosmovisão proporcionada pela Reforma permitiu um consenso que<br />

fez florescer os mais varia<strong>do</strong>s campos, como as artes e as ciências, além da<br />

religião propriamente. Para Rookmaaker, mesmo aqueles que não professavam<br />

o cristianismo foram impacta<strong>do</strong>s por tal visão de mun<strong>do</strong>.<br />

O autor holandês sugere que a cosmovisão reformada (bíblica) acabou<br />

perden<strong>do</strong> força, dentre outros motivos, por se mesclar com um misticismo<br />

crescente. Isso abriu espaço para o ressurgimento <strong>do</strong> humanismo, agora em<br />

sua expressão mais intensa, cujo nome foi Iluminismo.<br />

O Iluminismo, com seu ponto de partida básico na razão, poderia cair<br />

em um ceticismo radical, mas isso foi contorna<strong>do</strong> por um otimismo huma-<br />

3 Albert Wolters auxilia na compreensão <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s motivos básicos: “[…] Usa<strong>do</strong> por<br />

Dooyeweerd no senti<strong>do</strong> de motivação fundamental, força direciona<strong>do</strong>ra. Ele distingue quatro motivos-base<br />

ou motivos básicos fundamentais, sen<strong>do</strong> os três primeiros dualistas e o último integral: (1) matéria/forma,<br />

o motivo que <strong>do</strong>minou a filosofia grega pagã; (2) natureza/graça, que subjaz ao pensamento cristão de<br />

síntese no perío<strong>do</strong> medieval; (3) natureza/liberdade, que mol<strong>do</strong>u as filosofias <strong>do</strong>s tempos modernos; e<br />

(4) o único integral: o motivo básico bíblico triádico criação-queda-redenção, que está na raiz de uma<br />

filosofia radical e integralmente bíblica”. DOOYEWEERD, No crepúsculo <strong>do</strong> pensamento ocidental,<br />

p. 286. Para ver a discussão <strong>do</strong> próprio filósofo sobre os motivos básicos, cf. DOOYEWEERD, Herman.<br />

Raízes da cultura ocidental: as opções pagã, secular e cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.<br />

164


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 161-171<br />

nista. Ainda assim, a crítica de Rookmaaker é dura, por considerar que tal<br />

movimento promoveu i<strong>do</strong>latria e o esvaziamento <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>:<br />

“A razão <strong>do</strong> racionalista é como um í<strong>do</strong>lo; é como o desejo cumpri<strong>do</strong> <strong>do</strong> rei<br />

Midas: tu<strong>do</strong> o que ela toca, muda e morre, ainda que brilhe e reluza” (p. 55).<br />

Com o Iluminismo, a ênfase foi redirecionada <strong>do</strong> campo da ontologia para o<br />

da epistemologia; os princípios, normas e leis desapareceram; o homem desapareceu;<br />

a ciência se tornou cientificismo e o mun<strong>do</strong> se tornou uma “caixa”<br />

(p. 58) – um sistema fecha<strong>do</strong> de causa e efeito que aprisiona o homem. Tu<strong>do</strong><br />

isso implica a morte <strong>do</strong> próprio homem: “Podemos entender o homem que, no<br />

final desse desenvolvimento, perguntou recentemente em um desses periódicos<br />

clandestinos: há vida antes da morte?” (p. 58).<br />

Rookmaaker descreve, em seguida, no capítulo três, o que ele chama<br />

“O primeiro passo para a arte moderna” (p. 61). Partin<strong>do</strong> da transformação<br />

causada pelo Iluminismo, ele demonstra como a obra de pintores como Goya<br />

anuncia a visão <strong>do</strong> artista que não observa nada na realidade além de “fatos”.<br />

A realidade, nessa perspectiva, é exclusivamente aquilo que se vê. Se, antes,<br />

os pintores pintavam significa<strong>do</strong>s, agora registram apenas o que está diante de<br />

seus olhos. Mesmo movimentos de reação ao “homem preso na caixa”, como<br />

o Romantismo, ainda estavam por demais presos às sensações.<br />

Os quadros históricos neoclássicos ou românticos já mostram a perda <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>:<br />

muitas vezes, eram grandes reconstruções de uma cena de muitos anos<br />

atrás, uma espécie de fotografia ampliada de como o pintor pensava que seria<br />

(p. 69).<br />

Quan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> é esvazia<strong>do</strong> de significa<strong>do</strong> e só se tem uma realidade<br />

achatada diante <strong>do</strong>s olhos, não há mais senti<strong>do</strong> em se preocupar com temas<br />

para a pintura. Esse esvaziamento é descrito pelo holandês como o primeiro<br />

passo para a arte moderna: “Os temas, no velho senti<strong>do</strong> da palavra, tornaram-se<br />

obsoletos. Na arte que está por vir, eles não tinham função alguma a desempenhar”<br />

(p. 72).<br />

Rookmaaker descreve os movimentos de reação, indican<strong>do</strong> artistas como<br />

Fuseli e William Blake, com o seu misticismo, e o escapismo idealista de Klombeck.<br />

Afirma que tais propostas influenciariam, posteriormente, movimentos<br />

como o simbolismo e a art nouveau.<br />

Comentan<strong>do</strong> a arte cristã, ou de temas bíblicos, desse perío<strong>do</strong> – séculos<br />

18 e 19 –, Rookmaaker demonstra que os evangélicos orto<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />

avivamentista a<strong>do</strong>taram postura anti-intelectual e por isso se afastaram <strong>do</strong> campo<br />

artístico. A pintura de temas bíblicos acabou por a<strong>do</strong>tar o espírito da época,<br />

registran<strong>do</strong> os eventos com precisão fotográfica, mas sem indicar significa<strong>do</strong>.<br />

É emblemática a pintura comentada de Leys, “Mulheres oran<strong>do</strong> junto ao crucifixo<br />

perto de St. James”, na qual o objeto da fé – Cristo – e o significa<strong>do</strong> da<br />

165


A arte moderna e a morte de uma cultura<br />

oração das mulheres é retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> enquadramento e praticamente não aparece<br />

na pintura. O argumento <strong>do</strong> autor holandês é que mesmo a arte que buscou<br />

representar temas bíblicos, agora o fazia sob uma perspectiva racionalista que<br />

esvaziava o significa<strong>do</strong> das pinturas, ora se tornan<strong>do</strong> mero registro fotográfico<br />

(Ciseri, Ecce Homo), ora cain<strong>do</strong> em sentimentalismo barato (Holman Hunt, A<br />

sombra da morte). Ele ainda destaca que isso influenciou as imagens posteriores<br />

a<strong>do</strong>tadas pelos evangélicos, como as ilustrações nas Bíblias e os desenhos<br />

feitos para a escola <strong>do</strong>minical – o resulta<strong>do</strong> disso é uma transformação na<br />

maneira de compreender Jesus.<br />

É possível que as falsas ideias que muitas pessoas, cristãs e não cristãs, fazem de<br />

Cristo como um homem sentimental e, de certa forma, afemina<strong>do</strong>, manso, “afetuoso”,<br />

que nunca foi realmente deste mun<strong>do</strong>, sejam consequências da pregação<br />

inerente das imagens dadas às crianças ou penduradas na parede? Sua teologia<br />

e sua mensagem não são as da Bíblia, mas <strong>do</strong> liberalismo <strong>do</strong> século 19 (p. 86).<br />

O problema, para Rookmaaker, é mais amplo. Os cristãos deixaram de<br />

apresentar significa<strong>do</strong> nas artes porque a qualidade de seu cristianismo estava<br />

em decadência. O holandês demonstra que os cristãos assimilaram um espírito<br />

burguês, uma mentalidade de classe média, que confiava em suas conquistas,<br />

fugia da realidade dura da vida e de temas difíceis como o peca<strong>do</strong>, e se escondia<br />

em hipocrisia, bem como na busca por certeza e segurança.<br />

O quarto capítulo da obra segue a discussão sobre os passos para a arte<br />

moderna (p. 93). O foco, agora, está no segun<strong>do</strong> passo. Ten<strong>do</strong> comenta<strong>do</strong> a<br />

tendência de pintar apenas o que se vê – plasmada no realismo e no naturalismo<br />

–, Rookmaaker demonstra que tal perspectiva atingiu outro nível com a<br />

chegada <strong>do</strong> impressionismo. As pinturas comentadas são de Renoir e Monet.<br />

Essa escola lida com as discussões estabelecidas por filósofos acerca da epistemologia:<br />

como estabelecer relações de causalidade diante <strong>do</strong>s fenômenos<br />

observa<strong>do</strong>s? Como se certificar que há algo além <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r?<br />

Portanto, o que vemos no quadro? As pinceladas de Monet que [sic] registraram<br />

o que ele viu? De certo mo<strong>do</strong>, não. Não o que ele viu. Contu<strong>do</strong>, ele registrou o<br />

que chegou aos seus olhos, os raios de luz que causaram uma sensação em sua<br />

retina. A questão é se há algo por trás deles, uma realidade de coisas que causaram<br />

os raios de luz. Pode-se supor que há uma realidade, da mesma forma que<br />

se pode arriscar que a faca cairá novamente, mas nunca se sabe ao certo (p. 96).<br />

Esse foi o prenúncio <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> passo, da<strong>do</strong> finalmente por Monet. Este<br />

pintor, ousadamente, seguiu para a conclusão das dúvidas anteriormente levantadas:<br />

não há realidade por trás das sensações; estas são tu<strong>do</strong> o que existe.<br />

A reação a esta perspectiva veio por parte de Gauguin, que defende a<br />

ideia de não copiar a natureza, dependen<strong>do</strong> das sensações, mas “usar méto<strong>do</strong>s<br />

166


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 161-171<br />

específicos para dispor linhas e cores a fim de representar sentimentos particulares”<br />

(p. 99). Gauguin identifica a tensão entre o realismo e a liberdade,<br />

um dilema presente na vida humana entre ser determina<strong>do</strong> pela natureza ou se<br />

determinar em sua liberdade. Gauguin rompe a tensão, caminhan<strong>do</strong> em direção<br />

à liberdade autônoma, e com isso nasce o expressionismo.<br />

Junto a Gauguin, o trabalho de Seurat, Van Gogh e Cezanne também é<br />

comenta<strong>do</strong>, demonstran<strong>do</strong> as nuances <strong>do</strong>s pintores pós-impressionistas: to<strong>do</strong>s<br />

lidavam com a tensão entre natureza e liberdade, um <strong>do</strong>s motivos religiosos<br />

básicos descritos por Dooyeweerd. Mas o seu movimento, eventualmente,<br />

caminhou em direção à liberdade, tenden<strong>do</strong> para o abstrato.<br />

No capítulo cinco, “Os últimos passos para a arte moderna” (p. 113), o<br />

autor holandês descreve mais detidamente o expressionismo, como escola que<br />

buscava demonstrar, por meio de suas pinturas, “emoções subjetivas diante<br />

da realidade em vez de uma imitação naturalista” (p. 115). Matisse é o nome<br />

destaca<strong>do</strong> como representante <strong>do</strong> movimento, e Rookmaaker descreve como<br />

o senso de humanidade vai se perden<strong>do</strong> em sua obra, bem como em grande<br />

parte da arte moderna. Pintores alemães, como Kirchner e Heckel, também<br />

são comenta<strong>do</strong>s, bem como Marc e Kandinsky. 4 Este último chegou à arte<br />

abstrata, ou não figurativa.<br />

Segun<strong>do</strong> a análise de Rookmaaker, este movimento em direção à arte<br />

abstrata se dá como reação ao naturalismo aprisiona<strong>do</strong>r. O pêndulo agora se<br />

move na direção oposta, de afirmação da liberdade <strong>do</strong> homem, mas com isso<br />

se perde, ou se antagoniza, a estrutura da realidade. O abstrato manifesta uma<br />

busca pela essência humana, pelos universais, em oposição aos particulares.<br />

A busca por essa essência humana também se dá em escolas como o<br />

cubismo, que buscam uma nova concepção de homem, rompen<strong>do</strong> com “o<br />

humanismo antigo da sociedade ocidental” (p. 125). O resulta<strong>do</strong>, comenta<br />

o holandês, é a perda <strong>do</strong> pessoal, uma vez que não há mais Deus pessoal.<br />

Picasso é o grande expoente <strong>do</strong> movimento cubista. A ele coube dar o último<br />

passo para a arte moderna.<br />

Picasso reconheceu que a busca de absolutos não havia atingi<strong>do</strong> o seu<br />

objetivo. Por causa disso, entregou-se, nos termos de Rookmaaker, ao absur<strong>do</strong>,<br />

perceben<strong>do</strong> que este mun<strong>do</strong> é sem senti<strong>do</strong>.<br />

Foram quatro as principais reações ao passo da<strong>do</strong> por Picasso. Mondrian<br />

seguiu em busca <strong>do</strong> absoluto; Delaunay entendeu o cubismo como uma forma<br />

de representar o mun<strong>do</strong> moderno; Derain retornou a um estilo mais tradicional,<br />

e Marcel Duchamp aceitou as premissas de Picasso e se entregou ao niilismo e<br />

anarquismo. Na entrega ao absur<strong>do</strong> podem ser compreendi<strong>do</strong>s movimentos<br />

como o dadaísmo e o surrealismo.<br />

4 Kandinsky era de origem russa, porém obteve nacionalidade alemã e francesa.<br />

167


A arte moderna e a morte de uma cultura<br />

Com o último passo da<strong>do</strong>, uma “nova era” cultural tem início (capítulo 6,<br />

p. 143). Rookmaaker descreve a arte moderna como legítima, porém mentirosa.<br />

É legítima, pois apresenta a realidade conforme o espírito da época – um<br />

perío<strong>do</strong> no qual Deus está morto, e com ele se perdeu o pessoal e o senti<strong>do</strong>.<br />

Também é mentirosa, pois tal cosmovisão não é verdadeira.<br />

No ambiente contemporâneo, novos formatos artísticos nasceram, e Rookmaaker<br />

dedica tempo a considerar o surrealismo, sob influência de Marc, Paul<br />

Klee e Kandinsky. Por trás de tais pinturas, o holandês identifica pessimismo e<br />

ansiedade – “um senso de estar perdi<strong>do</strong>” (p. 150), bem como irracionalismo. Ao<br />

sustentar a tese das expressões artísticas conectadas com o espírito da época,<br />

Rookmaaker identifica o surrealismo com algo mais <strong>do</strong> que “arte”:<br />

[…] o surrealismo é muito mais <strong>do</strong> que um novo estilo. Não é uma fórmula<br />

fácil, nem mesmo uma teoria bem definida, e, em última análise, nem mesmo<br />

um movimento artístico; é um mo<strong>do</strong> de vida e uma direção dada à atividade de<br />

uma pessoa, uma atitude de agonia intelectual (p. 155).<br />

Como expressão de uma filosofia mais ampla, o holandês identifica Marx,<br />

Nietzsche e Freud, entre outros, como “líderes espirituais” <strong>do</strong> surrealismo<br />

(p. 156). Junto a isso, identifica as conexões com o existencialismo francês.<br />

O resulta<strong>do</strong> é uma percepção <strong>do</strong> real como o “horrível”. As obras de Picasso<br />

são utilizadas para demonstrar o ponto. Picasso sentiu e identificou a agonia<br />

<strong>do</strong> século 20 e, abraçan<strong>do</strong> o niilismo, representou o desespero em sua arte.<br />

O capítulo 7, “A arte moderna e a rebelião <strong>do</strong> século 20” (p. 171), tem<br />

início com a constatação de que a arte moderna venceu a batalha, instituin<strong>do</strong><br />

o abstrato na pintura como consequência <strong>do</strong> desespero e irracionalidade. A<br />

regra passou a ser acompanhar a tendência, e deixar de la<strong>do</strong> as outras correntes<br />

artísticas, consideran<strong>do</strong>-as obsoletas.<br />

O holandês identifica a vitória da arte moderna com o erro estratégico <strong>do</strong>s<br />

cristãos, que lutaram pequenas batalhas, mas sem perceber o peso da cultura<br />

na formação <strong>do</strong>s corações.<br />

[Os cristãos] frequentemente não entendiam que a arte e a literatura, a filosofia<br />

e até a música popular eram os agentes <strong>do</strong> novo espírito da era e não se incomodavam<br />

com isso ou, com otimismo, imaginavam que essas coisas estavam<br />

muito distantes para terem influência (p. 174).<br />

No limiar da segunda metade <strong>do</strong> século 20, a tendência a se firmar era<br />

a <strong>do</strong> expressionismo abstrato, personifica<strong>do</strong> em seu maior nome: Jackson<br />

Pollock. No clímax da destruição de temas e significa<strong>do</strong>, Pollock colocava<br />

suas telas no chão e simplesmente gotejava tinta sobre elas. O neodadaísmo<br />

de Lucio Fontana o levou a rasgar e fazer buracos na tela como parte de sua<br />

criação artística. A liberdade não possuía limites.<br />

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FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 161-171<br />

O cinismo atingiu até as reações ao neodadaísmo. A pop art, com sua<br />

irreverência, carregava “uma mistura de humor e raiva, de sorriso e lágrimas,<br />

de aceitação condescendente e rejeição irada, de amor e ódio ou de vida e<br />

morte” (p. 188). Junto a ela, e provavelmente influenciada pelas filosofias de<br />

análise linguística, surgiu a arte óptica.<br />

A busca por autenticidade fez nascer os happenings, experiências autênticas<br />

e espontâneas que criticavam as exposições de arte pré-fabricadas. Tal<br />

espírito de liberdade anarquista também estava presente no movimento hippie,<br />

que, eventualmente, fez nascer a art nouveau e o psicodelismo. Rookmaaker<br />

dedica tempo a comentar a música desse movimento, falan<strong>do</strong> de jazz, blues e<br />

beat. Havia uma mensagem de protesto em tais estilos musicais, que anunciava<br />

o fim da cultura ocidental como havia si<strong>do</strong> conhecida.<br />

Nos capítulos finais, Rookmaaker encoraja os cristãos quanto ao engajamento<br />

cultural. O capítulo 8, “Protesto, revolução e a resposta cristã” (p. 203),<br />

comenta movimentos artísticos mais recentes, como a arte hard edge e os<br />

movimentos no cinema e na televisão. Existe uma tensão fundamental, por meio<br />

da qual o homem se revolta contra as tendências desumaniza<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

– especialmente expressas na arquitetura –, mas nada tem a oferecer em<br />

seu lugar. O chama<strong>do</strong> urgente, então, é para que os cristãos participem desse<br />

processo. Primeiramente, devem conhecer os dilemas de seu tempo. Segun<strong>do</strong><br />

Rookmaaker, “os cristãos devem passar por um perío<strong>do</strong> de estu<strong>do</strong>, reflexão e<br />

reavaliação que consumirá grande parte de nossa energia” (p. <strong>21</strong>0). Essa etapa<br />

fará nascer respostas de rejeição, mas também de aceitação <strong>do</strong>s elementos<br />

positivos da revolta e <strong>do</strong> protesto contemporâneo. A atenção <strong>do</strong>s cristãos deve<br />

se voltar para a tecnologia, a televisão, e a noção contemporânea de que “o<br />

homem é apenas plástico” (p. <strong>21</strong>3). 5<br />

A busca pela humanidade tem feito alguns retornarem ao misticismo. O<br />

irracionalismo se tornou um refúgio: “[…] em busca de sua humanidade, em<br />

sua busca de uma forma de escapar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> cientificismo, da tecnocracia<br />

e da sociedade próspera, de tu<strong>do</strong> o que é racional, torna-se irracional” (p. <strong>21</strong>5).<br />

Nesse contexto também se percebe o existencialismo, o uso de drogas e o<br />

retorno das religiões orientais.<br />

O holandês passa, então, a descrever a responsabilidade da igreja no<br />

presente esta<strong>do</strong> de coisas. Em parte, a igreja assimilou os princípios <strong>do</strong> Iluminismo,<br />

entregan<strong>do</strong>-se à teologia de homens como Bultmann e Tillich. Em<br />

parte, ela assimilou a mentalidade “burguesa”, de classe média, descrita como<br />

essencialmente moralista e hipócrita, interessada apenas em paz pessoal e<br />

segurança, sem base concreta para suas escolhas. É nesse cenário que se deve<br />

5 Curiosamente, movimentos inspira<strong>do</strong>s em Michel Foucault e Judith Butler, que trabalham<br />

a teoria queer, conhecida como “ideologia de gênero”, utilizam-se <strong>do</strong> conceito de plasticidade como<br />

instrumento para a definição <strong>do</strong> homem autônomo.<br />

169


A arte moderna e a morte de uma cultura<br />

entender o protesto <strong>do</strong>s jovens: na busca por humanidade e significa<strong>do</strong>, nem<br />

mesmo entre cristãos puderam encontrar autenticidade.<br />

Para Rookmaaker, os cristãos deveriam ter toma<strong>do</strong> a frente nos protestos.<br />

É responsabilidade da igreja se engajar no mun<strong>do</strong> e oferecer a resposta<br />

verdadeira para o dilema <strong>do</strong> homem.<br />

O cristianismo tem a resposta – se tão somente houver interesse ou coragem para<br />

ouvir – para os problemas de nossa era. Mas por que ele continua em silêncio?<br />

Ou por que simplesmente diz às pessoas cada vez mais distantes da linguagem<br />

e <strong>do</strong>s padrões de pensamento bíblicos: “tenham fé, tenham fé”, sem de fato<br />

responder às perguntas indiferentes que elas gritam em sua agonia? Jesus salva;<br />

na verdade, isso não significa que ele só salva sua alma da destruição deste<br />

mun<strong>do</strong>! A graça salvífica de Jesus nos redime aqui e agora e dá respostas para<br />

os problemas de hoje. Ele pode nos redimir, de fato, não só ‘espiritualmente’<br />

no senti<strong>do</strong> restrito da palavra (p. 235).<br />

A participação da igreja também pode se dar por meio da participação<br />

direta no campo das artes. Em “Fé e arte”, Rookmaaker argumenta que “a arte<br />

nunca deve ser usada para mostrar a validade <strong>do</strong> cristianismo” (p. 242). Na<br />

verdade, é o cristianismo que legitima as artes, e não o oposto. A arte cristã,<br />

portanto, não é uma arte proselitista ou piegas. Os seus temas não são apenas<br />

bíblicos, pois “o que é cristão na arte não está no tema, mas no espírito dela, em<br />

sua sabe<strong>do</strong>ria e na compreensão da realidade que ela reflete” (p. 242). A arte<br />

não deve ser utilitarista, como se precisasse justificar a sua validade por meio<br />

de “resulta<strong>do</strong>s cristãos”. A arte deve perceber a relação entre ética e estética,<br />

verdade e beleza. Deve, também, respeitar as normas artísticas, oferecen<strong>do</strong><br />

interpretações da realidade com qualidade técnica, com decoro (ou “brio”),<br />

com justiça, pureza, amabilidade, excelência e louvor. Para Rookmaaker, “o<br />

amor é a grande norma na arte também” (p. 258).<br />

Como parte de uma comunidade, o artista cristão se unirá aos demais<br />

irmãos que atuam em um mun<strong>do</strong> que passa por transformação. A igreja defenderá<br />

a liberdade verdadeira e a humanidade, fazen<strong>do</strong> isso com amor e graça,<br />

demonstran<strong>do</strong> compaixão pelo homem moderno, que “perdeu o rumo, que se<br />

tornou escravo, que clama por humanidade, por amor, liberdade e verdade sem<br />

encontrá-los” (p. 266).<br />

Como se pode avaliar o livro? O conteú<strong>do</strong> da obra é interessante e importante.<br />

Não foi sem razão que tal obra recebeu destaque. A riqueza na análise<br />

da história da arte, o ensino quanto às maneiras pelas quais se deve observar e<br />

compreender uma pintura, e a tese fundamental da relação entre uma expressão<br />

artística e uma cosmovisão tornam a obra bastante recomendável.<br />

A tradução é boa, as margens respeitam o espaço adequa<strong>do</strong> para o leitor<br />

tomar notas e a obra segue a estrutura <strong>do</strong> original, com algumas pinturas no<br />

corpo <strong>do</strong> texto, ilustran<strong>do</strong> diretamente o ponto <strong>do</strong> autor. Assim como na edição<br />

170


FIDES REFORMATA XXI, Nº 1 (2016): 161-171<br />

original, as ilustrações estão em preto e branco, o que dificulta a percepção de<br />

alguns pontos. O preço da obra também não é tão popular, mas ainda sai mais<br />

barato <strong>do</strong> que a compra da edição em inglês.<br />

Leitores interessa<strong>do</strong>s apenas em história da arte poderão achar a obra superficial.<br />

Rookmaaker não entra em detalhes, e nem comenta muitos nomes de<br />

cada escola. O uso da história tem o propósito de sustentar o seu argumento. Ele<br />

também não gasta muito tempo para discutir como se dá a troca de influências<br />

entre o espírito da época e as expressões artísticas – a ele basta indicar que há<br />

uma relação.<br />

Alguns leitores podem discordar ou avançar na discussão de sua análise<br />

da pós-Reforma e a a<strong>do</strong>ção de um misticismo entre os evangélicos. Esse ponto<br />

não é profundamente trabalha<strong>do</strong> por Rookmaaker.<br />

A obra é recomendada, de maneira geral, para to<strong>do</strong>s os cristãos, pois encoraja<br />

a igreja a considerar aspectos de sua participação na cultura. De maneira<br />

específica, é recomendada para líderes, por indicar elementos de compreensão<br />

da juventude contemporânea que se traduzem não apenas nas artes, mas na<br />

atitude mais ampla <strong>do</strong>s jovens; aos artistas cristãos, por promover princípios de<br />

compreensão das artes e de produção artística, e aos interessa<strong>do</strong>s em aspectos<br />

de filosofia, sociologia e artes.<br />

171


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ferramentas bíblico-teológicas e de outras áreas das ciências.<br />

Mestra<strong>do</strong> em Divindade (Magister Divinitatis – MDiv)<br />

Trata-se <strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> eclesiástico <strong>do</strong> CPAJ. É análogo aos já tradicionais mestra<strong>do</strong>s<br />

profissionalizantes, diferin<strong>do</strong>, entretanto, <strong>do</strong> Master of Divinity norte-americano<br />

apenas no fato de que não constitui e nem pretende oferecer a formação básica para<br />

o ministério pastoral. O MDiv <strong>do</strong> CPAJ não é submeti<strong>do</strong> à avaliação e não possui<br />

credenciamento da CAPES.<br />

Mestra<strong>do</strong> em Teologia (Sacrae Theologiae Magister – STM)<br />

Esse mestra<strong>do</strong> acadêmico difere <strong>do</strong> Magister Divinitatis por sua ênfase na pesquisa<br />

e sua harmonização com os mestra<strong>do</strong>s acadêmicos em teologia ofereci<strong>do</strong>s em universidades<br />

e escolas de teologia internacionais. O STM <strong>do</strong> CPAJ não é submeti<strong>do</strong> à<br />

avaliação e não possui credenciamento da CAPES.<br />

Doutora<strong>do</strong> em Ministério (DMin)<br />

O Doutora<strong>do</strong> em Ministério (DMin) é um curso ofereci<strong>do</strong> em parceria com o Reformed<br />

Theological Seminary (RTS), de Jackson, Mississippi. O programa possui o reconhecimento<br />

da JET/IPB e da Association of Theological Schools (ATS), nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />

O corpo <strong>do</strong>cente inclui acadêmicos brasileiros, americanos e de outras nacionalidades,<br />

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Criasett Gráfica e Editora Ltda.

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