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1 Bear, Otter & the Kid - Bear, Otter & the Kid (HOMO) - T. J. Klune

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<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong>


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Três anos atrás, a mãe de <strong>Bear</strong> McKenna partiu para lugares desconhecidos com seu novo<br />

namorado, obrigando <strong>Bear</strong> a assumir a responsabilidade de Tyson, seu irmão de seis anos, a<br />

quem ele chamava de <strong>Kid</strong>. Afortunadamente, de alguma forma, eles seguiram adiante, mas<br />

devido à sua dedicação exclusiva a Tyson, <strong>Bear</strong> não tem tempo de desfrutar da vida. Até<br />

que <strong>Otter</strong> volta para a cidade.<br />

<strong>Otter</strong> é o irmão mais velho do melhor amigo de <strong>Bear</strong>, e como sempre fizeram durante toda<br />

a vida, <strong>Bear</strong> e <strong>Otter</strong> se chocam entre si de inúmeras maneiras que nenhum dos dois<br />

esperava. Porém, desta vez, não há escapatória da intensidade de emoção que existe entre<br />

eles. <strong>Bear</strong> ainda segue acreditando que seu lugar é como guardião de <strong>Kid</strong>, mas não pode<br />

deixar de pensar que talvez a vida lhe tenha reservado algo... ou alguém mais...<br />

Comentário revisão inicial Snowflake: Bem gente, antes de falar sobre esse maravilhoso<br />

livro, devo lhes recomendar que assistam ao filme Shelter (De repente Califórnia)<br />

https://www.youtube.com/watch?v=3BIjk28S6lc. E então, ao ler esse livro, vocês vão<br />

identificar muitas semelhanças. Para mim, esse filme é um dos mais belos na área dos<br />

homoeróticos. Talvez seja por isso que fiquei encantada pela história do livro. Possui uma<br />

dinâmica de escrita muito bacana. O personagem principal conversa com você te envolve,<br />

te provoca. É uma história muito gostosa de ler. Te faz rir e chorar. Você vai se apaixonar<br />

por <strong>Kid</strong>, um garoto fofo que faz umas rimas hilariantes, sem pé, nem cabeça. É um livro<br />

típico GFY (gay for you). <strong>Otter</strong> é um personagem forte, envolvente, com sua<br />

homossexualidade resolvida, oito anos mais velho que <strong>Bear</strong> (o personagem que conta a<br />

história). Este sempre se considerou hétero, nunca sentiu atração por homem nenhum, nada.<br />

Mas com <strong>Otter</strong> é diferente, sempre foi. É por aí que a história se desenvolve. Tenho certeza<br />

que vocês vão amar.<br />

Comentário revisão final Luna: Este livro foi ao mesmo tempo um presente e o motivo<br />

para uma das maiores ressacas literárias que já tive. Os personagens são tão envolventes e<br />

apaixonantes, que de repente me vi dentro da história, rindo, chorando e sentindo raiva<br />

delas.<br />

Cada minuto lendo e revisando valeu a pena. Espero que vocês encontrem na leitura tudo<br />

que eu encontrei e ainda mais. Divirtam-se!<br />

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TM: Freya<br />

Revisão Inicial: Snowflake<br />

Revisão Final: Luna<br />

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Prólogo: Quando <strong>Bear</strong> molha seus pés<br />

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Assim foi como se acabou meu mundo.<br />

Veja.<br />

<strong>Bear</strong>,<br />

Sei que isto será difícil pra cê ler, mas espero que cê vai entender.<br />

Tenho que partir, <strong>Bear</strong>. Tom encontrou trabalho fora do Estado e eu vou com ele.<br />

Faço isto purque acredito que será mais fácil para todos nós se isso for lido, ao invés de<br />

falado.<br />

É uma oportunidade para fazer algo por mim mesma. Tom dis que para onde vamos<br />

existem muitos empregos que serão melhores que aqui em Seafare. Lembra-se do meu último<br />

trabalho? Na Pizza Shack? Lembra-se de quão bom foi? No caso de cê não poder responder<br />

a isso por se tratar de uma carta, eu estou sendo sarcástica. Não foi nada bom. (Pelo menos<br />

sabemos que meu futuro não está nas pizzas!)<br />

Já sei que você nunca gostou muito de Tom, mas ele não me trata mal. Não se<br />

preocupe conosco, porque estaremos bem. Bom, sei que não se preocupa com ele, mas não<br />

importa. Permaneceu mais tempo que seu pai, sem mencionar o pai de Ty. Pelo menos Tom<br />

nunca me bateu ou algo assim. Até me disse que quando economizar dinheiro sufiziente me<br />

deixará fazer um desses cursos online da Universidade de Phoenix Arizona, ou seja, lá como<br />

se chama. Imagina! Eu com um título universitário!<br />

Certamente, espero que tenha a oportunidade de ser escritor, como sempre quis. Sei<br />

que isto interfere em seus planos para ir à faculdade no ano que vem. Mas, pra que cê<br />

necessita da universidade para isso? Você tem inventado histórias desde pequeno, assim,<br />

não me parece que a universidade possa ensinar algo mais, né? Mas essa beca virá mais<br />

tarde, certo? Não significa que não vá poder obter uma nunca. Apenas não será possível<br />

agora, porque necessito que me faça um favor.<br />

Tom diz que Ty não pode ir. Disse que ter <strong>Kid</strong> por perto lhe «romperá» a<br />

concentração. (Tudo bem, não disse romper, mas você já sabe a que me refiro). Sei que<br />

parece que estou tomando uma péssima decisão, mas na última noite tive um sonho. Tudo<br />

estava negro ao meu redor e havia uma luz brilhante ao longe. Pareceu-me que eu teria que<br />

andar muito para chegar até ela. Finalmente cheguei ali e a luz era uma placa de motel.<br />

Sabe como se chamava o motel, <strong>Bear</strong>? Chamava-se MOTEL DA ÚLTIMA<br />

OPORTUNIDADE. Entende o que isso significa? MOTEL DA ÚLTIMA<br />

OPORTUNIDADE. Significa que é a minha última oportunidade! Meu sonho foi uma


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mensagem, eu sinto isso, e creio que quem quer que esteja nos vigiando, sabia que estava<br />

sendo difícil para eu tomar esta decisão e por isso tive esse sonho.<br />

Mas Tom disse que Ty não pode ir. Assim, o deixarei aqui com você. Sempre teve<br />

mais facilidade para cuidar dele que eu. Lembra-se de quando estive doente durante quase<br />

um mês, no ano passado e não podia mover-me, e você cuidou de Ty porque não podíamos<br />

nos dar ao luxo de enviá-lo para ac<strong>amp</strong>ar na YMCA 1 ? Você fez um bom trabalho naquela<br />

época e recordo ter pensado que seria um bom pai no futuro, não como seu pai. Parando<br />

para pensar agora, de todo o modo, sempre se ocupou de Ty muito mais que eu, como<br />

deveria fazer um bom irmão, e sempre feiz o melhor. É por isso que me sinto tranquila em<br />

deixar ele aqui com você. Creio que será melhor que ele fique aqui. E se acontece algo comigo<br />

enquanto estou com Tom? Não quero que ele passe por isso.<br />

Imprimi algo da internet para você. Chama-se poder legal. Significa que pode tomar<br />

decisões por Ty sem mim. Como médicos, escola e coisas desse tipo. Suponho que significa<br />

que será responsável por ele. Pelo menos foi isso que entendi. Denise, a vizinha de baixo, me<br />

falou disso. Normalmente teria que estar comigo para autenticar ele, mediante registro em<br />

cartório, mas Denise me deve um favor, quando lhe dei cigarros, pois não podia comprá<br />

mais. Seu filho é escrivão, ou algo assim (realmente se necessita ir para a faculdade para<br />

aprender a firmar e selar papéis? Qual a dificuldade nisso?), ela vai me cobrir e notificá-lo.<br />

Terá que esperar pelo seu aniversário, mas chegará logo. É meu presente pro cê. Espero que<br />

goste.<br />

Sentirei sua falta, já sabe disso. Você se tornou um ótimo rapaz, apesar de tudo.<br />

Espero que não me odeie ou algo assim, mas talvez regresse um dia, se isso não funcionar.<br />

Talvez, não sei. Talvez nunca devesse ter me tornado mãe. Às vezes lhe olho e penso que<br />

seria melhor para você não ter nascido nunca. Mas me lembro de você como um bebê muito<br />

feliz, não como Ty, que não parava de chorar. Seu sorriso ainda vale à pena e espero que<br />

siga sorrindo, mesmo depois disso.<br />

Por favor, leia a carta que escrevi para Ty.<br />

Não sei mais que dizer.<br />

Por favor, não tente me encontrar. Não quero que Tom se aborreça.<br />

MAMÃE<br />

P.S.: Deixei algum dinheiro para ajudá-lo no momento. Não posso lhe dar mais<br />

porque Tom disse que temos que economizar para nosso futuro. Lembre-se que o aluguel<br />

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1<br />

São ac<strong>amp</strong>amentos de ferias para estudantes.


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vence no início do mês, junto com as demais faturas. De todas as formas você pagou todas<br />

elas, mas que tipo de mãe eu seria se não lhe lembrasse?<br />

Ty,<br />

Ouça seu irmão e faça o que ele lhe diga, certo? Mamãe ama você!<br />

MAMÃE<br />

Isto foi o que encontrei quando cheguei em casa do trabalho esse dia. Era<br />

um sábado à noite. Não sabia onde estava <strong>Kid</strong>.<br />

Mamãe deixou US$ 137,50 dólares dentro de um envelope com meu nome.<br />

No dia seguinte completei dezoito anos. Três dias depois, me graduei no<br />

colégio.<br />

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1<br />

Quando <strong>Bear</strong> vê as pessoas voltando para casa para passar o<br />

verão<br />

Página7<br />

Três anos depois.<br />

Bem, para ser franco com vocês, na realidade não me chamo <strong>Bear</strong>. Meu<br />

verdadeiro nome é Derrick McKenna, mas me tornei <strong>Bear</strong> desde que tinha treze ou<br />

quatorze anos. Foi a época em que Ty tentava dizer meu nome, quando ainda era<br />

um bebê e não sabia pronunciar Derrick. Meu nome soava muito estranho, algo<br />

assim como «Barick», mas quando mamãe lhe ouviu, somente pôde pensar que<br />

parecia que me chamava «<strong>Bear</strong>». Suponho que era uma espécie de divina comédia<br />

à sua maneira, pois eu havia feito algo parecido com outra pessoa quando era<br />

pequeno. Mas voltarei a isso mais tarde.<br />

Então é isso: <strong>Bear</strong>. Assim começou a me chamar <strong>Bear</strong>. Claro que, no<br />

princípio, eu odiava. Não entendia e sigo sem entender nada de urso. Mas mamãe<br />

insistia, e cada vez que vinha um amigo, atendia uma ligação para mim ou falava<br />

com um dos meus professores, colocava ênfase em me chamar de <strong>Bear</strong>. Naquela<br />

época comecei o ensino médio e já sabe o que acontece: qualquer coisa que faça,<br />

sendo aluno do colégio, é lembrado para sempre. Tudo graças a minha mãe. O<br />

apelido ficou; ela não.<br />

Não estou tentando parecer sentimental, nem nada. Não é esse tipo de<br />

história. Aqui não se trata do pobre <strong>Bear</strong> e como sua mãe o abandonou, deixando-o<br />

a cargo de seu irmão pequeno e lhe arruinando a existência por isso, que ao final se<br />

aprende “Uma Lição Muito Valiosa Sobre a Vida, e toda essa merda”... Não será<br />

assim.<br />

Tudo bem, apague isso. Não sei que tipo de história é. Somente espero que<br />

não seja enjoativa e que os faça vomitar. Esse tipo de coisas me dá náuseas.<br />

Mas estou me afastando do tema.<br />

Apenas quis ser franco com vocês sobre como me chamo. Imagino, por<br />

alguma razão, que quando as pessoas ouvem o nome que tenho agora, <strong>Bear</strong><br />

McKenna, supõem de duas, uma: que sou um lenhador muito grande e peludo,<br />

com um porte severo, mas um coração de ouro, ou que sou terrivelmente<br />

pretensioso. No geral é o primeiro, até que me veem e piscam várias vezes,<br />

tratando de adequar esse nome com o que estão vendo. E a segunda parte?


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Pensem: se conhecesse pela primeira vez a alguém chamado <strong>Bear</strong>, não pensaria ser<br />

uma versão exagerada de si mesmo? Sim? Não? Bem, suponho que eu não penso<br />

como a maioria das pessoas. E já não discuto com elas sobre isso. Chamo-me <strong>Bear</strong><br />

McKenna.<br />

—Derrick?<br />

Bem, na maioria das vezes é assim. Olho no espelho retrovisor e vejo meu<br />

irmão pequeno, Tyson, devolvendo-me o olhar com uma expressão que não<br />

consigo identificar. Normalmente me chama de Derrick quando quer perguntar<br />

algo importante, como por exemplo, se existe um planeta de vacas com fazendas<br />

onde se ordenham as pessoas e logo as sacrificam para deleitar-se com suas<br />

saborosas costelas, ou por que mamãe partiu e não voltou. Ele faz muitas<br />

perguntas.<br />

— O que foi Ty?<br />

— Posso te fazer uma pergunta?<br />

— Claro, <strong>Kid</strong>.<br />

— Como você sabe quando está apaixonado?<br />

Sorrio. Tento não pensar aonde ele quer chegar com isso. Entender a linha<br />

de pensamento lógico de <strong>Kid</strong> é um exercício extraordinariamente inútil. Ele pensa<br />

a um nível completamente distinto de todos nós. Na semana passada lhe expliquei,<br />

por insistência sua, de onde vinham os bebês. Ficou com uma expressão de<br />

meditação alarmante na cara durante todo o diálogo. Quando a conversa terminou,<br />

se levantou e saiu para brincar sem dizer uma palavra. Mais tarde, quando o<br />

colocava para dormir, finalmente respondeu: «<strong>Bear</strong>, por que diabos uma mulher iria<br />

querer ter um bebê dessa maneira?» Naquela hora não soube responder, como às<br />

vezes me acontece. Raras vezes alguém me deixa sem palavras, mas Ty o faz<br />

diariamente.<br />

Nesse momento olho para Ty e levanto uma sobrancelha.<br />

—Por quê? Existe alguém de quem ainda não me falou, <strong>Kid</strong>?<br />

Dá de ombros ligeiramente.<br />

—Não. Não necessariamente tem a ver comigo, <strong>Bear</strong>. É somente uma<br />

pergunta.<br />

Por certo, meu irmão tem oito anos, mas parece que tem sessenta. Não<br />

posso reprová-lo, dado tudo o que passou na vida. A maioria dos garotos de sua<br />

idade não passou nem pela quarta parte das coisas pelas quais ele passou. Mas, ao<br />

mesmo tempo: Quantos garotos do primário que conhece que sejam vegetarianos<br />

por decisão própria? Eu não tenho nada a ver com isso, acreditem-me. Adoro os


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hambúrgueres com bacon e salsicha (e deixa de fazer cara de nojo, até prová-los: é<br />

delicioso). Mas tive o que mereci por deixá-lo ver o documentário sobre o abate na<br />

TV. Desde então, não foi o mesmo.<br />

Olho para diante para verificar se não há ninguém na estrada, mas estou<br />

respondendo com evasivas e ele sabe. Noto seus olhos cravados em minha nuca.<br />

Volto a suspirar.<br />

—Suponho que é quando essas estúpidas canções do rádio começam a ter<br />

sentido. —Dou uma olhada pelo retrovisor e o vejo contrair o cenho. — E você, o<br />

que acha?<br />

Quando se trata desse tipo de perguntas esotéricas, sempre me parece<br />

melhor deixar que ele as responda. Mas as perguntas objetivas sobre bebês e coisas<br />

assim, procuro respondê-las eu mesmo. Ainda que tenha vontade de arrancar os<br />

cabelos enquanto respondo.<br />

Ele guarda silêncio por um momento antes de dizer:<br />

—Creio que é quando não pode passar um dia mais sem a outra pessoa.<br />

Que faz com que sinta como se seu estômago ardesse, mas de uma forma<br />

agradável.<br />

—Isso me parece bem.<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

—Sim?<br />

—Podemos parar? Tenho que fazer xixi.<br />

—Claro, <strong>Kid</strong>. De qualquer maneira, temos tempo.<br />

Vejo uma placa que anuncia uma área de serviço e faço a manobra. O<br />

estacionamento está vazio e cai uma chuva fina. Estaciono em uma área em frente<br />

aos banheiros; já conheço a rotina. Ty espera pacientemente no carro, enquanto eu<br />

entro no banheiro masculino para certificar-me de que está deserto. E está. Saio<br />

pela porta e lhe faço um sinal. Ele sai do carro e se aproxima de mim.<br />

—<strong>Bear</strong>, me espera aqui, sim?<br />

Não é una pergunta, senão uma ordem.<br />

—Claro.<br />

—Muito bem, já volto. Procure esperar-me aqui.<br />

Aceno com a cabeça, sabendo que certamente estarei ali como ele bem sabe.<br />

Ty se nega a utilizar os banheiros públicos quando há alguém mais lá dentro.<br />

Sempre me faz averiguar primeiro. Somente entra quando garanto que não há<br />

inimigos à vista. Não me permite entrar com ele, deixando muito claro que é<br />

«grande o suficiente para usar o banheiro sozinho». Mas, antes de entrar, se


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certifica de onde vou ficar. E me refiro a um lugar exato. Se me movo um ou dois<br />

passos do lugar que disse que estaria, ele o nota. Sei que entende que nunca o<br />

abandonaria, mas, ainda assim, necessita essa segurança. Ocorre o mesmo na hora<br />

de pegá-lo na escola ou na hora que sairei do trabalho. Se chego tarde, tem uma<br />

espécie de ataque de pânico que lhe comprime a respiração e lhe provoca<br />

pensamentos que sabe que não são certos. O levei a um médico em uma clínica<br />

gratuita, que sugeriu submetê-lo a um tipo de medicação anti-ansiedade, que em<br />

teoria, é toda a raiva nos dias de hoje. Mas Ty nos disse sem rodeios, ao doutor e a<br />

mim que não queria converter-se em «um desses garotos». Tento não chegar muito<br />

tarde. É mais simples.<br />

O ouço cantarolar enquanto faz xixi, sinal de que levará algum tempo, de<br />

modo que dou a volta para observar a chuva. Estamos no final de maio, mas em<br />

Oregon isso não importa. Ainda pode chover e fazer frio em qualquer momento, e<br />

não se pode fazer grande coisa para remediá-lo. Sobre tudo se mora em Seafare,<br />

um povoado na costa do Pacífico, como nós. Para alguém que nunca esteve na<br />

costa de Oregon, ali o oceano não é nada como o da Califórnia. O clima é frio,<br />

brumoso e chuvoso na maior parte do tempo. Claro que desfrutamos de alguns<br />

dias ensolarados, mas o noroeste do Pacífico tem uma fama justificada. Ouvi dizer<br />

que aqui se suicida muita gente. Pessoas esquisitas.<br />

Estamos fazendo o trajeto de cem quilômetros até Portland para pegar meu<br />

melhor amigo, Creed Thompson, no aeroporto. Não o vi desde que veio para as<br />

férias de primavera. É estudante do penúltimo ano na Universidade do Estado do<br />

Arizona, onde cursa ciência da informática. Em breve se formará e começará a<br />

trabalhar na IBM ou no Google e vai ganhar um monte de dólares ao ano, mas,<br />

agora mesmo, segue sendo Creed, o garoto que conheço desde meu primeiro dia<br />

na escola primária de Seafare no segundo ano. Nos demos bem desde o início,<br />

talvez pelo fato de sermos tão opostos. Ele é extrovertido e pode falar com<br />

qualquer um, enquanto que eu não gosto da maioria das pessoas. Seus pais ainda<br />

estão casados (vivos e seguindo em frente). São ricos, mas não tanto para que você<br />

ignore tudo o que possuem. Evidentemente, eu não sou rico. E a vida segue.<br />

O senhor Thompson tinha uma empresa de informática em Seattle no final<br />

dos anos oitenta e princípios dos noventa, e vendeu tudo antes de falir. Então<br />

decidiu que detestava viver na cidade grande e possuir tantas coisas. Vendeu tudo<br />

o que não queria e se mudou com sua família para Seafare. Sempre me chamou a<br />

atenção que o Sr. Thompson parecesse ser a única pessoa rica que detestava ser<br />

rica. Mas isso não o impediu de comprar uma das maiores casas de Seafare, onde


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passei muito tempo ao longo dos anos. Na mesma casa em que brevemente<br />

celebraremos una festa de aniversário surpresa para Ty, sempre e quando possa<br />

mantê-la em segredo.<br />

Os pais de Creed são muito legais, mas me alegro por terem partido. Não<br />

definitivamente, apenas para algum país em uma espécie de retiro, ajudando a<br />

construir casas na África ou curando leprosos na Suécia, o que seja. Sei que estarão<br />

ausentes até novembro, assim teremos uma casa grande à nossa disposição e vazia<br />

por todo o verão. Será bom sair de nosso apartamento decadente durante os<br />

próximos meses.<br />

Não me interpretem mal; tenho amigos. É que a maioria deles estuda em<br />

outro lugar e têm sua própria vida, ou o que quer que seja. A maioria não volta a<br />

Seafare se pode evitar. Os demais eu posso imaginar. Creed regressa<br />

constantemente, afirmando que Arizona está situada, de fato, na superfície do sol,<br />

não ao lado da Califórnia como dizem os mapas. Mas agora que seus pais estão<br />

ausentes a maior parte do tempo, sempre pode voltar aqui e é como se tivesse uma<br />

casa de férias para ele sozinho, o que é genial se gosta desse tipo de coisas. Quando<br />

comentei com ele, me olhou com estranheza e disse que isso não lhe havia ocorrido<br />

em nenhum momento. Já não falamos mais sobre isso.<br />

É difícil manter amizades normais quando se é um tutor de um garoto de<br />

oito anos mais esperto do mundo. A maioria das pessoas não podia entender por<br />

que fiz o que fiz. Diabos, há momentos em que nem mesmo eu o entendo. A única<br />

forma em que posso racionalizar isso é que uma pessoa é capaz de fazer coisas<br />

estranhas quando não há mais outro remédio.<br />

A única outra pessoa com a qual gosto de conviver é a que eu considero<br />

mais ou menos como minha namorada, Anna Grant. Mas vive também em Seafare<br />

e viaja todos os dias ao condado vizinho para frequentar a escola municipal de lá,<br />

assim, não é como se eu não a conseguisse ver. Foi a segunda pessoa que conheci<br />

depois de Creed. Estamos juntos quase sempre, mas isso não significa a maior<br />

parte do tempo. Não é nenhuma piada: em uma ocasião nos encontramos e<br />

rompemos após cinco segundos, quando lhe disse sem querer que parecia ter o<br />

nariz chato desde o ângulo em que eu olhava. Não pretendia ofendê-la; apenas<br />

escapou da minha boca. Aborreceu-se e foi embora feita uma fúria. Cinco<br />

segundos. Mas é minha melhor amiga, assim que, geralmente, procuro não me<br />

preocupar. Percebi que se você se preocupa em excesso, passa menos tempo<br />

fazendo outras coisas.<br />

Como estar de pé debaixo da chuva, em uma parada na estrada, esperando


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seu irmão terminar de fazer xixi. Volto-me para a porta e ainda o ouço cantarolar.<br />

Consulto meu relógio. São duas e meia da tarde. Temos que pegar Creed em meia<br />

hora, e ainda nos restam alguns quilômetros.<br />

—<strong>Kid</strong>, está tudo bem? Temos que ir.<br />

Ouço ele deixar de cantar.<br />

—<strong>Bear</strong>, eu não falo com você quando vai ao banheiro. —Responde<br />

prosaicamente.<br />

Touché!<br />

Sai depois de alguns minutos. Certifico-me de estar no lugar exato no qual<br />

ele me deixou. Vejo que me dirige uma mirada apreciativa ao encontrar-me ali.<br />

Estendo-lhe a mão, ele a pega e regressamos debaixo de chuva.<br />

*********<br />

Página12<br />

—Ali está!<br />

Ty sinaliza entusiasmado. Vejo Creed de pé junto à entrada de um terminal.<br />

Vê-me chegar perto, Ty lhe faz sinais com a mão como um louco e começa a rir. A<br />

maioria das garotas considera que Creed é «enlouquecedoramente quente»<br />

(segundo suas próprias palavras) e suponho, do ponto de vista de um homem, não<br />

está mal. Tem o cabelo loiro, curto e rebelde, dentes brancos e retos, os olhos<br />

verdes, e até admitirei que seja corpulento. Aparentemente acumulou ainda mais<br />

músculos que da última vez que o vi em março. E é alto, o que me amarga a vida,<br />

pois eu meço apenas um metro e setenta e três. E tenho o cabelo escuro. E os olhos<br />

marrons. E sou de pele pálida. E creio, que por alguma razão, ainda conservo<br />

algum dente de leite, porque um é muito menor que os demais. Sempre digo a<br />

Creed que o único motivo pelo qual seja seu amigo é porque é um garoto rico,<br />

grande e loiro. Ele diz que o único motivo pelo qual é meu amigo é porque sou<br />

pequeno, branco e vivo no gueto com meus dentes de leite. Nós nos damos muito<br />

bem.<br />

Abre a porta e coloca suas malas sobre o assento traseiro, ao lado de Ty.<br />

Entra e sorri para mim. Estendendo um braço, o coloca ao redor dos meus ombros<br />

e me puxa para um abraço e noto a água da chuva correndo pelo meu rosto. Dá-me<br />

uns tapinhas nas costas, típico de um abraço entre homens e se afasta.<br />

—E aí, cara? Como está a vida na costa?<br />

Sorrio e encolho os ombros.


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—Igual a última vez que falamos. Acredito que se ocorresse algo grande<br />

você saberia.<br />

Ele sorri novamente e olha por cima do ombro para o banco traseiro e<br />

rapidamente esfrega as mãos sobre a cabeça, salpicando água sobre mim e sobre<br />

Ty. Meu irmão sorri fingindo queixar-se.<br />

— E aí, <strong>Kid</strong>? <strong>Bear</strong> está te tratando bem, ou eu tenho que lhe dar algumas<br />

palmadas por você?<br />

Ty leva uma mão até seu rosto, em um gesto de concentração e pensa por<br />

um momento.<br />

—Talvez somente um açoite. Não me deixou comprar o documentário sobre<br />

a PETA 2 da loja de vídeo.<br />

—Isso foi há um mês! —protesto, sabendo o que viria a seguir.<br />

Ty me fulmina com o olhar.<br />

—Não me esqueço das coisas.<br />

Creed começa a rir.<br />

—Então um açoite. —Diz, e me dá um soco no ombro.<br />

Sim, não há dúvida de que adquiriu músculo.<br />

—Bastardo. —Resmungo, esfregando o ombro. — Deveria ter visto esse<br />

documentário. Não falava mais do que como se converter em um ecoterrorista e<br />

lutar contra o sistema. Se <strong>Kid</strong> o tivesse comprado, seguramente já teria colocado<br />

uma bomba em algum famoso por vestir peles.<br />

—Ei, não reclame. —Disse Creed. —Pelo menos não foi como da última vez,<br />

quando pediu três açoites por não comprar-lhe sua marca de leite de soja preferida.<br />

Como podia esquecer? Havia ficado com a marca no braço durante um mês.<br />

Ty fala por mim.<br />

—Agora me traz a marca correta. E, <strong>Bear</strong>, não posso acreditar que disse que<br />

era «como lutar contra o sistema». Suponho que seja desanimador para qualquer<br />

criança descobrir que seu irmão maior segue vivendo na época de Reagan.<br />

Nem sequer sei o que significa isso.<br />

Uma hora mais tarde, ainda estamos na estrada por culpa de um<br />

engarrafamento e chove com mais intensidade. Creed nos está contando como<br />

estão as coisas no Arizona, mais para Ty que para mim, já que converso com ele<br />

várias vezes por semana. Ty lhe falou do novo professor da escola, ao que teve que<br />

corrigir em algumas ocasiões quando se equivocou nas aulas, e lhe contou como eu<br />

tive que participar de uma reunião de irmão e professor (se nega a chamá-la pais e<br />

2<br />

Organização não governamental que defende os direitos dos animais.


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Página14<br />

professores). Faz uma careta quando conta a Creed que o senhor Epson qualificou<br />

a Benjamin Franklin como um bom presidente. Creed rapidamente me olha, eu<br />

aceno com a cabeça e, então, se volta horrorizado para Ty, perguntando como<br />

alguém pode confundir-se a esse ponto.<br />

—Eu já sei por que! —murmura Ty em tom ameaçador. —Pelo visto não<br />

pedem nenhum nível para ensinar o terceiro ano. E ainda nos falta um mês para<br />

terminar a escola.<br />

Dez minutos depois, Ty deixou de falar e dormiu com a cabeça recostada<br />

sobre as malas de Creed. Este dá uma olhada para certificar-se de que <strong>Kid</strong> está<br />

dormido e se volta para mim e diz em voz baixa:<br />

—Eu pensei que Benjamin Franklin foi presidente.<br />

—Eu também! Tive que pesquisar para ter certeza. Pelo visto, não fez<br />

muitas coisas que eu acreditava que havia feito.<br />

—Mas tinha muito dinheiro, não?<br />

—Sim, de fato. Como ele fez isso se não foi presidente?<br />

—Seguramente possuía um pau grande.<br />

Sorrio.<br />

—Quer dizer que quanto maior o seu pau, maior seu faturamento, ou algo<br />

assim?<br />

—Sim. Pobre George. —diz Creed, rindo. —Certamente, eu obteria uma<br />

nota de um milhão de dólares.<br />

—Não existem notas de um milhão de dólares.<br />

—Sim, claro. Mas eles não viram quão grande é meu pau. —Ambos rimos.<br />

Então se cala e me olha. —Me alegro de ver você, <strong>Bear</strong>. Obrigado por ter vindo me<br />

pegar.<br />

Dou de ombros.<br />

—Claro. Não é todo dia que você vem para cá, assim, que não importa.<br />

Como se saiu nos seus exames finais?—Pergunto, tentando prolongar a conversa<br />

aonde inevitavelmente chegará.<br />

Resmunga e tapa o rosto.<br />

—Um pesadelo. Não acredito que me deixem voltar no próximo semestre.<br />

—Mentiroso.<br />

Creed sorri.<br />

—Tem razão. <strong>Bear</strong>, poderia ter feito essa merda dormindo. Estou ficando<br />

tão entediado da universidade. Estou fazendo este estágio estúpido agora, e é<br />

literalmente a coisa mais idiota que eu já fiz. Pelo visto «estagiário» significa


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página15<br />

«garoto de recados». —Sacode a cabeça. —Mas quando me formar terei uma boa<br />

recomendação. Falando nisso, ainda que falte um ano, procure se lembrar de que<br />

você e <strong>Kid</strong> terão que estar em Phoenix para assistir à entrega de meu diploma<br />

universitário.<br />

Concordo com um aceno de cabeça.<br />

—Dará tempo suficiente para economizar algum dinheiro. Provavelmente<br />

poderia conseguir arranjar isso, pelo menos para um par de dias.<br />

Maldição! Por que tinha que…?<br />

—<strong>Bear</strong>, se me deixasse… — Começa Creed, indo para a mesma velha dança<br />

que há muito tempo já memorizei seus passos.<br />

Interrompo-lhe.<br />

—Não comece outra vez. Sabe que se precisasse de ajuda, lhe pediria. Não<br />

sou demasiado orgulhoso para não saber pedir quando a necessite.<br />

Ele olha para fora da janela.<br />

—Sei que se certificaria de garantir todas as necessidades de Ty, mas não<br />

pediria ajuda para si mesmo.<br />

Não respondo por que sei que é verdade, e qualquer coisa que dissesse em<br />

sentido contrário pareceria vazio para ambos.<br />

Creed me encarou.<br />

—Vamos, <strong>Bear</strong>. Sabe que me preocupo com você e com <strong>Kid</strong>. É meu direito<br />

como seu melhor amigo e minha obrigação como o tio Creed.<br />

—Sei disso. —Disse irritado. —Mas atualmente estamos indo bem. Estou<br />

quase colocando as contas em dia. Não estamos tão atrasados com o aluguel como<br />

no ano passado. As únicas coisas que realmente me preocupam agora são o que<br />

fazer com a escola de <strong>Kid</strong> no ano que vem e… — Olho para trás para verificar se<br />

Ty ainda dorme.— Sua festa de aniversário.<br />

—A reunião de irmão-professor?<br />

—A reunião de irmão-professor. Aparentemente ele é uma perturbação em<br />

sala, mas até o professor e o diretor creem que se deve ao fato de ele ser inteligente<br />

demais para seu nível escolar. Querem transferi-lo para a quinta série no ano que<br />

vem, mas não sei.<br />

Creed solta um assobio.<br />

— Pular uma série? Como diabos chegou a ser tão esperto? —Sorri e me dá<br />

um golpe amistoso no ombro. —Sabemos que isso não é nada parecido com o que<br />

você fez.<br />

Devolvo-lhe o golpe, tendo o cuidado de não desviar o carro e acabar em


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página16<br />

uma vala.<br />

—Não me diga! Isso eu já sei. Apenas me pergunto se é necessária a<br />

alteração de classe. Não sei se seria bom para ele. —E realmente acredito nisso.<br />

Não sei se é uma bênção ou maldição que minha mãe tenha optado por deixar-me<br />

com o garoto mais esperto do planeta. —Independentemente do que eu decida,<br />

querem uma resposta até duas semanas antes de começar o novo ano escolar, para<br />

matriculá-lo em uma classe.<br />

—E já não lhe perturbam mais a respeito da procuração? —Pergunta ele.<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Não. Não tanto como no princípio. Mas eles estão lidando comigo desde<br />

que Ty estava no jardim de infância. Sabe? Assisti a mais reuniões como esta do<br />

que a minha mãe. A única coisa que realmente mudou foi que não se necessita<br />

mais o visto de ‘ok’ dela.<br />

Naturalmente, aquilo me havia assustado no princípio: que tivesse o poder<br />

de ditar a última palavra sobre todas as coisas relacionadas a Tyson. Mesmo que<br />

houvesse sido eu quem participava dessas reuniões com professores e as consultas<br />

médicas quando minha mãe ainda estava conosco, normalmente era ela quem<br />

tomava as decisões. Lembro-me de temer que tudo o que fazia sairia mal e que não<br />

haveria ninguém para consertar meus erros. Quando olho para trás, não entendo<br />

muito bem como sobrevivemos até agora. Por pura força de vontade, talvez.<br />

Creed se volta para olhar Ty e depois para mim.<br />

—Cara, se você me tivesse dito há três anos que teríamos esta conversa lhe<br />

diria que estava drogado.<br />

—Eu sei. É uma loucura, não?<br />

Ele ri.<br />

—Um papai <strong>Bear</strong> total. —Olha para fora da janela quando entramos no<br />

limite da cidade de Seafare. —Ah, lar, doce lar! Sabia que quando sai de Phoenix<br />

fazia 45 graus ao sol?<br />

Faço uma careta. Não entendo como alguém pode viver em um clima assim.<br />

<strong>Kid</strong> e eu fomos visitar Creed durante suas férias de final de ano a alguns anos<br />

atrás. Na véspera do natal fazia calor e tomamos banho na piscina durante um<br />

churrasco em que fomos. Podia jurar que havia contraído câncer de pele durante a<br />

semana em que estivemos lá. <strong>Kid</strong> me disse que eu era uma rainha do drama.<br />

Arizona é um lugar estranho. Prefiro o oceano e o frio.<br />

Entro na Seaway Avenue, que desemboca no setor de Pinecrest Coast, onde se<br />

encontra a casa de Creed. E antes que isso chegue mais longe, deixe-me repetir


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página17<br />

uma coisa para que fique bem claro. A família de Creed é rica; eu, não. É isso e<br />

basta. Não sou uma espécie clichê de perdido que necessita ser resgatado de sua<br />

vida miserável. Não luto contra aqueles que me oprimem como em alguns desses<br />

filmes. Nada mais é do que a vida real, e é como é e blablablá… Estou bem.<br />

Estamos indo bem. Aprendi em minha curta existência aqui na terra que as coisas<br />

sempre poderiam ser piores.<br />

Creed está dizendo algo sobre uma garota que ele está pegando, quer pegar<br />

ou está quase pegando, quando viramos em sua rua, e as suas palavras são<br />

cortadas. Olho para ele que está olhando pela janela.<br />

—O que houve?<br />

—De quem é o carro que está na entrada da minha casa?<br />

Olho a rua abaixo e, de fato, vejo um Jeep Cherokee velho estacionado<br />

diante da garagem de quatro vagas de Creed. É preto e faltando uma calota em um<br />

dos pneus. Nunca o vi antes e não creio que seja de seus pais.<br />

—Crê que deveríamos parar?<br />

Ele sorri.<br />

—E para onde iremos? Se alguém entrou, pelo menos devo me certificar que<br />

não leve todas as minhas coisas.<br />

Aproximamo-nos da casa o suficiente para comprovar que não há ninguém<br />

no Jeep e perceber que a porta principal está fechada e não arrombada como a<br />

minha mente hiperativa havia pensado.<br />

—Estacione ao lado dele. —Diz, sinalizando uma vaga na garagem. —<br />

Entrarei. Você fique aqui fora com <strong>Kid</strong> e com a janela aberta. Gritarei se precisar de<br />

ajuda.<br />

Reviro os olhos.<br />

—Parece um plano genial. Procurarei socorrer rapidamente. Juntos<br />

poderemos derrotá-los com todas as armas que carrego no carro. Que belo plano.<br />

Creed não disse nada enquanto abre a sua porta e sai na chuva. O vejo olhar<br />

através das janelas da porta da garagem, mas não vê nada que o faça regressar<br />

correndo para o carro. Pego meu celular, disco o 911 e deixo o dedo suspenso sobre<br />

a tecla ligar, por precaução. Dou uma olhada no retrovisor e comprovo que Ty<br />

segue dormindo sobre as malas de Creed.<br />

Creed se dirige até a porta principal, a abre com as chaves e empurra para<br />

dentro, gritando com voz mais grossa e sufocada: ― Olá? ― Me sobressalto e disco<br />

911 sem querer. Olho horrorizado o celular e desligo, esperando que minha<br />

chamada não tenha chegado ao seu destino, porque essa gente pode localizá-lo


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

onde esteja. Levanto os olhos ao mesmo tempo em que Creed se dobra pela<br />

cintura, rindo.<br />

—Nem pensar! —grita para o interior da casa.<br />

Encaminha-se até o carro em que estou, onde ainda ignoro se há ladrões ou<br />

se o 911 retornará a minha chamada.<br />

—Quem é? —Pergunto quando abre a porta.<br />

Creed sorri para <strong>Kid</strong>, dormindo sobre suas malas e me olha com seus olhos<br />

brilhantes.<br />

—Cara, é <strong>Otter</strong>. Meu irmão mais velho voltou para casa.<br />

Página18


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

2<br />

Quando <strong>Bear</strong> tenta explicar várias coisas<br />

Muito bem, já sei o que estão pensando: primeiro <strong>Bear</strong>, e agora um tipo<br />

chamado <strong>Otter</strong>? Posso explicar isso também.<br />

Lembra quando disse que Ty é o motivo pelo qual minha mãe e todo o<br />

mundo começaram a me chamar de <strong>Bear</strong> 3 ? Suponho que foi uma espécie de<br />

vingança cósmica pelo que fiz ao irmão mais velho de Creed. Quando conheci<br />

Creed na tenra idade de oito anos, eu era infinitamente mais tímido do que agora.<br />

Atualmente me sinto mais a vontade em conhecer gente nova. Ou isso, ou<br />

simplesmente os ignoro. Mas naquela época era um pesadelo com estranhos. Tinha<br />

ido à casa de Creed pela primeira vez para brincar e passar a noite. Minha mãe<br />

tinha um novo namorado que requeria todo o seu tempo (oh, já sei: pobrezinho de<br />

mim, não é?) e <strong>Kid</strong> demoraria alguns anos para nascer. Assim, quando minha mãe<br />

percebeu que tinha feito um novo amigo, me impôs imediatamente para aquela<br />

família, que poderia muito bem ter me dado uma olhada e fechado a porta. Mas<br />

não o fizeram e, em pouco tempo, a mãe de Creed já identificava minha voz<br />

quando telefonava, e jantava na casa deles mas frequentemente que na minha.<br />

Então nasceu Ty e tive que abster-me uma temporada para ficar em casa e ajudar<br />

minha mãe.<br />

A primeira vez que fui a casa de Creed estava uma pilha de nervos, e tudo<br />

tinha a ver com aquele ser desconhecido, chamado irmão mais velho. Creed me<br />

disse antes que tinha dezesseis anos e era um idiota, mas que nos deixaria em paz<br />

se nós não o incomodássemos. Naturalmente, aquilo me aterrorizou ainda mais.<br />

Imaginava que aquele adolescente desajeitado me esquartejaria se eu apenas<br />

olhasse para ele, e de repente não queria ir. Supliquei para mamãe, mas ela me<br />

disse que Bill, Frank, John, Bob, ou qualquer que fosse o nome monossílabo do tipo<br />

com que estava saindo no momento, ia levá-la a um lugar elegante, que ela o<br />

merecia e se eu não acreditava que ela merecia isso. E, logicamente, não se falou<br />

mais do tema, e duas horas mais tarde me encontrava no pátio da frente dos<br />

Página19<br />

3<br />

<strong>Bear</strong> (urso) e otter (lontra) fora o fato que são animais, fazem parte do folclore norte-americano, têm alguns<br />

livros infantis baseados neles, música (http://www.youtube.com/watch?v=gX8zWuQtHpE) e também fazem<br />

parte de denominação no universo LGTBS (urso seria uma pessoa alta, forte e peluda, e lontra o homem<br />

esguio, baixo e peludo). Acredito que o <strong>Bear</strong> e <strong>Otter</strong> do livro faz mais parte do significado mais inocente dos<br />

termos.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Thompson com uma mochila dos Transformers, que minha mãe havia comprado<br />

em um mercadinho para a ocasião. Toquei a c<strong>amp</strong>ainha, perguntando como seria o<br />

som de uma casa de rico, e justamente no momento em que me surpreendia ao<br />

comprovar que era igual ao nosso, a porta se abriu.<br />

—Quem é você? —Disse o garoto mais velho, olhando-me com a cara<br />

fechada por cima de seu Gameboy 4 .<br />

A primeira coisa em que pensei foi no quão impressionado eu fiquei ao<br />

perceber que ele tinha um Gameboy. Vocês se lembram daquelas coisas com telas<br />

verdes que reduziam todos os jogos a um purê de ervilhas? Sempre quis um, mas<br />

minha mãe disse que era melhor ter um teto sobre a cabeça. Nunca fui capaz de<br />

discutir esse tipo de lógica.<br />

A segunda coisa que me lembro é de que Creed havia dito que seu irmão<br />

podia ser um idiota, e portanto, isso significava que era capaz de assassinar e que<br />

não vacilaria em me assassinar. De modo que gritei meu nome e perguntei se<br />

Creed estava em casa. Ele chamou Creed gritando por cima do ombro e se afastou.<br />

Não sabia se o seguia ou esperava onde estava. Minhas pernas se negavam a<br />

mover-se, assim que, decidi que era melhor esperar do lado de fora. Creed<br />

apareceu na porta, me pegou pelo braço e me puxou. Entrei e cumprimentei seus<br />

pais, com os quais já tinha me encontrado várias vezes. Creed me levou ao seu<br />

quarto para que eu deixasse as minhas coisas ali. Passamos diante de outra porta,<br />

cujas dobradiças estavam a ponto de saltar pelo efeito das vibrações da música<br />

pulsando profundamente de dentro e que tinha uma placa com a letra quase<br />

ilegível. E jurarei por Deus até o meu último dia, que estava escrito: QUARTO DE<br />

OTTER. PROIBIDA A ENTRADA.<br />

Pois bem, eu não sabia como se chamava o irmão mais velho de Creed<br />

quando cheguei, e durante o trajeto até o quarto de Creed me perguntava por que<br />

seu irmão se chamava assim. Perguntei-lhe isto tranquilamente em seu quarto<br />

depois de certificar-me que ninguém podia me ouvir, pois não queria incorrer na<br />

ira de alguém em algum lugar. Eu me lembro de Creed rindo histericamente, até o<br />

ponto de lágrimas.<br />

Sabe quando alguém acha algo muito divertido do qual você não consegue<br />

ver nenhuma graça, mas ele ri tanto que finalmente faz você rir também? Pois isso<br />

Página20<br />

4


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

foi o que ocorreu. Lá estávamos nós, rindo como loucos, com um de nós sem<br />

entender o que era tão engraçado. Entre respirações entrecortadas e muco saindo<br />

pelo nariz, finalmente Creed me disse que seu irmão se chamava Oliver.<br />

Tudo ia bem até que Creed sacou esse tema enquanto jantávamos.<br />

Nesse momento desejei, como nunca o fiz antes, poder desaparecer, me<br />

tornar invisível, cair morto, qualquer coisa para que eu pudesse escapar da minha<br />

estupidez absoluta. Naturalmente eu presumi que todos estariam rindo de mim.<br />

Percebi meu rosto ardendo enquanto tentava pensar em algo divertido que tinha<br />

visto para conter as lágrimas. Mas finalmente, por sorte, a conversa passou para<br />

outra coisa. Estive lançando olhares de soslaio a Oliver, perguntando-me até que<br />

ponto se havia aborrecido comigo e como planejava vingar-se. Em uma ocasião me<br />

surpreendeu olhando-o e me dirigiu um sorriso torto. Seus olhos brilharam.<br />

Desviei o olhar.<br />

A próxima vez que fui a casa dos Thompson todos o chamavam de <strong>Otter</strong>.<br />

*******<br />

Página21<br />

Estendo um braço e sacudo <strong>Kid</strong> ligeiramente, tratando de despertá-lo. Não<br />

gosta de acordar em lugares estranhos, assim, é uma missão delicada. Finalmente<br />

abre os olhos, olha ao seu redor até que me encontra e relaxa visivelmente.<br />

—O que está acontecendo, <strong>Bear</strong>? —Pergunta, bocejando.<br />

—Estamos na casa de Creed. Lembra-se que disse que viríamos aqui esta<br />

noite? Está tudo bem mesmo, a gente ficar aqui um pouco?<br />

Em realidade tinha a intenção de passar a noite aqui, mas agora com <strong>Otter</strong>,<br />

isso já não me agradava. É uma longa história.<br />

Kit se estica e concorda com um aceno de cabeça.<br />

—Será que Creed ainda tem o History Channel na TV?<br />

Tento disfarçar um sorriso, mas sem muito sucesso.<br />

—Tenho certeza que sim. Mas não quer ver os desenhos animados ou outra<br />

coisa assim? —Me olha como se estivesse louco. Suspiro e me recordo uma vez<br />

mais o pouco convencional que meu irmão é e o normal que isso resulta. Vacilo<br />

antes de pronunciar as seguintes palavras, mas apenas por um momento. —<br />

Adivinha, <strong>Kid</strong>. <strong>Otter</strong> também está aqui.<br />

<strong>Kid</strong> fica quieto por um momento, pensativo.<br />

—Já passou algum tempo. —Se limita a dizer por fim.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página22<br />

Retira rapidamente o cinto de segurança sai do carro para a chuva. Ergo o<br />

zíper de sua jaqueta, e percebo como está apertada nele e me pergunto se devo<br />

comprar-lhe uma nova. Tento me lembrar se tem alguma outra jaqueta no armário<br />

de casa, mas não me recordo. Não importa. Por enquanto. De momento, parece<br />

estar bem.<br />

—<strong>Bear</strong>, vai entrar ou o quê? —Pergunta Creed da porta.<br />

Sobressalto-me ao perceber que Ty já entrou correndo e eu estou em pé na<br />

calçada me molhando. Sorrio envergonhado e passo a mão pelo cabelo.<br />

Quando entro na casa ouço Ty gritar por <strong>Otter</strong> enquanto sobe a escada<br />

precipitadamente. Creed me olha e revira os olhos.<br />

—Suponho que já me substituiu.<br />

—Não se queixe. —lhe digo. —<strong>Kid</strong> acha você legal, mas «<strong>Otter</strong> é fenomenal!».<br />

Trato de imitar a voz aguda de <strong>Kid</strong>.<br />

—É a história da minha vida.—Murmura Creed.<br />

—Por que ele está aqui? —Pergunto em um tom despreocupado, mas Creed<br />

não me ouve.<br />

O sigo para a cozinha, de onde ouço a <strong>Otter</strong> descer pesadamente a escada e<br />

Ty falando sem parar. Os vejo passar junto ao aquário, ao pé da escada e percebo<br />

que Ty já está pendurado nas costas de <strong>Otter</strong>, com seus braços amigavelmente ao<br />

redor do seu pescoço, enquanto ri em seu ouvido. <strong>Otter</strong> tem o mesmo sorriso torto<br />

em seu rosto, que sempre teve. Lembro-me de quando ele era capaz de me carregar<br />

assim. É um pouco mais baixo que Creed, mas mais musculoso. Todo o resto,<br />

desde o cabelo loiro muito curto, até os olhos verdes, é idêntico. Claro, é mais<br />

velho que Creed e eu, vinte nove anos, em comparação aos vinte e um que<br />

acabamos de fazer. Na verdade, não mudou muito nesses últimos anos.<br />

Surpreendo-me estranhamente fascinado pelas veias que se incham em seus braços<br />

enormes, pela descomunal largura de suas costas sob a camiseta que usa. Suas<br />

mãos gigantescas, as rugas de expressão que se formam no canto de seus olhos<br />

quando sorri. Há algo rondando a minha cabeça, mas não posso pensar nisso agora<br />

e me repreendo em silêncio por fixar-me nessas coisas sobre ele. Sobre mim<br />

mesmo. Que diabos me importa?<br />

<strong>Otter</strong> deixa <strong>Kid</strong> sobre o balcão da cozinha, ainda lhe dedicando toda a<br />

atenção. Ty lhe conta alguma história relativa aos prejuízos da produção de<br />

presunto e baixa os olhos por um momento. É então, quando <strong>Otter</strong> olha um<br />

instante por cima da cabeça de Ty e me procura. Seus olhos encontram os meus e<br />

<strong>Otter</strong> exibe seu outro sorriso característico antes de voltar rapidamente sua atenção


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página23<br />

para <strong>Kid</strong>. Sabe melhor que ninguém que quando Ty está falando com você sobre<br />

algo tão importante como a fabricação de presunto, deve lhe fazer caso como se<br />

fosse a última coisa que ouvirá em sua vida. Tento não fixar-me em meu passo<br />

vacilante quando <strong>Otter</strong> desvia o olhar.<br />

Entro na cozinha. Creed pega umas cervejas da geladeira e me oferece uma<br />

e a pego. Lança a outra a <strong>Otter</strong>, que a captura habilmente com uma mão, sem<br />

desviar os olhos de Ty em nenhum momento. Ty se interrompe em uma frase, e<br />

então Creed exclama:<br />

—<strong>Kid</strong>, quer uma cerveja?<br />

Ty arregala os olhos antes de entrecerrá-los com receio.<br />

—E se digo que sim?<br />

Creed dá de ombros.<br />

—Então diria que deveria perguntar a Papai <strong>Bear</strong>.<br />

<strong>Kid</strong> me lança um olhar de soslaio antes de dirigir-se a Creed.<br />

—<strong>Bear</strong> e eu já conversamos sobre isso, e ele acredita que já sou grande o<br />

suficiente.<br />

Sobressalto-me.<br />

—Um inferno que conversamos! Pequeno mentiroso.<br />

<strong>Kid</strong> se vira para olhar a <strong>Otter</strong>, que se esforça para parecer sério.<br />

—Você acredita em mim, não é, <strong>Otter</strong>? —Pergunta, fazendo com que sua<br />

voz pareça a de um pobre órfão mendigando algo de comer.<br />

<strong>Otter</strong> não pode conter-se mais e estala em gargalhada, um som estrondoso<br />

que retumba por toda a cozinha de azulejos. Ty cruza os braços com a testa<br />

franzida.<br />

<strong>Otter</strong> se acalma um momento e baixa os olhos para o garoto que tem diante<br />

dele.<br />

—Faremos uma coisa. —Propõe. Ty lhe presta a atenção imediatamente. —<br />

O que acha se lhe dou um gole de minha cerveja, mas só um gole, e depois vou<br />

buscar um sorvete de soja?<br />

Sorvete de soja? Deveria ter pensado nisso.<br />

Ty olha para <strong>Otter</strong> por um momento para certificar-se de que não está<br />

brincando e depois olha para mim, com os olhos suplicantes. Finjo pensar um<br />

pouco enquanto <strong>Otter</strong>, Creed e <strong>Kid</strong> começam a emitir sons lamuriosos,<br />

mendigando, implorando. Levanto as mãos para o ar e Ty sabe que me venceu.<br />

<strong>Otter</strong> pega sua garrafa de cerveja e a passa para Ty, dizendo:<br />

—Pode beber até que conte três e, então, chega. De acordo? —Ty concorda e


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página24<br />

leva a garrafa até a boca. —Um, dois… e três. Basta.<br />

Tira-lhe a garrafa de Ty, que fica um momento quieto antes de soltar um<br />

forte arroto. Todos nós rimos, e <strong>Otter</strong> choca a mão com a de <strong>Kid</strong>, que sorri,<br />

sabendo que agora é um dos nossos.<br />

<strong>Otter</strong> levanta facilmente Ty do balcão e o coloca no chão. Com sua voz mais<br />

rouca, pergunta se está demasiado bêbado para andar e se sabia que isso era ilegal.<br />

Ty responde que sabe que era ilegal, mas que foi pressionado a isso, como Creed<br />

que me incitou a beber pela primeira vez.<br />

Creed revira os olhos, se inclina até mim e sussurra:<br />

—Foi isso que você lhe disse? Seu mentiroso.<br />

—O que posso dizer? —lhe respondo. —Era jovem e impressionável e me<br />

coagiu.<br />

Creed engasga com sua cerveja e a derrama no chão. Busca um pano ao<br />

mesmo tempo em que xinga. Enquanto sorrio satisfeito a Creed, noto um braço<br />

forte que se posa sobre meu ombro. Olho e vejo <strong>Otter</strong> de pé ao meu lado com seu<br />

sorriso torto. Seus dentes são grandes e brancos.<br />

—Olá, <strong>Bear</strong>. —Diz <strong>Otter</strong>.<br />

Seus olhos transmitiam determinação.<br />

—Olá, <strong>Otter</strong>. —respondo, lhe devolvendo o olhar e resistindo ao impulso de<br />

afastar seu braço.<br />

Durante um momento parece a ponto de falar, mas algo parece surgir em<br />

sua cabeça que o faz mudar de ideia e recua. Abraça-me com um braço, retrocede e<br />

se coloca em frente a mim, com os olhos fixos na cerveja que tem na mão.<br />

Pergunto-me o que teria havido e o que ele esteve prestes a me dizer. Pergunto-me<br />

muitas coisas, mas são todas abafadas pelo som da chuva sobre o telhado. Baixo o<br />

olhar para Creed, mas segue centrando sua atenção na cerveja derramada, assim<br />

não tinha visto nada. Não que houvesse algo para ver. Volto a olhar para <strong>Otter</strong>, e<br />

estou tratando de ordenar minha confusão mental quando ele diz:<br />

—Bem, o que conta de novo, Papai <strong>Bear</strong>?<br />

Dou de ombros.<br />

—Nada de novo, suponho. Como tem passado? Não te vejo desde…<br />

Quando? O penúltimo natal?<br />

Digo essa última parte com frieza, pois ambos sabemos perfeitamente<br />

quando foi a última vez que o vi.<br />

Dispõe-se a falar novamente, mas desta vez é interrompido por Creed.<br />

—Sim, o que aconteceu <strong>Otter</strong>? Não que me importe, mas, por que veio? San


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página25<br />

Diego tem te oprimido muito?<br />

<strong>Otter</strong> encolhe os ombros, e não acredito que vá responder, quando diz:<br />

— Senti que precisava de uma mudança de cenário por um tempo.<br />

Toma outro gole de sua cerveja e não fala mais nada, o que me deixa louco.<br />

Formou-se na Universidade de Oregon, em Eugene, e ficou em Seafare uma<br />

temporada. Depois que minha mãe partiu, aconteceu algo inesperado e, então,<br />

<strong>Otter</strong> também se foi. Só o vi uma vez durante os últimos três anos. Sei que trabalha<br />

em uma espécie de agência de fotografia ali, onde seu trabalho é uma merda<br />

aparentemente quente. A casa em que me encontro agora está repleta de suas<br />

fotografias, o equivalente de seus desenhos coloridos e provas com suas boas notas<br />

que sua mãe colocou na geladeira.<br />

—Sei —diz Creed. — Tem certeza que não é nenhum problema com o seu<br />

namo …?<br />

—Tio Creed! —Grita <strong>Kid</strong> da sala interrompendo Creed, mas não antes de<br />

ver o olhar de advertência que lhe dirige <strong>Otter</strong>.<br />

Creed sorri satisfeito e grita de volta:<br />

—O que foi, <strong>Kid</strong>?<br />

—<strong>Otter</strong> já foi comprar o sorvete de soja?<br />

<strong>Otter</strong> começa a rir.<br />

—Está insinuando que tenho que ir agora mesmo?<br />

—Sim. Não pretendia ser rude, mas gostaria de tomar o sorvete enquanto<br />

assisto meu programa.<br />

—Que programa é esse? —Pergunto, tentando recordar se ele já havia me<br />

dito.<br />

—É um programa sobre a história dos abatedouros nos anos 20. —Responde<br />

ele.<br />

—Oh, Santo Deus —murmurro.<br />

Não há nada tão desmancha prazer que ver como se fazem os<br />

hambúrgueres. Nem nada tão aborrecido como a história que há por trás. Viro-me<br />

para desculpar-me com Creed e <strong>Otter</strong>, mas Creed me detém, porque sabe que é o<br />

que pretendo.<br />

—<strong>Bear</strong>, cale a boca e deixa que <strong>Kid</strong> faça o que quiser. — termina sua cerveja<br />

e abre a geladeira para pegar outra, dizendo: —Além disso, eu também quero<br />

assistir e comprovar quanto demoro para me embriagar o suficiente para que me<br />

pareça divertido. Por que você não vai com ele? —Me sugere. —Deixe Ty passar<br />

um tempo com o tio Creed e dê a você algum tempo livre.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página26<br />

Eu posso pensar em pelo menos quatrocentas razões por que essa é uma má<br />

ideia e olho para <strong>Otter</strong>, que está buscando suas chaves.<br />

—Você quer que eu vá? —Pergunto.<br />

Arrependo-me tão pronto quando digo essas palavras. Minha boca tem<br />

tendência a mover-se sozinha.<br />

<strong>Otter</strong> parece surpreendido, ainda que concorde de imediato. Digo-lhe que<br />

volto logo e vou em busca de <strong>Kid</strong>.<br />

Eu ando pela sala, parando para olhar de vez em quando as fotos nas<br />

paredes. Há uma foto, em torno de quinze anos atrás, de Creed, <strong>Otter</strong> e seus pais.<br />

Também outras individuais de Creed, <strong>Otter</strong> e demais membros da família: avós,<br />

tias, tios… Antes me causava estranheza ver essas fotografias. Em nossa casa não<br />

tínhamos nada parecido. Minha mãe disse que, quando eu tinha sete anos, me<br />

levou com ela para tirarmos fotos «profissionais». Lembro-me que disse isso com<br />

orgulho. Mas quando lhe perguntei onde estavam aquelas fotos, respondeu que<br />

não se lembrava.<br />

Aproximo-me de outra fotografia no corredor e me detenho. É uma foto em<br />

preto e branco, e foi tirada quando Creed e eu tínhamos quinze anos. <strong>Otter</strong> a tirou,<br />

e nos mostra saltando de um tr<strong>amp</strong>olim gigante que existia antes no jardim de trás.<br />

<strong>Otter</strong> nos captou na metade do salto, com nossos cabelos mais longos e selvagens<br />

ao redor de nossos rostos e nossas camisetas um pouco levantadas sobre o<br />

estômago, deixando descobertas umas faixas de pele branca. Olho-me na foto e me<br />

dou conta de como estou diferente. De como as coisas são diferentes agora.<br />

Durante todo o tempo de escola fui demasiado franzino, até que finalmente<br />

adoeci e decidi me exercitar. Não sou tão grande como Creed, mas melhorei muito<br />

desde então. Meu rosto não é tão mal e minha pele é clara. Não sou bronzeado,<br />

mas a maioria da gente que vive aqui t<strong>amp</strong>ouco é. Tenho os olhos castanhos e o<br />

cabelo negro; que já deveria ter cortado. Tenho uma cicatriz branca na testa, perto<br />

da sobrancelha direita, onde Creed me acertou sem querer com um bastão de<br />

alumínio quando tinha treze anos. Foi preciso quatro pontos, e minha mãe esteve<br />

comigo na sala de emergência, dizendo que eu deveria ver se eu poderia obter<br />

qualquer Vicodin. O consegui e dei a ela.<br />

Nunca me preocupei com as aparências e nem sou vaidoso (geralmente). Na<br />

verdade não tenho tempo para isso. Não possuo roupa elegante, nem cortes de<br />

cabelo caros, e t<strong>amp</strong>ouco vejo qualquer necessidade. Preocupa-me mais ter um teto<br />

sobre nossas cabeças e comprar para Tyson sapatos novos quase a cada duas<br />

semanas. Não sei como é possível que um garoto de nove anos gaste tantos pares


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página27<br />

de sapatos. Assim, com tudo isso, eu aprendi que é muito mais fácil ser humilde<br />

quando você é forçado a fazê-lo. Você pode considerar isso uma lição de vida de<br />

mim para você. Não precisa agradecer.<br />

Respiro fundo e volto a olhar a foto, um momento capturado do que parece<br />

uma eternidade atrás.<br />

Entro na sala e vejo <strong>Kid</strong> reclinado no sofá, com a cabeça sobre um<br />

travesseiro e os olhos muito abertos, enquanto assiste outro programa que parece<br />

tirado do filme original A matança de Texas.<br />

—<strong>Kid</strong>. —Resmungo para ele. —Não sei como isso não lhe provoca<br />

pesadelos. A mim me causa arrepios.<br />

—Talvez se sinta culpável pelo que come. —Replica inexpressivamente, sem<br />

levantar os olhos para mim.<br />

—Espertinho.<br />

Inclino-me e lhe faço cócegas bem debaixo de suas costelas, ali onde sei que<br />

é mais sensível. A mamãe e a mim nos ocorre o mesmo. Ty trata de conter o riso,<br />

mas logo começa a gritar «<strong>Bear</strong>, <strong>Bear</strong>!» enquanto tenta escapar. Finalmente paro, e<br />

ele me olha com uma expressão tal, que por um momento me sinto cegado pelo<br />

amor que sinto por este garoto, meu <strong>Kid</strong>, uma sensação que me deixa sem alento.<br />

Beijo o topo de sua cabeça e ele exclama: «Que nojo!», mas está tudo bem.<br />

— Tudo bem se você ficar aqui com Creed um pouco enquanto <strong>Otter</strong> e eu<br />

vamos buscar o seu sorvete? —Pergunto quando me recomponho um pouco.<br />

Ty aparta os olhos da televisão e os fixa nos meus.<br />

—Mas voltará, não?<br />

Sorrio tranquilizadoramente e lhe embaraço seu cabelo, ali onde acabo de<br />

beijá-lo.<br />

—É isso aí, <strong>Kid</strong>. Não vou demorar muito. Deve levar pouco tempo, mas<br />

para ser mais preciso, me conceda uma hora, combinado? —Consulta seu relógio,<br />

verifica a hora e concorda. Eu faço o mesmo e vejo que são quase sete. —Está com<br />

seu celular? —Pergunto. Volta a assentir e o tira do bolso. —Muito bem. Volto<br />

logo, mas me liga se precisar de algo.<br />

Ty assente uma vez mais, concentrado em seu programa. Volto a acariciarlhe<br />

a cabeça e regresso à cozinha.<br />

Talvez lhes resulte estranho que tenha um celular. Parece que agora muitos<br />

garotos de sua idade os tem. Não é algo que possa me dar ao luxo agora, mas devo<br />

resignar-me. Aprendi, pouco depois que minha mãe se foi, que se Ty tivesse um<br />

meio para localizar-me, ficava melhor quando estava afastado de mim. Nunca usa


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página28<br />

o celular para ligar para outra pessoa, e além de Creed, Anna, a senhora Paquinn (a<br />

vizinha do lado, já falarei dela mais adiante) e, de vez em quando <strong>Otter</strong>, ninguém<br />

mais liga para ele nesse celular. Se alguém necessita localizá-lo, o faz através de<br />

mim.<br />

Estou a ponto de entrar na cozinha quando ouço vozes sussurrando. Paro e,<br />

em seguida me sinto culpado por espionar. Mas de todas as formas escuto. Estão<br />

falando de mim, assim que considero ter o direito de ouvir o que dizem.<br />

—Em que estava pensando quando disse uma coisa assim? —Espeta <strong>Otter</strong>.<br />

—De que merda está falando, <strong>Otter</strong>? —Creed parece divertido e aborrecido<br />

ao mesmo tempo, algo para o qual possuiu um grande talento. —Ele já sabe. Disselhe<br />

há algum tempo. Não tem problema. Ele não se importa.<br />

—Não me refiro a isso! Não dou a mínima para quem o saiba! —<strong>Otter</strong><br />

parece aborrecido e me sinto sem ar. Não quero que diga nada mais. Mas ele o faz.<br />

—Não se trata disso! Pelo amor de Deus, Creed! Se ele soubesse…—Cala boca,<br />

<strong>Otter</strong>! Cale-se!— Além disso, seu eu quisesse que ele soubesse algo, eu mesmo o<br />

diria. Não se meta nisso!<br />

Mas Creed insiste:<br />

—Então foi mesmo por isso que voltou, não é? Não deu certo entre você e…<br />

Como se chama?<br />

—Creed, te peço, por Deus, pare com isso! Não quero falar sobre isso agora!<br />

Ouço que alguém golpeia sua garrafa de cerveja contra o balcão, e suponho<br />

que seja <strong>Otter</strong>.<br />

—Calma, grande irmão. Como disse, <strong>Bear</strong> não se importa.<br />

Oh, Creed.<br />

Na cozinha se faz silêncio, e percebo que ainda contenho a respiração. Soltoa<br />

devagar e não gosto de ouvir o alterado que soa. Mas isso se aproximou ao que<br />

nunca quis ouvir em voz alta. Não se trata disso… Se ele soubesse! Suas palavras<br />

ressoam em meus ouvidos e me sinto enjoado. Está bem. Pode ser que haja algo<br />

mais que deveria lhes explicar…<br />

—O que está fazendo, <strong>Bear</strong>? —Diz <strong>Kid</strong> em voz alta atrás de mim.<br />

Sobressalto-me para a direita e bato a cabeça contra a parede. Acerto uma<br />

foto, e um segundo depois, ouço despedaçar-se no chão. «Maldito seja, <strong>Kid</strong>!»,<br />

penso com raiva, sabendo que estou mais aborrecido comigo mesmo que com ele.<br />

Olho para Ty, de pé no corredor, com as mãos nos bolsos e um grande “O” nos<br />

lábios. Murmuro algo incoerente e me agacho para recolher os pedaços de vidro,<br />

antes que alguém pise neles. Creed sai da cozinha e posso sentir seu sorrisinho


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página29<br />

sobre minha pele ardendo.<br />

—Sinto muito. —Digo, apertando os dentes.<br />

—Que porra é essa? —Responde ele alegremente. —Não necessito que<br />

minha bonita casa se transforme em um gueto.<br />

Solto uma gargalhada áspera. Olho a foto e percebo que é outra das que<br />

<strong>Otter</strong> havia tirado. Mostra Creed e sua mãe na cerimônia de graduação do nosso<br />

colégio. Eu estou próximo dali, fora do enquadramento, dando a mão a Ty e<br />

segurando o cartaz que ele e a senhora Thompson fizeram para mim, que estava<br />

escrito: VIVA BEAR! A foto captura Creed no momento perfeito da juventude<br />

selvagem, com o diploma em uma mão e a outra rodeando a sua mãe. Tem no<br />

rosto um sorriso tão grande que quase se podem contar seus dentes brancos e<br />

impecáveis. Bem, poderia fazê-lo antes de cair no chão, porque agora há um corte<br />

lhe atravessando o rosto. «Merda!» penso, ao mesmo tempo em que noto que estou<br />

mais corado. Antes que possa dizer algo mais, <strong>Otter</strong> está agachado junto a mim<br />

recolhendo os fragmentos de vidro.<br />

—<strong>Otter</strong>, sou um desastrado. Sinto muito. —Sussurro, perguntando-me por<br />

que me sinto tão mal.<br />

Noto que encolhe os ombros, enquanto seu braço roça o meu.<br />

—É apenas uma foto. —Diz.— E nem sequer é boa. Qualquer um com uma<br />

câmera pode tirar fotos e dizer que é fotógrafo.<br />

Suspira, e percebo a amargura saindo dele em ondas. Pergunto-me se diz<br />

essas coisas para consolar-me. Pergunto-me se está realmente tão farto de mim<br />

como eu estou dele. Pergunto-me qual é o verdadeiro motivo para estar aqui.<br />

Pergunto-me tantas coisas.<br />

—Larga isso, <strong>Bear</strong>. —Diz Creed, se erguendo sobre mim. —<strong>Kid</strong> e eu<br />

podemos recolher isso. Seu programa está começando e <strong>Otter</strong> lhe deve um sorvete.<br />

—Um sorvete de soja. ― Especifica Ty dando ênfase na última palavra, para<br />

assegurar-se de que não nos esquecemos.<br />

—É isso aí! —exclama Creed.<br />

Rodeia-me e levanta Ty para carregá-lo sobre o ombro. Ty ri como somente<br />

as crianças podem fazê-lo, enquanto Creed o leva para sala.<br />

<strong>Otter</strong> coloca os vidros em cima da imagem, o que faz com que Creed e sua<br />

mãe pareçam distorcidos e quebrados. Estende-me a mão para ajudar-me a<br />

levantar. Olho para ela por um momento.<br />

—Está pronto? —Pergunta.<br />

Uma pergunta carregada de implicações.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

********<br />

Página30<br />

Estamos em seu carro depois de parar em três postos de gasolina, e nenhum<br />

deles têm sorvete de soja. Que surpresa, não? <strong>Otter</strong> sugere irmos ao supermercado<br />

no qual trabalho, que se encontra quase em outra extremidade da cidade. Parece<br />

bastante estranho, porque pelo caminho há outro mercado que, seguramente, tem<br />

a porcaria que meu irmão gosta, mas não digo nada. Parece bem fugir um pouco.<br />

Já sei como isso soa, certo? Sei que me encontro em uma situação fodida<br />

com Ty e faço o que posso, mas, às vezes, eu só quero ir embora . Sinto-me culpado<br />

por isso, mais ou menos como me sinto agora, mas de vez em quando o deleite que<br />

me proporciona pesa mais que o sentimento de culpa. Pergunto-me, não pela<br />

primeira vez, se era assim como minha mãe se sentia. Era nisso que estava<br />

pensando quando decidiu escrever essas cartas? Essa inegável sensação de<br />

liberdade que parece surgir do nada? Agora entendo como seria fácil cair nessa<br />

tentação, subir no carro e dirigir, dirigir e dirigir até que tudo o que lhe rodeia seja<br />

desconhecido e ninguém saiba quem você seja, e nem o que acaba de fazer.<br />

Recomeçar e converter-se em alguém que quer ser. Quem notará a diferença?<br />

Mas, então, a realidade se interpõe.<br />

Eu não sou como ela. Aprendi a sufocar esses pensamentos antes que<br />

possam enraizar-se. Se me deixasse dominar por eles, como ela fez, no que seria<br />

melhor que ela? Depois que ela partiu, me custou muito tempo chegar onde estou<br />

agora. Tenho uma responsabilidade, e não apenas comigo. O que diabos ocorreria<br />

a Ty se despertasse um dia e comprovasse que eu havia partido? Às vezes<br />

permaneço acordado à noite com todas estas coisas rondando a minha cabeça. O<br />

vejo correndo de um cômodo ao outro, me chamando: «<strong>Bear</strong>, <strong>Bear</strong>, <strong>Bear</strong>!» O vejo<br />

pegar seu celular com suas mãozinhas e me ligar, apenas para comprovar que meu<br />

número foi desconectado. O que faria então? Sei, com certeza, que não voltaria a<br />

confiar em ninguém. Já é difícil para ele fazê-lo agora. A estas alturas sempre me<br />

dou conta de que não poderia fazer isso nunca, nem a ele e nem a ninguém. Eu não<br />

sou minha mãe. Não sou minha mãe. Tenho que ser um bom pai…<br />

Merda.<br />

Irmão.<br />

Queria dizer irmão.<br />

Foda. Outra vez, não.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Olho através da janela. Continua chovendo.<br />

********<br />

Página31<br />

—Está com frio? —Pergunta <strong>Otter</strong> enquanto fecha a porta.<br />

Percebo que minha roupa volta a molhar e minha pele arde. Eu sinto<br />

minhas roupas molharem de novo, agarrando-se contra a minha pele. Meus<br />

mamilos ficam duros e eu coro. Cruzo os braços sobre o peito e aceno para <strong>Otter</strong> e<br />

começo a caminhar para dentro. Ouço-lhe apressar-se para acompanhar-me, e<br />

então começa a andar ao meu lado.<br />

As portas automáticas se abrem com um rangido e o ar-condicionado me<br />

impregna na pele. Arrepio-me. Tão logo entramos, ouço gritarem meu nome.<br />

Levanto o olhar e vejo Anna de pé junto uma caixa registradora, com a revista que<br />

carrega na mão aberta pela metade. Sorrio timidamente.<br />

Aí estão, Anna e o supermercado.<br />

Comecemos pelo supermercado.<br />

É onde trabalho desde os dezesseis anos. Tão logo tive a idade suficiente,<br />

minha mãe disse que teria que conseguir um emprego para ajudá-la com as<br />

despesas. Ter dezesseis anos e viver em Seafare não lhe dá muitas opções. Na<br />

verdade, ter qualquer idade em Seafare não lhe dá muitas alternativas. Naquela<br />

época minha mãe já trabalhava em um restaurante, não quis me arriscar a ter que<br />

trabalhar com ela todo o tempo, assim que escolhi ser empacotador. Agora sou<br />

chefe dos caixas. E antes que arregalem os olhos de assombro pelo meu conto de<br />

Cinderela, lhes direi que não é tão mal. Eu simplesmente tenho que ficar na<br />

recepção e indicar aos demais caixas o que devem fazer e quando tirar férias e<br />

folgas, coisas assim. É como ser gerente sem que lhe paguem como tal. Ah, e um<br />

gerente fica em um escritório, não na recepção. Tudo bem, não se parece em nada a<br />

um gerente, mas poderia ser pior, não? Poderia trabalhar em um McDonalds e<br />

ouvir <strong>Kid</strong> murmurar todas as noites ao chegar em casa que fedia a genocídio<br />

bovino. E antes que pensem que estou bancando o dramático, lhes direi que uma<br />

vez tive que trabalhar no açougue e isso foi o que me disse. Pedi que não me<br />

colocassem ali nunca mais.<br />

Portanto, não é tão ruim, certo? Trabalho há tanto tempo aqui que quase<br />

posso trabalhar quando quero, o que é bom, sobre tudo nos dias de plantão, para<br />

que eu possa sair quando Ty sai da escola. E me deixaram incluir Ty no seguro de


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página32<br />

saúde, que lhe oferecem após três anos. Não tinham nenhuma obrigação de fazê-lo.<br />

Não gosto nem de pensar no que faria, pois <strong>Kid</strong> pega resfriado a cada minuto ou<br />

algo assim. Entendem agora? As coisas poderiam ser piores. Muito piores.<br />

Agora Anna.<br />

Já lhes disse antes que é mais ou menos minha namorada. Lembram-se?<br />

Agora é precisamente a época em que ela é, e por um momento me sinto culpado<br />

porque disse que ligaria para ela assim que chegasse na casa de Creed. Mas, ei,<br />

posso dizer-lhe que queria vê-la pessoalmente e fica tudo resolvido. Mas ela vai<br />

perceber, como sempre faz.<br />

—Ei. —Diz, sorrindo, enquanto me aproximo dela.<br />

—Ei, você. —Respondo.<br />

Detenho-me diante de seu caixa como se fosse um cliente. Ela se inclina para<br />

beijar-me e viro ligeiramente o rosto, deixando seus lábios roçarem meu rosto.<br />

Afasta-se e me olha com estranheza.<br />

Faço um sinal com a cabeça.<br />

—Olha quem está aqui.<br />

Anna olha por cima de meu ombro e vejo que seu rosto se ilumina.<br />

—<strong>Otter</strong>!<br />

Começa a rir e abandona o caixa. Dou a volta para segui-la com o olhar e<br />

vejo que <strong>Otter</strong> ainda está de pé junto à porta de entrada. É curioso, pensei que<br />

estava ao meu lado. Anna salta em seus braços, lhe rodeia a cintura com as pernas<br />

e lhe ouço exclamar para ele: «Uf!»<br />

Então, essa é Anna. Creio que lhes disse que é a segunda pessoa que conheci<br />

depois de Creed. Frequentávamos a mesma classe, assim, era inevitável que<br />

acabássemos, pelo menos, sendo amigos. Mas acabou sendo muito mais que isso.<br />

Anna é a única namorada que tive, a única garota a quem beijei. Transamos, e foi a<br />

primeira vez para ambos, no verão entre o oitavo e o nono ano, na casa de<br />

hóspedes que fica atrás da casa de Creed. Ela foi meu primeiro tudo, tirando o fato<br />

de ter tido a honra de ser meu primeiro melhor amigo, porque isso corresponde a<br />

Creed. O primeiro amor, o primeiro desengano amoroso, o primeiro (e único)<br />

pedido de casamento. Sim, sim, sim, já sei. Mas, vamos, tínhamos dez anos! E foi<br />

ela quem me pediu, justamente depois de nosso primeiro beijo. E nem sequer foi<br />

um verdadeiro pedido, senão algo como isso: «Derrick McKenna, somente te<br />

beijarei se promete que nos casaremos quando formos adultos.» O que poderia<br />

fazer um garoto de dez anos? Disse que sim, e me beijou levemente nos lábios,<br />

como o toque de uma pena. Lembro que corei o suficiente para inundar o mundo


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página33<br />

de vermelho. Aquilo selou o trato.<br />

Salvo as vezes em que deixa de ser minha namorada.<br />

Somos demasiado parecidos para nos darmos bem o tempo todo. Juro por<br />

Deus que, quando brigamos, é por causa de alguma merda estúpida. Ela sempre<br />

pensa que tem razão. Eu sempre sei que tenho razão, blablablá, e sempre termina<br />

com ela sacudindo seus cabelos castanhos, com olhos castanhos piscando,<br />

murmurando entre dentes e se parece tanto a mim que resulta hilário. E esse é<br />

sempre o pior momento para rir, assim, naturalmente, é quando dou risada.<br />

Logicamente, a deixa mais enfurecida —o que me enfurece também—, e sempre<br />

termina com um dos dois marchando com passos furiosos, lambendo-nos as<br />

feridas. Mas eu a amo muito, e sei que ela sente o mesmo, e um par de dias mais<br />

tarde um dos dois acaba pegando o telefone e ligando para o outro. Então as águas<br />

voltam a ser calmas por algum tempo.<br />

E realmente digo de verdade. A amo. Anna tem estado comigo enquanto<br />

crescia, ouvindo minhas queixas sobre como minha mãe era fodida. Esteve ao meu<br />

lado incentivando-me a falar com as pessoas, dizendo que não há maior erro que<br />

não fazer novos amigos. Esteve ao meu lado quando descobri que Ty estava a<br />

caminho (creiam-me, não fiquei muito contente naquela época). Esteve ao meu<br />

lado quando desabei em sua casa depois de ler a carta de minha mãe, cegado pelas<br />

lágrimas e com o punhos apertados de raiva. Viu o bom, o mau e tudo o que há<br />

que me faz ser quem sou. Não me interpretem mal: Creed também esteve ao meu<br />

lado durante muitas dessas experiências, mas Anna se conecta comigo de um<br />

modo em que ele não pode. Não é sua culpa nem nada. Simplesmente é assim.<br />

Também influi o fato de que Anna venera o chão que Ty pisa. Acreditem,<br />

teria sido muito mais fácil para ela fugir sem olhar para trás, como fez minha mãe.<br />

Mas ela não fez isso, e vocês têm que concordar comigo que isso exige muita<br />

coragem. Anna é uma das poucas pessoas em quem Ty confia e não se importa de<br />

cuidar dele se tenho de cobrir alguns turnos extras no supermercado. É a única que<br />

finge entender sua fase vegetariana (pois sei que não é mais do que uma fase;<br />

nenhum irmão meu comerá dessa maneira toda a sua vida). Ela tem estado ao seu<br />

lado como não esteve nenhuma outra mulher, e acredito que ele precise disso de<br />

vez em quando. Ty não pode se apegar somente a mim durante o resto de sua<br />

vida, não é mesmo?<br />

<strong>Otter</strong> a coloca no chão e se inclina para sussurrar algo em seu ouvido. Anna<br />

ri, lhe dá uma palmadinha no ombro e a ouço dizer:<br />

—Claro que ainda o vigio! Quem então poderá chamar sua atenção por suas


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Página34<br />

besteiras?<br />

Os dois me olham, e Anna me mostra a língua. Eu também lhe mostro a<br />

minha. <strong>Otter</strong> revira os olhos e murmura algo assim como «esses garotos de hoje em<br />

dia». Encaminham-se até o caixa junto ao qual continuo de pé.<br />

—Onde está <strong>Kid</strong>? —Ela me pergunta.<br />

—Vendo coisas asquerosas com Creed. —Respondo.<br />

Sorri compassivamente.<br />

—Esse programa sobre abatedouros de vacas?<br />

—Sim. Como sabe disso?<br />

—Me falou sobre isso na semana passada quando eu estava cuidando dele.<br />

—Anna olha para <strong>Otter</strong> e sussurra com cumplicidade—: Não queria que <strong>Bear</strong><br />

soubesse, porque disse que estaria assustado demais para vê-lo.<br />

Franzo a testa quando <strong>Otter</strong> começa a rir. Porque, segundo parece, ninguém<br />

que eu conheça é normal como eu.<br />

— Então, <strong>Otter</strong>, o que o traz de volta para casa? Já está muito famoso para<br />

permanecer na Califórnia? — Pergunta Anna.<br />

Ele encolhe os ombros com indiferença.<br />

—Necessitava voltar para casa por um tempo, suponho. Ei, onde ficam os<br />

sorvetes de soja? Prometi a <strong>Kid</strong> que lhe daria um depois de beber da minha<br />

cerveja. —Anna assinalou ao fundo do estabelecimento. —Volto logo. —Diz <strong>Otter</strong>,<br />

afastando-se.<br />

Anna lhe segue com os olhos um momento antes de voltar-se para mim.<br />

Inclina-se um pouco para frente, como se temesse que nos ouvissem.<br />

—O que ele tem?<br />

—Não sei. Como poderia saber?<br />

—Não disse por que voltou para casa? Nunca volta para Seafare desse jeito.<br />

Não voltou em mais de um ano. Além disso... —Acrescenta em voz mais baixa: —<br />

Parece um pouco triste.<br />

Isto me pega de surpresa. Não havia notado isso, e digo a Anna que está<br />

projetando, uma palavra que aprendeu em seu curso de Psicologia online e que<br />

utiliza continuamente comigo. Dá-me um tapinha no ombro e se afasta para ajudar<br />

uma mulher que aparenta mais idade que Deus e que, pelo visto, tinha que sair<br />

debaixo de chuva para comprar sacos para sanduíche. E nada mais.<br />

—Está lotado essa noite? —pergunto, olhando ao meu redor.<br />

Anna encolhe os ombros enquanto pega o dinheiro da idosa.<br />

—Um pouco. Aumentou outra vez quando começou a chover, mas Mary


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página35<br />

está aqui, de modo que não tem sido tão duro.<br />

Mary é outra caixa, que trabalha conosco que cheira a menta e tuti-fruti.<br />

Não sei de onde consegue esse chiclete, porque não acredito que ainda o<br />

fabriquem. Anna diz que Mary tem um monte deles na casa que comprou há<br />

alguns anos. Mas me parece que está brincando. Espero que assim seja.<br />

<strong>Otter</strong> regressa e coloca o sorvete no balcão do caixa. Não me parece triste.<br />

Parece o <strong>Otter</strong> de sempre. Anna não sabe o que diz. Por que ele teria que estar<br />

triste? Tem um trabalho extraordinário, lhe pagam muito dinheiro. Tenho certeza<br />

de que possui uma casa muito bacana, ou um apartamento. Não tem que se<br />

preocupar de que alguém dependa dele para sobreviver. Não está preso em<br />

Seafare. Buá!<br />

Tudo bem, estou parecendo amargurado. O observo fixamente. E ele me<br />

flagra. <strong>Otter</strong> exibe seu sorriso torto.<br />

—Quer algo também, <strong>Bear</strong>? —Pergunta.<br />

«Sim! —grito dentro de minha cabeça. —Quero que volte para Califórnia!<br />

Quero que pare de falar! Quero saber por que vim contigo! Quero saber por que me deixou<br />

vir contigo! Por que, <strong>Otter</strong>? Por que você fugiu? Justo quando necessitava…»<br />

—Não. —Digo em voz alta. —Não necessito de nada.<br />

Encolhe os ombros e diz a Anna:<br />

—Então, você vem para casa quando terminar aqui? Sei que Creed vai<br />

gostar de ver você.<br />

Anna nega com a cabeça.<br />

—Esta noite tenho que trabalhar até tarde e depois estudar. Ainda faltam as<br />

provas finais antes das férias de verão.<br />

—Como vai a faculdade? —Pergunta ele.<br />

—Ficarei feliz quando terminar. — Responde ela, pegando seu dinheiro e<br />

devolvendo-lhe o troco. —Então poderá ajudar-me a convencer <strong>Bear</strong> de que<br />

comece a frequentar as aulas no outono. Ficará uma temporada, não é? Quanto<br />

tempo você vai ficar?<br />

<strong>Otter</strong> vacila.<br />

—Não sei. Tenho várias coisas para resolver. — Repete, olhando para suas<br />

mãos.<br />

—Muito bem. —Anna diz com um sorriso. —Então com certeza poderá me<br />

ajudar a fazer com que <strong>Bear</strong> vá para faculdade. Você não acha que isso pode ser<br />

arranjado? Aqui somos vários os que estaríamos encantados de lhe dar uma mão<br />

com Ty.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página36<br />

Ela está começando a me irritar.<br />

—Sim, claro. —Responde ele. —Bem, suponho que lhe verei mais tarde.<br />

—Até logo, <strong>Otter</strong>.<br />

Ele passa ao meu lado levantando uma sobrancelha.<br />

—Vou esperar no carro. Não demore muito. Não quero afrontar a ira de<br />

<strong>Kid</strong>, se quando chegarmos, seu sorvete esteja derretido.<br />

—Seu sorvete de soja. —Dando ênfase na última palavra.<br />

Ele não para e sai pela porta, de volta para a chuva.<br />

Anna rodeia a caixa registradora e me sujeita pelo braço.<br />

—Vê a que me refiro? —Diz. —Algo está acontecendo com ele.<br />

Retiro sua mão do meu braço.<br />

—Não há nada de errado, Anna. Deixe-o em paz. <strong>Otter</strong> é <strong>Otter</strong>. Está<br />

perfeitamente bem. — Eu me viro para olhar para ela calmamente. —E tinha que<br />

mencionar a universidade? Sabe que agora não posso fazer nada a respeito.<br />

Olha-me com cumplicidade, atravessando-me com seu olhar, e desvio os<br />

olhos. Percebo que sacode o cabelo irritada, e não quero brigar com ela agora.<br />

Tenho coisas demais na cabeça para preocupar-me de qualquer um dos dois se<br />

aborreça com o outro. Volto a olhar para ela e a beijo suavemente nos lábios.<br />

— Tenho que ir. <strong>Otter</strong> está esperando.<br />

Ela me dá um aperto na bunda quando me viro para ir.<br />

—Me ligue mais tarde se ficar bêbado e precisar que lhe leve.<br />

Sua voz é neutra.<br />

Começo a rir, consciente de que sabe que não vou ficar bêbado. Não tenho<br />

feito isso em muito tempo. Quando bebo, faço besteiras.<br />

As portas se abrem com um estalo e voltam a fechar às minhas costas.<br />

Agora chove com mais intensidade. Mantenho um notável silêncio quando<br />

entro no carro, e espero que <strong>Otter</strong> t<strong>amp</strong>ouco queira falar. A maioria das pessoas<br />

não percebem que é bom não falar de vez em quando. Falar faz com que as coisas<br />

se tornem reais. Falar colocam as coisas em primeiro plano. Falar é uma perda de<br />

tempo. Nunca se resolve falando sobre algo. As pessoas falam muito e se<br />

arrependem do que dizem, mas se você não diz nada, não pode se sentir como um<br />

asno depois.<br />

Olho para <strong>Otter</strong> com o canto do olho. Seu rosto é inescrutável pelo que<br />

posso ver, e é só quando passamos debaixo de um farol que ilumina fugazmente<br />

através da janela. Penso que talvez Anna possa ver coisas que eu não vejo. É muito<br />

legal isso, ser capaz de conhecer as pessoas melhor que eu. Claro que a provoco


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página37<br />

por conta disso, dizendo-lhe que se mete onde não é chamada, dizendo que ela<br />

está «projetando», mas geralmente tem razão. Suspiro e olho pela janela.<br />

—O quê? —Pergunta <strong>Otter</strong>.<br />

—O quê o quê? —Digo.<br />

—Parecia que você tinha dito algo.<br />

—Eu não disse algo.<br />

—Ah.<br />

Um pouco mais de silêncio até que disse:<br />

— Então, você e Anna ainda estão juntos, não?<br />

—Anna e eu estamos juntos. —Respondo.<br />

—Estão há muito tempo juntos.<br />

—Acho que sim. Um pouco.<br />

5… 4… 3… 2… 1…<br />

—E como tem passado, <strong>Bear</strong>?<br />

É inevitável. As pessoas sempre me perguntam isso, como se eu fosse<br />

fracassar. Como se estivesse prestes a cair e não pudesse mais me levantar.<br />

Gostaria que as pessoas não fossem tão previsíveis. Gostaria que <strong>Otter</strong> não fosse<br />

tão previsível.<br />

—Bem.<br />

—Ah.<br />

Transcorre um minuto. E então:<br />

—Bem, parece que você está bem. E Ty… diabos, <strong>Kid</strong> parece crescer sem<br />

parar.<br />

—As pessoas mudam. É o que acontece quando alguém desaparece por<br />

algum tempo.<br />

Penso um momento e logo aperto os punhos ao perceber o que disse em voz<br />

alta. Merda.<br />

—Desaparece? —Pergunta ele, parecendo realmente surpreendido.<br />

—Esqueça.<br />

—O que quer dizer com «esqueça»? Não pode dizer algo assim e esperar<br />

que a conversa se acabe porque você quer, <strong>Bear</strong>.<br />

O ouço ranger os dentes e creio que esteja aborrecido. Bom. Pois que se<br />

aborreça.<br />

—Claro que posso. —Respondo, odiando minha própria voz.<br />

Passa outro minuto. A chuva toca uma canção no teto.<br />

Ouço <strong>Otter</strong> bufar e sacudir a cabeça.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página38<br />

—Eu não desapareci, Derrick. Você sabia onde eu estava.<br />

Nesse momento o odeio. Usando meu nome desse modo, como se estivesse<br />

falando comigo com superioridade, como se fosse melhor que eu, como se<br />

estivesse falando com uma criança. É algo que a infinita fileira de namorados de<br />

minha mãe costumava fazer. Nunca era <strong>Bear</strong> para eles, t<strong>amp</strong>ouco eu quis sê-lo.<br />

Mas a forma de dizê-lo, aquela suficiência nos olhos deles, sorrindo para mim<br />

quando minha mãe não estava olhando… Sempre com o mesmo pensamento:<br />

«Sim, estou com ela. O que vai fazer a respeito? Fique em casa e cuide de seu irmão como<br />

deve fazer.»<br />

—Você partiu, Oliver. —Lhe provoco. —Chame como quiser, mas você<br />

partiu.<br />

Suas mãos se aferraram no volante até que os nós ficaram brancos. O olho<br />

com ódio, com os braços cruzados sobre meu peito, desafiando-o a falar,<br />

desafiando-o a contradizer-me. Dá uma rápida olhada por cima de ombro e muda<br />

de faixa, sinalizando para entrar em um estacionamento de um shopping center,<br />

aonde os turistas vão para gastar dinheiro em globos de neve e estrelas do mar<br />

dissecadas. Agora tudo está escuro e as lojas estão fechadas, porque com a chuva<br />

ninguém sai de casa. Entra em um estacionamento e para o Jeep. Ele fica sentado lá<br />

olhando para frente, golpeando o volante com a palma da mão direita. Desvio o<br />

olhar, me sentindo violento. Deveria ter mantido minha boca fechada. A esta altura<br />

já quase estaríamos de volta em casa.<br />

—<strong>Bear</strong> —Começa a dizer, ainda apertando os dentes. Passa a mão pela<br />

cabeça e seu cabelo loiro e curto se desliza através de seus dedos. — <strong>Bear</strong> —repete.<br />

—O quê? —Exclamo, com raiva.<br />

Volta-se para me olhar, e agora posso ver aquilo de que Anna falava. Posso<br />

ver a tristeza em seus olhos e gravada em seu rosto. Se já estava antes, não era<br />

assim. Amaldiçoou-me por ser tão fraco, por provocá-lo com alguma besteira que<br />

não necessitava ouvir. Quem diabos sou eu para dizer alguma coisa? Deveria<br />

limitar-me a sorrir e suportá-lo. É isso o que sempre fiz, e era o que deveria ter feito<br />

agora, por mais terrível e secretamente irritado que eu esteja.<br />

—Olha, <strong>Otter</strong>… —Digo, repentinamente nervoso.<br />

Ele nega com a cabeça e me detenho. Volta a golpear o volante com a palma<br />

da mão enquanto espero.<br />

Por fim, após uma eternidade:<br />

—É nisso que acredita? Acredita que lhe abandonei?<br />

Não respondo. Não confio no que poderia derramar de minha boca. <strong>Otter</strong>


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página39<br />

espera um pouco mais, golpeando com a mão ao ritmo da chuva sobre o teto do<br />

Jeep.<br />

Finalmente diz:<br />

—Não queria que pensasse que lhe abandonava, <strong>Bear</strong>. Somente pensei… —<br />

Solta um suspiro. —Apenas pensei que seria melhor para todos que ficasse um<br />

tempo fora.<br />

Já não posso seguir calado.<br />

—Melhor para quem? — Exclamo, ofegante ao notar o ardor das lágrimas—.<br />

Melhor para você? Como isso poderia melhorar em algo? Despertei e você tinha<br />

partido! Sabe o que senti? Sabe? —Sou consciente de como isso soa, mas não posso<br />

parar. —Você foi embora, exatamente como ela! E me prometeu que nunca faria<br />

isso! O que diabos podia pensar?<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz ele em tom de advertência. —Você não sabe o que estava<br />

acontecendo.<br />

—Como podia saber? — Grito furioso. —Nunca me disse nada! Fez-me o<br />

que fez e logo foi embora!<br />

Levanta a cabeça para mim. Já não tem os olhos tristes, senão cintilantes.<br />

—O que fiz a você? Santo Deus! Quem diabos você pensa que é?<br />

Praticamente me disse para ir embora!<br />

—Sei muito bem quem sou, filho da puta. E sei quem você é. É igual a ela.<br />

Busco minha carteira no bolso e a pego. Dentro há um papel que conservo<br />

durante um ano e meio. Sei que está amarelando com o passar do tempo e está<br />

rasgado em algumas partes por causa das muitas vezes que a abri e li. Eu o jogo<br />

para ele. Bate no queixo e cai sobre seu colo.<br />

—Leia. —Não se move. —Leia! —grito.<br />

<strong>Otter</strong> o abre e vejo que empalidece.<br />

—Você guar… Você guardou isso? —Murmura. —<strong>Bear</strong>, eu…<br />

Chega, já não posso suportar mais. Busco a cegas a maçaneta da porta,<br />

cegado pelas lágrimas, e a abro de um golpe. Estou furioso. Furioso comigo mesmo<br />

por chorar diante dele, furioso com <strong>Otter</strong> por enganar-me como o fez, furioso<br />

comigo mesmo por pensar isso dele. «Não! » —Eu rosno para mim mesmo,<br />

enquanto caminho dando fortes passadas embaixo da chuva, sem nenhum<br />

objetivo. —«<strong>Otter</strong> fez isso! Eu não fiz nada de mau. Ele me enganou! Enganou-me e<br />

partiu! Como sabia que faria!» Parece que o ouço gritar meu nome, mas meus<br />

ouvidos estão martelando fortemente para ter certeza. Parece o som do oceano.<br />

Estou prestes a correr quando noto uns braços fortes que me seguram por trás,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

pressionando-me em meu peito. Dou a volta para golpeá-lo, mas somente consigo<br />

roçar-lhe antes de me prender com mãos de ferro.<br />

—Solte-me! —Rosno, tratando de lhe dar patadas, socos, morder e ferir.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz ele e sua voz retumba em meu ouvido.—<strong>Bear</strong>.<br />

— Eu não sou como você! —Digo, ainda me debatendo para escapar. —Não<br />

sou assim!<br />

—Eu sei, <strong>Bear</strong>. Eu sei. —Noto o calor de seu alento contra minha pele fria.<br />

—Acha que não sei? Não devia ter deixado que ocorresse. Sinto muito. Sinto tanto.<br />

Paro de me debater e constato que toda minha ira se extingue como se<br />

alguém houvesse acionado um interruptor.<br />

—Por que está aqui? —Solto um gemido. —Por que voltou?<br />

Agarra-me pelo queixo e me obriga a olhar em seus olhos.<br />

—Não tem nada a ver com que passou entre nós dois. No que se refere a<br />

mim, aquilo foi um erro. Não devíamos ter nos beijado nunca.<br />

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<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

3<br />

Quando <strong>Bear</strong> olha para o passado<br />

Muito bem, tempo esgotado! Sério. Isto está fugindo ao controle. E sem<br />

reclamações! A maneira como ouvirá de sua boca, seguramente me fará parecer<br />

um marica. Pois não sou, assim, tire isso de sua cabeça agora mesmo. Além disso,<br />

sou eu quem conta a história, e o farei à minha maneira. Terão que lidar com isso.<br />

E depois, tudo isso teria muito mais sentido se pudesse retroceder um pouco para<br />

explicar-lhes o que provocou esse momento.<br />

Talvez também, terá mais sentido para mim o fato de encontrar-me diante<br />

do Seashack 5 : Presentes e curiosidades, abraçado ao irmão do meu melhor amigo<br />

debaixo da chuva. Uma coisa assim não deveria ocorrer comigo.<br />

Já tenho muitas coisas para me preocupar.<br />

******<br />

Lá estava eu, com a cabeça dando voltas, ouvindo aquelas palavras<br />

reproduzindo-se uma e outra vez em minha cabeça:<br />

… sei que isso será duro para você ler.<br />

Tenho que partir.<br />

Tom diz que Ty não pode ir.<br />

O deixarei aqui contigo.<br />

Por favor, não tente me encontrar…<br />

MAMÃE.<br />

Pensei que se tratasse de uma brincadeira. Quer dizer, tinha que ser, não?<br />

Ninguém faz uma coisa assim a seus filhos. Reli a carta, sem deixar de pensar que<br />

a qualquer momento sairia alguém e diria: «Ahá, <strong>Bear</strong>! Ahá, te pegamos!» Li a carta<br />

uma segunda, terceira e quarta vez, mas as palavras não mudavam. Pareceu-me<br />

impossível ler uma quinta, e não entendi por que, até que vi que minha mão que<br />

segurava o papel tremia tanto que as letras se tornaram ilegíveis.<br />

Página41<br />

5


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página42<br />

— Mamãe? — Eu resmunguei, tropeçando na pequena sala de estar.<br />

O sofá de segunda mão, esfarrapado, onde ela normalmente se sentava a<br />

esta hora da noite, estava vazio. Voltei e percorri o curto corredor até seu quarto.<br />

Abri a porta de um só golpe e acendi a luz. Não havia ninguém. T<strong>amp</strong>ouco<br />

nenhuma dessas merdas que ela guardava em seu quarto. Abri as gavetas de sua<br />

cômoda, uma após outra, e as encontrei todas vazias até chegar à última. Continha<br />

uma foto emoldurada de mim e de <strong>Kid</strong> que <strong>Otter</strong> havia dado a minha mãe pelo seu<br />

aniversário. Mostrava-nos andando pela praia quando Ty tinha três anos, eu o<br />

segurava pela mão e ele mostrava algo no chão. Era a única foto que ela tinha de<br />

nós dois, e a havia deixado.<br />

Apoiei-me na parede, notando como a bile subia pela minha garganta. «Isto<br />

não pode estar acontecendo. » —penso. «—Isto não está acontecendo.» Quis desaparecer<br />

na escuridão que obscurecia minha vista. Teria sido muito mais fácil me enrolar<br />

feito um novilho em algum canto que enfrentar o que realmente estava<br />

acontecendo. Teria sido muito mais fácil…<br />

Notei a pressão de algo contra meu estômago e ao abrir os olhos percebi que<br />

estava de joelhos, com a cabeça recostada na parede. Ainda tinha a fotografia na<br />

mão e sua quina apertava meu estômago. Dominado pela ira, joguei a foto contra a<br />

parede e observei como se despedaçava ao redor de minhas mãos. O vidro<br />

atravessou a pele e cortou a palma da minha mão. Isso me enfureceu ainda mais.<br />

Os restos da moldura caíram ao chão, seguido por gotas de sangue. Olhei a foto<br />

como um bobo, observando como se tornava vermelho, primeiro o meu rosto e<br />

depois o de <strong>Kid</strong>, rosas de sangue florescendo sobre a recordação capturada.<br />

Ty. Merda.<br />

Levantei-me apressadamente e corri para o quarto que compartilhávamos.<br />

Sua cama estava pressionada contra o lado direito do quarto e não havia sido<br />

tocada. Ele não estava lá. Detive-me um momento para pensar onde diabos minha<br />

mãe o deixou hoje para ir trabalhar. Não acreditava que estivesse com a nossa<br />

vizinha, a senhora Paquinn, porque normalmente vinha à nossa casa para cuidar<br />

dele enquanto brincava em nosso quarto. Percebi que era o melhor lugar por onde<br />

começar e me dirigi para porta quando meu celular vibrou dentro do bolso.<br />

Meti a mão ferida sem me dar conta até que notei um pedaço de vidro que<br />

se enfiou ainda mais na minha pele. Tirei o celular rapidamente e vi que era Anna.<br />

—Anna, nesse momento não posso falar. —Disse logo que atendi. — Tenho<br />

que encontrar Ty. Ela se foi. Se foi.<br />

—Do que você está falando? —Disse Anna. —<strong>Kid</strong> está aqui comigo. Sua


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página43<br />

mãe o deixou aqui depois que eu cheguei em casa do trabalho e me pediu para<br />

cuidar dele. Disse que viria buscá-lo quando você saísse. Espera… <strong>Bear</strong>, o que quer<br />

dizer com ela se foi? Aconteceu algo com sua mãe?<br />

—Ty está com você? — Perguntei com voz rouca.<br />

—Sim, está dormindo no sofá. O que está havendo, <strong>Bear</strong>? Por que você está<br />

assim? Está tudo bem?<br />

—Não —Respondo e começo a chorar.<br />

Tentei chegar a casa de Anna o mais rápido possível, e teria chegado mais<br />

cedo se não tivesse que parar a cada segundo, alternando entre vomitar e socar<br />

algo. Quando cheguei na casa da minha amiga, estava novamente tão exaltado que<br />

não via com claridade. Peguei a carta com a mão sã e me encaminhei até a porta,<br />

tomando cuidado para não destroçar as flores da senhora Grant, que ladeavam o<br />

caminho de acesso. Alguém deve ter me ouvido chegar, porque acenderam a luz<br />

da varanda e a porta principal se abriu. Anna saiu para me receber e me abraçou.<br />

Eu a abracei também, me descontrolando novamente, sabendo que estava<br />

manchando-a de sangue, mas não me importei. Me pareceu ouvi-la dizer: « O que<br />

aconteceu? O que aconteceu?» Mas não podia responder naquele momento. Assim, se<br />

limitou a abraçar-me, balançando-me para frente e para trás, sussurrando palavras<br />

tranquilizadoras no meu ouvido, até que derramei tudo e não tive mais nada para<br />

dar.<br />

Depois de um momento me conduziu para dentro de sua casa e me disse<br />

que tinha que limpar a minha mão.<br />

— Onde está Ty? —Perguntei, sem lhe dar atenção.<br />

—Dormindo no sofá.<br />

—Seus pais estão em casa? —Disse enquanto passava ao seu lado.<br />

—Não, ainda estão em Portland até amanhã. <strong>Bear</strong>, o que houve? O que<br />

aconteceu com sua mãe?<br />

A ouvi seguir-me até a sala.<br />

Lhe atirei a carta sem olhar. Notei que ela a pegou. Virei a esquina da<br />

cozinha até a sala de estar e vi <strong>Kid</strong> dormindo no sofá, coberto com uma manta de<br />

Bob Esponja, que Anna lhe havia comprado para quando fosse a sua casa. Baixei o<br />

braço e lhe acariciei a parte superior da cabeça com suavidade, para não despertálo.<br />

Creio que o fiz mais por mim que por ele. Ainda não sabia o que ia dizer a meu<br />

irmão de quase seis anos, quando acordasse. Como explicar a alguém que sua mãe<br />

foi embora? Nem sequer eu mesmo o havia assimilado.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Disse Anna, em um tom tão preocupado que percebi que não era


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página44<br />

a primeira vez que me chamava.<br />

—O quê? —Respondi toscamente, sem desviar os olhos de Ty.<br />

—Sua mão… está sangrando.<br />

Abaixei os olhos. Havia me esquecido disso completamente.<br />

—Oh, merda. —Estremeci. Ainda corriam pelos meus dedos gotas de<br />

sangue que se precipitavam sobre o tapete.— Sinto muito. Sua mãe vai me matar.<br />

Ela toca o meu ombro, pedindo-me para segui-la. Dei uma última olhada a<br />

Ty e a segui até o banheiro. Me fez sentar sobre o vaso enquanto tirava os cacos de<br />

vidro com uma pinça. Ela me perguntou o que havia acontecido. Lhe disse que<br />

havia quebrado um porta-retratos. Assentiu com a cabeça e colocou água<br />

oxigenada, que ardia como o inferno, mas não importava. Cobriu a palma da<br />

minha mão com um curativo grosso e envolveu toda a mão com uma gaze. Anna<br />

não acreditava que precisasse de pontos. Estava guardando tudo quando<br />

chamaram da porta.<br />

—Merda! —Exclamou, franzindo a testa. —Lhes disse que não fizessem<br />

isso. Se acordaram <strong>Kid</strong>…<br />

Saiu apressadamente do banheiro.<br />

—Quem é? —Perguntei, seguindo-a.<br />

Por algum motivo, tive medo que tivesse chamado a polícia.<br />

—Vá abrir. Eu irei ver Ty.<br />

—Mas…<br />

—Está tudo bem, <strong>Bear</strong>.<br />

A vejo afastar-se e logo me dirijo até a porta. Creed estava plantado na<br />

varanda, escoltado por <strong>Otter</strong>.<br />

Creed falou primeiro, visivelmente aliviado ao ver-me.<br />

—O que diabos está acontecendo? Anna disse que algo ruim aconteceu e<br />

para eu vir até aqui. Onde está <strong>Kid</strong>? O que aconteceu com sua mão? Cara, estava<br />

chorando? Por que cheira a vômito?<br />

—Creed, abaixe a voz! — Espetou Anna, regressando à cozinha. —Tem<br />

sorte de não ter acordado Ty quando tocou a c<strong>amp</strong>ainha, seu idiota.<br />

Creed fingiu sentir-se magoado por um momento antes de voltar-se para<br />

mim.<br />

— Então?<br />

Lhe entreguei a carta. <strong>Otter</strong> a leu por cima de seu ombro, folha por folha,<br />

ambos exibindo olhares idênticos de incredulidade à medida que iam lendo. <strong>Otter</strong><br />

terminou antes que Creed e imediatamente se aproximou e me abraçou. Eu


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

acreditava que havia esgotado todo o pranto, mas ainda escaparam algumas<br />

lágrimas enquanto recostava a testa sobre seu ombro. <strong>Otter</strong> não teve que dizer<br />

nada, pois Creed falou por todos nós.<br />

—Isto é uma fodida merda.<br />

******<br />

Página45<br />

Mais tarde estávamos todos sentados no chão da sala de estar; os outros<br />

falavam em voz baixa para não acordar <strong>Kid</strong>. Eu sabia que seguramente não<br />

deveríamos correr o risco de que nos ouvisse, pois ainda não tinha ideia do que eu<br />

ia dizer-lhe, mas não queria perdê-lo de vista. Alguma parte irracional do meu ser<br />

não parava de pensar que se eu me virasse, nem que fosse por um segundo, ele<br />

também desapareceria. Me sentia entorpecido enquanto o contemplava deitado<br />

debaixo do Bob Esponja, com o cabelo muito grande. Necessitando mais à sua mãe<br />

do que um corte de cabelo, mas não parecia que isso fosse possível em curto prazo.<br />

Anna se encontrava ao meu lado, segurando a minha mão sã. Creed e <strong>Otter</strong><br />

tiravam o curativo da outra para certificarem-se de que não precisava de mais<br />

cuidados. Notei como caía a gaze e ouvi que <strong>Otter</strong> assobiar baixinho. Não quis<br />

olhar porque sabia que ficaria ainda mais deprimido. Pelo visto, devido a anos de<br />

experiência médica acumulados entre os dois, meus médicos decidiram que podia<br />

esperar o dia seguinte, e notei que <strong>Otter</strong> refez o curativo com delicadeza.<br />

Creed se apoiou sobre os cotovelos.<br />

—Detesto expor o que parece óbvio, mas o que faremos agora?<br />

Não posso evitar reparar como dizia «faremos».<br />

<strong>Otter</strong> esfregou os olhos como se tivesse dor de cabeça.<br />

—Primeiramente devemos verificar para onde fugiu. A carta diz que Tom<br />

conseguiu um emprego em alguma parte. <strong>Bear</strong>, você sabe para onde ela foi? Lhe<br />

disse algo nos últimos dias? Ou Tom?<br />

Neguei com a cabeça.<br />

—Anna, ela disse algo quando deixou <strong>Kid</strong> com você?<br />

Anna pensou por um momento.<br />

—Não, que eu lembre. Apenas me perguntou se eu poderia cuidar de Ty até<br />

que <strong>Bear</strong> saísse do trabalho. Como não tinha nada programado até então, lhe disse


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página46<br />

que sim. Nem sequer recordo se estava com Tom quando veio. Se foi o caso, Tom<br />

deve ter ficado no carro. Mas, e a respeito desse emprego? Alguém sabe onde Tom<br />

trabalhava?<br />

—Creio que estava na construção. —Disse Creed. —Bem, pelo menos<br />

parecia que estava na construção. — <strong>Otter</strong> lhe deu um tapa na parte de trás da<br />

cabeça. —Por fez isso? —Perguntou Creed fazendo uma careta.<br />

—Não ajuda em nada. —Lhe rosnou <strong>Otter</strong> antes de olhar-me. —Assim que<br />

não sabemos o que ele fazia e nem para onde foi. Tem que haver algum modo de<br />

seguirmos seu rastro. Sua mãe tem cartão de crédito, uma conta corrente ou algo<br />

assim?<br />

Anna riu com amargura enquanto respondia por mim.<br />

—Oh, vamos, <strong>Otter</strong>. Já sabe a resposta para isso. Nunca teve uma conta<br />

bancária. <strong>Bear</strong> é o único que tinha, porque ela sempre sacava o dinheiro dali.<br />

—Nesse caso, a primeira coisa que tem que fazer é ligar para seu banco,<br />

retirar o nome dela de sua conta, mudar sua senha, o que seja. —Sugeriu <strong>Otter</strong>.<br />

—Por quê? —protestou Creed. — Se tentou sacar dinheiro, isso não nos dirá<br />

onde está?<br />

Anna lhe fulminou com o olhar.<br />

—Claro, depois de ter sacado todo o dinheiro. O qual é possível que já tenha<br />

feito.<br />

—Ah, sim.<br />

Soltei uma risada.<br />

Vocês sabem que às vezes alguém pode rir nos momentos mais<br />

inoportunos? Quando tudo parece cinza e desanimador, e sabe que deveria estar<br />

triste/deprimido/com raiva, mas, por alguma razão, que não é divertida faz você<br />

rir? Como em um enterro. Ou quando sua mãe lhe abandona. Pois é isso.<br />

Creed me olha como se eu tivesse enlouquecido, que é o que quase está<br />

acontecendo.<br />

—O que é tão engraçado, <strong>Bear</strong>?<br />

—Cento e trinta e sete dólares e cinquenta centavos. — Disse entre risos.<br />

—O quê? —Disse <strong>Otter</strong>, olhando-me com o cenho franzido.<br />

—Me deix… deixou cento e trinta e sete… dólares e cinquenta centavos! —<br />

Quando terminei estava tremendo, ao mesmo tempo em que sentia o riso<br />

arrastando-se por dentro de mim como um verme. Novamente minha visão se<br />

nublou e sentia náuseas, mas não conseguia parar de rir. —Havia… os centavos,<br />

incluindo o resto! Ela me deixou os… centavos!


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página47<br />

Todos me olhavam boquiabertos.<br />

Me levantei de qualquer jeito e corri para o banheiro. Tive ânsia de vômito,<br />

mas não cheguei a vomitar quando alcancei a privada. Ouvi que alguém me<br />

seguia, mas agitei a mão freneticamente para porta, indicando que fosse embora.<br />

Meu estômago se revirou e minhas entranhas se soltaram, o mundo se tornou<br />

ligeiramente cinza enquanto me agarrava à privada. Me atravessou uma onda<br />

atrás da outra de náuseas, e creio que desmaiei por um momento, já que notei que<br />

minha cabeça golpeou a lateral da banheira junto à privada. Senti minha cara<br />

inchada e o meu hálito azedo. Soltei um gemido.<br />

«Oh, DEUS, isto não pode estar acontecendo». —Pensei—. Não é mais que um<br />

pesadelo. A qualquer momento me despertarei e sentirei alívio ao comprovar que tudo era<br />

um pesadelo. Olharei para o relógio e verei que ainda não é a hora de levantar-me, assim<br />

que voltarei a cobrir minha cabeça, me consumirei novamente pela escuridão e me sentirei<br />

muito melhor. Porque isto não pode ser real. Ninguém faz uma coisa assim a alguém. E<br />

menos ainda uma mãe. Por isso, não pode ser verdade, porque nem sequer minha mãe<br />

poderia fazer isso.»<br />

«Mas é real, <strong>Bear</strong>.»—Uma voz me sussurra. —Sabe que é real pelo gosto que tem<br />

em sua boca, a dor de cabeça que começa a sentir. O ferimento em sua mão. As náuseas. É<br />

por isso que sabe que é verdade. Na realidade, nunca poderia sentir tais coisas se fosse um<br />

sonho. Mas não é isso que deveria perguntar a si mesmo, se é um sonho. A pergunta que<br />

deveria fazer é o que fará agora. Porque você está acordado.»<br />

Nesse momento eu não queria fazer nada. Queria ficar ali durante os dois<br />

meses seguintes e depois recolher minhas coisas e partir de Seafare, como deveria<br />

ter feito. Essa era a minha intenção e o objetivo pelo qual eu havia me matado para<br />

conseguir. Deveria partir para Eugene, ir para a faculdade e me tornar escritor,<br />

professor, ou o que quisesse ser. Jornalista. Astronauta. O presidente dos fodidos<br />

Estados Unidos. Eu tinha conseguido uma bolsa de estudos, pelo amor de Deus!<br />

Me tornaria alguém que sempre quis ser, não ser obrigado a ser algo que não<br />

queria. Enquanto permanecia ali, sua carta, aquela maldita carta, dava voltas em<br />

minha cabeça, zombando de mim. «Por que necessita de uma universidade? » —Dizia.<br />

—Essa bolsa de estudo estará lá mais tarde, certo?»<br />

Necessito que me faça um favor.<br />

Necessito que me faça um favor.<br />

Sempre teve mais facilidade para cuidar dele que eu.<br />

Tive uma ânsia de vômito. E outra. E mais outra.<br />

Após algum tempo, quando tive a certeza de que já não havia nada líquido<br />

dentro do meu corpo, me levantei como pude. Fui até a pia e lavei minha pestilenta


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página48<br />

boca. O contato da água era agradável sobre minha pele febril. Molhei meu rosto,<br />

esforçando-me para ignorar meu reflexo no espelho. Não queria ver o aspecto que<br />

tinha agora. Sabia o que veria em meu rosto, e se me atrevesse a olhar, para ver<br />

aquela resignação, aquela ira, teria me odiado por isso. A teria odiado por isso,<br />

mais do que já a odeio.<br />

E teria odiado a Ty. Isso era o que mais doía.<br />

Regressei à sala, sentindo-me mais cansado do que jamais senti em minha<br />

vida. Anna se levantou rapidamente e me abraçou, apertando-me até que não<br />

pudesse respirar. Deixei os braços para trás. Não podia dar-lhe o que queria. Não<br />

naquele momento.<br />

Anna deve ter percebido isso também, porque se afastou e me olhou. Eu<br />

podia ver que ela estava chorando e parte de mim ficou irritado com isso. Afinal,<br />

por que teria que chorar? Não era ela que estava fodida. Não tinha que se<br />

preocupar por seu futuro. Não tinha que se preocupar de como iria cuidar de uma<br />

maldita criança. Naquele momento, e me envergonho de dizê-lo, já não queria<br />

estar com ela. Queria que fosse embora e não voltasse. Afinal, não era como faziam<br />

todas as pessoas importantes para mim? Tentei me controlar antes que<br />

transparecesse, mas Anna pôde ver a ira em meu rosto e estremeceu. Uma pequena<br />

parte de mim esperava que soubesse que não era dirigida a ela, não exatamente.<br />

Mas somente uma pequena parte.<br />

—<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e eu… ― Começou a dizer Creed, mas o cortei.<br />

—Não. —Disse.—Não falemos disso aqui dentro. Não quero que se<br />

desperte.<br />

Dito isto, dei a volta e me encaminhei para a cozinha, sabendo que olhavam<br />

um ao outro nas minhas costas, enquanto me seguiam.<br />

Me sentei à mesa e esperei até que os demais se sentaram também. Anna<br />

ainda parecia desgostosa e olhava para a sala, enquanto Creed tinha os olhos fixos<br />

em suas mãos. Somente <strong>Otter</strong> olhava para mim, assim, me concentrei nele.<br />

—Não faremos nada em relação a ela. —Anunciei.<br />

Me olha, com um indício de sorriso em seus lábios.<br />

—Por que será que eu sabia que iria dizer isso?<br />

Anna se mostrou desconcertada.<br />

—<strong>Bear</strong>, não pode estar falando sério! É evidente que você tem que encontrála!<br />

Que diabos vai fazer, então? Não pode cuidar sozinho de Ty! Não pode deixar<br />

que ela saia impune disso!<br />

—E que outra coisa devo fazer? —Lhe perguntei, com a voz tomada pela ira.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página49<br />

—O que pensa que acontecerá quando a encontrar? Que a traria para cá amarrada?<br />

Quanto tempo acredita que levaria para partir novamente? Ou acaso pensa que<br />

deixaria Ty com ela? Deixar Ty com ela e seguir minha vida feliz. Quanto acha que<br />

demoraria para abandoná-lo em qualquer outro lugar?<br />

Anna começou a chorar novamente e me senti mal, mas não o suficiente<br />

para retratar-me do que havia dito ou mudar de opinião.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Disse Creed em voz baixa. — E a faculdade? Não pode ir para a<br />

universidade e trabalhar como tinha a intenção de fazer e tomar conta de <strong>Kid</strong>. Não<br />

sobrará tempo para isso.<br />

—Eu sei. — Respondi, fazendo todo o possível para ocultar a amargura da<br />

minha voz. —Por isso não irei.<br />

—Oh, <strong>Bear</strong>. —Disse Anna, levando as mãos ao rosto.<br />

—Não me venha com essa. —Provoquei. —Não é problema seu.<br />

—Do que diabos está falando? —Exclamou Creed. —É problema nosso<br />

tanto quanto o seu. Eu gosto desse garoto tanto quanto você, assim, não venha com<br />

essa classe de besteira.<br />

—<strong>Bear</strong>, pelo menos deveríamos chamar a polícia ou fazer algo. —Disse<br />

Anna entre soluços.<br />

—Não. Nada de polícia. O que acha que aconteceria se a chamássemos?<br />

Pensa realmente que deixaria Ty ficar comigo? Claro que não! Pense pelo menos<br />

durante um fodido segundo. O levariam em um abrir e fechar de olhos e o<br />

deixariam com uma assistente social ou em uma casa de acolhida. Não permitirei<br />

que ocorra isso a ele. Mas não posso impedi-los que contem a seus pais.—Os<br />

adverti.—De todo modo, seguramente o descobrirão mais cedo ou mais tarde. Mas<br />

juro por Deus que se algum deles chama a polícia ou tentem encontrá-la, fugirei<br />

com Ty, iremos a algum lugar e nunca mais nos verão.<br />

Anna e Creed olham-me, incrédulos. Por algum motivo não queria olhar<br />

para <strong>Otter</strong>. Agora fico me perguntando se era devido a que temia que pensasse mal<br />

de mim e não queria ver isso escrito em seu rosto. Realmente não sei o porquê.<br />

Creed suspira e alisa os cabelos.<br />

—Bem, há algo bom nisso, pelo menos minha família tem um monte de<br />

renda disponível.<br />

Neguei com a cabeça.<br />

—Não quero seu dinheiro, Creed.<br />

Dito isto, a mesa estalou.<br />

Sei o que vocês estão pensando: <strong>Bear</strong>, você é um idiota. Mas imagine que


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página50<br />

tenha dezessete anos e decide renunciar a todo o seu futuro. Imagine que se dê<br />

conta de que não pode depender de ninguém porque cedo ou tarde todos partem.<br />

Sei que não era justo desconfiar tão prontamente de todos os que me rodeavam,<br />

mas não sabia que outra coisa fazer. Meu orgulho era o único que me restava, e<br />

não estava disposto a deixar que me tirassem isso também. Além disso, devem<br />

entender que já transcorreu algum tempo, lembram? Agora as coisas são um pouco<br />

distintas.<br />

Mas naquela época, tinha tudo isso demasiadamente fresco em minha<br />

cabeça.<br />

Creed e Anna continuavam discutindo entre eles, protestando contra tudo o<br />

que eu havia dito, até que ouvi <strong>Otter</strong> dizer: «Saiam todos. Agora mesmo». Eu só tinha<br />

visto <strong>Otter</strong> realmente puto uma ou duas vezes, e nunca tinha sido dirigido para<br />

mim. Mas quando <strong>Otter</strong> se enfurece, todos os outros se assustam. Naquela época já<br />

era um tipo grande, mas realmente nunca gritava. No entanto, sua ira silenciosa<br />

era suficiente para que alguém tremesse. Anna e Creed ouviram o tom de sua voz<br />

e pararam no ato.<br />

—Saiam. —Repetiu.<br />

«O que você disser.» Pensei enquanto me levantava. Tinha que verificar Ty.<br />

—Você não, <strong>Bear</strong>. Sente-se.<br />

«Sim, senhor.» Pensei submisso e tive a estranha sensação de ser como um<br />

garoto a ponto de receber um castigo.<br />

Anna e Creed olharam para <strong>Otter</strong> e para mim e não devem ter gostado do<br />

que viram, pois saíram precipitadamente. Uma vez mais, não me atrevi a olhar<br />

para <strong>Otter</strong>, porque tinha medo do que veria, mas não até o ponto de mudar de<br />

opinião sobre o que estava decidindo fazer. Se <strong>Otter</strong> pretendia convencer-me de<br />

outra coisa, podia ir para o inferno. Não me importava quanto se irritasse. Por<br />

mim, podia destruir o mundo. Eu sabia o que tinha que fazer.<br />

—Agora me escute bem. —Disse com voz séria e serena. —Sei que esta<br />

situação fede. Nem sequer posso chegar a entender como se sente, mas, pelo<br />

menos, posso supor. O que não posso imaginar é como é possível que você tente<br />

afastar a todos os demais. Queremos apenas ajudar, e seria muito mais simples se<br />

nos deixasse<br />

—Mas… —protestei.<br />

<strong>Otter</strong> me cortou.<br />

—Cale a boca, <strong>Bear</strong>. —Olho para ele irritado, mas não desvio o olhar.<br />

Quando percebeu que eu não iria tentar falar novamente, continuou: —Isto está


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página51<br />

acontecendo com você, sim, e está acontecendo com Ty. Mas, se acredita que não<br />

afeta a ninguém mais, você está muito enganado. Por que acha que estamos aqui<br />

agora, se não for para ajudar? —Abri a boca para falar até que ele rosnou: —Foi<br />

uma pergunta retórica. Bem, terá que nos deixar ajudar, estamos do seu lado, e se<br />

ouço mais sandices desse seu discurso sobre fazer as coisas sozinho, não vacilarei<br />

em te dar uma boa lição. Entendido?<br />

Assenti timidamente.<br />

—Bem. Agora, tem certeza de que não quer chamar a polícia? E que não<br />

quer tentar localizá-la?<br />

Penso por um momento e dou de ombros. Pareceu tomá-lo como um não,<br />

porque sabia que era isso o que eu queria dizer em realidade.<br />

Suspirou.<br />

—Isto é uma tempestade de merda, <strong>Bear</strong>. Sabe que vai ser tornar muito<br />

difícil antes que se torne mais fácil. Não sei se devo abraçá-lo ou estrangulá-lo.<br />

Estas palavras me provocaram um sorriso, ainda que parecesse estranho em<br />

meu rosto.<br />

Ele prosseguiu:<br />

—Então você sabe que teremos que contar aos nossos pais, e sei que Anna<br />

fará o mesmo. Prometo que farei todo o possível para que isso não se espalhe<br />

muito, mas a única forma de consegui-lo consiste em deixar-nos ajudá-lo. E, juro<br />

por Deus, que se pensa em fugir com Ty os perseguirei pessoalmente e os trarei de<br />

volta amarrados. Os encerrarei em um quarto até que <strong>Kid</strong> seja grande o suficiente<br />

para tomar decisões por si mesmo. Só então pensarei em soltá-los. Entendido?<br />

Não me movi, não disse nada.<br />

<strong>Otter</strong> tinha uma expressão de angústia no rosto. Estendeu o braço e pegou<br />

minha mão sã.<br />

—<strong>Bear</strong>, tem que me prometer que resolveremos isso. Juntos. Não sairemos<br />

daqui até que me prometa.<br />

Não soube o que dizer-lhe. Ninguém nunca havia falado assim comigo<br />

antes, e eu estava com raiva e magoado. Deprimido. Mas, por um momento, não<br />

me senti como se valesse algo? O peso de sua mão, as palavras que havia<br />

pronunciado, não me reconfortavam? Percebi como o calor subia para meu rosto,<br />

olhei para minhas mãos e notei que outra lágrima escapava do meu olho. «O que<br />

está acontecendo?» Me perguntei, frenético.<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

—Prometo. —Disse com voz alquebrada .


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página52<br />

<strong>Otter</strong> se levantou de um salto e me atraiu até ele. Me estreitou contra seu<br />

peito e eu quis desaparecer dentro dele. Tentei me fazer pequeno enquanto ele me<br />

acalentava dizendo:<br />

—Eu sei. Eu sei. Eu sei.<br />

E acreditei nele.<br />

Quando, por fim, me senti bem o suficiente para soltar <strong>Otter</strong>, ele colocou um<br />

braço sobre meus ombros e me acompanhou até a sala. Anna e Creed se<br />

encontravam no mesmo lugar de antes, sussurrando entre eles. Nos ouviram<br />

entrar e se interromperam em meio a conversa. Tentei não pensar sobre o que<br />

estavam conversando, sabendo, com certeza, que voltaria a enfurecer-me e então<br />

<strong>Otter</strong> começaria o segundo round. Retirou seu braço dos meus ombros e fica de pé<br />

junto a mim, esperando que eu fale.<br />

—Sin… Sinto muito. —Digo, olhando para o chão.<br />

Não sabia mais o que dizer.<br />

Então foi <strong>Otter</strong> quem falou.<br />

—<strong>Bear</strong> mudou de opinião. Sabe que somente nos preocupamos com ele.<br />

Mas isto não tem que chegar mais longe do que o necessário. Não sei como vamos<br />

esconder para sempre, mas teremos que fazer todo o possível.<br />

Creed concorda com um aceno de cabeça e Anna se levanta imediatamente.<br />

Se aproxima de mim, me pega pela mão e começa a levar-me para o quarto. Tento<br />

dar uma desculpa, mas <strong>Otter</strong> me empurra, dizendo que cuidará de Ty. Olho em<br />

seus olhos e vejo algo neles, algo que não conseguia distinguir. Me flagrou<br />

encarando-o e esboçou o típico sorriso <strong>Otter</strong>. Então virei a esquina e desapareceu<br />

das minhas vistas.<br />

Anna não falou quando me arrastou para dentro de seu quarto. Se<br />

assegurou de que eu havia entrado e fechou a porta atrás de nós. Apagou as luzes<br />

e começou a me despir. Eu sabia o que estava fazendo, e não quis detê-la. Naquele<br />

momento necessitava sentir-me unido a alguém, sentir que me abraçavam, sentir<br />

seu coração contra o meu. Durante apenas alguns instantes necessitava esquecer a<br />

dor, esquecer o futuro, esquecer o passado. Se aquele ia ser meu último momento<br />

de liberdade, sabia que tinha que deixar sair tudo. Quando a penetrei, vi estrelas<br />

estalando em toda minha volta e eram reluzentes e isto foi elevado.<br />

Mas ainda me rondava algo em minha cabeça. Algo sobre ele.<br />

Um par de horas depois, Anna dormia ao meu lado, aconchegada junto ao<br />

meu ombro. Eu não conseguia dormir. O peso do mundo havia caído sobre minhas<br />

costas e era incapaz de tirá-lo de cima para conciliar o sono. Estava inquieto e, com


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página53<br />

cuidado para não despertar minha namorada, me levantei da cama e fechei a porta<br />

atrás de mim.<br />

A casa estava às escuras e fui com cuidado até a sala. Não vi ninguém ali,<br />

exceto Ty, iluminado pela luz da lua que se filtrava através da janela. Pensei que<br />

<strong>Otter</strong> e Creed haviam partido para sua casa e não pude evitar sentir-me um pouco<br />

decepcionado. Disse a mim mesmo que isso se devia ao fato de que esperava que<br />

estivessem tão acordados como eu. Esperava que, pelo menos <strong>Otter</strong> ainda…<br />

Ouvi uma risada sufocada à minha esquerda. Olhei e o vi sentado no chão,<br />

com as costas apoiadas na parede.<br />

—Está melhor? —Me perguntou.<br />

Dei de ombros fui sentar no chão ao lado de Ty. Lhe apartei uma mecha que<br />

havia caído sobre seu rosto. Sabia que aquele ia ser seu último momento de<br />

inocência. Quando acordar haverá perguntas, perguntas as quais eu ainda não sei<br />

como responder. Não ouvi <strong>Otter</strong> se mover, mas quando voltou a falar, o fez justo<br />

ao meu lado.<br />

—É um bom garoto. —Disse. —Você fará o correto com ele. Conheço você<br />

desde que tinha mais ou menos a idade dele e se deu bem, mesmo não tendo<br />

ninguém como ele tem.<br />

—Tive Creed e seus pais. Tive Anna. —Fiz uma pausa para pensar. —Tive<br />

você.<br />

O ouço rir de novo.<br />

—Sim, suponho que sim. E se desenvolveu muito bem, apesar de tudo isso.<br />

—Onde está Creed?<br />

—Está dormindo no quarto de hóspedes. Pelo visto é incapaz de dormir no<br />

chão, nem por uma maldita noite.<br />

—Por que não dorme?<br />

Notei que encolhe os ombros, neste momento estava sentado junto a mim.<br />

—Disse que ficaria vigiando. Estava falando sério.<br />

Lhe dei um golpe de leve no ombro.<br />

—Obrigado.<br />

Me devolve o golpe.<br />

—De nada.<br />

Ficamos ali um tempo, escutando a respiração de Ty, sem dizer nada.<br />

Finalmente comecei a sentir-me cansado, <strong>Otter</strong> me viu cabecear e me disse que<br />

voltasse para cama. Ele ficaria ali durante a noite. Sacudi a cabeça.<br />

—Não deveria. —Digo. —Tenho que estar aqui quando Ty acordar. Se isso


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página54<br />

vai acontecer amanhã como eu acho que vai, então ele precisa me ver logo que<br />

acorde.<br />

—Está bem, <strong>Bear</strong>. Sabe onde Anna guarda travesseiros ou cobertas extras?<br />

—No armário do corredor.<br />

O ouvi levantar e afastar-se. Voltei a olhar para Ty e minha alma se<br />

despedaçou. Dentro de algumas horas estaria desperto. Dentro de algumas horas<br />

teria que explicar ao meu irmão mais novo como era ter que crescer muito antes do<br />

que deveria. Tentei ensaiar algo para lhe dizer, tentando imaginar se ele<br />

entenderia. Mas, ao final, não cheguei muito mais longe de onde havia começado.<br />

<strong>Otter</strong> voltou com um monte de roupa de cama em seus braços. Me fez<br />

levantar e estendeu a manta junto ao sofá. Coloquei as almofadas e me deixei cair<br />

no chão, sentindo que meu corpo se apagava. Fiquei deitado de costas, olhando o<br />

teto, vendo os dedos da mão de Ty pendurada na lateral do sofá. <strong>Otter</strong> ficou no<br />

mesmo lugar que havia ocupado antes, aparentemente sem saber o que fazer.<br />

—Vai deitar ou montará guarda a noite toda? —Perguntei, repentinamente<br />

divertido.<br />

Pareceu vacilar um momento e logo se deitou ao meu lado, a pouca<br />

distância. Permanecemos em silêncio.<br />

Até que:<br />

—<strong>Otter</strong>?<br />

—Sim?<br />

—Obrigado.<br />

—Pelo que?<br />

—Já sabe, pelo que disse. E por estar aqui.<br />

—Claro, <strong>Bear</strong>.<br />

Sua mão roçou a minha.<br />

Já quase dormia quando:<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

—Sim?<br />

—Feliz aniversário.<br />

Então dormi, com um sorriso começando a se formar em meu rosto.<br />

Aquela noite sonhei. Sonhei muito. Mas o sonho que mais se destacou foi<br />

aquele em que seguia alguém a quem não conhecia. Tentava alcançá-lo, mas cada<br />

vez que me aproximava o suficiente para agarrar sua roupa, se afastava arrastado<br />

por uma corrente oceânica.<br />

Despertei quase ao amanhecer. Por um momento não sabia onde estava.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Abri os olhos e vi a parte inferior de um sofá. Tinha o rosto quase recostado contra<br />

ele. Notei uma pressão em minhas costas e lembrei onde estava. Cerrei os olhos<br />

com força, tentando afastar tudo. Então a coisa que me apertava as costas se moveu<br />

um pouco, e soube que era <strong>Otter</strong>. O ouvi roncar suavemente, com suas <strong>amp</strong>las<br />

costas encostadas contra as minhas. Seu corpo me empurrava contra o sofá no qual<br />

Ty seguia dormindo. A poeira do espaço perto do chão fez cócegas no meu nariz.<br />

Me afastei devagar, dei a volta e me aconcheguei junto a <strong>Otter</strong>. Estava quente.<br />

Estava ali. Dormi outra vez.<br />

*******<br />

Página55<br />

Despertei algum tempo depois ao notar uns golpezinhos na minha testa.<br />

Franzi o cenho, sem querer abrir os olhos. A almofada sobre a qual repousava<br />

minha cabeça era muito agradável para querer mover-me. Levantei os olhos,<br />

aborrecido, e vi <strong>Kid</strong> olhando-me do sofá, com os olhos brilhantes.<br />

—Ei, <strong>Bear</strong>. —Disse.<br />

—Ei, você. —Rosnei, voltando a fechar os olhos.<br />

—Por quê está dormindo sobre <strong>Otter</strong>? —Sussurrou, visivelmente divertido.<br />

Abro os olhos rapidamente. Movi a cabeça um pouco para esquerda e vi que<br />

a almofada sobre a qual eu estava deitado era o ombro de <strong>Otter</strong>. Tinha o braço<br />

direito debaixo de meu pescoço e enroscado em torno de mim pelo outro lado, com<br />

os dedos estendidos sobre meu peito. Uma de minhas pernas estava estendida<br />

sobre a dele. Ainda dormia. «Que diabos?» Pensei. Pouco a pouco, me desenrolei<br />

dele, sem tirar os olhos de seu rosto. Meu pulso palpitava com força em meus<br />

ouvidos e sentia um zumbido na pele. «Que diabos?»<br />

—Passamos a noite fora de casa? —Pergunta <strong>Kid</strong>.<br />

—Isso mesmo. —Respondi.<br />

<strong>Otter</strong> murmurou em sonho e virou de costas, se afastando de mim.<br />

—Estou com fome. —Ty diz, espreguiçando. —Será que Anna ainda tem<br />

Lucky Charms 6 ?<br />

—Não sei, <strong>Kid</strong>. Vamos procurar.<br />

O tirei do sofá e o levei até a cozinha.<br />

Ele puxa minha orelha.<br />

—O que? —Pergunto, repentinamente muito desperto.<br />

6<br />

Marca de cereal. São cereais coloridos em vários formatos.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página56<br />

—Não quer acordar <strong>Otter</strong> para que possa comer Lucky Charms com a<br />

gente?<br />

—<strong>Otter</strong>s 7 não comem Lucky Charms.<br />

Olha-me interrogativamente.<br />

—Mas bears 8 sim, não é?<br />

—Claro, <strong>Kid</strong>. Podemos dizer que é a única coisa que os ursos comem —<br />

Digo, dando uma última olhada em <strong>Otter</strong>, que seguia deitado no chão.<br />

Me estremeci.<br />

Levei Ty para a cozinha o acomodei na mesa. Me aproximei de um dos<br />

armários, baixei a caixa de cereais e retirei uma tigela do escorredor. Os deixei<br />

diante dele, me apresso em abrir a caixa e verter cereais na tigela. Peguei o leite da<br />

geladeira e deixei ao seu lado. Tão logo ele se tornou grande o suficiente, <strong>Kid</strong><br />

nunca permitia que lhe preparasse o café da manhã. Sempre queria fazê-lo<br />

sozinho. Me sentei na cadeira junto a ele, enquanto os pensamentos me invadiam a<br />

mente.<br />

—Você não vai comer, <strong>Bear</strong>? —Perguntou, lambendo os lábios sobre a<br />

colher.<br />

Me inclinei e lhe baguncei o cabelo.<br />

—Queria tomar um pouco do seu, se não se importa.<br />

Olha para a tigela e depois para mim.<br />

—Tudo bem. —Diz pausadamente. —Mas pegue somente os pedaços<br />

pequenos, não os grandes.<br />

Ele segurou a colher em uma mão e pegou dois marshmallows e os colocou<br />

na colher. Eram dois trevos verdes. Sabia que era o meu favorito. Estendeu a colher<br />

até a minha boca e os engoli, fazendo um ruído que lhe fez rir.<br />

—Ei, <strong>Bear</strong>! —Exclamou <strong>Kid</strong>.<br />

—O que foi?<br />

—É seu aniversário!<br />

—Sim.<br />

—Eu fiz uma coisa para você! Bem, Anna me ajudou, mas a maior parte fui<br />

eu que fiz. Posso buscá-la?<br />

—Claro, <strong>Kid</strong>. Mas procure não fazer barulho, certo?<br />

Assentiu com a cabeça, tomou outro bocado de cereal e logo saltou da<br />

cadeira. Saiu correndo da cozinha. Suas meias fizeram pequenos ruídos deslizando<br />

7<br />

Fazendo uma brincadeira com o apelido de <strong>Otter</strong>, ou seja, lontras não comem cereais.<br />

8<br />

Fazendo uma brincadeira com o apelido de <strong>Bear</strong>, ou seja, ursos comem cereais.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página57<br />

no chão.<br />

Esperei que se fosse e me deixei cair sobre a cadeira. A minha cabeça doía.<br />

Tinha o pescoço duro, aparentemente depois de passar as últimas horas aninhado<br />

no pescoço de <strong>Otter</strong>. Gemi em voz alta, agradecendo a Deus que somente Ty nos<br />

viu assim. Que teria pensado Creed se tivesse me visto deitado sobre seu irmão? E<br />

Anna? Que diabos eu estava pensando?<br />

«Tudo bem. »—Decidi. —Estava cansado e me aconcheguei em seu braço enquanto<br />

dormia. Não tem nada demais. Afinal, quem se importa? E se Creed tivesse nos visto? Teria<br />

dito que éramos um par de maricas? Mas não estávamos fazendo nada. <strong>Otter</strong> não é assim.<br />

Eu não sou assim. Foi algo sem querer.»<br />

Antes que pudesse seguir pensando nisso (ainda que não quisesse), <strong>Kid</strong><br />

entrou correndo na cozinha segurando um papel de desenho grande. Me entregou,<br />

se acomodou em sua cadeira e seguiu comendo os cereais. Olhei para o papel que<br />

me havia dado. Estava dobrado pela metade e na parte de fora estava escrito:<br />

PARA BEAR, DE SEU IRMÃO. Eu ri baixinho e abri. Dentro havia um desenho, e<br />

debaixo dele, mais letras de diziam: FELIZ ANIVERSÁRIO, BEAR. AMO VOCÊ! O<br />

desenho mostrava cinco figuras de pé no que parecia ser uma praia. Sabia qual<br />

deles era Ty porque o havia retratado menor que os demais. Anna tinha o cabelo<br />

preto e longo. Havia outros três.<br />

—Este é você. — Disse, sinalizando a figura situada junto a que<br />

representava ele. —E este é o tio Creed ao lado de Anna, e este é <strong>Otter</strong> ao seu lado.<br />

Nos havia desenhado a todos de mãos dadas. Eu segurava a mão de <strong>Kid</strong> e a<br />

de <strong>Otter</strong>. «Oh, pelo amor de Deus, é apenas um desenho!» Pensei.<br />

—Obrigado, <strong>Kid</strong>. Creio que algum dia será um artista famoso.<br />

—Talvez. Ou um detetive. Ainda não decidi. Posso comer mais Lucky<br />

Charms?<br />

—Sim.<br />

Segui observando o desenho, percebendo que não havia incluído nossa mãe.<br />

O deixei sobre a mesa.<br />

—Ty… —Disse, e de repente não soube o que acrescentar.<br />

Fui salvo quando Creed apareceu na cozinha, bocejando.<br />

—Tio Creed!<br />

Ty gritou e saltou da cadeira. Creed o carregou e o girou em círculos.<br />

—Olá, <strong>Kid</strong>! O que há?<br />

—Sabia que hoje é o aniversário de <strong>Bear</strong>?<br />

Para de girar a Ty e olha para mim.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página58<br />

—Claro, <strong>Kid</strong>. Seu grande irmão está se tornando um homem velho agora.<br />

Posso ver a preocupação em seus olhos ao dar-se conta de que ainda não<br />

disse nada a Ty.<br />

Ty não pareceu perceber nada de estranho.<br />

—Sim, agora é um urso velho. Teremos que colocá-lo em um asilo. Teremos<br />

bolo pelo aniversário de <strong>Bear</strong>?<br />

—Bolo? —Disse Creed, deixando <strong>Kid</strong> na cadeira. —Aposto que poderíamos<br />

arranjar isso. Que tipo de bolo acha que <strong>Bear</strong> gosta?<br />

Ty fez uma careta e resmungou:<br />

—Seguramente algo asqueroso como coco. Eu odeio coco.<br />

—Vou dizer o que vamos fazer: se <strong>Bear</strong> quer bolo de coco, me assegurarei<br />

de que consiga outro bolo para você.<br />

Ty o olha com receio.<br />

—Mas não é meu aniversário.<br />

—Não tem importância. Olhe, <strong>Kid</strong>, se importa que sequestre seu irmão por<br />

um momento? Tenho que falar com ele um assunto de gente grande.<br />

—Isso parece muito chato. —Opina Ty. —Posso acordar <strong>Otter</strong>?<br />

—Sim, claro. De fato, procure saltar em cima dele e golpear sua cara com a<br />

almofada, certo? É a única forma de despertar <strong>Otter</strong>.<br />

Ty toma outro bocado de cereal antes de afastar-se da mesa. Creed se virou<br />

para mim, as sobrancelhas levantadas.<br />

—Deduzo que ainda não lhe disse nada.<br />

Me encolho os ombros.<br />

—Me acordou há poucos minutos. Não tive tempo para fazer grande coisa.<br />

Ouvi um grito vindo da sala, e logo a estridente risada de Ty.<br />

—Quer que estejamos aqui quando lhe conte? —Perguntou Creed,<br />

colocando a mão no meu braço.<br />

—Acho que sim. Creio que seria melhor se todos nós estivéssemos aqui,<br />

não? Assim verá que ainda pode contar conosco.<br />

—Está bem. —Diz, levantando-se. —Irei buscar Anna. Certamente é melhor<br />

que façamos agora. —Começou a andar em direção ao quarto de Anna. Olho para<br />

as minhas mãos, perguntando-me outra vez que diabos ia fazer. —Ei, <strong>Bear</strong>.<br />

Levantei os olhos e vi Creed de pé no umbral da porta.<br />

—Feliz aniversário, cara. Sinto que tenha que ser assim, mas, mesmo assim<br />

feliz aniversário.<br />

Assenti e ele se foi para o quarto de Anna.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página59<br />

Fiquei sozinho apenas um par de segundos quando ouvi a risada de Ty no<br />

corredor enquanto <strong>Otter</strong> entrava, carregando <strong>Kid</strong> de cabeça para baixo.<br />

—Solte-me, <strong>Otter</strong>! —gritou Ty.<br />

—Vai me bater outra vez com a almofada?<br />

—Não!<br />

—Promete?<br />

—Sim!<br />

<strong>Otter</strong> o colocou na cadeira. Logo rodeou a mesa e ficou ao meu lado.<br />

Colocou uma mão sobre o meu ombro. Permiti durante um segundo até que<br />

lembrei onde me encontrava ao acordar. Então encolhi os ombros.<br />

—Você está bem, <strong>Bear</strong>? —Pergunta sem sair do meu lado.<br />

—Estou bem. —Respondi rispidamente, esforçando-me por evitar seu olhar.<br />

— Eu gostaria que as pessoas parassem de me perguntar isso.<br />

«E eu gostaria que fosse embora.» Pensei.<br />

—<strong>Bear</strong> —Disse ele em tom de advertência.<br />

—Oh, pare com isso, <strong>Otter</strong>. Não farei nenhuma besteira.<br />

—Não disse que ia fazer —Replicou. —Deus, é algo divertido pela manhã,<br />

não?<br />

E ainda que não dissesse nesse sentido, interpretei como algo íntimo, como<br />

algo secreto, compartilhado somente entre nós dois, dois falsos amantes que se<br />

encontram assim que o sol nasce. «Aposto que ele me fez dormir assim. Estou seguro de<br />

que eu não tive nada a ver com isso. Eu não sou assim, e pensava que <strong>Otter</strong> t<strong>amp</strong>ouco. Não<br />

me importa que ele seja, mas sei quem eu sou. Além disso, não preciso de uma complicação<br />

como essa. Mas não me importaria, porque não sou assim.» Forcei um sorriso.<br />

—Por que vocês estão brigando? —Perguntou <strong>Kid</strong>.<br />

Havia me esquecido de que estava ali. Olhei para ele e vi que tinha um<br />

marshmallow grudado em seu rosto. Estendi o braço sobre a mesa e o tirei.<br />

—Não estamos brigando, Ty. —Disse em voz baixa. —É apenas uma<br />

maneira em que os adultos falam as vezes.<br />

Alterna o olhar entre <strong>Otter</strong> e eu.<br />

—<strong>Bear</strong>, o fato de que agora tenha dezoito anos não significa que seja uma<br />

adulto. —Disse, pragmático.<br />

—Pois é claro que sou. —Espetei, tratando de dirigir minha ira para<br />

qualquer parte exceto a Ty, mas sem conseguir.<br />

Ele nem sequer se intimidou. Tomou outro bocado de cereal e<br />

despreocupadamente disse a <strong>Otter</strong>.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página60<br />

—Tem razão. <strong>Bear</strong> não é muito divertido na parte da manhã. Acho que é<br />

porque você não serve muito bem como almofada. — Diz <strong>Kid</strong>.<br />

«Oh, maldito seja!» Pensei. Meu rosto ardia e o cobri com as mãos.<br />

—Creio que tenha razão nisso, <strong>Kid</strong>. —Acrescentou <strong>Otter</strong> em voz baixa. Eu<br />

sabia que estava me olhando. —As lontras não servem muito bem de almofada.<br />

Baixei a mão disposto a dizer algo, o que fosse, quando Anna e Creed<br />

entraram na cozinha. Me levantei depressa e me aproximei de Anna, o que a pegou<br />

de surpresa. Eu passei meus braços em torno dela e a abracei com força. Pude<br />

notar seu corpo suave contra o meu e fiquei feliz por sentir-me um pouco excitado,<br />

até que me vi com o olhar preso no de <strong>Otter</strong> por cima do ombro de Anna, com uma<br />

expressão impenetrável. Ele foi o primeiro a desviar o olhar.<br />

«Bom.» —pensei impiedosamente. — «Bom. Muito bom.»<br />

—Humm… <strong>Bear</strong>? — Disse Anna. —Está me sufocando.<br />

Me dei conta de que a estava apertando cada vez com mais força, até que<br />

finalmente <strong>Otter</strong> desviou o olhar. A soltei e ela me olhou com preocupação nos<br />

olhos.<br />

—Estou bem. —Disse antes que a pergunta saísse de sua boca.<br />

Desde então, já sabia que me fariam muitas vezes essa pergunta.<br />

—Tudo bem. —Disse ela, pouco convencida. Deu uma última olhada em<br />

mim antes de voltar-se para <strong>Kid</strong>. —Lucky Charms? —Exclamou alegremente. —<br />

Tem certeza de que não quer rabanada?<br />

<strong>Kid</strong> sorriu com a boca cheia de açúcar cristalizado.<br />

—Podemos untá-las com manteiga de amendoim e xarope? Posso ajudar?<br />

—Posso providenciar manteiga de amendoim e xarope, mas creio que <strong>Bear</strong><br />

tem algo que deseja conversar com você. —Disse Anna.<br />

O tirou da cadeira e lhe deu o mesmo tipo de abraço que eu havia dado a<br />

ela. Ty se queixou um pouco, mas a abraçou também. Ela o colocou de volta na<br />

cadeira e pude ver o indício de lágrimas em seu olhos quando me devolveu o<br />

olhar. Fui tomado por uma ira negra e oleosa. «Não se atreva a chorar.»—Pensei. —<br />

Senão, Ty chorará também, e o fará de todo o modo, então, não se atreva. »<br />

—<strong>Bear</strong>? —Disse <strong>Kid</strong>. —O que você quer falar comigo? Iremos a algum lugar<br />

em seu aniversário? Porque estava pensando que poderíamos ir ao aquário e ver<br />

<strong>Otter</strong>, a lontra e Todd, a foca. —Declarou, mencionando seus animais favoritos da<br />

atração turística, situada nos arredores de Seafare.<br />

Olhei para Anna, que estava sacando pão e ovos, mas sabia que escutava<br />

com atenção. Me alegrei de ver que as lágrimas tinham secado um pouco. Olhei


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página61<br />

para Creed, descansando em uma cadeira, com uma expressão pensativa no rosto.<br />

E olhei para <strong>Otter</strong>, mas seu rosto permanecia passivo, como antes, sem revelar<br />

nada. Suspirei profundamente e me sentei diante de Ty.<br />

—<strong>Kid</strong>. —Comecei a dizer, e me alarmei quando a voz me saiu pastosa e<br />

emocionada.<br />

De repente notei meu rosto úmido, o coração encolhido, a garganta<br />

obstruída. «Santo Deus! »—Pensei. —«Não comece você também! De onde diabos saiu<br />

isso?»<br />

—<strong>Bear</strong>? —Ouvi Ty dizer, repentinamente preocupado.<br />

Ouvi o chiado de sua cadeira quando ele desceu, e ouvi Creed se levantar<br />

também, mas <strong>Otter</strong> o obrigou a sentar-se novamente. Ty veio correndo ao redor da<br />

mesa e subiu no meu colo.<br />

—O que aconteceu, <strong>Bear</strong>? Não pode ficar triste! É seu aniversário! Não<br />

temos que ir ao maldito aquário. Podemos fazer o que você quiser.<br />

Ele estava acariciando meu cabelo.<br />

Neguei com a cabeça e limpei a garganta, tentando dominar aquela<br />

inoportuna manifestação de emoção. Quando falei, minha voz soou áspera e<br />

apagada aos meus ouvidos.<br />

—Hoje podemos fazer o que quiser. E não só hoje. Se quiser fazer algo, diga<br />

e buscaremos uma maneira de fazê-lo, certo?—Recostei minha testa contra a sua,<br />

notando suas mãos em meu cabelo, sentindo seu hálito de Lucky Charms em meu<br />

rosto. ― Mas agora tenho que dizer uma coisa e preciso que você seja um garoto<br />

grande por mim, tudo bem?<br />

Notei que se afastava.<br />

—Ela está morta? —Perguntou.<br />

Sua voz era a única coisa que revelava sua idade. Disse isso tão<br />

silenciosamente, com tanta maturidade, que eu a amaldiçoei entre dentes por<br />

aquilo em que <strong>Kid</strong> estava prestes a se converter. Eu sabia o que eu estava prestes a<br />

fazer com ele, e eu me odiava por isso.<br />

—Ela está morta? —Repetiu com insistência.<br />

—Não, Ty, não está morta. Está…<br />

«Desaparecida? » —Pensei. —«Fugiu com Tom? Nos abandonou? Renunciou seu<br />

próprio sangue, o único que lhe restava no mundo? Eleja uma, <strong>Bear</strong>, depressa, eleja uma!»<br />

—Se… foi, <strong>Kid</strong>. Partiu.<br />

—Para onde ela foi? —Perguntou ele, com uma voz tão apagada quanto a<br />

minha.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página62<br />

—Não sei. Disse que queria partir com Tom e conseguir um emprego em<br />

algum lugar, mas não sei para onde foi.<br />

—Voltará, não é? —Perguntou Ty.<br />

Notei que começava a tremer entre meus braços. O apertei com mais força.<br />

—Não, <strong>Kid</strong>. —Sussurrei. —Não creio que volte. Creio que não voltará.<br />

—Por que tinha que partir? Porque foi embora?<br />

—Não sei, Ty. Gostaria muito de saber, mas não sei.<br />

Ouvi a primeira respiração ofegante saindo de seu corpinho.<br />

—<strong>Bear</strong>! —Gritou em meu ouvido. —O que será de mim? Oh, <strong>Bear</strong>, não sou<br />

mais que uma criança! Não sou grande como você! O que será de mim?<br />

Quando terminou já estava soluçando, retorcendo minha camisa, o cabelo, a<br />

pele e minhas entranhas.<br />

Eu não podia falar. Queria tranquilizá-lo rapidamente, consolá-lo, fazê-lo<br />

entender que eu estaria ao seu lado a todo o momento, mas as palavras não saíam.<br />

Olhei desesperado por cima do ombro, buscando Anna ou Creed, mas encontrei<br />

<strong>Otter</strong> cegamente através das lágrimas. Estava secando seus olhos. «Não! » —Pensei<br />

irritado. —«Você não pode chorar! Disse que me ajudaria, assim, me ajude, agora, foda!<br />

<strong>Otter</strong>!» Quase como se me ouvisse abaixou as mãos e vi que tinha os olhos<br />

avermelhados, mas ainda podia dominar-se. Lhe supliquei em silêncio. Ele<br />

compreendeu e se levantou em seguida. Deu a volta pela mesa. Se agachou junto a<br />

mim e ao inconsolado <strong>Kid</strong> e colocou uma mão sobre as costas de Ty.<br />

—Tyson, quero que me escute. —Disse em voz baixa, acariciando as costas<br />

de Ty. —Pode fazer isso por um momento? Faz isso por mim?<br />

Os soluços seguiam sacudindo o corpo de <strong>Kid</strong>, mas notei que assentia com a<br />

cabeça.<br />

—Olhe para mim, <strong>Kid</strong>. —Disse <strong>Otter</strong>. Ty virou em meu colo, com as duas<br />

mãos segurando minha camisa, agarrando-se ainda. <strong>Otter</strong> colocou suas mãos ao<br />

lado da cabeça de Ty e usou os polegares para secar-lhe as lágrimas. —Já sei que<br />

isso lhe assusta. —Continuou quando Ty se acalmou um pouco. —Sei que agora<br />

mesmo isso é muito assustador. Mas sabe quem cuidará de você, porque não é<br />

mais que uma criança? —Ty negou com a cabeça. —<strong>Bear</strong>. E eu. E Anna e o tio<br />

Creed. E minha mãe e meu pai, e a mãe e o pai de Anna. Todos cuidaremos de<br />

você. Se precisar de algo, somente tem que dizer a um de nós e faremos isso para<br />

você. Certo?<br />

Nós dois assentimos porque quando <strong>Otter</strong> disse essa última parte, também<br />

olhou para mim


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página63<br />

—E quando <strong>Bear</strong> for para a faculdade? —Perguntou <strong>Kid</strong>. —Ele deve ir para<br />

a universidade em breve! —Posso ver o pânico invadindo sua voz. —Terei que me<br />

mudar também? Eu não quero me mudar! Eu gosto do meu quarto! Não quero ir!<br />

—Não vai precisar se mudar. —Consegui articular por fim. —Não irei a<br />

faculdade por agora. Podemos ficar aqui, e pode manter seu quarto.<br />

Começou a chorar de novo, esta vez, silenciosamente, recostado contra meu<br />

peito. Apoiei o queixo sobre sua testa e lhe acalantei com suavidade. Notei uma<br />

mão quente sobre meu joelho, sabia que era de <strong>Otter</strong> e sabia que deveria sacudir a<br />

perna para que se afastasse, mas era reconfortante e afetuosa e não pude reunir o<br />

valor para me afastar.<br />

Anna e Creed se fizeram notar quando se ajoelharam junto a <strong>Otter</strong>. Este não<br />

retirou a mão, e me alegrei. Os dois estenderam um braço e tocaram o rosto de Ty,<br />

a perna e o cabelo.<br />

—As coisas não serão muito diferentes. —Disse Anna por fim. —Continuará<br />

indo á escola e brincando com seus amigos. Poderá ficar em sua casa e quando<br />

<strong>Bear</strong> tiver que trabalhar poderá ficar comigo, com o tio Creed o com <strong>Otter</strong>. Sei que<br />

sua mãe não estará aqui, mas todos nós estaremos. Prometo, está bem?<br />

Ty assentiu, movendo a cabeça somente uma vez.<br />

— E o tio Creed? Ficará também? Não vai para a faculdade, não é?<br />

Creed sacudiu os ombros e me olhou com uma expressão que não havia<br />

visto nunca em seu rosto. Com esse olhar me disse que acreditava que ele também<br />

me trairia e me abandonaria. Durante um segundo, egoisticamente, claro, tive essa<br />

sensação. Sabia que partiria no outono, e que só o veria de vez em quando, e que<br />

não seria o mesmo. Afastei aqueles pensamentos, porque nesse momento não se<br />

tratava de mim, senão de <strong>Kid</strong>. Me preocuparia comigo mesmo mais adiante.<br />

—Ty. —Disse, elegendo com cuidado as palavras que seguiram. —O tio<br />

Creed estará aqui nos dois próximos meses, mas em agosto irá para a faculdade.<br />

Isso não significa que já não gosta de você, apenas ele tem que ir. Será um<br />

profissional da informática famoso, ficará muito rico e nos levará para uma viagem<br />

em seu barco, mas para fazer isso tem que ir para a faculdade, certo?<br />

Ty assentiu, e Creed me olhou como se caminhasse sobre as águas.<br />

—Mas virei sempre, ok? —Disse Creed, parecendo normal novamente. —<br />

Me verá continuamente, e se alguma vez quiser falar comigo, quando não estiver<br />

aqui, basta pedir a <strong>Bear</strong> que me ligue e poderemos conversar tudo o que quiser.<br />

Vou preferir conversar contigo a assistir a uma estúpida aula de informática.<br />

—Ok. —Disse Ty com tristeza. Então se voltou para <strong>Otter</strong>. —Você falou que


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página64<br />

ficaria e também cuidaria de mim, <strong>Otter</strong>. Vai partir também? Não como minha<br />

mãe, mas como o tio Creed? Somente virá me ver as vezes?<br />

<strong>Otter</strong> respondeu sem vacilar.<br />

—Não irei a nenhuma parte, <strong>Kid</strong>. Pode contar com isso. Ficarei aqui contigo<br />

e com <strong>Bear</strong>, ok?<br />

—Mas, <strong>Otter</strong>. —Interrompeu Creed— E o…?<br />

<strong>Otter</strong> lhe lançou um olhar de advertência e Creed se calou. Me perguntei de<br />

que se tratava. Não sabia que <strong>Otter</strong> tinha que partir ou fazer algo. Naquele<br />

momento não queria pensar necessariamente em <strong>Otter</strong>, mas estremeci diante da<br />

ideia de que também fosse embora. <strong>Otter</strong> já havia concluído a faculdade e<br />

trabalhava em um pequeno estúdio fotográfico no município vizinho. Não era um<br />

trabalho fascinante, mas parecia que ele gostava. Havia assistido algumas<br />

exposições de sua obra. Eu havia passeado por elas com Creed e seus pais,<br />

tomando ch<strong>amp</strong>anhe e sentindo-me maior do era enquanto passeávamos de uma<br />

fotografia a outra. Me lembrei que deveria perguntar a Creed mais tarde o que<br />

estava acontecendo com <strong>Otter</strong>.<br />

Tão logo Ty soube qual era a sua situação, quem partiria e quem não,<br />

pareceu tranquilizar-se um pouco. Se voltou para mim e se arrastou pelo peito<br />

novamente. Manteve seus braços em volta de mim. Eu coloquei um braço em volta<br />

de seu pescoço, e ele acariciou o meu. Um pensamento fugaz surgiu na minha<br />

cabeça - é assim que você e <strong>Otter</strong> estavam - mas eu o empurrei para longe antes<br />

que pudesse se enraizar-se. Ouvi <strong>Kid</strong> murmurar algo contra meu pescoço e inclinei<br />

a cabeça para escutar.<br />

—Diga isso de novo, <strong>Kid</strong>. Não ouvi você. —Lhe disse.<br />

—Tenho que sentar na banheira. Eu me sinto como em um terremoto. —<br />

Sussurrou.<br />

Levantei-me no ato e levei Ty. Ouvi Anna e Creed explicarem a <strong>Otter</strong> o que<br />

Ty havia querido dizer e ninguém nos seguiu, para meu alívio. Levei Ty ao<br />

banheiro mais perto, entrei na banheira e me sentei com as costas recostadas no<br />

lado oposto à torneira. Estiquei as pernas e Ty se estendeu sobre o meu peito, com<br />

os olhos vidrados e apáticos.<br />

Quando tinha quatro anos, Ty tinha visto na TV algum programa sobre<br />

terremotos, placas tectônicas ou algo assim que ficou gravado em sua mente. Já a<br />

essa idade não assistia desenhos como as crianças normais. Mais tarde me explicou<br />

que no programa haviam dito que, em caso de terremoto, teriam que buscar um<br />

lugar seguro. Um desses lugares é o banheiro, dentro da banheira. Desde então,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página65<br />

sempre que Ty se sente assustado, transtornado, com problemas, furioso ou<br />

qualquer outro tipo de emoção distinta de felicidade, vai e senta-se na banheira até<br />

se sentir melhor, dizendo que queria se proteger de seus terremotos. Antes minha<br />

mãe tentava fazê-lo desistir, até que um dia eu lhe disse para deixá-lo em paz.<br />

Concordou que tudo bem, que o deixaria em paz, mas que teria que cuidar dele<br />

quando ficasse assim.<br />

De modo que ficamos sentados na banheira, sentindo que o mundo se<br />

movia entre nossos pés. Finalmente ele se acalmou e adormeceu sobre meu peito,<br />

com as mãos ainda agarradas a minha camisa. Ali dentro estávamos a salvo. Lá<br />

fora, o mundo se sacudia e tudo se desmoronava.<br />

E assim foi como tudo aconteceu. Assim foi como ela foi embora. Assim foi<br />

como reagi. Foi assim que contamos a Ty. Assim foi como tomei a única decisão<br />

que podia tomar. Eu completei dezoito anos e obtive um filho. Alguns dias depois<br />

Creed, Anna e eu nos graduamos no colégio. Tanto os pais de Anna como os<br />

Thompson foram informados do que aconteceu. Os reunimos para contar, de<br />

modo que não tivéssemos que repetir, e me senti orgulhoso de meus amigos<br />

quando se mantiveram unidos comigo diante dos protestos de seus pais.<br />

Finalmente os convencemos que estivessem de acordo em deixar-me cuidar de Ty<br />

sem tentar localizar a nossa mãe, não chamaram a polícia nem nada disso.<br />

Logicamente, isto somente foi possível com a condição de que aceitasse sua ajuda e<br />

lhes pedisse qualquer coisa que necessitasse para Ty ou para mim. <strong>Otter</strong>, Creed e<br />

Anna me acertaram pontapés por baixo da mesa ao ver-me vacilar e, então, disse<br />

que sim. Sabia que seus pais atuavam a contragosto, mas creio que estavam<br />

inteirados da minha ameaça de pegar Ty e fugir se fizessem algo, de modo que não<br />

fizeram nada.<br />

Tal como minha mãe me havia prometido, a procuração chegou dois dias<br />

depois de meu aniversário; quem a trouxe foi a amiga de minha mãe, Denise. E,<br />

também como havia prometido, já estava assinada pelo escrivão. A única coisa que<br />

tive que fazer foi assinar meu nome na linha vazia abaixo. Fiquei olhando aquele<br />

papel durante o que pareceram horas, traçando a assinatura de minha mãe com o<br />

dedo uma e outra vez. Me sentia como se entregasse minha vida, concordando<br />

com algo que não era justo para nenhum dos afetados. Mas, no fundo, que outra<br />

coisa poderia ter feito? Assinei a procuração e Creed e Anna insistiram em dar-lhe<br />

muita importância, dizendo que aquilo merecia uma celebração. Neguei com a<br />

cabeça e saí para a sacada do nosso apartamento; fiquei olhando para o<br />

estacionamento. Depois de algum tempo <strong>Otter</strong> chegou e ficou ao meu lado, sem


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página66<br />

falar, mas dando-me pequenos golpes no ombro de vez em quando, para que eu<br />

soubesse que ainda estava ali. Era tudo o que eu precisava.<br />

Resultou que os 137,50 dólares, que havia no envelope com a maldita carta,<br />

foi tudo o que nossa mãe havia deixado. Eu tinha naquela conta mais de três mil<br />

que eu economizei trabalhando, economia para quando fosse para a faculdade. Foi<br />

a última bofetada na cara que minha mãe me deu. Mas, para grande desgosto meu,<br />

Creed, Anna ou <strong>Otter</strong> haviam obtido meus dados bancários e, de alguma maneira<br />

aquela quantidade havia sido restituída como por arte de magia em minha conta.<br />

Soube que foi um de seus pais quem havia depositado e protestei logo em seguida.<br />

Me mandaram calar a boca e que recordasse que havia prometido deixá-los ajudar.<br />

Não lhes disse nada mais, salvo umas humildes palavras de agradecimento, e<br />

então me dediquei a trabalhar e pedi para fazer turnos extras. Jurei que não<br />

voltaria a colocá-los em situação semelhante.<br />

E isso foi o que ocorreu.<br />

Já sei, Já sei. Já os ouço perguntar: «Mas, <strong>Bear</strong>, isso não explica o que aconteceu<br />

entre você e <strong>Otter</strong>. É o mais importante desse flashback!» Estou chegando a isso. Apenas<br />

estou pensando no que vou dizer. Ele fez algo para mim, sim, mas eu não estou<br />

falando de qualquer coisa física. Ele fez alguma coisa com a minha cabeça, e eu<br />

acho que é sempre a coisa mais difícil de falar. Assim, pois, por que <strong>Otter</strong> e eu<br />

estamos de pé debaixo da chuva, com o sorvete de soja de <strong>Kid</strong> quase derretido?<br />

Por que me agarro a ele como fez Ty quando lhe contamos sobre nossa mãe? O<br />

faço porque tenho medo de que desapareça como disse que não faria, que me<br />

abandone e novamente me deixe só. Mas eu não sou assim, ok? Não sou assim.<br />

Não sou.<br />

Algumas semanas depois de me formar cheguei em casa do trabalho. Eram<br />

quase dez da noite. Estava cansado. Naqueles dias me sentia cansado a maior parte<br />

do tempo. Não há nada mais desgastante para um ser humano que um estado<br />

perpétuo de aflição e de ira. Alternava entre ambas, tratando de reprimí-las para<br />

que ninguém percebesse quão mal eu estava. Entrei em nosso apartamento e vi a<br />

senhora Paquinn sentada no sofá, com Ty dormindo com a cabeça em seu colo.<br />

A senhora Paquinn é a vizinha do lado. Tem mais de setenta anos, mas<br />

possui mais agilidade mental que a maioria das pessoas que conheço. Sempre que<br />

preciso de uma babá está mais que disposta a cuidar de Ty, sem fazer perguntas.<br />

Vive sozinha e tem sido assim nos últimos trinta anos, depois que seu marido<br />

faleceu de um ataque cardíaco, a uma idade incrivelmente jovem. Sempre gosta de<br />

dizer-me que aquele homem suportou a enfermidade durante duas semanas,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página67<br />

demasiado apegado a essa vida para passar para a outra. Eu sei que teve uma filha<br />

que também faleceu, mas isso foi quando ela era muito jovem. Havia dito que<br />

Deus achou oportuno bendizê-la com uma, mas que era valiosa demais e, por isso,<br />

havia levado de volta. Quando ouvi isso pela primeira vez, me fez pensar que<br />

Deus era um filho da puta possessivo.<br />

Finalmente havia reunido a coragem para contar-lhe o ocorrido, esperando<br />

que sentisse pena e se compadecesse de mim, como haviam feito os demais.<br />

Inclusive pensei que choraria um pouco. Mas não fez nada disso; me disse que era<br />

valente por fazer o que fazia e que lhe recordava seu Joseph, seu marido. Me disse<br />

que não me preocupasse nunca em pedir-lhe ajuda com <strong>Kid</strong>, que cuidaria dele<br />

sempre que o necessitasse. Sempre lhe havíamos pagado, pois ela vivia de uma<br />

renda fixa, e me assegurei de que isso não mudasse. A primeira vez que a paguei,<br />

vi que estava a ponto de protestar, mas devia haver algo em meus olhos, porque<br />

olhou para mim por um longo momento e depois aceitou o dinheiro sem discutir.<br />

Pelo menos nisso, percebi certa normalidade.<br />

Entrei no apartamento e lhe agradeci em voz baixa, por cuidar de Ty para<br />

mim. Anna também estava trabalhando e Creed e <strong>Otter</strong> tinham que comparecer a<br />

um jantar de família. A senhora Paquinn concordou rapidamente em cuidar de Ty<br />

quando havia pedido na véspera. Se levantou devagar do sofá, com movimentos<br />

suaves para não despertar Ty. Lhe paguei, me abraçou como fazia sempre e a<br />

conduzi até a porta. Esperei que entrasse no apartamento ao lado antes de fechar a<br />

porta.<br />

Fui até Ty e o carreguei. Despertou brevemente, viu que era eu quem o<br />

estava carregando e seguiu dormindo em meus braços. A senhora Paquinn já tinha<br />

colocado o seu pijama, assim que o coloquei na cama, o cobri, beijei sua testa e<br />

apaguei a luz de seu quarto. Deixei a porta entreaberta para que a luz da sala<br />

iluminasse seu quarto. Uns dias antes tentei me instalar no antigo quarto de minha<br />

mãe, agora que estava livre. Mas isso causou uma reação irracional por parte de<br />

Ty. Não demorei muito para descobrir que ele sabia que teria que deixá-lo as<br />

vezes, para ir trabalhar e coisas assim, mas quando estivesse em casa esperava que<br />

fizesse o mesmo que antes da partida de nossa mãe. O que implicava em dormir no<br />

mesmo quarto. Não lhe importava que dormíssemos em nosso quarto ou em outro,<br />

desde que estivéssemos juntos. Optamos por ficar em nosso quarto, mesmo sendo<br />

menor. O quarto de nossa mãe ainda conservava o seu cheiro. Era muito cedo<br />

ainda.<br />

Naquela noite, no entanto, não pensava nisso. Aquela era uma das noites


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Página68<br />

em que me sentia, com frequência naqueles dias, deprimido, com raiva e com pena<br />

de mim mesmo. Sabia que não poderia dormir. No trabalho havia tomado a<br />

decisão de que queria me embebedar. Sabia que não havia nada pior para a<br />

depressão que beber sozinho, mas não me importava. Minha mãe havia deixado<br />

uma garrafa de Jim Beam 9 em um armário. Era repugnante, espesso e enjoativo,<br />

mas me anestesiou rapidamente, sobretudo, porque bebia diretamente da garrafa.<br />

Em pouco tempo me encontrei bêbado e em um estado pior do que quando havia<br />

começado. Uma sombra cruzou meu coração e eu fui até a banheira, com o corpo<br />

sacudido por tremores. Levei a garrafa comigo. Estava transtornado. E bêbado. E<br />

queria falar com alguém. Desesperadamente.<br />

Peguei meu telefone para ligar para Anna ou Creed e, em vez disso, disquei<br />

o número de <strong>Otter</strong>.<br />

Respondeu ao quarto toque.<br />

—Graças a Deus você me ligou. Este jantar não acaba nunca, e tenho que<br />

confessar que minha extensa família é insuportável. Obrigado por me dar uma<br />

desculpa e fugir.<br />

—Minha extensa família também é uma merda. —Disse, tentando fazer uma<br />

piada, mas tinha a voz pastosa.<br />

<strong>Otter</strong> parecia divertido.<br />

—Suponho que <strong>Kid</strong> dorme e decidiu se permitir algum excesso.<br />

—Sim.—Respondi a duras penas. —Eu malditamente ganhei esse direito.<br />

—Isso não se pode negar. Onde está?<br />

—Na banheira. Há terremotos, e tenho que me manter seguro. —Declarei<br />

irracionalmente.<br />

—Você está bem?<br />

—Não. Venha.<br />

—Tudo bem.<br />

Sem vacilação.<br />

—Está com sua família jantando. Não quero atrapalhar.<br />

Ele bufou.<br />

—Que se danem. Creed pode entretê-los. Estarei aí em quinze minutos.<br />

Ressoou um alarme dentro da minha cabeça.<br />

—Não, está tudo bem.<br />

Mas ele já havia desligado.<br />

Tentei levantar-me, não sei para que. O que consegui foi bater minha cabeça<br />

9<br />

Marca de Bourbon.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página69<br />

no suporte de sabonete da parede do chuveiro. Decidi que naquele momento não<br />

estava em condições de pensar, e ainda menos deixar que <strong>Otter</strong> viesse, com tudo o<br />

que vinha acontecendo. Olhei como um bobo para meu celular, perguntando-me<br />

como havia deixado de ligar para Creed ou Anna e fazer com que <strong>Otter</strong> viesse<br />

enquanto estava bêbado. Joguei o telefone no corredor, onde saltou sobre o tapete e<br />

bateu contra a parede. Abri o chuveiro e fiquei ali enquanto a água fria caía,<br />

desejando ficar sóbrio. A roupa não demorou para ficar ensopada e aderir-se em<br />

minha pele. Puxei meus joelhos contra meu peito, abracei minhas pernas e<br />

estremeci.<br />

Fiquei surpreso e em transe algum tempo depois, quando <strong>Otter</strong> entrou no<br />

banheiro. Ele estava vestindo terno e gravata e me perguntei por que ia tão bem<br />

vestido para vir a minha casa. Me perguntei o que eu fazia ainda no chuveiro, com<br />

a pele intumescida e os dentes batendo. Me perguntei por que notei que a gravata<br />

de <strong>Otter</strong> combinava quase perfeitamente com seus olhos. Estava apoiado no marco<br />

da porta do banheiro, com seus grandes braços cruzados sobre o peito e a cabeça<br />

inclinada para um lado, como se tentasse averiguar que diabos eu estava fazendo.<br />

Pensei que lhe devia uma explicação.<br />

—Fiquei assustado. —Disse estupidamente indicando ao meu redor. —Este<br />

é o único lugar seguro quando tudo treme.<br />

Ele não disse nada, em vez disso, se afastou da porta e se enfiou na banheira<br />

comigo, com roupa e tudo. Se sentou ao meu lado, com nossos joelhos se tocando.<br />

Estendeu um braço até a torneira e girou até que a água se tornou quente. O olhei<br />

com os olhos arregalados.<br />

Me viu observando-lhe e deu de ombros.<br />

—Não é mais que uma roupa, <strong>Bear</strong>. E está com os lábios azulados. O que faz<br />

aqui debaixo da água fria?<br />

Olhei para minhas mãos e reparei o quão insano devia ter parecido quando<br />

ele entrou no banheiro.<br />

—Tentava ficar sóbrio. —Disse, com uma voz semelhante a de <strong>Kid</strong>.<br />

<strong>Otter</strong> bufou e tirou a garrafa da minha mão.<br />

—Aposto que sim. Por que diabos bebia esta merda?<br />

—Era o único que tinha. A única coisa que minha mãe deixou. —Respondi,<br />

como se isso explicasse tudo.<br />

—Bem, então isso não vai ser tão ruim. —Disse, enquanto se inclinava para<br />

frente e esvaziava o resto da garrafa no ralo.<br />

Comecei a protestar, mas mudei de opinião quando sacudiu a cabeça.


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Página70<br />

—Tudo bem. —Disse. —De qualquer forma, eu não queria mais.<br />

Recostei a cabeça sobre os joelhos, começando, por fim, a me aquecer.<br />

Permanecemos algum tempo sem falar e foi bom. O chuveiro fazia muito barulho<br />

para poder falar como era devido, mas era agradável estar com alguém. Era<br />

consciente de sua presença, de seu joelho chocando com o meu várias vezes, e me<br />

transmitiu consolo. Senti que o mundo se estabilizava pouco a pouco, e quando<br />

tive certeza de que o terremoto havia passado me levantei, me inclinei sobre <strong>Otter</strong><br />

e fechei a água. Sai da banheira e lhe entreguei uma toalha.<br />

—Melhor? —Perguntou enquanto tirava o paletó e a gravata.<br />

Esfregou o rosto e o cabelo com a toalha.<br />

—Sim. Não tinha que ter vindo, <strong>Otter</strong>.<br />

—Eu sei.<br />

—E agora está todo molhado.<br />

—Você é muito observador quando está bêbado.<br />

—Por que veio?<br />

—Você me pediu para vir. Por que você me chamou?<br />

—Não sei. —Respondi sinceramente.<br />

—E eu t<strong>amp</strong>ouco, <strong>Bear</strong>. Mas agora estou aqui. E sim, estou molhado, igual a<br />

você. Pode me emprestar um calção e uma camiseta ou algo assim? Não podemos<br />

ficar com essas roupas.<br />

Minha cabeça o interpretou mal, e senti um tremor me percorrer por dentro.<br />

Me seguiu até o quarto, onde Ty ainda dormia. Esperou na entrada<br />

enquanto pegava alguma roupa para ele. Lancei para ele uma camiseta velha e um<br />

calção. Se afastou e ouvi a porta do banheiro fechar. Esperava que não tivesse<br />

percebido como tremiam minhas mãos. Disse a mim mesmo que era porque sentia<br />

frio. Me senti como um mentiroso.<br />

Tirei rapidamente a roupa úmida e usei a toalha para esfregar a pele gelada.<br />

Coloquei uma calça jeans e uma camiseta. Comprovei de imediato que ainda<br />

continuava bêbado, porque não conseguia fechar o zíper da calça e havia colocado<br />

a camiseta do lado avesso. Amaldiçoei em voz baixa.<br />

Saí do quarto, assegurando-me de deixar a porta entreaberta, e fui para a<br />

sala, onde <strong>Otter</strong> já estava sentado no feio sofá. Minha roupa parecia ficar melhor<br />

nele do que em mim. A camiseta se esticava sobre seu peito e seus ombros. As<br />

mangas lhe apertavam os braços. Em meu estado de embriaguez, me perguntei o<br />

que aconteceria se eu o deixasse com raiva; Eu aposto que eu não gostaria dele<br />

quando estivesse com raiva. Minha boca ficou seca e optei por sentar em uma


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Página71<br />

cadeira de frente a ele e não no sofá ao seu lado, enquanto tentava tirar da minha<br />

cabeça a imagem de <strong>Otter</strong> como o Hulk.<br />

Como não sabia o que dizer, não disse nada. Ele t<strong>amp</strong>ouco, e dentro de<br />

minha cabeça se iniciou uma disputa para ver quem aguentava mais tempo sem<br />

falar. Para minha mente bêbada parecia algo fascinante, pelo menos até que minha<br />

boca bêbada se abriu e disse:<br />

—Não posso fazer isso, <strong>Otter</strong>.<br />

—O que não pode fazer, <strong>Bear</strong>?<br />

—Não sei. Não dê ouvidos a mim. Estou bêbado e não sei o que digo.<br />

—O que você não pode fazer, <strong>Bear</strong>? —Repetiu e o amaldiçoei mentalmente.<br />

—Não posso… Não posso cuidar de Ty —Disse, acreditando que queria<br />

dizer outra coisa, mas ignorava o que poderia ser.<br />

Ele suspirou.<br />

—Não leve a mal, mas em realidade não pode escolher. Você tem que fazer<br />

isso.<br />

—Não é justo.<br />

—Não, não é.<br />

—Não posso fazê-lo, <strong>Otter</strong>.<br />

—Sim, você pode.<br />

—Você vai partir? —Perguntei bruscamente.<br />

Isto o pegou de surpresa, e ele recuou como se eu o tivesse esbofeteado.<br />

—O Quê?<br />

—Quando contamos a Ty que nossa mãe havia partido, <strong>Kid</strong> perguntou a<br />

você se ficaria, e você respondeu que sim, mas Creed disse algo. Não me lembro o<br />

que disse, mas me fez pensar que tinha intenção de partir.<br />

Negou com a cabeça, mas não disse nada.<br />

—Era certo isso? —Insisti, necessitando repentinamente uma resposta sua.<br />

—Isso não importa, <strong>Bear</strong>.—Disse <strong>Otter</strong> em voz baixa, desviando os olhos de<br />

mim.<br />

—Importa sim. Não tem que ficar por nossa causa.<br />

—Nossa? —Perguntou, arqueando uma sobrancelha.<br />

—Ty e eu.<br />

Deu de ombros.<br />

—Eu disse a ambos o que eu faria.<br />

—Não sacrifique nada por nós, <strong>Otter</strong>. —Disse, sentindo a raiva inflamar<br />

meu estômago. —Já tenho que fazer isso eu mesmo, assim, não faça você também.


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Página72<br />

Não respondeu.<br />

—Para onde vai? É para algum trabalho?<br />

Ele balançou a cabeça.<br />

—Não? Não o quê? Não era para trabalho? —Insisti, com um tom agressivo<br />

na voz. —Então para que era? O que você ia fazer? Quando pensava em me dizer?<br />

—Eu não… —Começou a dizer, e então suspirou.<br />

—Não seja estúpido, <strong>Otter</strong>. Responda a fodida pergunta. Quando partirá?<br />

—<strong>Bear</strong> —Disse em voz baixa, com seu tom habitual de advertência.<br />

Normalmente isso me fazia calar. Normalmente deixava de falar. Mas,<br />

impulsionado pelo álcool ou pela raiva, fui incapaz disso. Não podia deixá-lo em<br />

paz.<br />

—Por que não queria me dizer?<br />

—<strong>Bear</strong>, esqueça isso!<br />

<strong>Otter</strong> se levantou e começou a caminhar pela sala.<br />

—Foda-se. Não quero esquecer! Diga!<br />

—Não vou a lugar nenhum!<br />

—Por que não? —Gritei, sem importar-me que <strong>Kid</strong> acordasse.<br />

Parou de caminhar e me fulminou com o olhar.<br />

—Se você ainda não sabe, então não adianta nada dizer. —Ele cuspiu.<br />

Me levantei da cadeira e me plantei diante dele, encarando seu rosto. Ele me<br />

devolveu o olhar com o cenho franzido, sem pestanejar. Nunca havia estado tão<br />

próximo de seu rosto e vi umas notas douradas no verde de seus olhos, cuja<br />

existência desconhecia até então. Me perguntei até que ponto estava bêbado,<br />

porque notei que minhas mãos se erguiam, e percebi que estava disposto a lhe dar<br />

um soco ou derrubá-lo ao chão. O que eu não esperava era que minhas mãos<br />

pousassem sobre sua nuca e se deslizassem suavemente pelo seu cabelo, ainda<br />

úmido pela água do chuveiro. O que não esperava era que minhas mãos o<br />

atraíssem para mim. O que não esperava era que seus lábios tocassem os meus,<br />

com um grunhido de surpresa saindo de sua boca. O que não esperava era a<br />

calidez de seu sabor, o quão agradável era e como soube quando havia superado<br />

sua comoção inicial, porque começou a beijar-me também, e meu sangue ferveu,<br />

me senti eletrizado e o universo inteiro se sacudiu até o fundo. Então percebi o que<br />

ocorria, o que estava fazendo e com quem eu fazia, e fiquei gelado quando as mãos<br />

de <strong>Otter</strong> buscaram minha cintura. Tão logo suas mãos tocaram meu quadril,<br />

retrocedi com um salto e me encontrei quase na outra extremidade da sala.<br />

—Oh, meu Deus! —Gemi em voz alta, enquanto meu estômago se encolhia,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

e me dobrei de dor. —Oh, meu Deus.<br />

E assim foi como sucedeu. Assim foi como acabei beijando o irmão mais<br />

velho do meu melhor amigo, <strong>Otter</strong>, ao que conheço quase desde que tinha uso da<br />

razão. Uma loucura, não é? Sobretudo, levando-se em conta que eu não sou assim.<br />

Não sei como ocorreu, por que ocorreu e nem nada, ok? Simplesmente ocorreu.<br />

Lembro que me afastei dele tropeçando e murmurando desculpas, dizendo que<br />

estava bêbado, que não sabia o que fazia, que esse não era eu e que somente<br />

precisava dormir e se ele podia ir embora, que o chamaria mais tarde. Enquanto<br />

balbuciava, não olhei em seus olhos em nenhum momento. Minha cabeça dava<br />

voltas e sentia náuseas. Já quase havia chegado ao sofá e lhe pedia de forma<br />

incoerente que não dissesse a Creed nem a Anna, quando a sala começou a girar.<br />

Deitei no sofá e o vi se aproximar, com uma expressão preocupada no rosto e,<br />

antes de desmaiar, lembrei do tato de seu cabelo em meus dedos, úmido e suave.<br />

Algum tempo depois, pensei ter sonhado. Sonhava que <strong>Otter</strong> havia me<br />

levantado do sofá e me carregado em seus braços. Me levou ao meu quarto, me<br />

colocou na cama e me cobriu com o edredom até o pescoço. Sentou-se na cama<br />

junto a mim, esfregou meu cabelo e acariciou meu rosto. Tentei falar com ele, mas<br />

minha boca parecia estar cheia de algodão e não pude falar. Notei que a cama se<br />

movia quando ele se levantou, se inclinou sobre mim e beijou minha testa. Antes<br />

de retirar-se, aproximou seus lábios do meu ouvido e disse: «Sinto muito. Espero que<br />

possa me perdoar algum dia.» Eu quis lhe dizer que estava tudo bem, ainda que não<br />

soubesse do que estava falando. Mas já tinha ido embora.<br />

********<br />

Página73<br />

—<strong>Bear</strong>, levante! —Me disse <strong>Kid</strong> ao ouvido.<br />

Gemi e abri os olhos. Sobressaltando-me quando a luz abriu caminho até o<br />

meu cérebro. Virei a cabeça e vi Ty olhando-me de cima ao lado da minha cama.<br />

Assim que movi a cabeça, uma pontada de dor atravessou, embrulhando meu<br />

estômago.<br />

—Está doente? —Perguntou Ty.<br />

—Sim.—Disse com voz rouca. —Por que me acordou? Que horas são?<br />

<strong>Kid</strong> deu uma olhada para o despertador situado na mesa de cabeceira que<br />

separava nossas camas.<br />

—Ainda é de manhã. Estava assistindo televisão, seu telefone tocou e<br />

apareceu o nome de Creed, assim eu atendi. Parece furioso e disse que queria falar


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página74<br />

contigo.<br />

Então percebi que segurava meu celular em sua mão e lembrei o que havia<br />

ocorrido aquela noite. Fiquei sem fôlego e estive a ponto de dizer a Ty que<br />

desligasse, jogasse o telefone no chão e o pisoteasse. E então prepararia uma mala<br />

para nós, subiríamos no meu carro e iríamos para o Canadá, onde ninguém saberia<br />

que havia beijado um cara na noite anterior. «Será que <strong>Otter</strong> contou a ele? Pensei,<br />

dominado pelo pânico. «Terá <strong>Otter</strong> dito a Creed que o beijei?» Ty estendeu o celular e<br />

o colocou em minha mão aberta.<br />

—Vou ver televisão. —Anunciou Ty enquanto saía do quarto.<br />

Coloquei o telefone no ouvido.<br />

—Sim?<br />

—Vou matá-lo! —Gritou Creed.<br />

—A quem vai matar? —Perguntei, sem desejar uma resposta.<br />

— <strong>Otter</strong>! Não posso acreditar que ele fez isso!<br />

—O quê?<br />

—Ele foi embora!<br />

Meu coração disparou.<br />

—Espera um momento. O que quer dizer que ele foi embora?<br />

Creed começou a gritar através do telefone:<br />

—Esta manhã, quando acordei, estava carregando todas as suas coisas para<br />

o carro. Lhe perguntei o que estava fazendo, e disse que finalmente havia aceitado<br />

aquele emprego em San Diego. Disse que era melhor assim! Pode acreditar nisso?<br />

Quer dizer, como pôde fazer algo assim a Ty, cara? Disse a Ty que ficaria aqui, e<br />

agora só vai atrapalhar <strong>Kid</strong> ainda mais! Havia dito que renunciaria aquele fodido<br />

emprego para ficar aqui.<br />

—Ele foi embora? —Repeti, com a mente intumescida demais para pensar<br />

em alguma coisa.<br />

—Há uma hora atrás. Perguntei o que pensaria Ty. O que pensaria você por<br />

ele não ter dito nada, mas não quis responder.<br />

—Oh.<br />

—Exatamente, certo? Quer dizer, que diabos? «É melhor assim»? O que<br />

significa isso? Quero saber por que fez isso. Saiu do jantar ontem à noite, e algo<br />

aconteceu porque, quando chegou em casa, atuou de um modo estranho. Não quis<br />

me dizer onde tinha ido, mas usava uma roupa diferente quando voltou.<br />

— É mesmo?<br />

—Sim, e bem, tenho que lhe dizer algo, e tem que me prometer que isso


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página75<br />

ficará entre nós dois. É um assunto sério, <strong>Bear</strong>.<br />

—Prometo.<br />

Ouvi que Creed respirava fundo.<br />

—<strong>Otter</strong> é gay. Confessou para mamãe, papai e a mim há uns meses atrás.<br />

Não lhe disse nada porque li na Wikipédia que o processo de sair do armário é<br />

diferente em cada caso, e tem que fazê-lo à sua maneira. A mim não me importa<br />

um caralho, mas meus pais estão custando a aceitar, e ultimamente tem havido<br />

más vibrações em casa.<br />

—Oh. —Disse.<br />

Creed pareceu exasperado.<br />

—<strong>Bear</strong>, você ouviu o que eu acabo de dizer? <strong>Otter</strong> é gay.<br />

—Ouvi. —Respondi, parecendo irritado.<br />

—E tudo o que você consegue dizer é «oh»? Que diabos?<br />

—O que quer que eu diga?<br />

—Não sei. Qualquer coisa. Creio que <strong>Otter</strong> foi ver alguém e ocorreu algo<br />

esta noite, talvez tenham brigado. Deve ser por isso que voltou para casa muito<br />

triste e alterado, e depois foi embora. Falou com você sobre algum cara ou algo<br />

assim? Quando foi a última vez que falou com ele?<br />

—Faz alguns dias, quando ligou para falar com Ty —menti, e dentro de<br />

minha cabeça voltei a sentir os lábios de <strong>Otter</strong> sobre os meus. —Nunca o ouvi<br />

mencionar alguém.<br />

—Merda. Mas,Ty! Como diabos isso afeta a ele?<br />

—Não sei. —Disse, repentinamente mais irritado do que a situação havia<br />

requerido.<br />

E se tinha que ser honesto comigo mesmo, a ira que sentia pela partida de<br />

minha mãe não podia comparar-se com a fuga de <strong>Otter</strong>. Havia prometido a Ty que<br />

ficaria e lhe ajudaria. <strong>Otter</strong> havia prometido a mim. Será que meu beijo estragou<br />

tudo e o forçou a partir? Realmente necessitava dar a <strong>Kid</strong> outro motivo para não<br />

voltar a confiar em alguém? «É um filho da puta.» —Pensei.— «Um maldito filho da<br />

puta.»<br />

—Cara, eu estou chegando. Eu não posso lidar com essa merda aqui agora.<br />

Minha mãe está chorando e meu pai está chateado, e eu realmente deveria estar aí<br />

quando você disser a ele para que ele possa ouvir isso de mim também.<br />

—Está bem.—Respondi entre dentes e desliguei.<br />

Minha dor de cabeça ficou pior. Minhas mãos tremiam de raiva.<br />

Me levantei, fechei a porta do quarto e voltei para a cama.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

«Sinto muito» —havia dito quando eu acreditei que fosse um sonho. —<br />

«Espero que possa me perdoar algum dia.»<br />

Enterrei o rosto no travesseiro, para que Ty não me visse e comecei a afogarme.<br />

*******<br />

Página76<br />

Contamos a Ty, e é claro isso partiu seu coração. Não entendia por que <strong>Otter</strong><br />

havia partido. Dissemos que não era nada que ele tinha feito, mas naquele<br />

momento Ty estava inconsolável. Depois disso, ele mudou. Começou a me<br />

perguntar as horas exatas que voltaria do trabalho ou onde fosse. Se ia chegar<br />

tarde, tinha que telefonar e lhe informar. Começou com a rotina dos banheiros, que<br />

lhes expliquei anteriormente, em que tinha que esperá-lo no lugar exato, no qual<br />

estava quando ele entrava. Em resumo, deixou de confiar em alguém.<br />

Tivemos dias bons e dias ruins, e houve dias também em que dava a<br />

sensação de que vivíamos sobre uma linha de rachadura, porque tudo parecia<br />

rasgar-se pelas costuras. Aquela banheira foi muito utilizada por Ty e por mim,<br />

sentados ali dentro para tratar de nos acalmar. Uma noite, depois de um dia<br />

particularmente ruim, fiquei preso em um engarrafamento provocado por um<br />

acidente quando voltava para casa do trabalho. Foi quando também a bateria do<br />

meu celular havia acabado. Você já sabe, uma tempestade perfeita. Desnecessário<br />

dizer que cheguei em casa vinte minutos mais tarde. Nesse momento <strong>Kid</strong> já havia<br />

ficado louco, e levei cinco horas para conseguir que por fim se acalmasse o<br />

suficiente para respirar. No dia seguinte coloquei o carregador do celular no carro<br />

e não o tirei jamais dali.<br />

Durante o ano e meio seguinte, Creed me informava das novidades quando<br />

falava com <strong>Otter</strong> de vez em quando. Nunca lhe pedi notícias de seu irmão, mas as<br />

dava de todo modo. Pelo visto ia muito bem no novo estúdio, onde trabalhava e<br />

estava adquirindo bastante fama pelas suas fotografias. Me senti amargurado<br />

durante algum tempo, e depois passei a não sentir nada. <strong>Otter</strong> tentou falar comigo<br />

em várias ocasiões, mas eu não o atendia e ele não deixava nenhuma mensagem.<br />

Ty falava com ele uma vez ou outra, quando estava com Creed ou com Anna.<br />

Jamais lhe perguntei sobre o que falavam, nem ele me disse.<br />

Nunca falei com ninguém da solidão que parecia arrancar minhas<br />

entranhas. Isso me parecia estranho, pelo menos num primeiro momento, que


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página77<br />

tivesse tempo para sentir-me só. Mas havia noites, muito tempo depois que Ty<br />

dormia, quando não havia nada para fazer até que amanhecesse, nas quais eu<br />

lutava contra aquele buraco que se havia aberto em meu interior. Sabia que não<br />

podia atribuir toda a culpa disso para <strong>Otter</strong>; afinal de contas, foi a minha mãe que<br />

havia começado tudo. Mas não pude evitar agrupá-los na mesma categoria:<br />

pessoas das quais eu dependia e que me haviam fodido a vida. Percebi que quanto<br />

antes as deixasse para trás, mais fácil resultaria.<br />

Quase funcionou.<br />

Não vi <strong>Otter</strong> novamente durante dezoito meses. Pensei que já estava bem.<br />

Mas quando apareceu de surpresa, a ferida voltou a abrir-se e sangrou de novo, e<br />

foi como se tudo se desmoronasse novamente.<br />

<strong>Kid</strong> e eu fomos para a casa dos Thompson para o natal, como havíamos feito<br />

no ano anterior. Estávamos todos sentados na sala, observando como Ty abria um<br />

monte de presentes que os pais de Creed haviam dado. Todos ríamos enquanto o<br />

sorriso de <strong>Kid</strong> se alargava com cada presente. Eu tive sede e me ofereci para levar<br />

bebidas para todos. A senhora Thompson quis ajudar-me, mas neguei com a<br />

cabeça e disse que eu cuidaria disso.<br />

Estava na cozinha quando a porta se abriu e ele entrou, com o cabelo um<br />

pouco mais longo, seu corpo um pouco mais delgado, mas ainda exibindo seu<br />

sorriso torto. Olhou para o interior da cozinha, quando seus olhos pousaram em<br />

mim, deixou cair a mala que levava e sem dizer nada cobriu rapidamente a<br />

distância que nos separava e me atraiu para seus braços. Tudo sucedeu tão<br />

depressa que acreditei que havia imaginado, até que dei conta que continuava<br />

sentindo o cheiro de <strong>Otter</strong>. Levantei os braços para abraçá-lo, mas recordei a<br />

última vez que o havia feito: sua boca se havia colado na minha e meu corpo se<br />

eletrificou.<br />

Me afastei e me dirigi para a sala, mas não antes de ver a dor em seu olhar.<br />

Ficou uma semana. Deixei que Ty lhe visse, mas sempre fazia que Anna ou<br />

Creed pegasse <strong>Kid</strong> em nossa casa e o levasse. Não voltei a vê-lo durante o resto do<br />

tempo que permaneceu ali. Não confiava em mim mesmo perto dele. Que eu saiba,<br />

ele tentou entrar em contato comigo somente uma vez durante sua permanência.<br />

Ty tinha voltado para casa no ano novo, depois que saí do trabalho, necessitando<br />

desesperadamente de uma hora e meia para trabalhar no feriado. <strong>Kid</strong> havia<br />

passado o dia com Creed e <strong>Otter</strong> em sua casa. Ty disse que <strong>Otter</strong> o havia trazido<br />

depois partiu para San Diego. Me senti oprimido, mas não poderia ter feito nada a<br />

respeito. Quis falar com Anna, ouvir sua voz, e percebi que havia esquecido o


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

celular no carro. Disse a Ty que voltaria logo, depois de lhe assegurar que seria só<br />

um minuto.<br />

Me encaminhei até o carro, pensando no alívio que sentia por <strong>Otter</strong> ter ido<br />

embora novamente, como se me houvesse tirado um peso de minhas costas. Tinha<br />

que me convencer disso, mas quase não pude acreditar. Me aproximei do carro e vi<br />

um papel colocado debaixo no para-brisas. Acreditando que era alguma<br />

publicidade de algum restaurante, o agarrei e já ia amassá-lo em minhas mãos,<br />

quando vi uma letra que me resultava familiar:<br />

Sei que estava ferido e que tem bons motivos para estar magoado, mas quero que<br />

saiba que não passou um só dia sem que eu não tenha pensado em você e no Ty. Quem sabe<br />

isso seja meu castigo, saber que está bem, e saber que eu não tive nada a ver com isso. Se<br />

isso serve para algo, estou orgulhoso de você por tê-lo feito tão bem, apesar de que algumas<br />

pessoas tenham quebrado as promessas que lhe fizeram.<br />

Foi muito bom te ver, mesmo que só por um momento. Me alegro de que eu tenha<br />

pelo menos isso. Sinto sua falta, papai <strong>Bear</strong>.<br />

Não havia assinatura, mas não era necessário. Dobrei o papel com cuidado e<br />

o guardei na carteira.<br />

********<br />

Página78<br />

— O que você está fazendo aqui? —Eu gemi. —Por que você voltou?<br />

Ele me agarra pelo queixo, obrigando a olhá-lo nos olhos.<br />

—Não tem nada a ver com que passou entre nós. No que a mim se refere,<br />

foi um erro. Não deveríamos ter nos beijado nunca.<br />

Tento escapar, mas fracamente. Procuro não olhar para ele, mas segue me<br />

segurando pelo queixo. Ainda há manchas douradas em seus olhos verdes.<br />

—É por isso que você foi embora? —Pergunto, tentando suavizar a voz. —<br />

Por causa… daquilo?<br />

Nega com a cabeça.<br />

—Não foi só por isso, <strong>Bear</strong>. —Me solta e dá um passo atrás. —Estavam<br />

passando muitas coisas, e não sabia que outra coisa fazer. —Me olha com os olhos<br />

suplicantes. —Tem que acreditar quando digo que se pudesse voltar atrás e fazer<br />

as coisas de um modo diferente, eu o faria.<br />

— Três anos. —Replico.<br />

Ele aperta os dentes.<br />

—Sei disso. Não tem que me recordar. É só… —começa, mas então se detém


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página79<br />

e parece pensar no que dirá em seguida. —Sei que isso poderá parecer estúpido,<br />

mas acreditei que de alguma maneira influenciava você, e não achei que fosse<br />

justo. Não acreditei que necessitava disso por cima de todo o resto. Não tento me<br />

desculpar, somente tento fazer com que entenda.<br />

—O que quer dizer com influenciar a mim?<br />

Ele faz uma careta.<br />

—<strong>Bear</strong>, eu estava saindo do armário. Meus pais não estavam aceitando<br />

muito bem e, então, todo esse assunto de sua mãe… Você precisava de pessoas que<br />

pudessem ser fortes para você. Pensei que poderia fazer isso. Mas então houve<br />

aquela noite, e me dei conta o quão fraco eu era na realidade. Você estava bêbado,<br />

ferido e necessitava de um amigo, e então nos beijamos, e compreendi que não<br />

podia ser o mais forte. Pensei que de alguma maneira estava te pressionando<br />

demais, e que era… Não sei, <strong>Bear</strong>. Pensei que colocar distância entre nós era o<br />

melhor que podíamos fazer naquele momento. —Se mostra abatido. —Tem algum<br />

sentido tudo isso? —Me pergunta.<br />

—Eu não sou gay, <strong>Otter</strong>. Não me importa que você seja, mas eu não sou.<br />

Ele abaixa a cabeça.<br />

—Sei disso, <strong>Bear</strong>. Está tudo bem.<br />

—Quanto tempo você vai ficar?<br />

Não quis olhar para mim.<br />

—Não sei. —Diz. —Por enquanto.<br />

—Por que voltou?<br />

Ele sacode a cabeça.<br />

—Agora não quero falar sobre isso. Talvez mais tarde, ok?<br />

—Haverá um “mais tarde”, <strong>Otter</strong>? Ou voltará a fugir com o rabo entre as<br />

pernas?<br />

É um golpe baixo e sou consciente disso, mas ainda estou magoado e não<br />

posso evitar. Quero que minhas palavras queimem.<br />

Ele faz uma careta.<br />

—Vou mantê-lo informado.<br />

—Faça isso. —Faço uma pausa, considerando. —E, para que você saiba, isto<br />

não desculpa nada. Tem muito para compensar. Com Ty, quero dizer.<br />

—Eu sei. —Diz e, finalmente, me olha nos olhos.<br />

Passo ao seu lado em direção ao Jeep. O sorvete ainda não está tão derretido<br />

como pensei, consulto o relógio e vejo que somente dispomos de uns segundos<br />

antes que Ty comece a se preocupar. Me volto para dizer a <strong>Otter</strong> que se apresse,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

mas já está subindo no carro. Olho para ele e vejo a carta que havia tirado da<br />

carteira sobre o assento. Estico um braço e a recolho antes que sente sobre ela.<br />

Sabendo que me observava com curiosidade, dobro o papel e o coloco novamente<br />

na carteira.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Diz, e a chuva golpeia compassadamente o teto.<br />

Fico olhando através da janela. De repente me sinto muito cansado.<br />

—O quê?<br />

—Por que conservou isso?<br />

—O que?<br />

—Você sabe.<br />

—A carta que me escreveu?<br />

—Sim.<br />

«Porque era a única coisa sua que me restava.» Penso.<br />

—Não sei. —Digo em voz alta.<br />

«Mentiroso», sussurra a voz interior.<br />

Página80


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4<br />

Quando <strong>Bear</strong> dá uma festa<br />

Não falamos durante o resto do trajeto. Tão logo chegamos em casa, <strong>Otter</strong><br />

anuncia que está cansado e que vai dormir. Abraça Ty e lhe diz que o verá muito<br />

em breve. Deseja boa noite a Creed, que está servindo o sorvete em uma tigela para<br />

Ty. A mim não me diz nada. Não passa despercebido a Creed. Dá a Ty o seu<br />

sorvete e o manda para ver o holocausto bovino ou como isso se chame.<br />

—Suponho que você lhe deu uma bronca.—Diz em um tom divertido.<br />

—A que se refere? —Pergunto com cautela.<br />

—Bem, vamos ver. Você ficam fora quase uma hora no que deveria ter sido<br />

um trajeto de cinco minutos. Vocês dois voltaram com uma cara de poucos amigos.<br />

E agora mesmo, <strong>Otter</strong> nem olhou para você antes de subir. —Sorri. —Assim, pois,<br />

me conte. Lhe deu uma bronca por ser tão rasteiro e mudar-se para San Diego, não<br />

é mesmo? Por favor, me diz que gravou. Aposto que foi absolutamente aterrador.<br />

Eu ri apesar de tentar não fazê-lo.<br />

—Algo assim.<br />

—Bem, por que ele fez isso?<br />

—Fez o quê?<br />

Creed me olha como seu eu fosse retardado.<br />

—Por que foi embora? Nunca acreditei nele quando disse que era porque já<br />

não podia suportar nossos pais. Deve ter dito algo.<br />

«Você precisava de pessoas que pudessem ser fortes para você. Achei que eu podia<br />

fazer isso. Mas então aconteceu aquela noite, e me dei conta do quão fraco eu era na<br />

realidade. Você estava bêbado, sofrendo e precisava de um amigo, e então nos beijamos, e<br />

compreendi que não podia ser o mais forte. Pensei que de alguma maneira estava<br />

pressionando você demais, e que era… Não sei, <strong>Bear</strong>. Pensei que colocar distância entre nós<br />

era o melhor que podíamos fazer naquele momento.»<br />

—E então? —Insiste Creed, fazendo uma careta ao provar o sorvete de soja<br />

de Ty.<br />

—Não. —Minto. —Na realidade não disse nada.<br />

Página81<br />

******


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— Um o quê!? —Digo a Creed alguns dias depois.<br />

Ele e Anna estavam sentados na mesa da cozinha do meu apartamento.<br />

Estamos resolvendo os últimos detalhes da festa de aniversário surpresa de <strong>Kid</strong>,<br />

que será dentro de dois dias. Li em algum site da internet para pais, que quando<br />

você organiza uma festa para crianças tem que dar a eles sacos de brinquedos<br />

baratos e Tootsie Rolls 10 , assim, recorri à ajuda deles para organizá-los depois de<br />

invadirmos a loja de um dólar que fica perto da praia. Não sei por que as crianças<br />

precisam de brinquedos de plásticos mais baratos e doces, mas quem sou eu para<br />

discutir com a internet?<br />

—Você deve estar brincado!<br />

—O quê? —Exclama Creed, um tanto ofendido. —Ouvi dizer que ele é<br />

muito bom com as crianças. Nossos vizinhos do lado lhe contrataram em uma festa<br />

que deram.<br />

Olhei para Anna em busca de ajuda, mas parece tão horrorizada como eu.<br />

Solto um gemido.<br />

—Nós não vamos contratar a um fodido palhaço para a festa de Ty. Como<br />

pôde sugerir uma coisa assim? Não se lembra quando vimos It 11 , quando tínhamos<br />

a idade dele?<br />

Ele sorri.<br />

—Nós ficamos acordados até o amanhecer no sofá-forte que construímos no<br />

quarto de <strong>Otter</strong>. Você era um marica!<br />

Anna começou a rir.<br />

—Que eu me lembre, o forte foi ideia sua, e não podia mais voltar a ver um<br />

palhaço sem começar a gritar.<br />

Creed faz um gesto de desdém com a mão.<br />

—Tinha nove anos. E aquele palhaço comia as pessoas.<br />

—Não sei. —Digo. —Não existe algo um pouco estranho nos homens<br />

adultos que se disfarçam de palhaço e vão a festas de aniversário? Parece algo<br />

tirado de To Catch a Predator 12 . Não sei se quero que esta festa de aniversário<br />

termine saindo na TV. Não creio que os pais achassem graça.<br />

Creed suspira.<br />

Página82<br />

10<br />

Bala de chocolate.<br />

11<br />

Filme de terror, onde um assassino se veste de palhaço para matar suas vítimas<br />

12<br />

Série de televisão Americana, que mostrava investigações para identificar pedófilos.


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—Está bem. Quando esta festa começar a ser uma merda e <strong>Kid</strong> ficar<br />

aborrecido, porque está passando o pior momento de sua vida, não me venha<br />

chorando quando lhe diga que quer vir morar na minha casa.<br />

Solto um grunhido.<br />

—Se disser isso, pode ficar com ele.<br />

Creed pega uma bala de caramelo e a enfia em uma bolsa de Scooby Doo.<br />

Então seus olhos brilham.<br />

—Podíamos pedir a <strong>Otter</strong> que fizesse isso!<br />

Anna lança em sua direção um brinquedo de um dólar e ele o desvia de sua<br />

cabeça.<br />

—Isso seria ainda pior! Além disso, <strong>Otter</strong> não se disfarçaria nunca de<br />

palhaço. Pelo menos tem algo de dignidade, não?<br />

Creed faz uma careta.<br />

—Dificilmente. Tudo o que ele faz agora é lamentar como uma adolescente<br />

maldita. Sempre que estou em casa, ele está trancado em seu quarto. Eu digo a<br />

vocês, ele passou um mau momento em San Diego. Eu acreditava que a graça de<br />

ter um irmão gay era que, em teoria, deveriam ser muito legais. Eu tenho um gay<br />

defeituoso.<br />

—Não tinha um namorado ou algo assim? —Pergunta Anna. —Pensei que<br />

vivia com alguém.<br />

—Vivia. —Responde Creed. —Jacob, Josh ou algo parecido. O mencionou<br />

algumas vezes. Agora, sempre que lhe pergunto a respeito disso, me diz para<br />

cuidar dos meus assuntos. Naturalmente, eu continuo pressionando. Cedo ou<br />

tarde ele falará.<br />

—Estou certa de que se ele quisesse falar disso, ele o faria. —Adverte Anna.<br />

—Deixe-o em paz e mudará de opinião.<br />

—É melhor que ele faça isso. —Sentencia Creed. —Bichas tristes são bichas<br />

chatas.<br />

—Não diga bicha. —O repreende Anna. —É grosseiro.<br />

Creed revira os olhos enquanto coloca um Jolly Rancher 13 na boca.<br />

—É meu irmão. Além disso, sabe como ele nos chama?<br />

—Como?<br />

Página83<br />

13


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Página84<br />

Inclina-se para frente e sussurra:<br />

—Reprodutores.<br />

—Creed. —Digo— Você é um idiota.<br />

—Sim, o que se pode fazer! Mas falando sério, esse Josh ou Jacob mexeu<br />

com ele. Vocês dois vivem brigando e terminando, e não fazem drama.<br />

—O fato de que não teve nenhuma relação longa em sua vida não significa<br />

que pode criticar aqueles que têm uma. —Provoca Anna.<br />

Ele zomba.<br />

—Poderia ter se eu quisesse. Mas sabe quantas garotas fáceis existem na<br />

universidade de Arkansas? E isso só em minha rua.<br />

—Você é um porco, Creed.<br />

Ele lhe sorri satisfeito.<br />

—E você ama. —Olha-me despreocupadamente. —Por que não conversa<br />

com <strong>Otter</strong>?<br />

—Sobre o quê? —Murmuro, tentando amarrar uma faixa de borracha em<br />

torno de um saco de aniversário terminado.<br />

—Você sabe, de seus problemas e tudo isso. Por algum motivo sempre<br />

escutou você, ainda que seus conselhos não fossem muito estelares, digamos<br />

assim.<br />

A faixa de borracha se rompeu e golpeou meus dedos. Os esfrego e fulmino<br />

Creed com o olhar.<br />

—Não muito estelares? Eu dou conselhos estupendos.<br />

—Me disse que as garotas gostavam que fôssemos maus com elas!<br />

—Estávamos no terceiro ano! E não disse para você dar uma patada no<br />

estômago de Suzy March!<br />

Ele começa a rir.<br />

—Funcionou, não? Seis anos depois ela pegou minha flor brotando.<br />

—Creed! —Grita Anna enquanto eu rio.<br />

Ele sorri e me lembra <strong>Otter</strong>.<br />

—E, então? —Me pergunta.<br />

—Então, o quê?<br />

—Fale com <strong>Otter</strong> em meu lugar. Nem sequer o viu desde que gritou com<br />

ele.<br />

Anna me olha por um momento.<br />

—Quando gritou com <strong>Otter</strong>?<br />

—Não fiz isso. —Resmungo, ainda que, de certo modo eu gritei. —Creed


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Página85<br />

meteu na cabeça que eu briguei com <strong>Otter</strong> na noite que ele chegou.<br />

Outra borracha se rompe, e a jogo sobre a mesa.<br />

—Você fez isso? —Pergunta Anna.<br />

—Não! —Quase grito.<br />

—Seja como for. —Diz Creed. —Anna, deveria ter visto a cara de <strong>Otter</strong><br />

quando regressaram. Juro por Deus que ele estava a ponto de chorar e <strong>Bear</strong> parecia<br />

chateado. Não sei por que ninguém me conta nada agora.<br />

—Para que contar se de todo o modo fica sabendo automaticamente? —<br />

Respondo.<br />

Anna olha para mim e logo para Creed.<br />

—Quer ir ao meu carro e buscar o que falta? —Lhe pede.<br />

Ele resmunga e estende a mão para pegar as chaves. Ela lhe entrega.<br />

—Fale com ele, <strong>Bear</strong>. —Diz Creed por cima do ombro enquanto se<br />

encaminha até a porta. —Alguém tem que fazê-lo, e é evidente que não serei eu.<br />

Quem mais existe, além de você?<br />

«Por que não chama Josh ou Jacob? » —Penso com humor negro antes de poder<br />

conter-me. —«Estou seguro de que ele pode falar com ele perfeitamente.»<br />

—<strong>Bear</strong>? —Diz Anna em voz baixa.<br />

—O Quê?<br />

—Por que está tão chateado?<br />

—Não estou. —Murmuro.<br />

—Esta é a sexta borracha que você arrebenta em dois minutos.<br />

—São umas borrachas de merda.<br />

—O que disse a ele?<br />

Suspiro.<br />

—Não lhe disse nada.<br />

—O que ele lhe disse, então?<br />

—Nada, Anna. Não podemos esquecer esse assunto?<br />

Ela estica o braço e coloca uma mão sobre a minha. Não percebo como<br />

tremo até ela a toca. Tem que ter notado.<br />

—É nosso amigo, <strong>Bear</strong>. Sei que ele agiu errado partindo, mas é nosso amigo.<br />

Creed tem razão: deveria falar com ele.<br />

—Por que eu? —Protesto, retirando minhas mãos debaixo das suas. —O que<br />

lhe diria que não poderia dizer você?<br />

Anna olha para mim fixamente.<br />

—Porque ele lhe escuta. Sempre o fez.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página86<br />

—Besteira. Sempre fez o que quis.<br />

Ela se reclina na cadeira.<br />

—Sabe que isso não é verdade.<br />

—Então por que partiu? —Digo, com mais aspereza que pretendia.<br />

Noto uma gota de suor deslizando pela minha nuca. «Controle-se!», ordeno<br />

para mim mesmo.<br />

«Por que se foi?»—Sussurra a voz. —«Você pediu que o fizesse! Diga, <strong>Bear</strong>. Estou<br />

seguro de que Anna teria uma explicação maravilhosa para o tema, depois de seu semestre<br />

de Psicologia. Talvez, inclusive, pudesse explicar por que nunca foi capaz de apagar aquele<br />

beijo de sua cabeça. Não seria divertido?»<br />

Anna começa a encher outra bolsa.<br />

—Estive pensando nisso novamente. Creio que Creed tem razão quando diz<br />

que há mais do que sabemos. O <strong>Otter</strong> que conheço não teria deixado que seus pais<br />

o afetassem tanto. Ele simplesmente poderia se mudar de lá. Creed disse que já<br />

havia recusado esse emprego depois de saber sobre a sua mãe, e depois de duas<br />

semanas se foi? Tem que haver algo mais.<br />

Não respondo.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Pergunta.<br />

Olho para ela, tratando de ocultar meu rosto atrás de uma máscara. Ela deve<br />

ver algo se movendo por baixo, porque vacila. Creio que é um bom sinal, até que<br />

abre a boca de todos os modos e noto uma bolha de pânico inchando abaixo da<br />

superfície.<br />

—Você viu <strong>Otter</strong> antes de partir?<br />

Minha boca fica seca.<br />

—A que se refere? —Me apresso a dizer. —Todos o vimos todo o tempo<br />

antes de partir.<br />

—Não me refiro a isso. É algo que Ty… me disse depois que partiu.<br />

Naquela época não dei importância demais por tudo que estava passando, mas…<br />

—O que ele disse? —Pergunto, sem querer que ela responda.<br />

Parece escolher cuidadosamente as palavras antes de falar.<br />

—Disse… Disse que na noite antes que <strong>Otter</strong> partisse, esteve em sua casa.<br />

Disse que os ouviu discutir. Pensei que devia ter sonhado ou algo assim, porque<br />

você disse que não lhe havia visto naquela noite.<br />

—Quando disse isso?<br />

E por que eu não sabia disso?<br />

—Estava como sua babá, enquanto você trabalhava e lhe perguntei se ele


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Página87<br />

queria ligar para <strong>Otter</strong> para falar com ele. Disse que não, porque sabia que você<br />

estava furioso com ele. Disse que <strong>Otter</strong> não voltaria para casa porque você não<br />

queria que o fizesse.<br />

—Eu…<br />

Não sabia como terminar.<br />

Transcorreu um momento, uma pausa, um momento infinito, e logo:<br />

—<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> tentou dar uma cantada em você?<br />

— O quê? —Disse, incrédulo. —Claro que não! Sabe que sou…<br />

Minhas palavras se apagaram fracamente.<br />

—Sabe que é o que, <strong>Bear</strong>? —Pergunta com delicadeza.<br />

—Sabe que não sou assim! —Exclamo energicamente. —Não é culpa minha<br />

que partiu!<br />

Anna estremece.<br />

—Não quis dizer isso, <strong>Bear</strong>. Não é culpa sua e nem de Ty. É dele. Só que<br />

desconhecia se sabia mais do que dizia.<br />

—Por que deveria mentir, Anna? —Respondo franzindo a testa.<br />

—Não estou dizendo isso. Só que… creio que Creed tem razão. Creio que<br />

ocorreu algo mais.<br />

—Por que não pergunta a <strong>Otter</strong>, então? Me parece que, se tinha um<br />

problema, deveria perguntar a ele qual era, não a mim.<br />

—Eu perguntei.<br />

Oh, meu Deus.<br />

—E, então?<br />

Brincava com um anel em seu dedo.<br />

—Disse que necessitava partir.<br />

Me levanto e me dirijo até a geladeira, fingindo que tenho sede, mas na<br />

realidade, ocultando o alívio que se estende pelo meu rosto.<br />

—Então pronto. —Lhe digo, cerrando os olhos ao sentir o ar frio que emana<br />

da geladeira. Quero me enfiar dentro e cerrar a porta. —O que mais quer que ele<br />

diga?<br />

—Não sei, <strong>Bear</strong>! —Exclama com voz irritada. —Quero que pense que pode<br />

contar com a gente para o que for. Não há nenhum motivo para que tivesse que<br />

passar por isto sozinho, sobretudo, quando você precisava dele aqui.<br />

Aperto os dentes.<br />

—Não preciso dele para nada.<br />

Pego uma lata de refrigerante, fecho a geladeira, me dirijo até o balcão e


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pego um copo no armário.<br />

Noto seus braços envolvendo-me enquanto apoia a cabeça sobre minhas<br />

costas. Tento não ficar tenso, mas não posso evitar. Acaricia meu estômago por<br />

baixo da camiseta. Ri em voz baixa contra as minhas costas.<br />

—O papai <strong>Bear</strong> de sempre.<br />

—Sim, o mesmo.<br />

Dou a volta e a beijo na testa. A sinto sorrir contra o meu pescoço. «Talvez<br />

agora mude de tema.» Penso.<br />

—Disse outra coisa. —Anuncia e fico gelado.<br />

—Ah, sim? —Solto com voz estrangulada.<br />

—Disse que acreditava ter perdido sua única oportunidade de ser feliz. Se<br />

negou a explicar algo mais. Me pergunto a que se referia com isso.<br />

Por fora, estou aturdido. Por fora, não encontro palavras para me expressar.<br />

«Mas por dentro, não há algo? Algo… que não posso precisar? Sua única oportunidade?<br />

Não pode estar se referindo a…»<br />

Por mais que me esforço, não posso completar o pensamento. Está em um<br />

lugar obscuro e escondido, e não tenho a energia necessária para buscá-lo.<br />

Experimento uma curiosa mescla de pavor em torno de um calor que se intensifica<br />

dentro de meu estômago. Isso tem um nome, mas não serei eu quem o pronuncie.<br />

Sua única oportunidade?<br />

Ouço Creed irrompendo pela porta.<br />

—<strong>Bear</strong>! <strong>Bear</strong>!<br />

—O quê? —respondo, aliviado pela distração.<br />

Entra correndo na cozinha com uma expressão de pânico no rosto.<br />

—Ty acaba de descer do ônibus!<br />

—Merda —murmuro.<br />

Corro até a mesa e começo a meter todos os brinquedos e adornos da festa<br />

dentro das sacolas aonde vieram. Creed e Anna riem enquanto levamos tudo para<br />

o antigo quarto da minha mãe, mas vejo que Anna me olha com curiosidade de vez<br />

em quando. Me pergunto se é porque se dá conta que em nenhum momento<br />

respondi a sua pergunta. Na realidade, não neguei ter visto <strong>Otter</strong> antes de ele<br />

partir.<br />

«Disse que achava que tinha perdido sua única oportunidade de ser feliz.»<br />

O que ele quis dizer com isso?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

******<br />

Página89<br />

Já tentou alguma vez organizar uma festa surpresa para alguém? Resulta<br />

impossível que consiga ser uma surpresa porque, cedo ou tarde, a pessoa descobre.<br />

Alguém conta a ela, ou descobre alguma prova, ou se dá conta de que todo o<br />

mundo atua de um modo estranho. Logo está a forma despreocupada em que você<br />

tem que se livrar dele durante um tempo, para poder montar a maldita festa. Pede<br />

para ele ir fazer algo com alguém, que já encontrará com eles mais tarde. Agora<br />

tente fazer isso com um garoto que possui trauma de abandono, que se apega a<br />

você a cada segundo do dia. Em seu aniversário.<br />

Dito isso, <strong>Kid</strong> ficou completamente surpreendido.<br />

Nós havíamos comemorado seu aniversário nos últimos dois anos, mas este<br />

ano, por alguma razão, meti na cabeça que queria fazer algo grande. Me havia<br />

custado quatro meses economizando para assegurar-me de conseguir tudo o que<br />

necessitava. Inclusive contratei um mágico para fizesse uns truques de magia. (Já<br />

sei. Está pensando em qual a diferença entre isso e trazer um palhaço. Pois bem,<br />

um mágico não leva a cara pintada e nem provoca pesadelos). Decoramos a casa<br />

inteira de Creed e dava a sensação de que havíamos roubado toda a mercadoria da<br />

loja de material para festas. Era um pouco excessivo, sobretudo quando me dei<br />

conta de que havíamos esgotado os dez rolos de serpentina que havia comprado. E<br />

somando-se a isso, apareceram quase todos os alunos da sala de Ty. Havia quase<br />

uma centena de pessoas na casa quando Anna chamou para anunciar que estavam<br />

chegando mais gente. Havia informado a todo mundo que estacionassem em uma<br />

igreja situada rua abaixo. Aquele estacionamento nunca havia estado tão cheio,<br />

nem sequer aos domingos.<br />

Reuni todos na entrada e na sala de estar da casa. Fiquei diante deles,<br />

tentando conseguir que todos se calassem, e vi <strong>Otter</strong> com seu sorriso torto,<br />

observando como tentava calar à quarenta crianças. Me assegurei de que ninguém<br />

estivesse olhando e lhe mostrei o dedo médio. Ele riu.<br />

«Então, vai falar com ele?» Me havia perguntado Creed alguns dias depois da<br />

conversa em minha casa.<br />

«Não pode esperar até depois da maldita festa?»<br />

«Sim, mas que seja rápido, ok? Estou ficando farto de <strong>Otter</strong>, o deprimido.»<br />

«De verdade, acredita que servirá de algo?»<br />

«Creio que sim. E creio que também você precisa disso.»<br />

« O quê quer dizer?» Havia perguntado, um pouco irritado.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

«Pode ser que você seja o único que <strong>Otter</strong> escute, mas sei com certeza, que ele é o<br />

único a quem você escuta.»<br />

Não lhe pedi que se explicasse.<br />

Então lá estava eu, acenando os braços freneticamente, querendo saber por<br />

que diabos eu tinha achado por bem convidar tantas crianças, estando<br />

absolutamente certo de que um deles tinha dado com a língua nos dentes. Ouvi<br />

Anna e <strong>Kid</strong> subindo o caminho da entrada até a porta. Ouvi Ty dando um sermão<br />

em Anna sobre algo e comecei a correr em busca de um lugar para agachar.<br />

Enquanto o fazia, uma mão surgiu, agarrou a minha e me derrubou. <strong>Otter</strong> quase<br />

me fez cair em seu colo.<br />

—Uf! —Resmunguei.<br />

—Desculpa. —Disse, sem parecer em nada arrependido.<br />

Não soltou meu braço, e só tive dois segundos para perguntar-me como<br />

suas mãos se tornaram tão grandes quando a porta se abriu e a casa estalou em<br />

gritos e algazarra. Me levantei em um pulo, gritando de forma incoerente, e reparei<br />

no segundo exato em que o braço de <strong>Otter</strong> soltava o meu, enquanto ele gritava ao<br />

meu lado.<br />

Alguma vez você já teve muitas pessoas gritando com você ao mesmo<br />

tempo? Não?<br />

É algo muito forte.<br />

Vi que tanto Ty como Anna retrocediam, e ela me explicou mais tarde que<br />

foi como ouvir um est<strong>amp</strong>ido sonoro estalando sobre sua cabeça quando menos<br />

esperava. Ty levou um susto tremendo, e soube que havíamos conseguido, quando<br />

ficou olhando todo o mundo com a boca escancarada. Creed se aproximou dele<br />

correndo e o jogou para o alto. Mesmo em meio ao salto, pude ver que me buscava<br />

com o olhar, então me aproximei e fiquei ao lado de Creed, que o deixou no chão.<br />

<strong>Kid</strong> colocou sua mão no mesmo lugar que <strong>Otter</strong> havia colocado. Puxou meu braço<br />

e me fez agachar para sussurrar no meu ouvido.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Disse.—Tudo isso é para mim?<br />

Eu baguncei seu cabelo e disse:<br />

—Pode apostar que sim.<br />

Então sorriu, e os últimos quatro meses economizando cada centavo que<br />

podia valeram à pena.<br />

Página90<br />

******


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Página91<br />

Nos sentamos no quintal de trás, com as crianças espalhadas pela grama,<br />

vendo como o Magnífico-Seja Qual for o Seu Nome, tirar um coelho de sua cartola. As<br />

crianças estalaram em risadas e os pais aplaudiam educadamente. Creed se inclina<br />

para frente e murmura:<br />

—Como isso pode ser melhor que um palhaço?<br />

—Pelo menos não teremos que contar todas as crianças quando partirem,<br />

para nos certificarmos de que ele não levou nenhuma. —Lhe respondo.<br />

Me olha com incredulidade.<br />

—Não viu a van na qual veio? E o bigode falso que leva? Pelo amor de<br />

Deus, <strong>Bear</strong>, provavelmente deveria contá-los de todo jeito.<br />

Lhe dou um soco no braço.<br />

O mágico faz uma reverência e promete voltar logo depois. As crianças se<br />

dispersam, e <strong>Kid</strong> se aproxima de mim correndo e se joga em meus braços, falando<br />

um milhão de coisas ao mesmo tempo. Logo se escapa e sai correndo com alguns<br />

garotos de sua classe até um castelo inflável, que Creed alugou aleatoriamente. Lhe<br />

disse que o pagaria. Ele me mandou calar a boca.<br />

Anna apareceu ao meu lado.<br />

—Ei. —Digo, rodeando-lhe os ombros com um braço.<br />

—Ei, você. —Responde. —Não posso acreditar que tenha montado tudo<br />

isso.<br />

Solto um rosnado.<br />

—Você quer dizer que nós tenhamos montado tudo isso.<br />

Ela olha para Ty, que está saltando para fora das muralhas do castelo.<br />

—Você viu a expressão de seu rosto? Pensei que ele ia desmaiar. —Todos<br />

nós rimos quando Ty tenta executar um salto mortal e fracassa miseravelmente. —<br />

Nunca o vi assim. —acrescenta.<br />

Sei a que se refere. Desde que começou a festa, Ty esteve correndo por todo<br />

o jardim, em estado de êxtase perpétuo gravado no rosto. Se aproximava de mim<br />

de vez em quando, mas somente para me contar o que acabava de fazer antes de<br />

sair correndo na direção oposta. Não ficou ao meu lado mais do que uns segundos.<br />

Eu sorrio por me sentir um pouco triste com isso.<br />

—Já faz algum tempo. —Digo.<br />

Creed se engasga com a sua bebida ao meu lado. Levanto o olhar quando<br />

sinaliza para <strong>Otter</strong>, que está rodeado de crianças, todas parecem querer subir nele<br />

ao mesmo tempo. O ouvimos gritar enquanto desaparece sob um mar de pequenos<br />

tornozelos.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—É uma pena. —Diz Anna.<br />

—O quê? —Pergunto distraidamente, observando como <strong>Otter</strong> trata de se<br />

endireitar quando Ty aparece do nada e o ataca por trás.<br />

—Que nunca terá filhos. Seria um bom pai.<br />

<strong>Otter</strong> agarra Ty e o gira pelos braços ao redor dele. <strong>Kid</strong> grita de felicidade,<br />

dando voltas e voltas.<br />

******<br />

Página92<br />

Já se passaram cinco horas, e agora entendo por que as pessoas não<br />

organizam festas surpresas tão frequentemente. Ali onde antes a casa tinha um<br />

aspecto festivo e radiante, agora parecia um cemitério, para onde as festas iam para<br />

morrer. Suspiro enquanto abro outro saco de lixo, o sexto na última meia hora.<br />

Creed resmunga enquanto recolhe um sapato que, por alguma razão, alguém se<br />

esqueceu de levar. Mas juro que não tem nada a ver com o mágico. Eu os contei.<br />

Olho através da janela para o interior da sala e vejo Ty dormindo no sofá,<br />

rodeado de papel de presentes e sacolas de presentes. Não sei como diabos vou<br />

levar tudo isso para casa. E, se o consigo, não sei onde vou colocá-los. Já estou<br />

pensando no próximo ano, e juro que darei a festa em meu apartamento, onde só<br />

poderão vir pouca gente. Isto é ridículo.<br />

—Lembre-me de nunca mais fazer isso de novo. —Disse Creed, fazendo eco<br />

dos meus pensamentos. —Onde diabos está Anna, e por que não está ajudando?<br />

Dou de ombros.<br />

—Deve estar lá dentro, limpando. —Respondo.<br />

Faço uma careta ao recolher um monte de algo úmido do chão. Estremeço e<br />

o jogo no saco de lixo, procurando não pensar no que pode ser.<br />

Me dirijo à mesa e começo a jogar os copos no lixo quando ouço Creed se<br />

aproximar.<br />

—Você fez um bom trabalho, <strong>Bear</strong>. —Diz em voz baixa. —<strong>Kid</strong> recordará isto<br />

toda a sua vida.<br />

—É melhor mesmo —respondo, sentando em uma cadeira com um gemido.<br />

Creed me observa.<br />

—Eu digo seriamente, <strong>Bear</strong>. Estou orgulhoso de você. —Sacode a cabeça. —<br />

Não sei se eu poderia fazer o que você faz, se estivesse em seu lugar.<br />

—Sim, bem, eu t<strong>amp</strong>ouco acreditava que pudesse, se isso faz com que se


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sinta melhor. —Digo com voz cansada.<br />

—Talvez. Ainda assim…<br />

Deixa a frase sem terminar.<br />

—Por que você está assim tão meloso? —Lhe pergunto com receio. —O que<br />

você quer?<br />

Sacode a cabeça por cima do ombro. Me inclino para frente para olhar ao<br />

seu redor e vejo <strong>Otter</strong> de pé junto ao castelo inflável, jogando mais porcaria em seu<br />

saco de lixo.<br />

—Agora? —Me queixo. —Estou tão fodidamente cansado, e ainda falta<br />

tanta merda para recolher…<br />

Creed faz um gesto com a mão.<br />

—Dane-se. Isto estará aqui amanhã, e duvido que consiga mover Ty desse<br />

sofá até lá, assim que pode ficar aqui esta noite. Creio que irei perguntar a Anna se<br />

quer embebedar-se comigo para me aproveitar dela.<br />

Lhe atiro um copo enquanto se afasta.<br />

—Me deve uma. —Grito às suas costas.<br />

Me mostra o dedo médio, entra e fecha a porta. Volto a observar <strong>Otter</strong><br />

enquanto amarra um saco de lixo e olha ao redor pelo chão à procura de outro. Do<br />

oceano chega uma espessa neblina e também começa a fazer frio. Suspiro<br />

desanimado, me levanto e me estico, sentindo como se fosse para a guerra.<br />

—Olá. —Digo ao me aproximar dele.<br />

—Olá, <strong>Bear</strong>. —responde. —Uma festa estupenda.<br />

—Obrigado. Parecia que estavam se divertindo.<br />

Ele franze a testa.<br />

— Eu provavelmente vou sentir isso na parte da manhã. Ter doze crianças<br />

amontoadas sobre você é uma boa forma de começar a sentir sua idade.<br />

Começo a rir.<br />

—Claro. Se faz com que se sinta melhor, até eu me senti velho hoje.<br />

Ele revira os olhos.<br />

—Muito melhor. Obrigado, <strong>Bear</strong>. Eu sou o que, oito anos mais velho que<br />

você?<br />

—Alguém tem que ser o velho aqui.<br />

—E poderia muito bem ser eu, não é?<br />

—Isso mesmo.<br />

—Então... —Ele diz.<br />

—Então... —Eu digo.


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Página94<br />

—O que Ana e Creed querem que você fale comigo?<br />

Eu me assusto com isso.<br />

—O quê?<br />

Ele resmunga.<br />

—Creed não é precisamente o rei da discrição. Vamos, <strong>Bear</strong>, já deveria<br />

saber. Sabe o que me disse há alguns dias? «Continue sentindo pena de si mesmo,<br />

<strong>Otter</strong>. Continue sendo um marica. Espere até que eu mande <strong>Bear</strong> em cima de você outra vez<br />

e então falaremos» —Disse, fazendo uma imitação assustadora de seu irmão mais<br />

novo. — Não me dirigiu uma palavra desde que partiu na semana passada, mas<br />

aqui está você. .<br />

Eu amaldiçoou entre dentes. Olho por cima da cerca traseira da propriedade<br />

e posso ver o oceano. A neblina está cada vez mais espessa e estremeço. As<br />

gaivotas grasnam. Ouço as ondas rompendo a praia.<br />

—Estive pensando. —Digo por fim.<br />

<strong>Otter</strong> arqueia uma sobrancelha.<br />

—Em quê?<br />

—Suponho que no que disse aquela noite.<br />

Suspira.<br />

—Me perguntava se o faria. Você tem a tendência de analisar tudo em<br />

excesso.<br />

—Tanto faz.<br />

Nos inclinamos para recolher mais lixo. Ele segura o saco aberto diante de<br />

mim e eu jogo pratos de plásticos. Desvio o olhar para tentar focá-lo em outra<br />

parte, mas sei que estamos entrando em terreno perigoso, um terreno no qual há<br />

pouco ou nenhum fundamento. Começo a pensar que isso foi uma péssima ideia.<br />

«Pode ser que você seja o único que <strong>Otter</strong> ouça, mas sei com certeza que ele é o único<br />

que você ouve.» Diz Creed dentro da minha cabeça.<br />

«Disse que acreditava que havia perdido sua única oportunidade de ser<br />

feliz.» Sussurra Anna.<br />

Talvez <strong>Otter</strong> tenha razão, talvez eu realmente pense demais sobre as coisas.<br />

Mas não haveria chegado tão longe, não haveria chegado tão longe com Ty, se não<br />

tivesse feito isso. Me espanta que as pessoas pareçam não entender. Não é sua<br />

culpa, já sei, porque nunca estiveram em minha posição antes. Analisar em excesso<br />

é a única maneira que poderia ter sobrevivido. Trato de conter a irritação que<br />

começa a dominar-me. Esta conversa não deveria girar em torno de mim. Deveria<br />

girar em torno dele.


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Página95<br />

—Você pensa demais, <strong>Bear</strong>. Sempre foi assim. —Insiste <strong>Otter</strong>, como se lesse<br />

meus pensamentos. —Não tem nada demais. Faz parte de sua natureza.<br />

—Puxa, obrigado.<br />

—Não leve a mal. Eu faço o mesmo.<br />

—É mesmo? —Digo. —Pois talvez devesse fazer algo a respeito.<br />

Ele olha para mim, um aborrecimento divertido espalhado por todo o rosto.<br />

—Desde quando se tornou tão tagarela?<br />

—Você perdeu muitas coisas, <strong>Otter</strong>. Talvez devesse ficar por aqui algum<br />

tempo dessa vez.<br />

—<strong>Bear</strong>… —Começa a dizer.<br />

—Realmente acredita que está ficando velho demais? —Interrompo, ao<br />

mesmo tempo em que me ocorre uma ideia.<br />

—Talvez.<br />

—Velho demais para escalar o castelo inflável?<br />

Ele começa a rir e parece surpreendido por esse som. Ele olha para cima,<br />

para a ameaçadora armadilha que Creed reservou até amanhã de manhã.<br />

—Não sei, <strong>Bear</strong>. Provavelmente vou acabar estourando.<br />

—Não seja tão marica. —Digo, com um toque de desafio na voz.<br />

Me olha de cima a baixo, e ambos sabemos que ele poderia me esmagar<br />

num piscar de olhos. Solta o saco de lixo, levanta as mãos para cima e começa a<br />

tirar os sapatos com um pontapé.<br />

—Aí está você, velho. Isso está bem melhor. —Digo enquanto tiro os sapatos<br />

também.<br />

<strong>Otter</strong> murmura algo ameaçador contra mim e se aproxima da entrada<br />

olhando para dentro. Vejo que começa a mudar de opinião, assim eu coloco um pé<br />

em seu traseiro e o empurro com toda a minha força. O ouço resmungar quando<br />

cai de cabeça no castelo.<br />

Subo no interior, está escuro e não posso vê-lo. E então ele agarra meu braço<br />

no mesmo lugar que ele tinha feito antes e quase não tenho tempo de formar um<br />

pensamento, o que seja, e logo me lança através do castelo, eu bato na parede e<br />

caio de costas. Ele se move depressa e salta ao meu lado, o que me levanta pelos<br />

ares contra a parede novamente. Enquanto isso, umas estrondosas gargalhadas<br />

saem de sua boca e ressoam através dos reduzidos confins do castelo de plástico.<br />

Me levanto e olho para ele, e ele tapa a sua boca e ri com dissimulação.<br />

—Deveria ver sua cara agora mesmo. —Diz entre risos. —Não tem preço.<br />

Parece…


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Página96<br />

Mas isso foi o único que pôde articular até que corro silenciosamente até ele<br />

e o empurro pela cintura exercendo toda a força do meu ombro. Creio que ganhei o<br />

que seja que pretendia ganhar, mas todo o mundo sabe que os castelos infláveis<br />

são injustos. Quando o coloco contra a parede, minhas meias escorregam sobre a<br />

superfície de borracha, os dois pés se deslizam sob meu corpo e tento<br />

desesperadamente agarrar-me em algo, mas tudo o que tenho é um monte de <strong>Otter</strong><br />

e eu o arrasto ao chão comigo. Fico estendido de costa e somente disponho de um<br />

segundo para reagir antes que ele desabe sobre mim, com minha cabeça contra seu<br />

peito. Eu posso senti-lo respirando pesadamente, e eu posso ouvir seu coração<br />

batendo rápido no peito. Permaneço imóvel por um momento, obrigando-me a<br />

mover-me, mas não posso. Sinto a longitude de seu corpo descansando sobre o<br />

meu, e não é como Anna, a única outra pessoa que tive contra mim desse modo. É<br />

forte, duro, e desprende um inconfundível cheiro de homem. Um milhão de coisas<br />

me assaltam ao mesmo tempo e não posso respirar, não posso me mover, e a única<br />

coisa que posso pensar é que agora ele está aqui comigo, e é como se os últimos<br />

três anos não tivessem existido, como se sempre tivesse estado aqui e sempre<br />

tivesse sido <strong>Otter</strong>. Fico aterrorizado porque percebo que fico excitado embaixo de<br />

seu peso, e ainda que permaneça ali apenas durante um segundo, parece uma<br />

eternidade. Então ele fica tenso, como se lhe passasse uma corrente elétrica e ele se<br />

apressa a se afastar de mim. Sinto frio e surpresa quando uma única lágrima<br />

desliza pelo meu rosto.<br />

Ele foge para um canto no lado oposto, com o rosto escondido pelas<br />

sombras. O ouço respirar pesadamente, e ele parece selvagem quando rosna para<br />

mim:<br />

—O que diabos está fazendo?<br />

Não digo nada.<br />

—O que você quer de mim, <strong>Bear</strong>? —Grita, repentina e cruelmente.<br />

—Não sei. —murmuro sinceramente, sem saber que outra coisa dizer.<br />

«<strong>Bear</strong>, oh, <strong>Bear</strong>», penso com tristeza.<br />

<strong>Otter</strong> emite um som angustiado e despenca contra a parede.<br />

—Volte para dentro, <strong>Bear</strong>. Volte para dentro e me deixe em paz.<br />

Me levanto e começo a fazer o que me pede. Chego até a entrada do castelo<br />

e me detenho.<br />

—O que aconteceu com você, <strong>Otter</strong>? —Pergunto sem me virar. —Por que<br />

teve que voltar para casa?<br />

—Agora não, <strong>Bear</strong>. —Suplica. —Agora não posso fazê-lo. Saia. Vai embora.


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—Não. —Digo, dando a volta para demonstrar-lhe que estou<br />

repentinamente irritado. —Não, você vai me dizer, e vai dizer agora. Eu suportei<br />

suas besteiras nos últimos três fodidos anos e, maldito seja, você me deve.<br />

—Por que se importa? —Resmunga.<br />

—Por que você é meu amigo, <strong>Otter</strong>! —Grito, tremendo. —Mesmo depois de<br />

tudo o que você fez, mesmo depois de tudo isso, você ainda é meu amigo! Não<br />

tenho nada mais para lhe dar, assim que me dê algo pelo menos uma vez!<br />

Minhas palavras ressoam nas paredes e flutuam dentro da minha cabeça.<br />

Ainda não posso ver seu rosto, mas não quero me aproximar dele. Nunca falei com<br />

ninguém como tenho falado com ele durante a última semana. Eu, em seu lugar,<br />

me odiaria. Se eu fosse ele, t<strong>amp</strong>ouco iria querer falar comigo. Sinto que a<br />

vergonha começa a incendiar meu rosto e creio que deveria me desculpar, mas não<br />

posso. Não quero. Por mais que me equivoque por dizer-lhes estas coisas, pelo<br />

menos é a verdade.<br />

—<strong>Otter</strong> —Tento outra vez, com voz mais suave. —Por que não quer falar<br />

comigo?<br />

—Você mesmo disse, <strong>Bear</strong> —Responde com voz apagada. —Não há mais<br />

nada em você para dar, e no entanto sei que não deveria esperar nada mais de<br />

você. Já fez o suficiente. Não posso esperar que esteja do meu lado quando eu não<br />

estive do seu.<br />

Se levanta, tremendo, passa junto a mim e sai do castelo. O sigo com o olhar,<br />

como um idiota.<br />

«Assim que é isso». —Penso, confuso. —«É isso. Já não posso fazer mais isso.»<br />

<strong>Otter</strong> já está na metade do jardim quando o chamo. Não era a minha<br />

intenção. Simplesmente ocorreu. Se detém, com os ombros caídos. Meus pés se<br />

movem antes de me dar conta de que corro até ele. Paro a poucos metros, e ele não<br />

se vira.<br />

—O que você quis dizer? —Pergunto sem poder evitar. —A que se referia<br />

quando disse isso a Anna?<br />

Parece abatido.<br />

—O que eu disse a Anna, <strong>Bear</strong>?<br />

—Disse que acreditava que tinha perdido sua única oportunidade de ser<br />

feliz. —Lhe digo, e as palavras saem de minha boca como um grasnido. —A que se<br />

referia?<br />

Ele se põe tenso, penso que vai virar para mim e não sei o que farei se isso<br />

acontece, mas uma parte de mim, aquela parte secreta, está desejando que se volte


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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para mim para poder ver a expressão de seu rosto e saber que diz a verdade. Estou<br />

empapado de suor e meu estômago está revirando, mas, porra, dê a volta! Olhe<br />

para mim! Dê-me algo, maldito seja!<br />

Por um momento, parece que o fará, mas não o faz. Entra na casa sem dizer<br />

uma palavra.<br />

Se afasta de mim.<br />

Outra vez.<br />

Essa noite, aconchegado em atitude protetora contra <strong>Kid</strong>, tenho outro<br />

sonho.<br />

Caminho pela praia. O céu é azul, a água é azul e a areia é azul. Não o azul claro do<br />

dia, mas o preto azulado do oceano à noite. Algumas vezes <strong>Otter</strong> me acompanha; outras, a<br />

minha mãe. Não dizem nada, e eu t<strong>amp</strong>ouco. Mas está tudo bem; não me importa. Eu gosto<br />

de andar pela praia no meio da noite. Eu sei que nada pode me machucar aqui. Eu lutei por<br />

esse lugar. Parece que é a única luta que eu já conheci.<br />

<strong>Otter</strong> desaparece, e minha mãe passa a ocupar seu lugar. Olha para mim com<br />

curiosidade, e estendo uma mão para pegar a sua, mas ela dá um passo para trás e nega com<br />

a cabeça. Então desaparece, e é <strong>Otter</strong> quem se encontra de pé ao meu lado. Volto a estender<br />

a mão, e ele também a recusa, mas se aproxima. Noto que seu braço roça o meu. Sinaliza<br />

para a água e começo a andar para ali, onde as ondas se rompem suavemente na praia. Lhe<br />

sigo quando ele rompe a onda. Tenho os pés molhados e me detenho. Tento chamá-lo, e sei<br />

que deve ouvir-me porque se volta e estende sua mão, querendo que eu a pegue. Vacilo, ele<br />

se dá conta e, então, desaparece, e novamente minha mãe aparece, caminhando pela água<br />

rasa, fazendo sinais para mim. Dou um passo atrás.<br />

E outro.<br />

E outro.<br />

<strong>Otter</strong> olha para mim com tristeza. Seus olhos não são de um verde intenso habitual,<br />

mas marrom, como os de minha mãe. Agacha a cabeça e abaixa as mãos ao seu lado. Se volta<br />

e entra no mar, mais além do rompimento. Sei que não posso ficar olhando como se afoga,<br />

mas tenho tanto medo de afogar-me com ele que não o sigo. A água rodeia seus ombros, e<br />

ainda assim segue adiante. E há um momento, uma ruptura brilhando no azul da noite, e eu<br />

corro atrás dele, como eu sempre soube que faria. A água salpica ao meu redor, é densa e<br />

pegajosa, mas não me importa. Tenho que chegar até ele. Ele me ouve chegar e se vira, e vejo<br />

que seus olhos voltam a ser verdes, tão formosamente verde e dourado que começo a rir de<br />

alívio. A água derrama em minha boca aberta, e eu estou afundando, estou afogando. A<br />

superfície fecha por cima da minha cabeça, e eu vou embora, eu vou para sempre.


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5<br />

Quando <strong>Bear</strong> descobre algumas verdades<br />

Página99<br />

— Vocês nem sequer vão se importar que eu vá embora, não é? —Nos<br />

pergunta Creed a Anna e a mim.<br />

Reviro os olhos.<br />

—Creed, ficará uma semana em Portland. Me viro sem você vários meses<br />

seguidos, então, eu acho que vou ficar bem.<br />

Estamos sentados em um banco no lado de fora do supermercado. Anna e<br />

eu trabalhamos, mas fizemos uma pausa para fumar, ainda que não fumamos. O<br />

princípio é o mesmo.<br />

—Não perguntava somente para você. —Disse com afetação. —Anna, você<br />

sentirá minha falta, não é?<br />

—Já estou contando os segundos que faltam para que volte. —Respondeu<br />

ela teatralmente, colocando o pulso sobre a testa. —Anseio por teu regresso,<br />

querido Creed.<br />

Se levanta, beijando nós dois na cabeça, dizendo que ela tem que voltar<br />

antes que se meta em encrenca. Adverte a Creed que não faça nenhuma besteira<br />

enquanto está fora.<br />

Alguns dos amigos, que Creed tem em Phoenix, irão para Portland durante<br />

uma semana. Nos convidou para ir, mas não me atrevo a pedir folga no trabalho,<br />

não enquanto estou tão adiantado com as contas, como tenho estado ultimamente.<br />

Por mais que eu gostasse de escapar de Seafare por alguns dias, <strong>Kid</strong> não permitiria<br />

de nenhuma maneira, e seria uma carga se eu o levasse. Creed havia desfeito<br />

minhas reservas, dizendo que Ty poderia aproveitar alguma libertinagem. Me<br />

havia passado pela cabeça a horripilante imagem de levá-lo a um clube de striptease<br />

e disse não no ato. Além disso, ainda tinha aula durante um par de semanas<br />

mais.<br />

Consultei meu relógio.<br />

—Pensei que já deveria ter ido.<br />

Dá de ombros.<br />

—Eu ainda tinha algum tempo para matar, e queria passar por aqui um<br />

momento antes de partir. Não tivemos muitas oportunidades de falar desde a<br />

festa.


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Página100<br />

Havia transcorrido uma semana e meia desde o aniversário de <strong>Kid</strong> e,<br />

durante esse tempo, eu não tinha voltado à sua casa. Havia dado desculpas,<br />

dizendo que trabalhava, que estava cansado. Mesmo sendo verdade, não queria<br />

voltar por causa dele. Não podia tirar da minha cabeça a imagem de <strong>Otter</strong> se<br />

afastando de mim, deixando a pergunta sem resposta, ainda flutuando no ar,<br />

resistindo a morrer. O sonho, aquele oceano azul negro. Achei que o melhor que<br />

podia fazer era colocar a maior distância possível entre <strong>Otter</strong> e eu, até que regresse<br />

a San Diego. Deixou muito claro que não precisa de mim, assim, decidi lhe dar o<br />

que quer. As coisas se complicam quando estou com ele.<br />

Golpeio o banco de madeira com os nós dos dedos.<br />

—Já disse. —Declaro. —Estive ocupado.<br />

—Mente muito mal, <strong>Bear</strong>. —Responde Creed com um sorriso no rosto. —<br />

Sempre foi assim. Suponho que não deveria ter obrigado você a falar com <strong>Otter</strong>,<br />

não é?<br />

—Segue trancado em seu quarto? —Pergunto, tratando de parecer<br />

entediado.<br />

—Sim. Creio que agora o vejo ainda menos que antes da festa. Talvez tenha<br />

sido uma má ideia enviar o urso para atacá-lo.<br />

—Leve isso em conta na próxima vez, ok? —Digo. —Já tive uma pessoa<br />

quase deprimida a quem cuidar. Não necessito outra.<br />

Se reclina no banco.<br />

—Não creio que devemos pensar nisso muito mais tempo. De todo o modo,<br />

tenho a sensação de que partirá logo.<br />

Meu coração dispara, mas tento ignorar.<br />

—O que faz você dizer isso?<br />

Dá uma olhada no relógio.<br />

—É só uma sensação. Chame-o de «intuição de irmão». Não ficará aqui por<br />

muito mais tempo. Pode seguir deprimido em qualquer parte; Por que ficar aqui e<br />

fazê-lo debaixo da chuva?<br />

«Bem... » —Penso impiedosamente. —«Bem. Vá para casa, <strong>Otter</strong>. Vá para casa e<br />

deixe-me voltar para onde quer que estava antes de você chegar. Assim, então, poderia<br />

reconhecer a mim mesmo. Pelo menos poderia sentir como é devido. Pelo menos…»<br />

«Pelo menos o quê, <strong>Bear</strong>? » —Sussurra a voz, divertida. —«Pelo menos podia<br />

passar uma hora sem que ele ocupe todos os seus pensamentos? Pelo menos podia esquecer<br />

aquela maldita dor que sentiu quando ele se afastou de você?Resulta muito mais fácil odiálos<br />

quando vão embora, não? Não é certo?»


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Página101<br />

—<strong>Bear</strong>, pelo amor de Deus, preste atenção! —Diz Creed, dando-me um soco<br />

no braço. —Juro que as vezes é pior que <strong>Otter</strong>.<br />

—Desculpe. —Murmuro.<br />

—Tenho que ir. —Anuncia, levantando-se. —As gatinhas de Portland me<br />

esperam.<br />

Sorrio.<br />

—Estou desejando ver o dia em que me diga que pegou gonorreia.<br />

Inclina a cabeça para um lado.<br />

—Isso é o que está desejando? De tudo quanto existe no mundo, é isso o que<br />

está desejando? <strong>Bear</strong>, isso é muito triste. E muito, muito mesquinho de sua parte.<br />

Portanto, se pego gonorreia, me esfregarei em sua boca quando estiver dormindo,<br />

e então, você também terá gonorreia. —Começa a segurar sua virilha e gemer. Rio<br />

e tento me afastar, mas ele me pressiona contra a parede. Um casal de velhos sai do<br />

supermercado e nos olha. Creed os cumprimenta com a mão e diz: —Está tudo<br />

bem. Somos gays. Este é meu companheiro de vida, Greg.<br />

Faço uma careta e o afasto com um empurrão.<br />

—Creed, você é um idiota. —Provoco, enquanto os velhos se afastam,<br />

lançando-nos olhares de nojo por cima do ombro. —Não diga esse tipo de coisa no<br />

meu trabalho!<br />

Me mostra a língua.<br />

—Mas eu não usei seu verdadeiro nome, querido…<br />

—Idiota —Resmungo.<br />

—Sim, você me ama. Enfim, estou indo. Vou ligar para você quando chegar<br />

lá, para esfregar em seu nariz o quanto me divirto sem você. —Me dá uns golpes<br />

amigáveis nas costas e começa a se afastar. Dou a volta para entrar quando diz: —<br />

Faça-me um favor, sim?<br />

Concordo com a cabeça.<br />

— Dê uma olhada em <strong>Otter</strong> para mim pelo menos uma vez? Não quero<br />

voltar para casa e descobrir que reagiu de forma emocional e cortou os pulsos.<br />

Começo a protestar, mas ele fica de joelhos e começa a gritar com voz<br />

aguda:<br />

—Por favor, Greg! Por favor!<br />

Dou a volta, dominado pelo pânico, e lhe digo que concordo, só para que vá<br />

embora.<br />

—Até logo, papai <strong>Bear</strong>. —Diz, e quando dou a volta outra vez já tinha<br />

desaparecido.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página102<br />

Mais tarde, Anna e eu estamos espalhados no sofá, com uma expressão<br />

horrorizada no rosto, enquanto Ty olha extasiado a TV. Pelo visto, como parte de<br />

seu presente de aniversário, Creed lhe havia conseguido o documentário sobre a<br />

PETA, que Ty morria de vontade de ver. Não entendia como me havia passado por<br />

alto quando levei para casa todo os seu sacos, até que me disse que o tio Creed o<br />

havia feito prometer que o escondesse até que pudesse sentar e vê-lo comigo.<br />

Quando Creed voltar para casa vou matá-lo. O documentário não tratava da gente<br />

normal do PETA, mas sim dos membros mais radicais. É uma porcaria das mais<br />

inquietantes.<br />

—Olha. —Sussurra Anna contra meu peito. —Quando crescer se converterá<br />

em todo um hippy.<br />

—Não se eu puder evitá-lo. —Respondo. —Juro por Deus, que na primeira<br />

vez que <strong>Kid</strong> for para a prisão por soltar um macaco, será Creed quem pagará a<br />

fiança.<br />

Anna e eu tentamos sufocar o riso, mas <strong>Kid</strong> nos ouviu e nos fulminou com o<br />

olhar. Deixamos de rir no ato. Não há nada como ser repreendido por um<br />

ecoterrorista de nove anos em formação. Ao cabo de duas horas insuportável o<br />

documentário acaba e digo a Ty que tem que ir se deitar. Sei que me ouve, mas em<br />

vez de levantar-se e obedecer, se deita de costas e fica olhando para o teto, com o<br />

rosto tão concentrado que sei que algo sério ocorre em sua cabeça. Anna também<br />

percebe e sabe que devemos esperar que <strong>Kid</strong> seja o primeiro a falar. Obrigá-lo a<br />

falar nunca dá resultado.<br />

—Derrick? —Pergunta por fim.<br />

—O que foi, <strong>Kid</strong>?<br />

Se levanta, nos olha e inclina a cabeça. Sua atitude sugere que esteve<br />

meditando durante um tempo e por fim está disposto a perguntar a respeito. Me<br />

lembro de sua pergunta sobre o amor há algumas semanas atrás, quando fomos<br />

buscar Creed no aeroporto. As vezes dá gosto não saber o que alguém vai dizer.<br />

—Posso perguntar uma coisa?<br />

—Claro.<br />

—<strong>Otter</strong> é gay?<br />

Algumas vezes dá gosto; outras…<br />

Minha respiração engata no meu peito. «Que porra é essa? » —Penso. —«De<br />

onde diabos ouviu isso? E por que estou preso ao único garoto de nove anos do mundo que<br />

faria uma pergunta assim? As crianças não deveriam fazer perguntas as quais não sei como<br />

responder!»


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página103<br />

Anna evidentemente sabe que eu estou tendo dificuldade para responder ao<br />

inquérito e o quebra-cabeças.<br />

—Por que pergunta, Ty?<br />

—É algo em que estive pensando ultimamente. —Responde sinceramente.<br />

—Isso é ruim?<br />

Ela nega com a cabeça.<br />

—É claro que não é ruim fazer perguntas, <strong>Kid</strong>. Pode perguntar o que quiser.<br />

Mas será papai <strong>Bear</strong> quem decide se está preparado para você ouvir a resposta, ok?<br />

Ty concorda e olha para mim, e eu amaldiçoou mentalmente a Anna.<br />

Deixou muito claro que não será ela quem divulgue isso, que não será ela que o<br />

confirme. Me passou a batata quente, e começo a duvidar de seus motivos. Anna se<br />

ergue e cruza as pernas sob seu corpo. Olha para as mãos enquanto aguarda minha<br />

resposta. Suspirando, me levanto e saiu do sofá para me sentar diante de Ty.<br />

—De onde você tirou isso? —Lhe pergunto.<br />

Encolhe os ombros.<br />

—Um dia, quando estava na casa de tio Creed. —De repente arregala os<br />

olhos, como se, de repente, lhe tivesse ocorrido uma ideia. —Eu não estava<br />

escutando às escondidas nem nada. —Se apressa em acrescentar.<br />

—Eu não pensaria isso, <strong>Kid</strong>. —Declaro. —Só queria saber se alguém o havia<br />

dito ou tinha ouvido sem querer.<br />

Sorri para mim agradecido.<br />

—Eu ouvi sem querer o tio Creed perguntar a <strong>Otter</strong> pelo seu namorado.<br />

<strong>Otter</strong> se enfureceu e lhe disse para se calar. —Se interrompe por um momento,<br />

como se pensasse. —Por que <strong>Otter</strong> ficou louco sobre isso? Aconteceu algo ruim?<br />

—Sinceramente, <strong>Kid</strong>? Não sei. —Digo pausadamente, pois sei que Anna<br />

também está ouvindo cada uma de minhas palavras.<br />

Quando entrei na casa na noite da festa de <strong>Kid</strong>, <strong>Otter</strong> já se havia encerrado<br />

em seu quarto. Anna e Creed haviam me interrogado logo em seguida, querendo<br />

uma descrição com todo o luxo de detalhes do «Ataque do urso». Não respondi<br />

diretamente nenhuma de suas perguntas, para grande desgosto deles. Disse a mim<br />

mesmo que não tinha o direito de dizer nada, ainda que não havia revelado grande<br />

coisa. Eu sabia que era um mentiroso.<br />

—Eu pensei que se você tem um namorado ou namorada... —Disse Ty<br />

sabiamente.— Deveria ficar contente e querer falar sobre isso. Não acredito que o<br />

namorado de <strong>Otter</strong> foi muito bom se ficou enfurecido com o tio Creed por<br />

perguntar.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página104<br />

Anna riu levemente.<br />

—O mero fato de que tenha alguém, Ty, não significa que deva estar sempre<br />

contente. As vezes se discute, ou essa pessoa comete uma estupidez e te faz ficar<br />

com raiva.<br />

—Como fez <strong>Bear</strong> quando lhe disse que tinha o nariz chato? —Pergunta Ty,<br />

com uma expressão pensativa no rosto.<br />

Me queixo quando Anna me dá um tapa na nuca.<br />

—Sim, Ty, isso mesmo. —Diz. —As vezes as pessoas podem ser um pouco<br />

desconsideradas.<br />

—Ou as vezes. —Retruco— As pessoas podem ser suscetíveis e interpretar<br />

as coisas de maneira errada, mesmo que você não tivesse a intenção de dizer dessa<br />

forma. Geralmente isso ocorre com as garotas, e normalmente porque acumulam<br />

hormônios.<br />

—O que são hormônios? —Ty pergunta enquanto Anna olha para mim com<br />

a testa franzida.<br />

Balanço a cabeça.<br />

—Não vamos falar disso agora.<br />

—Então <strong>Otter</strong> é gay? —Pergunta <strong>Kid</strong>, desviando o tema.<br />

—Sim. —Responde Anna. —E isso não é uma coisa ruim porque não muda<br />

quem ele é.<br />

Ele olha para ela surpreendido.<br />

—Quem disse que isso é ruim? —Pergunta, verdadeiramente<br />

desconcertado.<br />

Anna mexe em seu cabelo.<br />

—Ninguém importante. Enquanto saiba que não há nada de ruim nisso e<br />

que <strong>Otter</strong> te ama, tudo ficará bem.<br />

<strong>Kid</strong> olha para mim.<br />

—Você acredita que isso é algo ruim, <strong>Bear</strong>?<br />

—Não. —Respondo. —Claro que não. As pessoas podem amar quem elas<br />

quiserem.<br />

—Então por que você e <strong>Otter</strong> brigaram na noite em que ele foi embora, há<br />

muito tempo atrás?<br />

Ouço as palavras que saem da sua boca. As entendo individualmente, mas<br />

não em seu conjunto. Percebo como o sorriso de meu rosto se apaga pouca a<br />

pouco. Uma vez mais, meu irmão pequeno me deixa sem fala. Sei que está<br />

esperando que lhe responda, mas a única coisa em que posso pensar é em como


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página105<br />

pude ser tão estúpido por ignorar que vê e ouve tudo.<br />

—Não era sobre isso que discutiam. —Disse Anna antes que eu pudesse<br />

falar.<br />

Percebo o nervosismo em sua voz. Meu silêncio bem podia ser a confissão<br />

de meus pecados. Fiquei tão mudo de assombro diante das palavras de Ty que me<br />

esqueci da presença de Anna. Sinais de alerta começam a soar em minha cabeça e<br />

eu não quero que essa conversa continue.<br />

—De que discutiam então? —Pergunta Ty a Anna, e se eu fosse esse tipo de<br />

pessoa o estrangularia agora mesmo.<br />

—Não sei. —Responde Anna com sinceridade. —<strong>Bear</strong>? Ty quer saber sobre<br />

o que discutiam você e <strong>Otter</strong>. Deveria dizer a ele.<br />

«Oh, isto sim é bom! » —sussurra esta voz dentro de minha cabeça. —«O que<br />

vai dizer agora, <strong>Bear</strong>? Vai esconder com palavras doces? Quer dizer, o quão difícil pode ser<br />

convencer uma criança de que estava sonhando? Poderia solucionar isso facilmente. Ou,<br />

bem… poderia dizer a verdade por primeira vez em sua miserável vida?» —Ela ri. —<br />

«Poderia dizer o quão assustado estava porque sabia que <strong>Otter</strong> ia partir, mas que se rendia<br />

por sua culpa?Seria capaz de dizer que por trás dessa ira justificável, que tão<br />

brilhantemente ostenta experimentava uma sensação de alívio? Por que se sentiu a salvo<br />

naquele momento? Por que, <strong>Bear</strong>, por que? Por que…?»<br />

«CALE-SE!»<br />

—<strong>Bear</strong>? —Diz Anna contundente. Ty também o ouve, e olha para ela com<br />

preocupação no rosto e logo olha para mim. —<strong>Bear</strong>?—Repete ela. —Está<br />

esperando.<br />

Respiro fundo e solto o ar devagar. «Vamos, diga algo!»Penso.<br />

«Sim, <strong>Bear</strong>.»—Zomba a voz. —«Diga algo.»<br />

—Estava furioso com <strong>Otter</strong> —Digo a Ty em voz baixa.<br />

—Por que é gay? —Pergunta, também com a voz quebrada.<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Estava furioso porque… pensei que ficaria aqui somente por nossa causa,<br />

e não parecia justo para ele.<br />

Ty olha para mim com os olhos entrecerrados.<br />

—Mas era decisão dele, não? —Diz, parecendo outra vez mais maduro do<br />

que eu jamais chegaria a ser. —Quer dizer, se <strong>Otter</strong> não queria ir, por que disse<br />

para ele ir embora?<br />

—Não sei, Ty.<br />

«Sim, você sabe.»


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página106<br />

—Você queria que ele fosse embora? —Me interroga, de repente suspeito.<br />

—Não, <strong>Kid</strong>. Não queria. Mas t<strong>amp</strong>ouco queria que ficasse aqui somente<br />

porque… ele acreditasse que deveria fazê-lo.<br />

—Bom. —Disse <strong>Kid</strong>, apoiando-se pelos cotovelos.—Pelo menos voltou.<br />

Falar com <strong>Otter</strong> por telefone não é o mesmo quando sabe que ele está longe.<br />

—Claro, <strong>Kid</strong>.<br />

—Então, por que continua aborrecido com ele?—Pergunta<br />

despreocupadamente, ignorando completamente Anna.<br />

—Ty, já chega por essa noite. —Respondo com aspereza—… Amanhã tem<br />

escola e é hora de dormir.<br />

Ele suspira e se levanta. Ele caminha até Anna e a abraça, e ela sussurra algo<br />

em seu ouvido, e ele sorri. O empurro depois de lhe assegurar que irei ao seu<br />

quarto para lhe desejar boa noite, depois de escovar os dentes. Ele sai da sala<br />

cantarolando uma canção em voz baixa.<br />

Me reclino contra o sofá, sem saber para onde ir daqui para frente. Oxalá Ty<br />

tivesse esperado para essa fodida conversa quando estivéssemos sozinhos. Ou,<br />

melhor ainda, oxalá Ty não tivesse tido essa fodida conversa. Eu contenho a minha<br />

raiva antes que aumente, porque sei que, por mais esperto que <strong>Kid</strong> seja, não deixa<br />

de ser apenas uma criança. De todo modo não se trata dele, senão de mim. Tem a<br />

ver comigo, e como me pegaram em uma mentira. Tem a ver com a noite que tentei<br />

esquecer durante os três últimos anos. Tem a ver com o modo com que essa voz<br />

dentro de minha cabeça sabe desenterrar perfeitamente o que tanto me empenhei<br />

em ocultar. Tem a ver com a existência dessa garota, essa menina formosa a quem<br />

amo com todo meu coração. Tem a ver com ela, porque sei que fiquei preso em<br />

uma rede tecida por mim mesmo. Eu me viro para olhá-la, e vejo que tem os olhos<br />

brilhantes pelas lágrimas que ainda não se derramaram. Com raiva, limpa o rosto e<br />

abre a boca para falar quando Ty grita desde o quarto, para me dizer que está<br />

pronto. Eu amaldiçoou baixinho, mas, acaso não saio praticamente fugindo da<br />

sala? Acaso não corro?<br />

<strong>Kid</strong> já está em sua cama quando entro no quarto. Fecho a porta com cuidado<br />

por trás da gente, me dirijo até sua cama, me sento junto a suas pernas e me reclino<br />

sobre às mãos.<br />

—Anna está chateada comigo? —Pergunta em voz baixa.<br />

Respondo rapidamente.<br />

—Não, <strong>Kid</strong>. Não está chateada. E não quero que pense o contrário, ok? Ela<br />

nunca se chatea contigo por algum motivo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página107<br />

—E você? Está chateado comigo?<br />

Suspiro e olho para ele.<br />

—Não, Ty. Eu t<strong>amp</strong>ouco estou chateado contigo. Só que hoje foi um longo<br />

dia.<br />

Fica em silêncio por um momento antes de dizer:<br />

—Sinto muito ter escutado você e <strong>Otter</strong> discutirem. Não tentava escutar<br />

nem nada. Mas vocês falavam muito alto.<br />

Esboço um sorriso.<br />

—Bem, então deveria ser eu a me desculpar. Nunca quis que ouvisse isso.<br />

Não queria… por muitas razões.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz.—Posso te contar um segredo?<br />

—Claro, <strong>Kid</strong>. —Respondo, inclinando-me para colocar minha testa contra a<br />

sua.<br />

Cheira a Colgate e x<strong>amp</strong>u, e quero fechar os olhos e perder-me nesse<br />

momento, mas <strong>Kid</strong> necessita contar-me um segredo e espera que eu o olhe quando<br />

ele fala.<br />

—Não quero que <strong>Otter</strong> vá embora de novo. Isso é egoísta? —Sussurra.<br />

—Não, não é. Significa que o ama muito, e isso nunca será egoísta. Posso<br />

contar um segredo também?<br />

Concorda e me olha nos olhos.<br />

—Qual é o seu, <strong>Bear</strong>?<br />

—Eu t<strong>amp</strong>ouco quero que <strong>Otter</strong> vá embora novamente.<br />

Ele joga os braços em volta de mim e me puxa para baixo com ele.<br />

—Eu já sei. Eu sei. E guardarei seu segredo se você guardar o meu. —Me<br />

sussurra ao ouvido.<br />

Concordo com a cabeça contra seu ombro, esforçando-me por conter minhas<br />

emoções. Permaneço envolto entre seus braços até que me solta após alguns<br />

minutos.<br />

—Amo você, papai <strong>Bear</strong> —Diz, beijando-me no rosto.<br />

—Eu também amo você, <strong>Kid</strong>.<br />

Me levanto e apago a luz. Fecho a porta atrás de mim até deixá-la<br />

entreaberta, como sempre faço. Me apoio na parede por um momento, com a<br />

respiração alterada em meu peito. Estou tonto e apenas quero voltar, me enfiar na<br />

cama com ele e dormir. Mas Anna segue na sala, esperando eu voltar. Não posso<br />

fazê-la esperar mais.<br />

Está sentada ali aonde a deixei. Vejo que as lágrimas de seus olhos secaram,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página108<br />

mas sua resolução segue sendo firme. É impossível que isto diminua com a espera<br />

de minha volta. Tão logo entro na sala, ela sacode a cabeça para o lado, apontando<br />

para a pequena varanda que está ligada ao nosso apartamento. A sigo, sabendo<br />

que não quer que <strong>Kid</strong> ouça a nossa conversa. Mas se ela começar a gritar, eu farei o<br />

mesmo, e não importará porque toda a maldita vizinhança ouvirá. Coloco as mãos<br />

no bolso e a sigo para fora. Ela fecha a porta atrás de mim e escolhe um local tão<br />

distante de mim quanto possa, mas que tecnicamente, ainda seja considerado<br />

pertencente ao nosso apartamento.<br />

— E então? —Pergunta em voz alta e perigosa.<br />

— E então o que? —Respondo com evasivas.<br />

Olho em seus olhos com nervosismo e encolho meus ombros.<br />

—Você mentiu para mim, <strong>Bear</strong>.<br />

—Sinto muito.<br />

E é verdade. Sinto mais do que se pode imaginar.<br />

—Por que você fez isso?<br />

—Anna…<br />

—Não! —Sussurra, com os olhos faiscando. —O que aconteceu entre vocês<br />

aquela noite? Por que <strong>Otter</strong> foi embora? O que você fez a ele?<br />

Eu ri asperamente.<br />

—O que eu fiz a ele? Por que tem que ser eu quem fez algo para ele, pelo<br />

amor de Deus?<br />

—Muito bem, então! —Quase grita. —O que vocês dois fizeram?<br />

—Você estava aqui quando eu disse a Ty —Respondo irritado.—O que mais<br />

você quer que eu diga?<br />

—Quero que diga a verdade! —Geme, rompendo a chorar.<br />

Eu ignoro suas lágrimas.<br />

—Essa é a verdade! Não queria que ficasse aqui por uma fodida lealdade a<br />

mim! Se tornaria amargo e acabaria partindo de toda maneira! Se ele ia embora —e<br />

sei que cedo ou tarde ele o faria— era melhor para Ty que fosse então. E quer outra<br />

verdade? —Lhe provoco. —Quer saber mais, Anna? Não poderia viver tranquilo<br />

sabendo que se sacrificaria desse modo. Não poderia permitir nunca que me<br />

odiasse! Era mais fácil que eu o odiasse! Então, sim! Sim, o mandei embora! Está<br />

feliz agora? Está satisfeita?<br />

—Por que não podia me dizer isso?<br />

— Não é possível ouvir o quão patético eu pareço? —Grito. —Por que<br />

diabos eu reconheceria para você o que tinha feito, quando nem sequer podia


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Página109<br />

reconhecer a mim mesmo? Era preferível culpá-lo por ter partido a culpar a mim se<br />

tivesse ficado. Eu estava condenado de qualquer maneira!<br />

Anna se abraça e treme.<br />

—<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> teria ficado não porque você queria que o fizesse, mas porque<br />

ele também queria. Não entende isso? Ele teria feito porque ama a você e a Ty. E<br />

isso lhe teria sido o suficiente.<br />

—Por isso tinha que partir. —Digo com voz quebrada. —<strong>Otter</strong> nunca<br />

deveria se contentar com apenas o suficiente. Ele deveria…<br />

Mas não posso terminar a frase.<br />

—Ele deveria o que, <strong>Bear</strong>? —Pergunta com tristeza.<br />

—Não importa.—Respondo. —Esqueça.<br />

Isto reaviva sua ira.<br />

—Não vou esquecer, <strong>Bear</strong>, e maldito seja por dizer isso! Quando aprenderá<br />

que isto nunca teve a ver somente com você? Isso nos afeta a todos!<br />

Ri com amargura.<br />

—Todos dizem isso, mas nunca poderiam entender.<br />

—Só porque é orgulhoso demais. —Rosna. —Se quer falar de sacrifício, vai e<br />

se olhe no espelho.<br />

—Isso eu já sei, Anna! —Lhe grito.<br />

—Então por que se apressa a julgar as pessoas que se sacrificariam por<br />

você?—Provoca. —Como pode desprezá-las tão facilmente?<br />

—Você pensa que foi fácil? —Lhe fulmino com o olhar. —Você pensa que<br />

não me arrependo a cada minuto do dia?<br />

—Como poderia saber? —Replica com crueldade. —Tem mentido para mim<br />

desde o início.<br />

—Não sabia que outra coisa fazer, Anna! Tudo se desmoronava ao meu<br />

redor, e era eu quem o provocava!<br />

—Do que tinha tanto medo? Por que não podia deixar que alguém lhe<br />

ajudasse, porque queria fazê-lo?<br />

—Será que você não escutou nada do que eu disse? —Rosno.<br />

—E, então é isso? —Pergunta, esfregando os olhos. —Essa é toda a história?<br />

—Sim, por Deus. —murmuro, retorcendo minhas mãos.<br />

—Está mentindo.<br />

—Anna, por favor…<br />

Lhe estendo a mão, mas ela ignora.<br />

—Ele está apaixonado por você, <strong>Bear</strong>?


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Página110<br />

—Não!<br />

—Está mentindo.<br />

Levanto as mãos e aperto meus ouvidos com os punhos, tentando fazer com<br />

que se cale, tentando encerrar-me em mim mesmo, e é mais do que posso suportar.<br />

Sei o que vai me perguntar em seguida, e sei o que lhe direi, e sei que tenho uma<br />

oportunidade de ser sincero, de dizer algo que tem aterrorizado meu coração. Sei<br />

de tudo isso, mas não serve para fortalecer-me e impedir que meu corpo trema da<br />

cabeça aos pés. Golpeio meus ouvidos com os punhos, ansiando por alguma<br />

lucidez, uma luz que apareça como por arte de magia, reluza e murmure: «Sim,<br />

sim, está tudo bem que você diga que sim.» Mas não ocorre nada, tudo segue às escuras<br />

e os tremores não me abandonam.<br />

—Está apaixonado por ele?<br />

«Oh, Deus. Oh, meu Deus. <strong>Bear</strong>…»<br />

—Não! —grito.<br />

—Está mentindo.<br />

As placas se movem, a terra treme.<br />

«Como chegamos até aqui?» —Penso, com a mente febril e dominada pelo<br />

pânico.— «Como diabos chegamos a essa situação? Como pude deixar que isso chegasse<br />

tão longe?»<br />

Anna olha para mim furiosa antes de abaixar a cabeça.<br />

—Sabe? —Diz, rindo amargamente entre dentes. —Durante a maior parte<br />

do tempo acreditei que foi <strong>Otter</strong> quem havia feito algo, mas agora… agora já não<br />

sei. Nunca pensei que seria isto. Sempre acreditei que…<br />

Posso ouvir o sangue pulsar em meus ouvidos.<br />

—Não aconteceu nada. —Digo com voz rouca, e detesto o falso que pareço,<br />

inclusive para mim mesmo. —Não aconteceu nada.<br />

—Oh, <strong>Bear</strong>. —Anna levanta uma mão para tapar a boca enquanto soluça em<br />

silêncio. —Oh, <strong>Bear</strong>. —Repete.<br />

Posso ouvi-lo em sua voz, e finalmente derruba todos os muros que<br />

apressadamente levantei desde que fomos para a varanda. Corro até ela, a envolvo<br />

em meus braços e a estreito com força, enquanto enterro o rosto em seu cabelo.<br />

—Por favor. —Suplico. —Por favor, Deus. Por favor…<br />

Ela se desvencilha de mim, dizendo: «Não, <strong>Bear</strong>, não», e essas palavras são<br />

como uma adaga que me atravessa o coração. Percebo como se afasta de mim,<br />

percebo como se retira, e sinto um pontada de medo vítrea e aguda. Murmuro<br />

«por favor» uma e outra vez e tento segurá-la pela mão, os braços, os ombros,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página111<br />

qualquer coisa para atraí-la até mim, mas me diz que não, não e não, e posso ver<br />

que vai me deixar, como todos os demais têm feito sempre. Está ocorrendo agora, e<br />

vai me deixar agora, e estarei sozinho para sempre, porque sei que um dia Ty<br />

também me deixará, porque todo mundo... sempre... vai embora.<br />

Anna reprime as lágrimas e me afasta novamente. Me deixo cair contra a<br />

parede e abraço a mim mesmo, tentando sentir algo que não seja essa dor. Ela<br />

retrocede, seca os olhos e afasta o cabelo do rosto.<br />

—Então, se acabou? —Digo com voz entrecortada. —Me deixará também?<br />

Assim, sem mais? Afastei você como a todos os demais.<br />

Parece sobressaltada por um momento, vejo reconhecimento em seu rosto e<br />

experimento um resquício de esperança quando se aproxima de mim e coloca uma<br />

mão sobre meu braço. Mas suas palavras a cortam.<br />

—<strong>Bear</strong>, eu nunca deixarei você e Ty. Nunca serei como ela. Mas… é…, já<br />

não será como antes. Sempre… me terá formando parte de sua vida. Mas não<br />

assim. Já não será mais assim.<br />

—Por que? —Solto um gemido.<br />

—<strong>Bear</strong>, você… tem que descobrir isso por si mesmo.<br />

Se apoia contra mim, eu a envolvo com os braços e choro contra seu cabelo.<br />

—Não sei se poderei fazer isso sem você. —Soluço.<br />

Me afaga a parte inferior das costas.<br />

—Não terá que fazê-lo. Será diferente, mas nunca abandonarei você. —Me<br />

abraça com força e me sussurra veementemente ao ouvido: —Nunca. Está me<br />

ouvindo, Derrick McKenna? Nunca. Amo você. Você partiu meu coração, mas era<br />

meu para dá-lo.<br />

E vai embora.<br />

Ouço a porta se fechar quando sai do apartamento e seus soluços ecoam<br />

quando baixa correndo a escada. Entro cambaleando, me coloco de joelhos no<br />

chão, me inclino para frente, levo minhas mãos ao rosto e tremo enquanto um<br />

terremoto me sacode meu corpo, o coração e a alma.<br />

Após algum tempo, não sei quanto, batem na porta. Esfrego meu rosto, me<br />

levanto de um salto e corro para abrir.<br />

É <strong>Otter</strong>.<br />

—Ei. —digo, fungando.<br />

—Ei, você. —Responde, com uma sombra de preocupação no rosto. —Anna<br />

me ligou.<br />

—Ela… <strong>Otter</strong>… Eu…, eu…


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Não sei o que Anna lhe disse, nem o que tentou dizer, mas não importa,<br />

porque de repente <strong>Otter</strong> enche o mundo, e é tudo o que posso ver, e me abraça em<br />

atitude protetora, escutando-me enquanto desmorono, me faço em pedaços e me<br />

afundo. E ainda que não esteja aqui para recolher os pedaços mais tarde, sempre<br />

recordarei que, pelo menos, me deu de presente esse momento, este momento<br />

decisivo.<br />

*******<br />

Página112<br />

Desperto e noto minha cara intumescida e enrugada. Estive sonhando, mas,<br />

pela primeira vez em muito tempo não posso me lembrar. Não sei o que significa<br />

isso.<br />

Abro os olhos e vejo que estou no sofá da minha sala, coberto com uma<br />

manta. Começo a me perguntar o que faço aqui, quando a noite anterior me invade<br />

repentinamente e solto um gemido. Tenho um sabor horrível na boca e pontadas<br />

na cabeça. Noto minha roupa grudada ao meu corpo. Levanto e o simples<br />

movimento basta para me provocar ânsia de vômito. Fico imóvel por um<br />

momento, esperando que o enjoou passe.<br />

«Então, o que vai fazer agora?» —Sussurra a voz alegremente. —«Olhe-se. Você<br />

é patético.»<br />

—Deixe-me em paz —resmungo entre dentes. —Deixe-me em paz, maldita<br />

seja.<br />

«Por que? Uma consciência nunca deve ir embora só porque você quer. Isso faria as<br />

coisas simples demais. Como poderia aprender algo desse modo? Oh, <strong>Bear</strong>, isto será muito<br />

divertido!»<br />

—Por favor. —Sussurro.<br />

«Cresça de uma fodida vez. »—Diz com frialdade. —«Chegou até aqui com as<br />

pessoas seguindo-o por onde quer que vá fazendo besteiras. Já é hora que cresça e deixe de<br />

sentir pena de si mesmo. Oh, sou <strong>Bear</strong>. Me escute. Estou tão cheio de angústia! O que vou<br />

fazer? A vida é tão DURA!» —Começa a rir. —«Blablablá. Pelo menos ele tem coragem<br />

de dizer o que sente. Pelo menos <strong>Otter</strong>…»<br />

<strong>Otter</strong>.<br />

Olho pela sala com espanto, mas estou só. Me levanto de um salto, abro as<br />

cortinas, que não lembro de ter fechado, e vejo que há demasiada luz lá fora para<br />

ser muito cedo. Merda. Corro para meu quarto, gritando a Ty para que acorde


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

porque chegaremos tarde. Abro de um golpe só a porta do quarto, planejando já<br />

dentro de minha cabeça que o farei levantar-se agora mesmo e escovar os dentes<br />

(não há tempo para tomar banho) e me perguntando se haverá roupa limpa no<br />

armário para usar…<br />

Mas ali não há ninguém.<br />

Vou até a cozinha e também está deserta. Começo a ficar aflito quando vejo<br />

sobre a mesa da cozinha uma nota com um rabisco familiar:<br />

<strong>Bear</strong>,<br />

Precisava dormir mais. Acordei Ty, o arrumei para ir a escola e o levei. Não se<br />

preocupe com o trabalho. Liguei me fazendo passar por você e lhe disse que estava na cama<br />

com gripe. Parece que me dou bem no papel de <strong>Bear</strong> doente. Me lembre de demonstrá-lo<br />

mais tarde.<br />

De qualquer forma, irei para casa depois e tentarei dormir um pouco. Procure me<br />

ligar tão logo acorde. Estou preocupado com você, papai <strong>Bear</strong>.<br />

<strong>Otter</strong>.<br />

Página113<br />

P. S.: Ty está dez minutos acordado e já me falou a cerca dos incríveis membros da<br />

PETA. Por que diabos lhe deixa ver essas coisas?<br />

Meu rosto se estica, e sei que é porque estou rindo.<br />

Esta constatação se esfuma.<br />

Fico no chuveiro uns trinta minutos, alternando entre quente e frio porque<br />

ou eu estou suando ou tremendo de frio, e creio que talvez esteja ficando<br />

realmente doente. Quando já não posso suportar a água que corre sobre meu<br />

corpo, saio e me enrolo em uma toalha ao redor da cintura. Limpo o espelho<br />

embaçado e observo meu reflexo. Estou pálido. Tenho os olhos avermelhados e os<br />

lábios rachados.<br />

«Não me estranha que tenha terminado comigo.» —Penso, meio louco. — «Pareço<br />

um viciado em metanfetamina.»<br />

Aquela sensação de desespero tenta aflorar novamente, e quase o permito. É<br />

muito mais fácil alguém sentir pena de si mesmo. Já deveria saber disso, fiz isso<br />

muitas vezes. Creio que a tenho dominada quando se desliza um fragmento, e vejo<br />

que o lábio de meu reflexo treme um pouco. Agarro as bordas da pia e ordeno a<br />

mim mesmo que pare, pare já e de uma puta vez. Meu reflexo parece escutar<br />

enquanto o miro furioso. Seu lábio deixa de tremer, seu peito deixa de agitar-se e o<br />

sangue começa a aquecer minhas bochechas. «E aí está. » —Penso. —«Aí está, vê?<br />

Vê? Posso fazê-lo. Pude fazê-lo.» Saio do banheiro, começando a me sentir melhor.<br />

Não dura muito.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Tento esfregar os braços, mas ainda tenho frio.<br />

Eu me visto, mas nada do que coloco parece bem.<br />

Eu tento comer, mas toda a comida tem gosto de serragem.<br />

Eu ligo a TV, mas as luzes e o barulho fazem a minha cabeça doer.<br />

Eu caminho ao redor da sala.<br />

Eu caminho pela cozinha.<br />

Eu caminho pela sala novamente.<br />

Eu pego as chaves do carro.<br />

Eu entro no meu carro.<br />

Eu dirijo e dirijo, e penso em ir embora.<br />

Eu acho que eu vou sair e não olhar para trás.<br />

Seria mais fácil.<br />

Página114<br />

Dez minutos depois tomo consciência do que me rodeia e vejo que estou em<br />

uma rua que reconheço, uma rua que conheço muito bem. Tento parar, mas estou<br />

no piloto automático. Há um zumbido agradável dentro de minha cabeça e é como<br />

se levasse t<strong>amp</strong>ões de algodão nos ouvidos, porque tudo está mudo. Entro na rua<br />

que, quando tinha dez anos, caí da bicicleta e arranhei meus joelhos. Passo pela<br />

casa onde, quando tinha doze anos, Creed e eu roubamos um anão de jardim.<br />

Circulo junto a um estacionamento que, quando tinha quinze anos, o senhor<br />

Thompson me ensinou a dirigir. Estaciono em um lugar que estacionei um<br />

infinidade de vezes. Eu subo por um caminho de pedra, que antes estava coberto<br />

de grama. Toco a c<strong>amp</strong>ainha, que ainda me surpreende porque soa igual a minha.<br />

Nada acontece. Volto a tocar. Outra vez. E outra. Chamo até que ouço uns pés se<br />

arrastando e então a porta é aberta, e é como se eu voltasse a ter oito anos e ele<br />

dezesseis, e quero perguntar se Creed está em casa, porque vim passar a noite, mas<br />

temo que me quebrarei como cristal. Fico ali, olhando para ele e ele olhando para<br />

mim e, por fim digo: «Não sei mais aonde ir.» Dá um passo atrás, passo ao seu lado e<br />

entro em uma casa que antes considerava um refúgio seguro. Subo as escadas e o<br />

ouço seguir-me. Lhe rogo em silêncio que não fale, e ele não o faz. Isso é bom<br />

porque, se falasse, o piloto automático se desconectaria e se instalaria a realidade.<br />

Vejo sua porta, e ainda que já não existe nenhuma placa que diz: PROIBIDA A<br />

ENTRADA PORQUE É O QUARTO DE OTTER, sei que é o quarto dele.<br />

Abro a porta e a cama está desfeita, e sei que estava dormindo. Me sinto no<br />

limite, tiro os sapatos, deito na cama e me cubro com as cobertas, fazendo uma<br />

caverna onde um urso possa dormir. Estou muito cansado, e mal consigo manter


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página115<br />

os olhos abertos, quando noto que a cama se afunda com cuidado, e sei que ele<br />

voltou a deitar. Levanto as cobertas para que possa entrar na caverna. Se mete<br />

debaixo e se deita de costas, com os olhos pesados com algo que eu não consigo<br />

entender, e ele cruza os braços em torno de sua testa, colocando sua cabeça sobre suas<br />

mãos. Volto a deixar cair as cobertas suavemente e fica escuro na caverna de <strong>Otter</strong> e<br />

<strong>Bear</strong>, mas não o suficiente para que não possa distinguir seus olhos, seu nariz, seus<br />

lábios. Minha mão se estica por vontade própria e lhe toca o rosto com delicadeza.<br />

Está sem barbear e ele segura a respiração, e eu não sei porque faço isso, mas o<br />

faço. Pega minha mão e a segura entre as suas. Está a ponto de dizer algo, mas<br />

sacudo a cabeça porque não quero ouvir nem meia palavra. Me volto e fico de<br />

lado, imitando sua posição. Encolho os joelhos no peito e golpeio os seus, e é ali<br />

onde os deixo. Observo a <strong>Otter</strong> enquanto me olha, e ainda segura minha mão e eu<br />

não a retiro. Assim fico, até que por fim, inevitavelmente, durmo.<br />

Quando acordo, o sol está se derramando pela janela sobre a cama. Me<br />

estico e olho ao lado. Um leve temor me sacode o corpo. Não há ninguém. Eu<br />

suspiro aliviado e na mesma hora me sinto culpado. Dou a volta, pego o<br />

travesseiro e o abraço.<br />

«O que faço aqui?» —Pendo. —«Acabo de romper com a única pessoa que acreditei<br />

que poderia estar sempre. E aqui estou, fazendo… O que estou fazendo? Isto não está bem.<br />

Esse não sou quem eu deveria ser.»<br />

«Como sabe? » —Sussurra a voz. —«Se permitisse a si mesmo pensar com<br />

claridade por um momento, você saberia. Saberia tudo o que tem tentado não ser.»<br />

Abraço o travesseiro com mais força e a porta se abre.<br />

—Bem. —Diz <strong>Otter</strong> alegremente. —Está acordado. Pensei que teria que lhe<br />

arrancar da cama para acordá-lo.<br />

Me arrasto rapidamente até a cabeceira e levo o travesseiro ao peito. Olho<br />

para <strong>Otter</strong> com cautela. Está de pé no umbral da porta, com os braços cruzados<br />

sobre o peito e apoiado no batente da porta. Seu cabelo loiro e curto se sobressai<br />

em diferentes direções, seus olhos verdes brilham e seu sorriso é tão torto como<br />

sempre. Começo a notar uma opressão em meu peito e nas costas, e aperto o<br />

travesseiro com mais força. Suas pernas longas estão revestidas por calça moletom<br />

preta folgada, e sua camiseta branca de regata mostra um bronzeado que eu não<br />

poderia ter nunca. Seus braços parecem fortes, pressionados a seu corpo esbelto.<br />

Desvio o olhar a força, tentando concentrar minha atenção em outra parte. O ouço<br />

rir baixinho.<br />

—O quê? —Digo, com uma voz mais áspera do que pretendia.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página116<br />

—Seu cabelo parece muito engraçado .<br />

Faço uma careta e começo a alisá-lo apressadamente. — O seu não parece<br />

melhor. — Retruco.<br />

—Ah, o <strong>Bear</strong> quando acaba de acordar. Quase havia me esquecido de como<br />

é divertido<br />

—Cale a boca, <strong>Otter</strong>. —Digo enquanto balanço as pernas sobre a borda da<br />

cama e coloco os pés no chão.<br />

Antes que possa fazer outro movimento, <strong>Otter</strong> se situa diante de mim, se<br />

agacha e se senta sobre seus calcanhares.<br />

—Ei. —Diz.<br />

—Ei, você. —Murmuro.<br />

Estende um braço e toca o meu com delicadeza, e por um momento deixo<br />

que sua mão descanse ali. Por um momento, quase esqueço quem sou em<br />

realidade e somente me concentro no agradável que é o seu toque. Retiro o braço,<br />

olho por cima de sua cabeça e o ouço suspirar.<br />

—<strong>Bear</strong> —Diz.<br />

—O que, <strong>Otter</strong>?<br />

Se levanta e dá um passo atrás.<br />

—Quase é a hora de pegar <strong>Kid</strong> na escola. Lhe disse que estaria ali quando o<br />

levei.<br />

Me levanto precipitadamente e pego as chaves do bolso, aliviado pela<br />

desculpa de que agora disponho. Me dirijo automaticamente até a porta e só me<br />

detenho quando volta a pronunciar meu nome. Não quero dar a volta, na realidade<br />

não, mas o faço, e o vejo de pé no mesmo lugar de antes.<br />

—Prometi a Ty que tentaria lhe fazer uma lasanha de tofu esta noite. — Diz.<br />

—Não sei como me sairei, mas lhe disse que poderia vir. Espero que não se<br />

importe.<br />

Sacudo a cabeça.<br />

—Está bem. Eu posso deixá-lo aqui.<br />

Ele sorri com cumplicidade.<br />

—Boa tentativa, papai <strong>Bear</strong>. Não escapará tão facilmente. Terá que me<br />

ajudar a fazê-la.<br />

—Não sei, <strong>Otter</strong>.<br />

—Já sei que não sabe. —Diz em voz baixa. —<strong>Bear</strong>, desconheço o que houve<br />

entre você e Anna, mas agora mesmo não creio que deveria ficar sozinho. Cedo ou<br />

tarde vai querer falar nisso. Creio que é melhor para você que fique aqui.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

«Contigo», penso enquanto começo a ficar inquieto e brincar com as chaves.<br />

—Vou pensar sobre isso, <strong>Otter</strong>. Ok?<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz com essa voz sua, essa voz de advertência que me deixa<br />

louco.<br />

—Por favor, <strong>Otter</strong>. —Sussurro. —Tenha… tenha paciência comigo, ok? Não<br />

sei que diabos faço aqui, e preciso que você… que você… Não sei.<br />

Se aproxima até ficar diante de mim e, ainda que me odeie por fazer isso,<br />

recuo e dou um passo atrás. Quase saio pela porta, quando me pega pelos ombros.<br />

Não posso evitar seus olhos e o que vejo, a expressão de seus olhos, quase me<br />

derruba ao chão. Ninguém nunca olha para alguém dessa maneira. Isso nunca<br />

deveria ser assim. Não pode ser real.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz com serenidade. —Tem que acreditar que eu t<strong>amp</strong>ouco sei o<br />

que está passando aqui. Só pretendo ser seu amigo. —Sorri com tristeza. — Pode<br />

confiar em mim para fazer isso?<br />

É estranho. É estranho porque eu posso sim. Aceno com a cabeça, com os<br />

olhos arregalados.<br />

—Muito bem.<br />

Se volta, se dirige à sua mesa e começa a manipular uma câmera que está<br />

desmontada sobre ela.<br />

Estou prestes a ir embora, mas o zumbido volta outra vez, começando nos<br />

dedos dos pés e subindo por meu corpo até que o sinto em meus ouvidos. De<br />

repente estou detrás dele, envolvendo-o pela cintura com os braços e recostando<br />

minha cabeça sobre suas costas. <strong>Otter</strong> se sobressalta, mas só por um momento.<br />

Pouco a pouco, com cuidado, se reclina contra mim, levanta as mãos e acaricia as<br />

minhas suavemente. Respiro fundo e sinto o cheiro de <strong>Otter</strong>, um cheiro que não<br />

mudou desde o dia em que o conheci.<br />

Me afasto e saio do quarto, com a cabeça em chamas.<br />

Página117


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6<br />

Quando <strong>Bear</strong> ouve uma história e toma uma decisão<br />

Página118<br />

—Olá, <strong>Bear</strong>! —Grita Ty quando o recolho diante da escola.<br />

Se despede de alguns de seus amigos e abre passo através da multidão.<br />

Sorrio quando está a ponto de empurrar uma garota a que parece querer se<br />

aproximar. Penso em quando Creed deu um pontapé em Suzy March no estômago.<br />

Me pergunto se essa garota esteve em sua festa.<br />

—Ola, <strong>Kid</strong>. O que há? —Pergunto.<br />

Ele sorri para mim.<br />

—Estou feliz que seja o fim de semana. Pensei que esta semana não fosse<br />

terminar nunca.<br />

Começo a rir porque parece um homem de negócios quarentão.<br />

—Eu que o diga. —Concordo. —Eu também estou feliz que seja fim de<br />

semana.<br />

Diz adeus com as mãos para alguns de seus amigos que seguem diante da<br />

escola. A garota se volta e lhe saúda alegremente, mas ele franze a testa e se volta<br />

para frente.<br />

—Quem é essa? —Pergunto despreocupadamente.<br />

—Quem é quem? —Diz, desviando da pergunta.<br />

O olho fixamente.<br />

—Aquela linda jovem que você parece muito afeiçoado.<br />

<strong>Kid</strong> me olha com a testa franzida.<br />

—Você se refere a Amy? —Emite um ruído grosseiro e de repente volta a<br />

parecer um garoto de nove anos. —Não é ninguém.<br />

—Frequenta a sua classe? —Pergunto, tentando controlar o riso.<br />

—Não. Ela está um grau acima de mim.<br />

—Ah. Então ela é mais velha.<br />

—Acho que sim. Por que me pergunta sobre ela?<br />

Encolho os ombros.<br />

—Parece simpática. Esteve em sua festa de aniversário?<br />

—Não, não a convidei.<br />

—Por que não?<br />

—Bem, porque não! —Esbraveja. —É… má e… não gosto dela!


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página119<br />

—Se comporta mal contigo? Quer que eu fale com seu professor? —Digo,<br />

fazendo uma cara séria.<br />

<strong>Kid</strong> fica empalidece.<br />

—Não. —Se apressa em responder. —Creio que posso resolver sozinho.<br />

—Aposto que sim.<br />

Me olha irritado.<br />

—Você está rindo de mim?<br />

Sorrio.<br />

—Eu nem sonharia com isso.<br />

—Bom. Porque já tive um mal dia, e não quero ter que suportar suas críticas.<br />

—Minhas críticas?<br />

Estalo em risada. Para meu alívio, isto lhe desarma e começa a rir também.<br />

Estendo um braço e despenteio o seu cabelo, e ele se queixa bem humorado, mas<br />

pega a minha mão e a coloca em seu colo. Brinca com os meus dedos, cantarolando<br />

em voz baixa. Eu espero.<br />

—Ela come carne. —Diz por fim.<br />

—E isso é mal? Eu como carne.<br />

—Mas isso não importa. Você é meu irmão mais velho. Ela não é mais que<br />

uma menina estúpida.<br />

—Essas são sempre as melhores, não?<br />

Me observa muito pensativo.<br />

—Não sei, <strong>Bear</strong>. Você e Anna estão bem?<br />

Seguro o volante com força.<br />

—Então também ouviu isso.<br />

Faz uma careta.<br />

—Era muito difícil não fazê-lo, papai <strong>Bear</strong>.<br />

—O que ouviu? —Pergunto, nervoso de repente.<br />

Nega com a cabeça.<br />

—Somente gritos. Sinto muito, <strong>Bear</strong>. Não pretendia ouvir.<br />

Lhe dou uns tapinhas na mão.<br />

—Está tudo bem, <strong>Kid</strong>. Eu também sinto. Nunca deveria ter terminado<br />

assim. Eu deveria ter pensado um pouco mais.<br />

—Hoje <strong>Otter</strong> me levou para a escola! —Exclama com entusiasmo. Forço um<br />

sorriso pela mudança de tema. — Nunca fez isso antes. Comprou donuts para<br />

mim!<br />

—O bom e velho <strong>Otter</strong>.


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Página120<br />

—Sim, o bom e velho <strong>Otter</strong>. Ei, por que estamos voltando para nossa casa?<br />

<strong>Otter</strong> disse que esta noite iríamos para sua casa! Ele prometeu, <strong>Bear</strong>! Fará lasanha!<br />

Reviro os olhos.<br />

—Respire um pouco, Ty. Já sei que ele prometeu a você. Vamos apenas<br />

passar rapidamente em casa para você trocar de roupa.<br />

—Podemos passar a noite lá?<br />

O Quê?<br />

—Isto… esta noite, não. —Balbucio. —Talvez outro dia.<br />

—Por que não?<br />

—Porque eu estou dizendo e basta.<br />

Cruza os braços e protesta.<br />

—Nunca fazemos nada divertido.<br />

—<strong>Kid</strong>. —Digo com severidade. —Estão acontecendo muitas coisas que você<br />

não… que você…<br />

Tento acabar a frase, mas ele emite uns ruídos suplicantes e contrai o rosto,<br />

e desafio a qualquer um que diga não a isso. Me dá um aperto no coração quando<br />

digo:<br />

—Está bem. Mas me deve uma. E grande.<br />

—Você é genial, papai <strong>Bear</strong>.<br />

Uma hora depois nos encontramos na casa de <strong>Otter</strong>. Tão logo estou no<br />

caminho da entrada, Ty já saiu pela porta, correndo até o interior. «Entrarei logo<br />

em seguida!» Lhe grito, e paro o carro. Golpeio suavemente o volante com as mãos<br />

e balanço as minhas pernas com nervosismo. Entrar agora será um grande passo, e<br />

não sei o que significa isso. Antes que possa evitar, estou teclando o número em<br />

meu celular e começa a chamar. Quero desligar, mas não posso porque necessito<br />

ouvir sua voz. Foi um impulso, e creio que é o momento de desligar antes que<br />

atenda. Mas continuo esperando, enquanto golpeio com a mão e balanço a perna.<br />

—Ei, <strong>Bear</strong> — Disse Anna.<br />

Parece cansada.<br />

—Ei, você. —Respondo.<br />

—O que houve?<br />

—Nada. E você, como está?<br />

—Já sabe. Por que me ligou?<br />

Encolho os ombros e aperto os dentes, percebendo, como um estúpido, que<br />

não pode ver-me.<br />

—Não sei. Apenas queria falar contigo.


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—Sobre o que?<br />

—Tem que ser a cerca de algo?<br />

Suspira.<br />

—<strong>Bear</strong>, sempre tem que ser a cerca de algo.<br />

—Não tem que ser assim. —Respondo, reprimindo as lágrimas. —<br />

Podemos… Não podemos voltar?<br />

Ela ri, sem maldade.<br />

—Não creio, <strong>Bear</strong>. Nem sequer sei como. Não seria justo para nenhum dos<br />

dois.<br />

—Mas poderíamos. Se quiséssemos de verdade. Poderíamos, sei que<br />

poderíamos, Anna.<br />

Luto por isto por motivos que ainda não entendo. Creio que uma parte de<br />

mim quer que isto conserve certa normalidade. Que mantenha uma das poucas<br />

coisas constantes que tive em minha vida. É seguro, é cômodo, e é o único lugar<br />

que conheci.<br />

—<strong>Bear</strong> —Diz ela, e percebo sua voz pastosa. —<strong>Bear</strong>, a quem trata de<br />

convencer?<br />

«Aos dois» Penso, mas respondo:<br />

—Não sei.<br />

—<strong>Bear</strong>, vou pedir que me faça um favor, ok? —Diz, soluçando abertamente<br />

agora. —Vou lhe pedir algo. Mas tem que me prometer, porque é a única maneira<br />

que conseguiremos . Entende? É a única forma em que poderei seguir em sua vida.<br />

Pode fazer isso por mim, <strong>Bear</strong>?<br />

—Sim. O que seja, Anna. Farei qualquer coisa por você.<br />

—Não volte a me ligar assim. Sempre que falarmos daqui por diante, será<br />

como amigos. Isso não pode ocorrer novamente. Ok?<br />

—Tudo bem. —Eu respiro pesadamente ao telefone. —Mas eu amo você.<br />

—Sei que me ama e isso me alegra.<br />

E eu acredito nela.<br />

—Anna?<br />

—Sim?<br />

—Posso fazer uma pergunta? Não é sobre nós.<br />

—Sim. —Diz imediatamente.<br />

—Por que…por que chamou <strong>Otter</strong> ontem à noite?<br />

Respira fundo e exala devagar.<br />

—Ele foi até sua casa?


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Página122<br />

—Sim.<br />

—Bem. Necessitava um amigo. Sabia que entenderia o que está passando.<br />

Me disse…<br />

Então ela se cala, como se tivesse se arrependido.<br />

—O que lhe disse? —Pergunto, curioso.<br />

Amaldiçoa em voz baixa.<br />

—Ele me contou o que aconteceu em San Diego. Eu liguei para ele,<br />

seguramente parecendo histérica. Quando pude me acalmar o suficiente, me<br />

contou a história.<br />

—Verdade? —Digo, tentando ocultar a surpresa em minha voz.<br />

E será que não sinto a pontada de algo mais? Não se parece estranhamente a<br />

ciúmes? Mas de quem diabos tenho ciúmes?<br />

Ela o percebe em minha voz.<br />

—Não seja assim, <strong>Bear</strong> —Ela me repreende.<br />

Me sobressalto ao ouvir uns golpes leves na janela. Levanto os olhos e vejo<br />

<strong>Otter</strong> olhando com curiosidade para dentro do carro. Me dou conta de que levo<br />

aqui um bom tempo. Digo a Anna que espere um momento e baixo o vidro da<br />

janela.<br />

—Tudo bem? —Pergunta tranquilamente enquanto se inclina.<br />

Seu dedo se aproxima perigosamente do meu braço.<br />

—Sim. —Apresso em responder. —Estou no telefone. Já vou entrar.<br />

Olha para mim com cumplicidade e volta a entrar na casa.<br />

—Desculpa. —Digo quando volto a colocar o telefone no ouvido.<br />

—Era <strong>Otter</strong>? —Pergunta ela, sem que sua voz revele nada.<br />

Agora já não posso lhe mentir.<br />

—Sim. Está fazendo uma lasanha de tofu para <strong>Kid</strong>, e Ty teria me matado se<br />

eu não o tivesse trazido.<br />

—Não parece muito apetitoso.<br />

—Eu que o diga. Pelo menos você não terá que comê-la.<br />

Anna ri e algo se endireita. Talvez não volte a ser como antes, mas perto,<br />

muito perto.<br />

—O que estava dizendo? —Pergunto.<br />

—O quê? Ah, sim. <strong>Otter</strong>. Bem, não sei mais quanto deveria contar a você. Se<br />

tem que ouvi-lo, deveria ser dele. E não tente me obrigar, <strong>Bear</strong>. Conheço você<br />

muito bem e essa é a única razão pela qual estou lhe contando. E, para que saiba,<br />

não lhe contei por que brigamos.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página123<br />

—Eu sei disso.<br />

—Quando terminou de contar seus motivos para voltar, me dei conta de<br />

que ele podia entendê-lo. Mais que a maioria das pessoas. E sabia que necessitava<br />

de alguém com quem falar. Mas também sabia que seguramente não lhe diria<br />

nada. É o que você faz sempre.<br />

—Chorei até adormecer —confesso.<br />

Começa a rir, mas logo fica séria.<br />

—Não guarde isso dentro de você para sempre, <strong>Bear</strong>. Acabará odiando a<br />

sim mesmo se o faz.<br />

—Obrigado. —Digo, desejando que estivesse ao meu lado para que visse<br />

quão sincero sou.<br />

—De nada. Diga a Ty que o amo. Eu vou deixar você ir agora, ok?<br />

Sei que se refere a desligar o telefone, mas há algo mais nessas últimas<br />

palavras que pronuncia, e posso ouvir que espera uma resposta. Eu vasculho<br />

minha cabeça me perguntando se ficou algo para ser dito, qualquer coisa que eu<br />

pense que ela deveria saber. Não me ocorre nada, e isso rompe um pouco mais<br />

meu coração.<br />

—Ok. —Digo com tristeza.<br />

—Adeus, <strong>Bear</strong>.<br />

—Adeus, Anna.<br />

E então ela também vai embora.<br />

Entro na casa com um sentimento pesado. Não me interpretem mal; sei que<br />

não fiz nada, a não ser trazer isso dentro de mim. Normalmente não me deleito em<br />

autopiedade, mas é algo que não fui capaz de fazer durante os últimos três anos. É<br />

uma sensação estranha, alheia. Pensamentos sombrios dão voltas em minha<br />

cabeça, e não faço muita coisa para afugentá-los. Talvez deva ser assim. Talvez seja<br />

o que mereço.<br />

Blablablá.<br />

Ty está sentado sobre o balcão enquanto <strong>Otter</strong> lhe conta uma história. <strong>Kid</strong><br />

não me vê entrar, mas <strong>Otter</strong> sim, me lança um olhar furtivo e pisca rapidamente.<br />

Esboço um sorriso e espero que termine.<br />

—E então. —Diz <strong>Otter</strong>.— Apareceu esse cara e ficou perto de mim na fila do<br />

banco. Lembre-se que a essas alturas eu não estava há muito tempo na Califórnia e<br />

não sabia como atuava as pessoas dali. Então, como sou um cara simpático, o<br />

cumprimentei. Mas pensei que não me ouvia porque usava fones de ouvido e se<br />

balançava ao ritmo da música que escutava, certo?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página124<br />

—Certo. —Diz Ty, embelezado.<br />

—A fila não se movia, mas notei a cabeça daquele cara contra minhas costas,<br />

porque ia se aproximando cada vez mais, até se chocar comigo. Tentei não dar<br />

importância, mas seguiu se chocando contra mim cada vez mais forte. Até que, por<br />

fim, dei a volta e o olhei irritado. Ele parou de se balançar e me devolveu o olhar. E<br />

sabe o que foi que vi?<br />

—O quê? —Exclama Ty com entusiasmo.<br />

—Os fones de ouvido que ouvia... —Diz <strong>Otter</strong>, e faz uma pausa teatral.—<br />

Não estavam conectados a nada. Nem a um iPod, nem a um walkman, nem a<br />

nada. Apenas os fones de ouvido! Viu que eu tinha percebido isso e tentei fazer<br />

uma cara séria, mas ele se inclinou até mim e, sabe o que disse?<br />

Ty está com as mãos na boca, e o ouço sussurrar:<br />

—O que disse, <strong>Otter</strong>?<br />

O rosto de <strong>Otter</strong> se transforma de repente. Ele projeta a mandíbula inferior<br />

para frente, arqueia as sobrancelhas e infla as bochechas. A mudança é assombrosa<br />

e estou a ponto de começar a rir, o que estragaria o relato. <strong>Otter</strong> baixa a voz, e sai<br />

grave e profunda:<br />

—«Eu não necessito de nenhuma caixa de música sofisticada, garoto. Tenho toda a<br />

música que preciso dentro de minha cabeça. É daí de onde saco todos os temas.»<br />

Já não posso me conter mais, a risada sai da minha boca e ressoa na cozinha.<br />

Ty se sobressalta e vira o pescoço, percebendo que sou eu, revira os olhos e<br />

devolve sua atenção a <strong>Otter</strong>. Isto corta meu riso de imediato, porque acabo de ser<br />

repreendido por <strong>Kid</strong> outra vez.<br />

—As pessoas da Califórnia são estranhas, <strong>Otter</strong>. —Diz muito sério. —Me<br />

alegro de ter voltado antes de se tornar estranho também.<br />

<strong>Otter</strong> concorda solenemente com a cabeça.<br />

—Eu também me alegro. Os <strong>Otter</strong>s loucos jamais saberiam preparar uma<br />

lasanha vegetariana.<br />

Ele revolve o cabelo de <strong>Kid</strong> e Ty se vira para olhar para mim.<br />

—<strong>Otter</strong> disse que estava falando ao telefone e por isso demorava tanto. —<br />

<strong>Otter</strong> dá de ombros pedindo desculpas atrás de <strong>Kid</strong>. Ty olha para mim<br />

interrogativamente. —Com quem estava falando, <strong>Bear</strong>?<br />

Me aproximo de <strong>Kid</strong> e subo no balcão no qual está sentado. Coloco um<br />

braço sobre seus ombros, o atraio até mim e lhe beijo o topo de sua cabeça.<br />

—Estava falando com Anna. —Digo com voz baixa.<br />

Assente e olha para <strong>Otter</strong>.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página125<br />

—Anna e <strong>Bear</strong> voltaram a terminar. —Diz com tristeza. —Mas não foi como<br />

das outras vezes. Creio que desta vez foi de verdade.<br />

<strong>Otter</strong> se coloca diante de <strong>Kid</strong>, se inclina para frente e coloca suas mãos sobre<br />

os joelhos.<br />

—Não, eu t<strong>amp</strong>ouco creio que foi como das outras vezes. Mas sabe o que<br />

Anna me disse? —Ty levanta os olhos até ele. —Me disse que ama você, e que não<br />

irá a lugar algum. Não é certo, papai <strong>Bear</strong>?<br />

Olho para ele com gratidão antes de me dirigir a Ty.<br />

—É certo, <strong>Kid</strong>. O fato de que ela e eu não estejamos mais juntos, não<br />

significa que não voltará a vê-la. Ontem à noite me disse que vai se empenhar em<br />

ver você o máximo que puder.<br />

—Não estou triste somente por isso. —Diz <strong>Kid</strong>.<br />

—Bem, por que mais está triste? —Pergunta <strong>Otter</strong>.<br />

<strong>Kid</strong> pensa por um momento antes de responder:<br />

—Estou triste por <strong>Bear</strong>. Não quero que fique sozinho para sempre.<br />

Uma vez mais, o que parece a bilionésima nos últimos anos, algumas<br />

lágrimas quentes escorrem dos meus olhos. <strong>Otter</strong> vem em meu auxílio.<br />

—Como pode estar sozinho? —Exclama. —Ele tem você e eu! Creio que<br />

com isso bastará, não?<br />

—Acho que sim. —Diz <strong>Kid</strong> a <strong>Otter</strong>. —Mas o que acontecerá quando você for<br />

embora, <strong>Otter</strong>? Creed voltará para a faculdade, e você voltará para a Califórnia, e<br />

Anna… Anna terá desaparecido. Papai <strong>Bear</strong> somente terá a mim, e não sei se<br />

poderei fazer isso sozinho.<br />

Não respondo, mas desta vez de propósito. Sim, novamente volto a ficar<br />

sem palavras como uma maldita garota. Sinceramente, não posso acreditar que<br />

uma pessoa tenha tanto líquido em seu corpo, como o que se está brotando do meu<br />

durante os últimos dias. Mas a verdadeira razão pela qual não digo nada é que,<br />

como <strong>Kid</strong>, estou esperando ouvir o que dirá <strong>Otter</strong>. Por mais egoísta que seja, tenho<br />

que ouvir o que vai dizer.<br />

<strong>Otter</strong> se levanta e noto que olha para nós dois sentados diante dele, nos<br />

sentindo como duas crianças perdidas. Me preparo para a resposta que dará,<br />

confiando que, pelo menos, minta pelo bem de Ty (e talvez pelo meu próprio). Não<br />

deveria sobrecarregá-lo com esta responsabilidade, mas estou cansado de levá-la<br />

sozinho.<br />

—Ty —Diz <strong>Otter</strong> por fim.—Não irei a nenhuma parte por muito tempo. E se<br />

o fizer, bem, então, quem sabe… quem sabe você e <strong>Bear</strong> poderão vir comigo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página126<br />

Ty se joga do balcão e <strong>Otter</strong> o agarra habilmente e o levanta em seus braços.<br />

Posso ver que Ty lhe sussurra algo em seu ouvido, <strong>Otter</strong> arregala os olhos, olha<br />

para mim e logo volta a se concentrar em <strong>Kid</strong>. Ty pontua seus sussurros<br />

afundando um dedo no peito de <strong>Otter</strong> e este concorda. <strong>Kid</strong> volta a reclinar-se em<br />

seus braços e diz:<br />

—Promete fazer o que eu disse? Tem que me prometer.<br />

—Prometo. —Responde <strong>Otter</strong>.<br />

Ty fica olhando para ele até estar seguro de que diz a verdade. Então desce<br />

de seus braços.<br />

—<strong>Bear</strong>, posse ver o programa de Anderson Cooper 14 ? —Pergunta, puxando<br />

minha perna.<br />

—Claro, <strong>Kid</strong>. —Lhe digo, e minha voz sai perfeitamente normal.<br />

Saindo como se tivéssemos todos apenas falando sobre o tempo. Ty dispara<br />

a correr para a sala, gritando que o avisemos quando a comida estiver pronta.<br />

<strong>Otter</strong> olha para mim pensativo e vai até a geladeira para pegar duas cervejas e me<br />

passa uma. Abro e engulo a metade com só um gole. Desce ardendo pela garganta<br />

e se instala calorosamente em meu estômago.<br />

<strong>Otter</strong> parece a ponto de dizer algo, mas muda de opinião e começa a tirar os<br />

ingredientes para prepara o jantar de Ty. O observo alguns minutos enquanto<br />

trabalha, em um silêncio perceptível mas não incômodo. O som da televisão chega<br />

até a cozinha, o que indica que qualquer coisa que eu diga agora não será ouvida<br />

por <strong>Kid</strong> na sala. Desço do balcão com um salto e brinco com a t<strong>amp</strong>a da garrafa de<br />

cerveja.<br />

«Ele quer que a gente vá com ele? » —Penso. —«E fazer o quê? Maldito seja,<br />

<strong>Otter</strong>, lhe disse que leve as coisas com calma, pelo amor de Deus! Isso nem sequer será<br />

possível. Como diabos você pode sequer dizer isso sem antes falar comigo? Não é que não<br />

deveria ter dito…»<br />

—<strong>Bear</strong>, já está pensando demais novamente. —Diz <strong>Otter</strong> enquanto lê uma<br />

receita do livro que tem aberto diante dele. —O noto daqui.<br />

Isso me distrai de meus pensamentos, e abro a boca e começo a balbuciar<br />

besteiras. Ele olha para mim, sacode a cabeça e me pede para que pegue a massa<br />

de lasanha da despensa. O faço, sem deixar de balbuciar coisas incoerentes que<br />

deveriam formar negações coerentes, mas parece que não faço outra coisa que<br />

produzir muito ruído com a boca. Lhe passo a massa e a caixa treme. Ele segura a<br />

14<br />

Anderson Hays Cooper é um jornalista e escritor estadunidense, ganhador de um prêmio Emmy na<br />

categoria de jornalismo. Ele é o principal âncora do programa da CNN, Anderson Cooper 360°. E ele é gay.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página127<br />

caixa e minha mão com a sua.<br />

—Chega, <strong>Bear</strong>.<br />

Obedeço.<br />

Tira mais ingredientes da geladeira e os coloca no balcão. Eu termino com<br />

minha coragem líquida e pego outra por cima do seu ombro. Sei que não deveria<br />

beber, mas não me importo.<br />

—E como está Anna? —Pergunta <strong>Otter</strong>, despreocupadamente.<br />

Derramo um pouco de cerveja. Ele me lança um pano e me seco.<br />

—Está bem, suponho.—murmuro.<br />

—Isso é bom. Parecia estar melhor quando terminei de falar com ela ontem<br />

à noite.<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Disse que você a ajudou muito. Disse que… —Vacilo, mas decido jogar<br />

tudo em cima. —Disse que você lhe contou por que decidiu voltar.<br />

Fica rígido só por um segundo, mas ainda assim percebo.<br />

— Ela disse algo sobre isso?<br />

—Não. —Respondo sinceramente. —Disse que quando estivesse preparado,<br />

me contaria.<br />

—É uma boa garota. —Diz. —Lamento que tenham brigado.<br />

Eu rosno.<br />

—Oh, vamos, <strong>Otter</strong>. Não tem que me mimar desse jeito. Não foi só uma<br />

briga, e você sabe disso. Rompemos; terminou. E desta vez é para sempre.<br />

Ele ri discretamente.<br />

—Tem razão, já deveria saber. Mas… não sei. Espero que os dois fiquem<br />

bem.<br />

—Talvez. —Digo. —Na verdade, creio que a partir de agora ela ficará<br />

melhor. Merece muito mais do que eu poderia lhe dar. Não era precisamente o<br />

melhor namorado do mundo.<br />

Ele estremece.<br />

—Eu gostaria que não fizesse isso.<br />

—Fazer o quê? —Pergunto, tomando outro trago de cerveja.<br />

—Ser tão autocrítico. É um vício que adquiriu e que deveria abandonar<br />

logo.<br />

—Sim, senhor. —Zombo dele.<br />

Se volta, cruza os braços sobre o peito e me olha com severidade.<br />

—Falo sério, <strong>Bear</strong>. Já existe gente suficiente aí fora que as alegraria derrubá-


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

lo. Não há nenhuma razão para que o faça você mesmo.<br />

Levanto as mãos em um gesto de rendição.<br />

—Você venceu. —Digo. —Desculpe. De agora em diante, terei um conceito<br />

tão elevado de mim mesmo que você se arrependerá de ter dito isso. —Subo em<br />

uma cadeira e golpeio o peito com arrogância. —Sou incrível. —Acrescento com a<br />

voz mais profunda possível: ― Sou o epítome de um fodido perseverante.<br />

<strong>Otter</strong> revira os olhos e indica a comida com a mão.<br />

—Já terminou? Estava pensando que poderia me ajudar a fazer isso, já que<br />

nunca preparei nada vegetariano em toda a minha vida.<br />

Salto da cadeira, o afasto com um empurrão e baixo a vista para ler a receita.<br />

Sou perfeitamente consciente de que está me observando, e me pergunto o que<br />

deve estar pensando. Me pergunto o que lhe faz querer que a gente vá com ele.<br />

Coro ao perceber o estúpido que pareço.<br />

<strong>Otter</strong> se situa ao meu lado e se inclina sobre o livro de receitas. — Então, Ty<br />

entrou gritando alto que nós teríamos uma festa do pijama<br />

Coro mais ainda.<br />

—Uhm… sim. Insistiu muito nisso. —Digo, e balbuciando, acrescento: —<br />

Deveria ter perguntado. Quer dizer, esta é sua casa, não? Seguramente você tem<br />

seus próprios planos e não necessita que fiquemos aqui todo o tempo. Talvez<br />

deveríamos vir outro dia. Irei buscar Ty e podemos ir…<br />

—Cale a boca, <strong>Bear</strong> —Me interrompe antes que pareça ainda mais idiota. —<br />

Você sabe que podem ficar aqui quando quiserem. Eu gosto de ter… gente. Esta<br />

casa é grande demais para que viva somente uma pessoa nela.<br />

—Oh. Ok.<br />

—Além do mais. —Acrescenta com humor. — Esta manhã disse a Ty que<br />

vocês ficariam aqui. Nós já tínhamos planejado.<br />

Tento lhe dar um pontapé na canela, mas é rápido demais para mim e se<br />

afasta em um pulo, rindo, sempre rindo.<br />

*******<br />

Página128<br />

Para minha surpresa, a lasanha ficou muito boa. Ty se deleitou observando<br />

cada mordida que eu dava. Ele fez uma careta para mim quando lhe disse que<br />

havia colocado um pouco de carne, e se negou a comer mais até que <strong>Otter</strong> o<br />

convenceu de que eu era um «mentiroso e boca grande». Isto fez com que Ty desse


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Página129<br />

gargalhadas até que caiu da cadeira, isso me fez rir e <strong>Otter</strong> resmungou, dizendo<br />

que já não poderia desfrutar nunca mais de um jantar agradável. Ty e eu lhe<br />

mostramos a língua e, então, ele me atirou um pedaço de pão, que ricocheteou em<br />

minha cabeça e derrubou minha cerveja. Ty tentou salvá-la, mas novamente se<br />

deixou levar pela diversão. Esta vez fui eu que fulminei <strong>Otter</strong> com o olhar, mas<br />

este deu de ombros inocentemente e disse que foi merecido por mentir a um garoto<br />

de nove anos. Não me ocorreu nada inteligente para responder e fiquei com a boca<br />

aberta como um peixinho dourado.<br />

<strong>Otter</strong> até havia comprado mais sorvete de soja para <strong>Kid</strong>, então, nos<br />

acomodamos na sala para ver CNN e nos revezarmos para lamber a colher. É sem<br />

dúvida a pior coisa que provei em toda a minha vida, mas não queria receber outro<br />

olhar ameaçador de Ty, de modo que, cada vez que me oferecia um pouco, o<br />

aceitava. <strong>Otter</strong> fazia o mesmo e, em uma ocasião, quando Ty baixou os olhos para a<br />

tigela, <strong>Otter</strong> olhou para mim com cara de nojo, e eu fiz o mesmo. Ambos<br />

começamos a rir e Ty acabou por olhar para mim ameaçadoramente.<br />

Após algum tempo, Ty começou a fechar os olhos e sua cabeça começou a<br />

cair, mas seguiu insistindo que não estava cansado. Logo dormiu na metade de<br />

uma frase, o peguei e o levei para o quarto de Creed. Bocejou quando o fiz colocar<br />

o pijama e escovar os dentes. A ideia de dormir no quarto do tio Creed lhe<br />

provocou um sorriso sonolento. <strong>Otter</strong> entrou, lhe deu boa noite e lhe prometeu<br />

waffles para o café da manhã, com manteiga de amendoim crocante e xarope de<br />

bordo. Beijou <strong>Kid</strong> na testa e saiu pela porta.<br />

Me viro em sua direção e ele sorri feliz.<br />

—Você vai ficar bem aqui? —Pergunto.<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Não irá para casa, não é? Você também vai dormir aqui?<br />

—Sim, <strong>Kid</strong>. Também vou ficar aqui.<br />

—E onde você vai dormir?<br />

Na verdade, não tinha pensado nisso. Talvez por que minha mente esteve<br />

excluindo essa parte durante toda a tarde. Mas a noite está quase no fim, e terei<br />

que pensar em algo logo. Nem sequer trouxe roupa para dormir.<br />

—Não sei, <strong>Kid</strong>. Talvez dormirei no quarto dos pais de Creed.<br />

—Dorme na cama de <strong>Otter</strong>. —Me diz. —Fica nesse corredor e posso<br />

encontrá-lo se precisar.<br />

«Maldito seja!» Penso.<br />

Concordo lentamente com a cabeça.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página130<br />

—Está bem. Mas terei que perguntar a <strong>Otter</strong>.<br />

—Não se importará. Boa noite, papai <strong>Bear</strong>.<br />

—Boa noite, <strong>Kid</strong>.<br />

Me levanto e reduzo a luz ao mínimo. Deixo a porta entreaberta e sigo pelo<br />

corredor, com a cabeça em oito bilhões de lugares ao mesmo tempo.<br />

«Realmente pode ser tão fácil?» —Pergunto a mim mesmo. —«De verdade<br />

poderia ser tão… rápido… me tornar assim? Estive com Anna, por Deus! Transamos e eu<br />

gostei! Ainda estaria com ela se não tivesse…, se não tivesse…»<br />

Bem, se não tivesse beijado <strong>Otter</strong>. É certo que jamais lhe disse essas palavras<br />

em voz alta, mas, acaso não suspeita? Acaso não…<br />

«ele está apaixonado por você?»<br />

… me fez essa pergunta que nenhuma namorada deveria fazer em primeiro<br />

lugar? E por que eu não pude…<br />

«está apaixonado por ele?»<br />

… olhar para ela nos olhos quando a repreendi? Por que disse que eu<br />

mentia? «O que as pessoas veem que eu sou incapaz de ver? Como ela poderia saber<br />

quando eu nem sequer fui capaz de enfrentá-lo? Por que ela iria ser tão rápida a apontar-me<br />

em sua direção?»<br />

Me lembro que tinha quase onze anos quando vi <strong>Otter</strong> se formar no colégio.<br />

Lembro-me daquele verão mais tarde, sentado em seu quarto e sentindo-me mal<br />

humorado enquanto o via recolher suas coisas para ir a universidade. Lembro-me<br />

dele exibindo seu típico sorriso torto e sentando-se na cama junto a mim enquanto<br />

dizia: «Parece que alguém morreu, <strong>Bear</strong>.» Lembro-me que não fui capaz de lhe dizer<br />

que parecia que alguém tivesse morrido porque ele ia embora. Lembro-me de vê-lo<br />

partir em seu carro. Lembro-me da primeira vez que voltou para casa, com os<br />

olhos loucos pelas coisas que nunca saberei. Lembro-me quando saltei em suas<br />

costas na primeira vez que o vi.<br />

Lembro-me quando tinha quatorze anos, acabava de transar com Anna pela<br />

primeira vez e ligar para <strong>Otter</strong> logo em seguida, com a intenção de me vangloriar,<br />

mas, na realidade, queria que me consolasse porque estava morto de medo.<br />

Lembro-me que tinha quinze anos quando vi <strong>Otter</strong> formar-se na universidade.<br />

Recordo que disse: «Dizem que a vida realmente começa agora.» Lembro-me que<br />

começou a rir quando perguntei quem tinha dito isso.<br />

Recordo quando regressou. Lembro que eu tinha dezoito anos quando<br />

minha mãe nos abandonou. Lembro-me que me formei no colégio na presença de<br />

<strong>Otter</strong>. Recordo que me disse que não havia ninguém que pudesse cuidar de Ty


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página131<br />

como eu. Recordo que quis bater nele, mas, em lugar disso, ocorreu algo muito<br />

diferente.<br />

Também me lembro quando foi embora. A isso mais do que tudo, porque<br />

não me ocorre nenhum momento em que ele não tivesse importância em minha<br />

vida. Lembro da raiva e da escuridão que havia sentido. Lembro que fui eu quem o<br />

mandou embora. Lembro que ele disse que ia embora devido à sua influência<br />

sobre mim, mas recordo que para isso sempre se requer dois. Lembro de tantas<br />

coisas; coisas demais.<br />

Estou de pé diante de sua porta. Sei que se entro tudo mudará. Quase sou<br />

capaz de alcançar a maçaneta da porta, e então o faço. Meus dedos tocam o fio<br />

metal da maçaneta, mas me detenho. «Não pode ser assim. Não pode ser tão fácil. Amo<br />

a Anna. Amo a Anna.» Penso. Tento recordar algo, qualquer coisa de Anna, mas<br />

tenho a mente em branco. É como se ele a houvesse apagado. Fecho os olhos com<br />

força e estou a ponto de dar a volta e ir novamente para o quarto de Creed, quando<br />

a porta se abre diante de mim para deixar a luz sair e a <strong>Otter</strong>.<br />

—Olá. —Diz, surpreendido ao ver-me diante de sua porta. —O que está<br />

fazendo?<br />

—Apenas… pensava um pouco —Respondo sem convicção.<br />

<strong>Otter</strong> sacode a cabeça.<br />

—Sempre o faz, papai <strong>Bear</strong>. Não creio que mude nunca. É um dos motivos<br />

pelos quais…<br />

Se interrompe, como se não quisesse seguir.<br />

—É um dos motivos pelos quais o quê? —Pergunto com curiosidade.<br />

—Não importa, <strong>Bear</strong>. Não tem importância. Ei, separei uma roupa para você<br />

dormir. Ali, sobre minha cama.<br />

Passa ao meu lado, entra em seu banheiro e fecha a porta atrás dele.<br />

Me troco apressadamente, não querendo que me encontre em nenhum grau<br />

de nudez quando volte. Me deixou uma calça moletom preta que o vi usar antes. A<br />

coloco e me sinto complexado pelas minhas pernas finas. Passo a camiseta negra<br />

pela cabeça e é duas ou três vezes o meu tamanho. Minha pele se vê pálida em<br />

contraste com o tecido. Esfrego os braços freneticamente quando os pelos ficam<br />

arrepiados. Me sinto como um impostor, uma criança disfarçando-se com a roupa<br />

de um adulto. Penso que tudo isso é um teatro. Não sei quanto mais poderei evitar<br />

isso.<br />

Ele entra no quarto e olha para mim. Sua expressão é inescrutável. Quero<br />

lhe abrir a cabeça e meter-me dentro para averiguar o que pensa quando me olha.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página132<br />

Tenho que saber se sente pena de mim, porque não poderia suportar. Nunca quis<br />

sua compaixão, e certamente não a aceitarei agora.<br />

Ele senta na cama e se alonga. A camiseta branca que usa sobe só um pouco,<br />

mas deixa descoberto quilômetros de pele morena rígida por baixo. Usa uma<br />

bermuda de pijama caído sobre a cintura, e posso ver onde termina o bronzeado e<br />

onde começa a pele branca. Então ele para, e me pergunto o que está fazendo. Me<br />

pergunto se tentará… fazer algo comigo. Me pergunto se essa foi sempre sua<br />

intenção. Desde que eu era um garoto. Me pergunto se é culpa sua que me sinta<br />

tão desconcertado como estou agora. Me pergunto se ele sabe disso e se gaba. Me<br />

invade uma culpa nauseante e tenho que me esforçar ao máximo por não ter um<br />

acesso de ânsia de vômito quando meu estômago se contrai.<br />

«Esse é <strong>Otter</strong>. Ele nunca…»<br />

—Você está bem? —Me pergunta.<br />

Aceno uma vez.<br />

—Bem, isso é bom, eu acho. Preparei para você o quarto de hóspedes ao<br />

lado.<br />

—Ah.—Digo, sentindo-me aliviado, mas incapaz de impedir que pareça<br />

decepcionado.<br />

Ele me olha com uma sobrancelha arqueada.<br />

—Mas… —murmuro. —Eu… pensei…<br />

Faço um gesto com os braços abarcando o quarto, tentando indicar algo ao<br />

nosso redor.<br />

—O que você pensou, <strong>Bear</strong>? —Pergunta, parecendo verdadeiramente<br />

confuso.<br />

—Já sabe… —balbucio. —Que poderia… dormir…<br />

Ele começa a rir.<br />

—Estou brincando com você… —Diz, sorrindo diabolicamente.<br />

Quero lhe dar uma patada no traseiro, mas também quero vomitar porque<br />

estava disposto a ir para o quarto ao lado.<br />

—Não tem graça, <strong>Otter</strong>. —Digo, olhando para ele irritado.<br />

Ele dá de ombros.<br />

—Talvez não tenha agora. Mas você irá rir disso algum dia. Algum dia você<br />

irá rir disso tudo.<br />

Dá a volta, se arrasta pela cama até recostar as costas na cabeceira e olha<br />

para mim com expectativa. Estremeço. Sua cama foi sempre tão pequena? Antes<br />

não era assim. Quase saio disparado do quarto, mas me aproximo dele, atraído por


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página133<br />

alguma força que ainda não posso nomear. Me sinto torpe dentro da roupa grande.<br />

Sou muito branco, sou muito magro. Sou demasiado tudo para que ele queira…<br />

bom, queira o que seja que ele quer. Seus olhos não me deixam em nenhum<br />

momento enquanto me inclino e sento na cama, de costas para ele. Estremeço de<br />

novo e meus dentes começam a baterem. Não posso evitar, meu corpo todo treme<br />

e minhas mãos flexionam incontrolavelmente, aperto a mandíbula, e lhe ordeno<br />

que pare. Uma mão cai sobre minhas costas e por um momento, por uma fração de<br />

segundo, o tremor se intensifica. Mas logo desaparece.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Ouço <strong>Otter</strong> perguntar docemente.<br />

Me volto e me lanço sobre ele. Afundo meu rosto em seu peito. Esta vez não<br />

se sobressalta e coloca suas mãos em meus cabelos, e antes que eu possa evitar lhe<br />

explico o que aconteceu com Anna. Como havia mentido sobre que ele esteve em<br />

minha casa naquela noite, como ela havia me olhado com lágrimas indignadas nos<br />

olhos. Conto que me havia dado a sensação de que lhe havia mandado embora<br />

para que não tivesse que odiar-me nunca. Quando chego a essa parte, pensei que<br />

vacilaria, mas não o faço. <strong>Otter</strong> não me interrompe em nenhum momento, e fico<br />

grato por isso. Lhe disse que ainda não pude confessar a Anna que o havia beijado.<br />

Lhe digo que ela me chamou de mentiroso. Lhe explico tudo; bem, quase tudo.<br />

Quando chego à parte em que Anna me pergunta se ele está apaixonado por mim<br />

ou eu por ele, me detenho. As palavras não querem sair da minha boca, e acho que<br />

por agora está bem. Talvez algum dia poderei lhe dizer como terminou tudo<br />

realmente.<br />

Quando acabei de falar, tenho a garganta seca e me sinto vazio e fraco, como<br />

uma abóbora apodrecendo meses depois do Halloween. Durante minha confissão,<br />

as mãos de <strong>Otter</strong> permaneceram em meus cabelos, acariciando com suavidade. Em<br />

algum momento esfrega minhas bochechas com os polegares, e me envergonho ao<br />

emitir um gemido gutural de deleite. Fico aconchegado contra o seu peito,<br />

querendo saber uma vez mais em que estará pensando.<br />

Finalmente diz:<br />

—Assim, que não bastava assegurar que <strong>Kid</strong> tivesse um bom futuro, mas<br />

pensou em assegurar que eu também tivesse?<br />

Dou de ombros docilmente.<br />

—Soa bastante estúpido quando o diz assim.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz bruscamente desde algum lugar acima de mim. —Soa<br />

estúpido não importa como diga.<br />

Sento-me, irritado.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página134<br />

—Não tinha que ir embora. —Assinalo.<br />

Olha para mim fixamente, com seus grandes braços sobre o peito.<br />

—Você já disse isso várias vezes. —Responde com cautela. —Mas já lhe<br />

expliquei por que o fiz.<br />

—Pois parece que seus motivos não importavam. —Argumento com ar<br />

pensativo.<br />

—Por que diz isso?<br />

—Bem, agora você está aqui. E eu também.<br />

Sacode a cabeça.<br />

—<strong>Bear</strong>, nem sequer sabemos ainda o que isso significa.<br />

—Sei disso, <strong>Otter</strong>. —Digo. —Mas você pode… você pode esperar… até que<br />

eu descubra isso?<br />

Nem sequer sei o que peço, mas escolho não esclarecer sob pena de tornar<br />

isso pior. Estende os braços e me atrai para ele. Fico imóvel contra seu corpo,<br />

aguardando uma resposta. Quero uma resposta agora, antes que termine bancando<br />

o ridículo.<br />

—Como disse antes a Ty. —Sussurra em meu ouvido.—Não irei a nenhuma<br />

parte.<br />

Tento sentar, mas me retém contra seu peito. Quando falo, meus lábios se<br />

movem contra o tecido de sua camiseta. Desde este ponto, posso ver como seu<br />

mamilo direito endurece. Um zumbido obscuro corre pelo meu corpo.<br />

—Você também disse a Ty que iria voltar. Eventualmente.<br />

Não sei terminar o que ele havia dito realmente.<br />

—Siiim.—Diz, alargando a palavra. —Me lembro também que disse outra<br />

coisa, que você parece evitar.<br />

—Claro que a evito, <strong>Otter</strong>. —Respondo indignado. —Por que tinha que<br />

dizer algo assim? Por que tinha que despertar as ilusões de <strong>Kid</strong> desse modo? —«E<br />

por que tinha que despertar as minhas ilusões desse modo?» Penso.<br />

—As ilusões dele? —Repete <strong>Otter</strong>. —Pensa que não estava falando sério?<br />

—Como poderia estar? —Pergunto, tenso.<br />

—Por que não iria poder? —Pergunta, olhando fixamente em meus olhos.<br />

Me afasto.<br />

—<strong>Otter</strong>, não posso fazer as malas e partir sem mais nem menos. Aqui tenho<br />

um emprego, e <strong>Kid</strong> tem a escola, e apenas atrapalharíamos. Além disso, não posso<br />

me dar ao luxo de viver na Califórnia.<br />

—Tenho dinheiro… —Começa a dizer, mas levanto a mão para cortá-lo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página135<br />

—Não quero que tenha que cuidar de nós, <strong>Otter</strong>. Me virei sozinho nestes<br />

últimos anos.<br />

Me sinto um tanto envergonhado do que sugere <strong>Otter</strong>, que nos sustentaria.<br />

Jamais me sentiria bem deixando-o fazer isso. Ainda possuo o meu detestável<br />

orgulho, e não sei se isso é bom ou ruim. Mas sei que não importa.<br />

—E a faculdade? Cedo ou tarde você irá para a universidade, não? Não<br />

poderá ter um emprego a tempo integral, ir para a faculdade e cuidar de Ty.<br />

Retorço minhas mãos.<br />

—Eu vou pensar em alguma coisa.<br />

Ele resmunga.<br />

—Quando Ty se forme?<br />

—Por que se preocupa com isso de repente? —O provoco. —E, além disso,<br />

por que tem que voltar a San Diego? Pensei que havia ocorrido algo ruim. Por isso<br />

está aqui, não?<br />

Me devolve o olhar com os olhos brilhantes.<br />

—Em parte. —Admite com voz apagada. — E talvez seja também porque eu<br />

pensei que deveria tentar compensar os erros do passado.<br />

Estou furioso e não sei por que. Me levanto e começo a andar pelo quarto.<br />

—Então, algo de ruim aconteceu com você, e decide então que tem que<br />

«compensar os erros do passado»? —Digo esta última parte em um tom<br />

debochado, e me arrependeria disso se não estivesse tão furioso. —Deve admitir,<br />

<strong>Otter</strong>, que é uma coincidência assombrosa.<br />

<strong>Otter</strong> se levanta de um salto e se planta diante de mim. Sua presença é<br />

imponente e ameaçadora. Mas eu não me importo. O olho com o cenho franzido e<br />

os braços tensos ao meu lado.<br />

—Por que você faz isso? —Resmunga. —Por que parece sempre empenhado<br />

em afugentar as pessoas?<br />

—Creio que a pergunta que deveríamos fazer... —Respondo com<br />

veemência— É que, se não tivesse passado o que quer que se passou na Califórnia,<br />

você estaria aqui?<br />

Vejo como seu ânimo de luta se evapora. Ele despenca na cama e fica de<br />

costas, com um braço sobre a cabeça e a outra mão golpeando-se suavemente no<br />

estômago. Não posso evitar de perceber, inclusive nesse momento, que sua<br />

camiseta volta a subir e posso ver seu estômago liso e forte. As ondulações que sua<br />

pele forma ali fazem com que minha boca fique seca. Passo do frio ao calor, do céu<br />

ao inferno. Quero seguir brigando, quero seguir desembrulhando este assunto,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página136<br />

mas <strong>Otter</strong> parece tão abatido que não posso. Suspiro e sento na cama junto a ele.<br />

Lhe dou torpemente uns golpes suaves e amistosos em sua perna.<br />

—Você tem razão. —Digo com tristeza. —Dá a impressão de que afugento<br />

todo o mundo.<br />

Ele se levanta e coloca as mãos em seu colo.<br />

—Eu não deveria ter dito isso. —Se lamenta em voz baixa. —Não tenho<br />

nenhum direito de lhe dizer nada.<br />

Reclino cuidadosamente a cabeça sobre seu ombro. Ele relaxa e deixa cair<br />

sua cabeça sobre a minha.<br />

—O que Ty disse quando sussurrou ao seu ouvido? —Pergunto.<br />

<strong>Otter</strong> ri entre dentes.<br />

—Disse que agora tenho que cuidar de você. Que você é um pouco mimado<br />

e que necessita de atenção.<br />

— E você o prometeu?<br />

Levanta a cabeça e olha para mim, surpreendido.<br />

—Claro que sim. Por que não deveria prometer?<br />

Sacudo a cabeça com incredulidade.<br />

—As vezes não entendo você.<br />

—Isso é porque sou misterioso. —Responde com seu sorriso torto.<br />

Lhe dou um soco amistoso no braço. Ele pega a minha mão e entrelaça seus<br />

dedos com os meus. Tem as mãos suaves e fortes. Algo estala dentro de minha<br />

cabeça, como um curto-circuito. Eu nunca antes dei as mãos para um cara desse<br />

jeito. Não com os nossos dedos perfeitamente encaixados. É estranho.<br />

—Não é tão misterioso. —Lhe digo sério.<br />

—Por favor. —Zomba. —Sou um enigma que ainda não pôde decifrar.<br />

Reviro os olhos.<br />

—Não há muito que decifrar aí.<br />

Ele sorri novamente.<br />

—Algum dia sua boca grande vai meter você em um grande problema.<br />

Volta a deitar na cama e me arrasta com ele. Retomamos a posição na qual<br />

estávamos antes: eu sobre seu peito, suas mãos esfregando suavemente em meu<br />

cabelo. Estou adormecendo quando ele fala.<br />

—Não sei o que Anna lhe contou. —Diz com voz suave. —Omiti algumas<br />

partes porque não queria assustá-la por nada. Ela estava muito devastada depois<br />

que vocês brigaram, assim que tentei deixar fora tudo o que se referia a você do<br />

que lhe contei sobre o que sucedeu em San Diego.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página137<br />

—O que quer dizer com «o que se referia a mim»? —Pergunto. —Eu nunca<br />

estive em San Diego.<br />

Noto como nega com a cabeça.<br />

—Vou chegar a isso. Mas antes tem que me deixar contar a minha maneira,<br />

ok? Espere até o final e, então, poderá dizer o que quiser. Prometo.<br />

Concordo, o ouço respirar fundo e em seguida começa a falar.<br />

«Esta história foi bastante adornada. Não sei se ficarão decepcionados quando<br />

termine, porque quando a conto em voz alta, me parece que estou ficando louco. Mas<br />

prometo uma coisa: não omitirei nada, e tudo o que eu disser é a verdade.»<br />

É três anos atrás, nos encontramos em meu apartamento, <strong>Otter</strong> nota que<br />

meus lábios se pousam sobre os seus e, por um momento, se permite ficar<br />

assustado, satisfeito e comovido. Logo se impõe a realidade quando me afasto e<br />

ressoa uma voz dentro de sua cabeça, gritando: «O que está fazendo? Não é mais<br />

que um garoto, e está bêbado! Que diabos está fazendo?» Me vê desabar no sofá,<br />

murmurando palavras que não consegue entender, mas está demasiado congelado<br />

para mover-se. Ainda está bravo comigo por gritar-lhe alguns momentos atrás<br />

quando o incitava a partir. E está horrorizado consigo mesmo por se deixar beijar<br />

assim. Sabe que desejava que isso ocorresse, mas também sabe que sou<br />

heterossexual, e acredita que é culpa sua que eu seja tal como sou. Me ouve deixar<br />

de falar e começar a roncar e, por fim, pode me mover. Sua cabeça lhe diz que se<br />

afaste de mim, mas seu coração não suporta a ideia de partir sem nem se despedir.<br />

Por quê, vocês sabem? Porque já tomou sua decisão; voltará para casa, dormirá<br />

algumas horas e fará as malas, e amanhã a estas horas estará na Califórnia a<br />

caminho de um lugar novo. Mas antes de partir tem que me ver pela última vez.<br />

Coloca os braços debaixo de meu corpo e me levanta como se fosse uma criança. Se<br />

surpreende o fácil que resulta levantar-me, o quão bem encaixo em seus braços.<br />

Então, rompe um pouco mais seu coração e sabe que estará condenado diante dos<br />

meus olhos por partir, mas não vê nenhuma alternativa.<br />

Me movo um pouco em seus braços e me aperto contra seu peito. Me leva<br />

em silêncio até meu quarto, onde Ty está dormindo. Me coloca suavemente em<br />

minha cama e me cobre até o pescoço. Senta por um momento na cama, afasta o<br />

cabelo do meu rosto e toca minha bochecha. Nesse momento acredita que não viu<br />

nunca ninguém mais lindo que eu. Se torna cada vez mais difícil partir, e não<br />

deseja outra coisa que se deitar comigo e enfrentar as consequências quando<br />

chegue a manhã. Mas não pode, porque tem que me proteger dele mesmo. Por<br />

último se levanta, se aproxima de Ty e pensa: «Cuide de papai <strong>Bear</strong>, ok? Você


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página138<br />

cuida dele e ele cuidará de você. Está nas melhores mãos que poderia esperar.»<br />

Beija com delicadeza <strong>Kid</strong> na testa e trata de reprimir as repentinas lágrimas. Tem<br />

que controlar-se, pelo menos, até que chegue ao carro.<br />

Se volta para mim e me observa dormir por um momento mais antes de se<br />

ajoelhar junto a cama e fazer algo que não fez em muito tempo: rezar.<br />

«Por favor, Deus. Eu rogo que cuide desses dois. Sabe, Deus? Nesse<br />

momento não posso fazê-lo. Quero, mas não posso. Tenho que deixá-los, e sei que<br />

não será fácil para nenhum de nós, mas se puder vigiar de perto a <strong>Bear</strong> e Ty, o<br />

agradecerei mais do que imagina.»<br />

Se sente um pouco ridículo falando assim com Deus, sabendo que ainda que<br />

exista um Deus, não aceita pedidos pessoais. Não sabe que outra coisa fazer. Se<br />

inclina sobre mim e sussurra ao meu ouvido: «Sinto muito. Espero que algum dia<br />

possa me perdoar.» Quer dizer mais, muito mais, mas não o faz porque pensa que<br />

não importará. Me roça a testa com os lábios. Se levanta e não olha para trás,<br />

sabendo que se o faz, perderá todo seu domínio.<br />

No caminho de volta, soluça sem poder controlar-se. Finalmente chega em<br />

casa.<br />

Acorda depois de algum tempo. Lá fora ainda está escuro. Recolhe o que<br />

pode e mete tudo rápido e silenciosamente em seu carro. Somente pega o que<br />

necessita para sobreviver por agora, sabendo que se precisar de algo mais, pode<br />

comprar ou mandar buscar suas coisas. Quando termina já é de dia e há pessoas<br />

rondando pela casa. Creed desce as escadas, esfregando os olhos de sono, e fica<br />

gelado quando vê a <strong>Otter</strong> carregando o carro.<br />

—Quê diabos está fazendo? —Lhe pergunta Creed com receio. —De quem é<br />

a roupa que está vestindo?<br />

<strong>Otter</strong> trata de atuar com indiferença, mas por fora ele está suando e por<br />

dentro ele está trovejando.<br />

—O que parece que faço? —Diz. —Estou partindo.<br />

—Você vai embora? —Creed quase grita. —Para onde você vai?<br />

—Aceitei esse emprego em San Diego, Creed. E abaixe a voz.<br />

Não olha para seu irmão porque sabe que não poderá suportar a reprovação<br />

em seus olhos.<br />

—Me havia dito que tinha recusado. —Replica Creed acusadoramente. —<br />

Por que diabos você vai se recusou a proposta?<br />

E isso é o que <strong>Otter</strong> disse a Creed, porque é o que havia feito. Sabem?<br />

Quando <strong>Otter</strong> descobriu que minha mãe nos havia abandonado, recusou o


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página139<br />

trabalho no dia seguinte sem duvidar. Pensava que seu lugar era a meu lado e que,<br />

então, eu o necessitava mais que nunca. Mas como sabia que o único que fazia era<br />

confundir-me mais, lhe pareceu que o melhor era colocar a maior distância entre<br />

nós. Chamaria ao estúdio no caminho, para averiguar se o emprego ainda estava<br />

disponível. Se não, conseguirá outro. É capaz. Tem um diploma. O conseguirá. De<br />

algum modo.<br />

—É melhor assim. —Diz a Creed.<br />

—Como assim é melhor? —grita Creed, perdendo o controle. —Como pôde<br />

olhar para <strong>Kid</strong> e prometer-lhe que ficará aqui e vira as costas e vai embora? Ele<br />

nunca mais confiará em ninguém, e será por sua fodida culpa!<br />

<strong>Otter</strong> não diz nada, só porque teme que Creed tenha razão. Mas isso não o<br />

convence. Acredita que é o melhor para mim e para <strong>Kid</strong>. De fato, somente pensa<br />

em mim, e isso o envergonha ainda mais. Não quer outra coisa do que poder ser<br />

sincero com alguém. Quer explicar-lhe como se sente. Mas não pode ser Creed. Já<br />

imagina como será essa conversa, falando a seu irmão de todas as coisas que deseja<br />

poder fazer por mim, comigo, para mim. Não acredita que esta conversa seja muito<br />

boa.<br />

Como se adivinhasse o que lhe passa pela cabeça, Creed esbraveja:<br />

—E quanto a <strong>Bear</strong>? Está disposto a abandoná-lo como fez sua mãe? Que<br />

classe de puta é você, <strong>Otter</strong>? Quem pensa que é?<br />

—É melhor assim. —é tudo o que pode dizer.<br />

O alvoroço faz com que seus pais desçam, e tudo volta a começar. Ao final,<br />

seu pai tinha linhas duras em seu rosto, e sua mãe estava chorando e Creed nem se<br />

quer se digna a olhar para ele. Pensa que é assim que lembrará de sua família, sem<br />

saber o porquê, isso cimenta ainda mais sua decisão. Se coloca torpemente em<br />

frente a eles, esperando que alguém dissesse algo mais, pelo visto não resta nada<br />

mas a ser dito. Se despede de sua mãe e de seu pai, que lhe deixam ir a<br />

contragosto. Quando se aproxima de Creed, o ódio que vê em seus olhos quase lhe<br />

faz retroceder. O abraça e lhe sussurra ao ouvido: «Você tem que olhar por eles,<br />

ok? Você tem que fazer porque eu não posso.» Pensa que se acabou quando Creed<br />

se afasta dele, cospe em seus sapatos, dá a volta e vai embora. Ele fica olhando<br />

como um bobo a saliva coagulada. Não diz nenhuma palavra mais a ninguém, dá<br />

meia volta e vai embora.<br />

Quase está fora de Seafare quando de repente sente náuseas. Se apressa a<br />

parar o carro no acostamento e vomita, vomita até que não reste nada dentro.<br />

Enquanto esvazia o conteúdo de seu estômago somente pode pensar em mim, se


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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perguntando se já estarei acordado ou se Creed me ligou. Não sabe que Creed está<br />

muito chateado para poder dizer algo, nem que eu não acordarei até meia hora<br />

mais tarde. Ele limpa a saliva que escorre de seus lábios, volta para o carro e vai<br />

embora.<br />

O trajeto leva dois dias, e <strong>Otter</strong> passa por várias fases de ira, remorso,<br />

negação. Mas, principalmente ele revive dentro de sua cabeça o beijo uma e outra<br />

vez. No motel de Redding, Califórnia, se masturba pensando no contato dos<br />

nossos lábios. Se masturba pensando no que nunca será. Antes de gozar, sussurra:<br />

«<strong>Bear</strong>», e em seguida o orgasmo começa nos dedos de seus pés e percorre todo o<br />

corpo. Grita e fecha os olhos, e o único que vê é a mim. É como se eu o enfeitiçasse<br />

e nenhum exorcismo pudesse livrá-lo de mim.<br />

Chega a San Diego e se hospeda na casa de um amigo que conhece da<br />

universidade. Entra em contato com o estúdio e tem sorte: a vaga ainda está<br />

disponível. Parecem estranhar receber notícias suas e estranham ainda mais<br />

quando diz que está na cidade. Lhe oferecem o emprego e dizem que se apresente<br />

no dia seguinte para formalizar os papéis. Seus amigos querem sair e lhe<br />

oferecerem um festa de boas-vindas, mas ele recusa dizendo que tem que começar<br />

a procurar apartamento. Concordam e lhe fazem algumas sugestões, e mais tarde,<br />

quando está sozinho, no escuro, estendido no sofá, tentando dormir, pega seu<br />

celular, seleciona meu número e tenta ligar para mim. Fica olhando para o celular<br />

durante o que pareceram horas, mas não consegue reunir a coragem suficiente.<br />

Nem sequer sabia o que diria se eu atendesse. Suspira e desliga o celular.<br />

Transcorrem algumas semanas. Nesse tempo, <strong>Otter</strong> encontra um bonito<br />

apartamento, começa a trabalhar e conhece gente nova e interessante. Compra um<br />

Jeep oferecendo seu Chrysler como parte do pagamento. Descobre que em seu<br />

bonito apartamento tem baratas. Se bronzea. Vai a um bar gay. Transa com alguém<br />

que se parece comigo. Se sente culpado. Faz uma sessão fotográfica para uma<br />

revista. Fotografa absolutamente de tudo. Faz novos amigos. Viaja em uma<br />

excursão. Corre. Anda. Faz todas estas coisas e elas o convertem na pessoa que está<br />

se transformando, mas não deixa de pensar em mim. Uma noite reúne a coragem<br />

suficiente e marca meu número. Seu coração lateja, seu sangue ferve, o telefone<br />

chama e vai para o correio de voz. Admite que não deveria ter esperado outra<br />

coisa, mas se surpreende com o agradável que era ouvir minha voz, nem que seja<br />

na mensagem de voz. Volta a ligar, sabendo que não responderei. «Você ligou para o<br />

celular de <strong>Bear</strong>. Agora não posso atender; Deixe seu recado que tentarei ligar mais tarde.<br />

Mas seguramente esquecerei. Até logo». Ele balança para frente e para trás.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página141<br />

Alguns dias depois, Creed liga para ele. É a primeira vez que falam desde<br />

que partiu. Creed ainda continua aborrecido, mas está mais disposto a falar agora<br />

que já passou cerca de um mês. Falam sobre San Diego, sobre o trabalho de <strong>Otter</strong> e<br />

as pessoas que conheceu. Creed conta a ele seus planos de entrar para a faculdade<br />

em outono e os últimos preparativos que está fazendo. Falam durante alguns<br />

minutos mais até que se produz um silêncio na conversa e ambos se esquivam do<br />

tema que fica por mencionar. <strong>Otter</strong> é o primeiro a ceder, e só porque é como uma<br />

coceira em sua cabeça que lhe implora por alívio.<br />

—Como está Ty? —Pergunta despreocupadamente com voz inexpressiva.<br />

—Bem, eu acho. —Responde Creed. —Na realidade, não o tenho visto<br />

desde que você partiu.<br />

—Ah, não? Por quê?<br />

Creed suspira.<br />

—Não liguei para brigar com você.<br />

Isto pega <strong>Otter</strong> desprevenido.<br />

—Não pensaria isso. —Diz, confuso. —Por que teríamos que brigar?<br />

Simplesmente perguntei por que não tem visto Ty.<br />

Creed suspira de novo.<br />

—Por isso nós brigaríamos. —Diz com voz mais apagada. —Não tenho visto<br />

muito <strong>Kid</strong> nem a <strong>Bear</strong> porque nesse momento estão muito perdidos. Você<br />

prejudicou muito a <strong>Kid</strong>, <strong>Otter</strong>. Agora se assusta com tudo.<br />

<strong>Otter</strong> respira entrecortadamente.<br />

—E <strong>Bear</strong>... —Continua Creed. —<strong>Otter</strong>, <strong>Bear</strong> nunca reconhecerá isso, mas sei<br />

que a sua partida o afetou mais que o desaparecimento de sua mãe. Continua<br />

fingindo que tudo está bem, mas o conheço demais para engolir suas besteiras. É<br />

como se uma parte dele tivesse morrido. Deveria tentar ligar para ele.<br />

—Eu liguei! —Exclama <strong>Otter</strong>, surpreendido pelo grito. —Eu liguei e ele não<br />

atendeu!<br />

—E você pode culpá-lo por isso?<br />

<strong>Otter</strong> não o culpa. Falam por algum tempo mais, mas não sobre Ty nem de<br />

mim. Quando Creed desliga o telefone, <strong>Otter</strong> lança o seu para a outra ponta do<br />

quarto e desaba sobre a cama. Acaba dormindo e sonha, e em seu sonho estou de<br />

pé junto a ele e se sente afortunado, mas é como se fosse um fantasma, porque faça<br />

o que faça ou diga o que diga, eu não respondo. Se desperta sozinho.<br />

Agora que estabeleceu contato com Creed, considera que já pode voltar a<br />

ligar para sua família. Durante os seguintes meses ele tenta fazer as pazes. Ele


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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conversa com seus pais, que se alegram em ter notícias dele. Fala de seu trabalho,<br />

das celebridades que conheceu, das festas as quais é convidado. Não lhe<br />

perguntam se conheceu alguém e ele t<strong>amp</strong>ouco o menciona. Sua condição de gay<br />

sempre levava a conversas incômodas e não quer ter uma naquele momento.<br />

Acredita que é melhor não dizer nada. Eles parecem estar de acordo com isso. Ele<br />

ama seus pais e eles o amam, mas acredita que esse amor não fará nada mais por<br />

todos eles.<br />

Liga para Anna, que lhe diz de antemão que, se ele está ligando para tentar<br />

obter informações sobre mim, ele pode esquecer. Diz que estou muito magoado<br />

com ele, mas que se quer saber algo mais terá que ligar pessoalmente para mim.<br />

Ele não lhe diz que tentou ligar muitas vezes. Não lhe diz que é quase um ritual<br />

diário ouvir meu correio de voz. Não lhe diz que sonha comigo quase cada noite, e<br />

nesse beijo, esse beijo que não deveria ter acontecido e que durou somente uns<br />

segundos, mas que ainda aquece seu coração cada vez que pensa nele. Não lhe<br />

conta nada disso, mas quando ela pergunta por que parece tão triste, responde sem<br />

pensar: «Creio que perdi minha única oportunidade de ser feliz.» Isto o desalenta<br />

ainda mais, e mesmo que Anna lhe pergunte a que se refere, <strong>Otter</strong> se nega a dizer e<br />

muda de assunto.<br />

Após despedir-se de Anna, entra em seu quarto, se senta na beirada da<br />

cama e contempla a fotografia que descansa sobre sua mesa de cabeceira. É uma<br />

foto colorida <strong>amp</strong>liada dentro de uma cara moldura. É a única foto que tem em seu<br />

apartamento. Foi tirado no outono do ano passado. Uma grande tempestade se<br />

aproximava vinda do oceano. <strong>Otter</strong> havia ido com Creed e comigo à praia para vêla<br />

se aproximando. Creed havia regressado correndo para o carro para pegar sua<br />

jaqueta e eu havia ficado de pé entre <strong>Otter</strong> e o oceano. O céu era uma estranha<br />

superfície borrada de cor alaranjada, verde, azul e negra, meus cabelos se agitavam<br />

ao vento e tinha um <strong>amp</strong>lo sorriso no rosto. Me viro para olhar a <strong>Otter</strong>, e justo<br />

quando meus olhos o encontram, tira a foto. É a mesma que contempla agora.<br />

Alguns dias depois fala com Ty. Anna está cuidando dele enquanto estou<br />

trabalhando. No início <strong>Kid</strong> se mostra vacilante e receoso de falar com <strong>Otter</strong>. Isto<br />

lhe entristece, mas sabe que o único culpado é ele. Então diz algo que faz <strong>Kid</strong> rir, e<br />

a tensão desaparece e Ty não demora muito para conversar alegremente de tudo.<br />

<strong>Otter</strong> deixa que fale sem parar e fecha os olhos, contente de ouvir a voz de <strong>Kid</strong>. Por<br />

último lhe pede para falar com Anna. Ty lhe diz que Anna saiu da sala, de modo<br />

que terá que ir buscá-la. Antes que possa evitar, diz a <strong>Kid</strong> que espere e lhe<br />

pergunta por mim.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página143<br />

—Está muito triste. —Diz <strong>Kid</strong> em voz baixa. —Mas é um segredo.<br />

—A que se refere? —Pergunta <strong>Otter</strong>.<br />

—Está sempre triste, mas não quer que ninguém o saiba. Nem sequer quer<br />

que eu saiba, mas eu sei. Eu gostaria que não estivesse triste, <strong>Otter</strong>.<br />

<strong>Otter</strong> cobre seus olhos.<br />

Passam os meses. Trabalha. Joga. Bebe. Come. Transa. Gosta de seu<br />

trabalho. Detesta seu trabalho. Está contente. Está triste. Acredita que está<br />

enlouquecendo. Acredita que nunca esteve tão lúcido.<br />

Aquele primeiro natal não foi para casa porque não se considerava<br />

preparado. Deixou de ligar tão frequentemente para mim. Agora só o faz para<br />

recordar como é minha voz. As vezes olha para a foto junto a sua cama. Às vezes a<br />

coloca em uma caixa e a deixa ali durante dias. O natal chega e passa. Ano novo<br />

chega e passa. Brinda pelo futuro com seus amigos e todos anunciam seus bons<br />

propósitos. Quando chega a sua vez, inventa um monte de besteira sobre não<br />

beber tanto, ao que todos respondem levantando seus copos e rindo, mas por<br />

dentro decide esquecer de mim, seguir com sua vida. Diz a si mesmo que não há<br />

necessidade de suspirar por um garoto, e ainda que uma voz o repreenda por isso,<br />

sabendo perfeitamente que eu não sou só um «garoto», sua determinação é firme, e<br />

compreende que é o único caminho.<br />

Um dia de junho, se surpreende ao comprovar que já leva mais de um ano<br />

ali.<br />

De repente é o Dia do Trabalho, e participa de um churrasco na casa de um<br />

de seus clientes. Se diverte, mas está um pouco entediado. Se dispõe a se despedir<br />

quando a anfitriã lhe apresenta a alguém. <strong>Otter</strong> está sentado e quando se levanta,<br />

se encontra diante de um garoto muito lindo. Se chama Jonah, é alto e robusto, tem<br />

o cabelo negro e os olhos azuis e dispõe de uma casa própria. Acontece que ele tem<br />

trinta anos e trabalha em uma agência de publicidade. Possui um cachorro<br />

labrador de cor chocolate, chamado Moxie e gosta de andar de moto. É muito<br />

inteligente e bonito. E passam o resto da festa conversando.<br />

Eles têm seu primeiro encontro alguns dias depois.<br />

No dia 23 de dezembro <strong>Otter</strong> leva Jonah ao aeroporto, pois viaja para o leste<br />

para passar as férias de fim de ano.<br />

—Tem certeza que ficará bem aqui sozinho? —Lhe pergunta Jonah.<br />

<strong>Otter</strong> dá de ombros.<br />

—Não será tão mal. Tenho que terminar algumas impressões, e prometi a<br />

alguns amigos que iria jantar com eles em sua casa.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página144<br />

Jonah se mostra preocupado.<br />

—Mas porque você não vai para sua casa? Tenho certeza que sua família irá<br />

gostar de ver você. E poderia entrar em contato com seu amigo. Como se chama?<br />

Tiger?<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz <strong>Otter</strong>.<br />

De repente quer voltar para casa e olhar para a fotografia. Ele a transportou<br />

da mesa de cabeceira para o armário, porque não acreditava que Jonah entendesse.<br />

Não contou a Jonah o que passou entre ele e eu e não acredita que possa fazê-lo<br />

algum dia. Sabe que, com o tempo, poderá amar a Jonah. Acredita de verdade.<br />

—<strong>Bear</strong>, então. —Diz Jonah, movendo a mão com um gesto de desdém, que<br />

irrita a <strong>Otter</strong>. —Deveria ver a todos. Afinal é natal.<br />

Fica observando Jonah enquanto entra no terminal, quando decide que ele<br />

tem razão. Já está muito tempo longe. Volta para casa precipitadamente e compra<br />

uma passagem de avião online. É cara e não sai até o dia de natal, mas vale a pena.<br />

Pega minha foto do armário, se senta no chão e fica olhando até que o peso que<br />

sempre faz ninho em seu coração volta, só um pouco. Se sente como se enganasse<br />

Jonah, mas não pode evitar. Estar com Jonah o fez sentir-se como se enganasse a<br />

mim, ainda que eu nunca tenha sido seu. Se vê a si mesmo como um monstro.<br />

Enquanto dirige até o aeroporto, lhe invade um entusiasmo nervoso.<br />

Quando está no avião, lhe invade um pavor silencioso. Quando o avião aterrissa<br />

lhe invade grandes doses de pânico. Enquanto conduz o carro de aluguel, está<br />

aterrorizado completamente. Quando entra na garagem e vê meu carro, está a<br />

ponto de desmaiar. Quando abre a porta da cozinha e me vê sozinho, tem a<br />

impressão de que eu o estava esperando. Não pôde evitar sorrir. Não vacila. Solta<br />

sua mala, corre para mim e me abraça pelo pescoço. Inala e sente meu corpo contra<br />

o seu e nota que meus braços começam a subir ao seu redor. Já está começando a<br />

pensar em voltar e não entende por que diabos me deixou. Sabe que ainda saio<br />

com Anna, e sabe que nunca me terá como ele queria, mas pelo menos pode estar<br />

perto de mim. Acredita que tudo ficará bem. Então me afasto dele, sente como se<br />

lhe houvesse dado um pontapé em suas bolas e não sabe o que fazer.<br />

Me segue até a sala e tenta pensar em algo para dizer. E quando encontra<br />

algo espirituoso para dizer, já está na sala e ali estão seus pais, felizmente<br />

surpresos, para abraça-lo. Creed se levanta e lhe dá alegremente uns golpes leves<br />

nas costas. Ty salta para cima, <strong>Otter</strong> o agarra com os braços estendidos e o roda à<br />

sua volta. <strong>Otter</strong> olha para mim, mas eu não olho de volta. Tenho a mandíbula<br />

apertada e a testa franzida, me passam coisas demais pela cabeça, e ele não pode


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página145<br />

concentrar-se com claridade. Durante toda a noite me faz perguntas que eu ignoro<br />

ou respondo a qualquer outro. Ao final ele para e fica apenas olhando para mim.<br />

Ninguém nota nada de estranho. <strong>Otter</strong> acredita que é culpa sua que eu tenha me<br />

tornado tão frio. É por culpa sua que eu tenha mudado.<br />

Ao longo da semana a sensação é de estar em cima de uma montanha russa<br />

sem poder descer. Pela manhã se desperta convencido de que esse vai ser o dia que<br />

poderá me ver. À noite vai deitar desanimado. A manhã chega e tudo começa<br />

novamente. Vê Anna quando vai à sua casa e está contentíssimo de ver Ty com ela.<br />

Espera com expectativa que eu apareça, mas não o faço. Naquele momento ainda<br />

não sabe que não voltará a me ver durante um ano e meio mais.<br />

Dois dias depois fala com Jonah por telefone. Jonah se alegra de que <strong>Otter</strong><br />

decidiu ir a casa para passar o final de ano. Jonah lhe diz que morre de vontade de<br />

vê-lo. <strong>Otter</strong> lhe responde que em Seafare faz frio e chove. Jonah lhe confessa o<br />

quanto sente sua falta. <strong>Otter</strong> lhe fala de um filme que quer ver quando voltar.<br />

Jonah anuncia que lhe comprou um presente de natal que lhe agradará. <strong>Otter</strong> se<br />

dispõe a dizer-lhe que tem que desligar, mas se detém. Pensa novamente que<br />

poderá amar a esse homem se lhe der uma oportunidade. Acredita que poderia<br />

encontrar uma aparente felicidade se o permitir. Tenta voltar sua atenção para a<br />

conversa, mas está cansado e seu coração não está ali. Jonah percebe algo em sua<br />

voz e lhe pergunta a respeito.<br />

—Não é nada. Só estou cansado. —Diz <strong>Otter</strong>.<br />

Agora ele tem uma dor de cabeça.<br />

—Você pôde ver seu amigo? —Pergunta Jonah. —O que vive com o garoto?<br />

—O quê? Ah, sim. O vi. Faz alguns dias. — Responde <strong>Otter</strong>, desejando que<br />

Jonah deixasse de falar.<br />

—Como está?<br />

—Bem. Ele está bem.<br />

E eu estou, e ele sabe disso, e isso lhe dói. Não porque quisesse me ver<br />

sofrer, mas porque não pode atribuir a si mesmo nenhum mérito de minha<br />

situação atual. Afinal, foi ele quem fugiu.<br />

—<strong>Otter</strong>? —Pergunta Jonah. —Você…? —Vacila— Você chegou a sair com<br />

ele?<br />

<strong>Otter</strong> começa a rir com aspereza.<br />

—Não. Ele é hetero. Por que pergunta?<br />

—Não sei. Cada vez que você fala dele possui um tom estranho na voz e eu<br />

apenas pensei nisso.


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Página146<br />

Jonah parece aliviado, e a <strong>Otter</strong> lhe parece estranho. Mas abre a boca e de<br />

repente se surpreende a ponto de lhe explicar o que ocorreu entre nós. Pronuncia a<br />

primeira palavra, mas logo se detém. Ele pisca, confuso. Por que parou? Por que<br />

começou? Ele acha que não vai contar a Jonah agora porque ainda não confia nele<br />

completamente. Ele acha que não vai dizer nada, porque não importa. Mas, no<br />

fundo, sabe a verdadeira razão. Não dirá a Jonah porque é um segredo, nosso<br />

segredo, e para <strong>Otter</strong> isso é quase doentiamente romântico.<br />

Chega o dia em que <strong>Otter</strong> deve voltar para casa. Está esgotado porque<br />

passou toda a noite anterior tentando escrever uma carta para mim. Há distintas<br />

versões, algumas são folhas e folhas de divagações e outras são uma frase. Nada<br />

parece dar certo. Por fim, consegue algo que lhe deixa satisfeito. Não é perfeito,<br />

mas não quer que soe confuso. Diz:<br />

Sei que estava ferido e que tem bons motivos para estar magoado, mas quero que<br />

saiba que não passou um só dia sem que eu não tenha pensado em você e no Ty. Quem sabe<br />

isso seja meu castigo, saber que está bem e que eu não tive nada a ver com isso. Se isso serve<br />

para algo, estou orgulhoso de você por tê-lo feito tão bem, apesar de que algumas pessoas<br />

tenham quebrado as promessas que lhe fizeram.<br />

Foi muito bom te ver, mesmo que só por um momento. Me alegro de que eu tenha<br />

pelo menos isso. Sinto sua falta, papai <strong>Bear</strong>.<br />

Acredita que diz tudo o que queria expressar. Acredita que diz tudo o que<br />

ele pode dizer. Acredita que parece uma carta de amor. Acredita que escreveu<br />

demais. Acredita que não escreveu o suficiente. Acredita que isso soa estúpido.<br />

Acredita que nunca será lida.<br />

Acredita que parece uma despedida.<br />

Leva Ty para casa. Parte dele queria chegar muito mais cedo para poder<br />

subir e forçar-me a falar com ele. Não o faz, temendo o que eu diria, temendo o que<br />

diria ele. Disse a si mesmo que não faria isso, não diante de Ty. Assim, ele espera,<br />

saindo tarde o bastante para dar-lhe tempo de deixar Ty e chegar ao aeroporto.<br />

Observa Ty enquanto sobe as escadas, levanta o limpador de para-brisa do meu<br />

carro e deixa ali a carta. Se detém por um momento, desejando que eu abrisse a<br />

porta de repente, descesse as escadas e me arrojasse em seus braços, dizendo: «Por<br />

favor, <strong>Otter</strong>. Por favor, não me deixe novamente. Fique comigo e prometa-me que não irá<br />

embora nunca mais.» Sacode a cabeça, entra em seu carro e vai embora. Devolve o<br />

carro na agência de aluguel de veículos. Entra no avião. Este decola. Logo aterrissa.<br />

Desce do avião. Lá fora faz sol.<br />

Oito dias depois, ele e Jonah têm a sua primeira briga. Eles tiveram algumas<br />

brigas mesquinhas nos últimos meses, mas sempre resolvem logo. <strong>Otter</strong> está em


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página147<br />

seu quarto, contemplando minha foto, maldizendo-se por ser tão fraco. Desde que<br />

voltou de Oregon, essa antiga tristeza, tão conhecida, voltou ainda mais<br />

predominante. Passou a última semana alternando entre quente e frio. Volta a<br />

suspirar e não ouve a porta principal se abrir. Não ouve Jonah até que já está em<br />

seu quarto. Se sobressalta quando Jonah diz seu nome e sente seu rosto corar<br />

enquanto tenta apressadamente colocar a foto no armário.<br />

—O que você está fazendo? —Pergunta Jonah. —Por que você está sentado<br />

no chão?<br />

<strong>Otter</strong> se levanta e tenta sorrir, mas soa falso.<br />

—Nada. Só estava olhando… coisas. O que faz aqui?<br />

Jonah dá de ombros.<br />

—Saí mais cedo e queria saber se tinha fome. Tentei ligar para você, mas<br />

não atendeu. A porta estava aberta quando cheguei. Que foto é essa?<br />

—Não é nada.<br />

—Tem certeza? —Pergunta Jonah com voz preocupada. —Parece chateado.<br />

—Vamos comer. —Propõe <strong>Otter</strong>, evitando o olhar de Jonah. Fecha a porta<br />

do armário e dá a Jonah um fugaz beijo nos lábios. —Me dê alguns minutos para<br />

me lavar.<br />

Passa ao seu lado, entra no banheiro e fecha a porta. Se olha no espelho.<br />

Tem o rosto pálido e os olhos injetados de sangue. Diz a si mesmo que tem que<br />

organizar a sua vida. Que deve amadurecer. Lava o rosto. Escova os dentes.<br />

Penteia o cabelo. Quando termina tem um melhor aspecto, mas não se sente<br />

melhor.<br />

Sai do banheiro e fica gelado quando vê Jonah de pé de frente a seu armário.<br />

A porta está aberta e tem a minha foto em suas mãos. Então, uma sensação<br />

sombria se apodera de <strong>Otter</strong> ao ver a foto em poder de outro. É um sentimento de<br />

ciúmes, de possessividade. Quase avança sobre Jonah quando lhe arrebata a foto<br />

de suas surpreendidas mãos. Jonah retrocede ao ver a expressão de <strong>Otter</strong>.<br />

—Não toque nisso. —Rosna <strong>Otter</strong>.<br />

—Quem é esse? —Pergunta Jonah. —Por que parecia sentir-se tão culpado<br />

quando entrei?<br />

—Não é da sua conta quem seja! —Lhe grita <strong>Otter</strong>. —E eu não me sentia<br />

culpado!<br />

Jonah cruza os braços e se planta desafiante diante de <strong>Otter</strong>.<br />

—Se comportou como se eu fosse sua mãe e acabasse de pegá-lo se<br />

masturbando! —Diz irritado. —Entro e encontro meu namorado olhando a foto de


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Página148<br />

outro cara e logo trata de escondê-la!<br />

<strong>Otter</strong> está furioso.<br />

—Eu não tentava esconder nada!<br />

Jonah nega com a cabeça.<br />

—Desde que voltou de Oregon tem se comportado como se alguém tivesse<br />

morto. O que diabos aconteceu com você ali? Tem a ver com ele? —Pergunta,<br />

pegando a foto das mãos de <strong>Otter</strong>.<br />

Jonah ignora quão perto está de ser nocauteado. O primeiro instinto de<br />

<strong>Otter</strong> é lhe dar um soco na cara de Jonah. Levanta o braço na metade do caminho e<br />

está a ponto de dar um impulso para trás quando se detém. «Não posso fazer isso.»<br />

—Pensa, horrorizado pelo seu braço levantado. —«Não sou esse tipo de pessoa. Que<br />

diabos estou fazendo?» Deixa cair o braço ao seu lado. Continua com raiva, mas já<br />

não tem vontade de brigar. Sente quando uma conhecida onda de desespero<br />

começa a dominá-lo, e quer que Jonah saia para poder dormir. Está cansado e<br />

ferido e não está de humor para cuidar de ninguém.<br />

Mas Jonah ainda não terminou.<br />

—É esse o garoto? —Pergunta, e <strong>Otter</strong> faz uma careta. —É ele, não é? É esse<br />

o garoto de sua cidade natal!<br />

—E daí se for ele? —Replica <strong>Otter</strong> com cautela.<br />

—Você dormiu com ele quando voltou lá? —Pergunta Jonah com voz<br />

severa.<br />

—Não. —Responde <strong>Otter</strong>, desejando que Jonah fosse embora. —Já falei com<br />

você sobre isso, ele é hetero.<br />

Jonah deixa a foto sobre a cama e começa a andar pelo quarto.<br />

—Eu já ouvi isso antes. —Disse Jonah com amargura. —Fodidos<br />

heterossexuais que não querem ter nada com você depois que lhes fazem um<br />

boquete. ― É isso o que esse idiota fez com você?<br />

<strong>Otter</strong> se move antes que se dê conta. Se coloca diante de Jonah. Aperta os<br />

dentes e faz todo o possível para não lhe arrancar a cabeça.<br />

—Ele não é assim. —<strong>Otter</strong> vocifera. —Não volte a falar dele assim.<br />

—Ou o quê? —Jonah grita. —Me dará um chute na bunda? O que diabos ele<br />

fez para você?<br />

—Nada! Nunca fizemos nada! —Esbraveja <strong>Otter</strong>, e sua voz se quebre. —<br />

Nunca fizemos nada.<br />

O semblante de Jonah se abranda notavelmente.<br />

—E esse foi o problema, não? —Diz devagar.


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Página149<br />

Então, a barragem se rompe e <strong>Otter</strong> já não pode se conter. Conta a Jonah da<br />

primeira vez que soube que havia sentido algo por mim e o quão mal isso o tinha<br />

feito se sentir. Eu tinha dezesseis anos e ele vinte quatro, e eu tinha ficado na casa<br />

de Creed para passar a noite quando seus pais estavam fora da cidade. Creed se<br />

embebedou como um tonto e não demorou para dormir no sofá da sala. <strong>Otter</strong> e eu<br />

permanecemos acordados toda a noite, conversando de tudo e de nada. Diz que<br />

houve um momento em que eu tentava encontrar uma resposta a uma pergunta<br />

que ele já não recorda. Me havia inclinado para frente, com a cabeça apoiada sobre<br />

minhas mãos e a testa franzida em uma expressão concentrada. <strong>Otter</strong> afirma que<br />

não foi até que estava na cama mais tarde, recordando mentalmente a conversa,<br />

quando o entendeu. Eu havia deixado de ser um irmão pequeno a seus olhos.<br />

Explica a Jonah isto e mais. Mas não lhe conta do beijo, porque segue sendo<br />

algo seu e meu e de ninguém mais. Acredita que será assim enquanto viver. Sabe<br />

que nunca serei seu, e sabe que talvez não voltará a me ver nunca, mas, pelo<br />

menos, tem essa recordação.<br />

Jonah guarda silêncio durante muito tempo depois que ele termina de falar.<br />

Seu rosto é uma máscara. Por último pergunta se deveriam terminar. <strong>Otter</strong> sabe<br />

que sim, porque não pode prometer nada a Jonah. Mas se permite ser egoísta.<br />

Abraça a Jonah com violência e lhe suplica que não vá embora. Jonah estremece<br />

contra ele e diz que ficará, ainda que sabe que não deveria fazê-lo. <strong>Otter</strong> não o solta<br />

durante um longo tempo.<br />

Na semana seguinte, guarda a foto em um armazém que alugou quando<br />

chegou à cidade. Beija a foto antes de ir.<br />

Seis meses mais tarde, ele vai morar com Jonah.<br />

Está contente. O trabalho vai bem. Jonah é genial. A vida é bela. Está muito<br />

bronzeado. Tem bons amigos. Desfruta do sexo. Ganha muito dinheiro. Tem um<br />

namorado extraordinário. Sua vida é maravilhosa. Não poderia pedir mais nada.<br />

Fala com Anna e Creed de vez em quando, não pergunta por mim nem ninguém<br />

lhe diz nada. Mas está tudo bem. Já não pensa tanto em mim. Ainda sigo em seus<br />

pensamentos, mas é um ruído brando no fundo de sua cabeça. Isto não o preocupa.<br />

O equilíbrio funciona. Ele diz a si mesmo que ele está fazendo isso funcionar. Ele<br />

diz a si mesmo que tem que funcionar<br />

Tudo é bom e maravilhoso por algum tempo. Então, tudo cessa.<br />

Se sente insatisfeito com seu trabalho. Sempre se considerou um artista.<br />

Sabe que faz um trabalho genial, como muitos o têm dito. É muito humilde com<br />

seu talento, mas sabe que tem talento para ser ainda melhor. Ele também sabe que


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às vezes os artistas não atingem o objetivo final que eles estabeleceram para si<br />

próprios. As vezes é muito ambicioso; outras, não é possível. Começa a entender<br />

isso enquanto revisa os projetos que tem em andamento em distintas fases de<br />

desenvolvimento. Todos são uma merda. Todos têm que ser descartados. Tem que<br />

começar do zero. Quando tenta, comprova que já não lhe sobre ideia. Não tem<br />

inspiração. Tudo o que ele toca é insosso, mundano, sem graça.<br />

Jonah começa a falar sobre anéis, compromissos e o «para sempre».<br />

Circulam rumores de que a Califórnia logo legalizará o matrimônio gay. Jonah não<br />

o propõe explicitamente em nenhum momento, mas a intenção está ali e <strong>Otter</strong> se<br />

surpreende esperando como um louco que os casamentos homossexuais sejam<br />

proibidos. Ele quer encontrar qualquer votação em vigor e votar contra. Quer<br />

localizar algum juiz que esteja considerando a questão e protestar diante de seu<br />

escritório. Quer reunir todos os conservadores para garantir que os gays não<br />

possam se casar nunca. Planeja se filiar ao Tea Party 15 . Trama toda classe de<br />

maldades em sua cabeça. Começa a perder seu interesse pelo sexo, mas isso não é<br />

um problema pois Jonah trabalha muito ultimamente, e de todos os modos não<br />

parece que lhe interesse tanto.<br />

Isto continua durante meses. <strong>Otter</strong> acredita que está ficando louco.<br />

É, então, quando começa a verdadeira loucura.<br />

Se encontra no trabalho, estudando as cópias para uma promoção que está<br />

ajudando a executar através da empresa de Jonah. Nada saiu como ele queria. Ele<br />

amaldiçoa em voz baixa e esfrega os olhos. Ele pode sentir uma dor de cabeça<br />

chegando. Está a ponto de pegar o telefone e ligar para Jonah quando alguém<br />

passa andando diante do estúdio. As pessoas passam por essa calçada o dia todo e,<br />

portanto, não sabe porque essa pessoa lhe chama a atenção. Não sabe até que se<br />

fixa nela. Num minuto ele está discando o telefone e no seguinte ele o deixa cair no<br />

chão, onde se despedaça. Sai disparado até a porta da rua, com o coração<br />

palpitando e os pensamentos lhe invadindo a mente. Acaba de ver-me, sabe?<br />

Acaba de ver-me passar diante de sua porta. Não é nenhuma coincidência e ele<br />

sabe. Se estou ali, em São Diego, passando por aquele lugar exato, é que estou ali<br />

por ele. Abre a porta de um só golpe e olha freneticamente ao seu redor. Me vê me<br />

afastando rua abaixo. Grita «<strong>Bear</strong>! <strong>Bear</strong>!» enquanto corre. As pessoas ficam<br />

olhando enquanto abre caminho. Não se importa. Estou ali e tudo ficará bem.<br />

Tudo isso se acaba quando alcança a pessoa em questão. Não sou eu. Nem<br />

15<br />

O movimento Tea Party é um movimento político norte-americano conhecido por suas posições<br />

conservadoras e seu papel no Partido Republicano.


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Página151<br />

seque se parece comigo.<br />

Três semanas depois, volta a ocorrer o mesmo.<br />

E outra vez, e outra, e outra.<br />

<strong>Otter</strong> acredita que está doente. Vai ao médico. É submetido a muitos<br />

exames. Lhe entubam, lhe furam, fazem radiografias, tomografias e ressonâncias<br />

magnéticas, analisam seu sangue e urina. Após duas semanas lhe dizem que está<br />

perfeitamente saudável, pelo menos fisicamente. Tenta acreditar, mas eu sou um<br />

dos paramédicos que passou correndo como um raio ao seu lado para se encontrar<br />

com o médico.<br />

Acredita que talvez não seja mais que uma obsessão doentia. Procura um<br />

terapeuta. Este o examina e pergunta se ele já pensou em fazer yoga. Ou<br />

meditação. Ou tomar Xanax 16 . Dizem a <strong>Otter</strong> que deve relaxar. Lhe dizem que está<br />

projetando. Lhe explicam que deve reduzir as tensões às quais se submete em sua<br />

vida. Lhe dizem que tire umas longas férias.<br />

Ele e Jonah vão passar uma semana na Flórida. Sou eu que os atendo na<br />

recepção do hotel. Sou o mensageiro. Sou o taxista, o camareiro, o pedestre que<br />

passa ao seu lado. Ao final dessa semana, início de março, <strong>Otter</strong> começa a pensar<br />

em voltar para casa.<br />

Duas semanas depois, <strong>Otter</strong> se encontra no armazém de aluguel. Não esteve<br />

ali em mais de um ano. Abre a porta, e a fotografia está ali onde a deixou. A pega e<br />

a leva para casa. A esconde dentro de uma caixa no armário. A pega cada vez que<br />

se sente triste. A pega cada vez que está contente. Se pergunta se a culpa dos<br />

últimos três anos não estará finalmente cobrando pedágio. Acredita que é a culpa o<br />

que o faz ver-me em toda parte. Não é possível que segue sentindo por mim os<br />

mesmos sentimentos intensos de antes. Acredita que só precisa se certificar de que<br />

estou bem. Acredita que deveria ir para casa para passar algumas semanas, só para<br />

fazer as pazes. Agora fala com Creed e com Anna com mais frequência, e lhe<br />

dizem que estou bem sempre que ele pergunta, mas precisa comprová-lo por si<br />

mesmo.<br />

Um dia, em meados de maio, entra em casa e encontra a Jonah sentado na<br />

mesa da cozinha, com Moxie a seus pés. Minha fotografia descansa sobre a mesa.<br />

<strong>Otter</strong> fica paralisado por um momento antes de entrar na cozinha. Acaba de<br />

anunciar no estúdio que necessita de algum tempo livre. Eles o chamam de licença<br />

de ausência. Ele o chama de fuga da realidade. Ainda não falou com Jonah de seus<br />

16<br />

Alprazolam 5 é um fármaco utilizado em distúrbios da ansiedade e em crises de agorafobia. É um<br />

medicamento de tarja preta no Brasil, psicotrópico do grupo B1, sujeito a notificação de receita tipo B. 6


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Página152<br />

planos, mas estava seguro de que poderia pensar em algo. Agora, pelo que parece,<br />

já não terá que fazê-lo.<br />

Estala uma briga, e é épica. Há gritos, prantos, acusações, beijos,<br />

reconciliações, súplicas, lágrimas, cólera e amargura: toda uma gama de emoções.<br />

Jonah diz a <strong>Otter</strong> que dormiu com alguém de seu escritório, três meses atrás, e que<br />

estava buscando um modo de dizer-lhe. Afirma que não significou nada. Diz que<br />

agora já não se sente tão mal, sabendo que <strong>Otter</strong> também lhe engana. Pode ser que<br />

seja com uma foto, uma recordação ou um sentimento, mas ainda assim é enganar.<br />

<strong>Otter</strong> lhe responde que vá para o inferno. Jonah diz que sente muito e que o ama.<br />

<strong>Otter</strong> acredita nele. <strong>Otter</strong> inclusive ama a Jonah à sua maneira. Acredita que Jonah<br />

é um bom homem e que não é culpa sua que se veja envolvido nisso. Ele diz a<br />

Jonah tudo isso, e este parece acalmar-se até que <strong>Otter</strong> retira suas malas e começa a<br />

enchê-las. Então começa a suplicar, mas <strong>Otter</strong> já traçou seu rumo. Jonah lhe<br />

pergunta para onde ele vai. <strong>Otter</strong> responde que não sabe. Lhe assegura que não<br />

virá para cá tentar ficar comigo, senão para compensar a tempestade de merda que<br />

provocou. Dá um leve beijo no choroso Jonah antes de subir no Jeep e partir. Antes<br />

de ir, se certifica de que a foto está bem protegida dentro de sua mala.<br />

No trajeto até Seafare ele aproveita seu tempo. Ensaia o que irá dizer.<br />

Prepara todas as minhas reações. Lhe ocorrem várias contestações. Está contente.<br />

Está triste. Se sente mal por Jonah e até liga para ele no terceiro dia depois de<br />

partir. Lhe responde o correio de voz, mas não importa. Lhe deixa uma mensagem,<br />

mas não diz «Amo você» no final. <strong>Otter</strong> deixa a Califórnia em direção a Oregon e<br />

não sabe se voltará.<br />

«E isto é o que aconteceu. Regressei, e já conhece o resto. Vi que você ia bem. De<br />

fato, você estava mais que bem; estava maravilhosamente bem. Não me necessitava aqui, e<br />

nunca pude me desculpar como queria. Lamento tê-lo deixado, <strong>Bear</strong>. Eu sinto muito que<br />

você teve de suportar os últimos três anos, quando eu poderia ter estado aqui para torná-lo<br />

mais fácil. Sinto por um monte de coisas. Não sei o que é que estamos fazendo agora nesse<br />

momento, e nem sei se durará, mas não quero ir a nenhuma parte outra vez, a menos que<br />

esteja comigo. Não pensei que ainda sentisse isso. Mas, que saber em que momento voltei a<br />

me dar conta de tudo?Quando olhei para você e tive a sensação de que a luta por você era<br />

tudo o que eu conhecia no mundo? »<br />

«Foi quando me jogou a carta. Pegou sua carteira e me jogou essa maldita carta na<br />

minha cara. Disse a mim mesmo que era estúpido pensar assim, que talvez a conservava<br />

como uma lembrança do dano que lhe havia feito. Mas uma parte de mim não podia<br />

evitar… albergar esperança. Ainda que nada venha a surgir disto, quero você em minha<br />

vida. Aonde quer que vá, quero estar ali. Senti sua falta, papai <strong>Bear</strong>. Deus, quanta saudades


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

eu senti de você! E não quero voltar a sentir sua falta nunca mais.»<br />

Acaricia meu cabelo. Seu coração bate em meu ouvido. Subo e abaixo sobre<br />

seu peito cada vez que respira. Ergo-me e olho fixamente para o verde dourado de<br />

seus olhos. Ele é o primeiro a afastar o olhar. Olha para suas mãos. Estendo um<br />

braço e levanto sua cabeça. Enxugo uma lágrima. Se inclina sobre minha mão e me<br />

beija a palma. Penso que isso é um sonho. Dormi enquanto ele falava e isso é um<br />

sonho.<br />

« A luta por você era tudo o que eu conhecia no mundo », me disse. Isso é um<br />

sonho. É um sonho.<br />

Ergo minha outra mão e seguro seu rosto entre ambas. Ele fecha os olhos.<br />

«Você pode fazê-lo?» —Pergunta a voz. —«Pode controlar tudo isso?»<br />

—<strong>Otter</strong>. —Digo em voz baixa. —Olhe para mim.<br />

O faz.<br />

E eu beijo ele.<br />

Que Deus me ajude.<br />

Página153


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

7<br />

Onde <strong>Bear</strong> guarda segredos<br />

Página154<br />

Muito bem, todos o vimos chegar.<br />

Isto não significa que o torna mais fácil.<br />

Me desperta o som de um telefone chamando perto de meu ouvido. Tenho a<br />

cabeça confusa e a cama está quente, e não desejo outra coisa que esse fodido<br />

telefone se emudeça para poder voltar a amontoar-me debaixo das cobertas e<br />

seguir dormindo. Mas isso não acontece. Segue tocando uma canção que eu nunca<br />

ouvi. Quando eu a coloquei em meu celular? Enfio o braço embaixo das cobertas a<br />

cegas, finalmente encontro o desagradável objeto, abro e o levo ao ouvido.<br />

—Espero que seja importante. —Resmungo.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Diz uma voz, aparentemente surpreendida.<br />

—Sim? Quem é?<br />

—Sou Creed.<br />

Estico as pernas e noto algo contra mim, mas não abro os olhos. É muito<br />

bom mantê-los fechados.<br />

—Creed, por que diabos está me ligando tão cedo? —Me queixo<br />

energicamente.<br />

Ele soa estranho.<br />

—Uhm cara… não liguei para você. Ligava para <strong>Otter</strong>. Por que você<br />

atendeu seu celular? —Pergunta, e uma mão cai suavemente sobre minhas costas.<br />

Abro os olhos de um golpe, e dormir é o que menos importa agora.<br />

—<strong>Bear</strong>? — Eu ouço uma voz metálica dizer no meu ouvido. —Cara?<br />

Olho para o outro lado da cama. Meu movimento moveu as cobertas e <strong>Otter</strong><br />

está deitado junto a mim. Está deitado de costas, com a cabeça virada de lado, de<br />

cara para mim. Tem os olhos fechados e não parece se preocupar com nada no<br />

mundo. Sua mão ainda está na minha coxa, quente e dura através do tecido da<br />

roupa que uso. Sua roupa. Não posso evitar de olhar para ele, forte, alto,<br />

bronzeado e… e…<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

—Bem… sim? —Digo com voz rouca, tentando mantê-la baixa.<br />

—O que você está fazendo? —Pergunta Creed. —Por que está com o celular<br />

de <strong>Otter</strong>?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página155<br />

«Oh, <strong>Bear</strong>!» —Diz a voz entre risos. —« Estou morrendo de vontade de ver como<br />

sairá desta! O que você vai dizer? Que seu irmão se desnudou de CORPO e ALMA para<br />

você? Que quando terminou, nunca esteve tão malditamente excitado em sua vida? Mesmo<br />

que isso lhe assustasse pelo que significava, ainda que tivesse pensado uma ou duas vezes<br />

que sua obsessão confessa te faria em pedaços, que, inclusive além de tudo isso não pôde<br />

evitar de gemer ao notar seus GRANDES E FORTES BRAÇOS envolvendo você e ao<br />

sentir como começava a lhe CHUPAR A LÍNGUA...?»<br />

—Eu… estou aqui porque… <strong>Otter</strong> queria preparar o café da manhã para Ty<br />

—Conseguiu articular por fim.<br />

Até para mim soou como uma pobre desculpa.<br />

—É muito cedo. —Diz Creed. —<strong>Otter</strong> nunca acorda antes das dez a menos<br />

que tenha que fazê-lo.<br />

«Maldito seja, Creed!» —Exclamo para mim. —«Cale a boca e acredite em tudo o<br />

que eu digo!» Começo a entrar em pânico. Quero acordar <strong>Otter</strong> com um pontapé e<br />

lhe pedir ajuda. Quero desligar o telefone, pegar Ty e sair correndo daqui. Quero<br />

deixá-lo com a senhora Paquinn, ir para casa de Anna e suplicar-lhe que volte para<br />

mim. Quero transar com ela até saciar-me para poder deixar de sentir como fico<br />

excitado ao notar o contato de <strong>Otter</strong>. Quero que <strong>Otter</strong> vá para San Diego e volte<br />

com seu estúpido namorado, quem eu nunca conheci mas não o suporto. Quero<br />

pedir a Anna que se case comigo, que depois tenhamos uma casa e filhos e<br />

envelheçamos juntos, para não ter que recordar nada disso e, se o faço, o invocarei<br />

com afetuoso desdém, sabendo que não foi mais que uma fase.<br />

«Oh, oh!» —Grasna a voz alegremente. —«Problemas no paraíso já? E isso<br />

porque as coisa se desenrolaram muito BEM! Mas, ei, continue mentindo a si mesmo desse<br />

modo, papai <strong>Bear</strong>! Nós dois sabemos que não deseja outra coisa que voltar a se aconchegar<br />

embaixo das cobertas, estreitar seu corpo contra o dele e esquecer como o mundo gira. Mas<br />

você segue pensando em casar, em filhos e em um futuro que nunca acontecerá. De que<br />

serve viver se sempre antecipa TODAS AS DECISÕES QUE VOCÊ TOMA»<br />

—Suponho que queria levantar mais cedo. —digo com voz fraca.<br />

Creed ri em meu ouvido.<br />

—Isso significa que você o fez parar de estar tão deprimido?<br />

«Pode-se dizer que sim…»<br />

—Sim, claro. —Resmungo. —Não creio que precise se preocupar mais com<br />

isso.<br />

—Esse é meu garoto! —Grita através do telefone. —Não sei o que você fez,<br />

mas graças a Deus fez algo. Já não me sinto tão mal por não voltar para casa<br />

quando disse que o faria.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página156<br />

—O quê? —Digo, mal escutando.<br />

Tento puxar minha perna debaixo da mão de <strong>Otter</strong> sem acordá-lo. Não me<br />

saio muito bem, quando ele dobra o braço ao redor de toda a minha perna e a<br />

abraça suavemente contra seu peito.<br />

—Vou ficar aqui mais alguns dias. —Anuncia Creed, completamente alheio<br />

ao fato de que seu melhor amigo está parcialmente preso debaixo de seu irmão<br />

mais velho. —Apareceu outro amigo meu, assim que não voltarei até sexta-feira.<br />

Só queria ligar para me certificar de que as coisas iam bem. Parece que você tem<br />

tudo sobre controle.<br />

—Sim. —Respondo, resignado. —Aqui está tudo bem.<br />

—Ótimo. —Diz, rindo. —Então te vejo quando eu voltar, ok? Avisa a <strong>Otter</strong><br />

de quando voltarei para casa, para que não o encontre transando com algum cara<br />

no chão da sala.<br />

Meu rosto aquece. Tento imaginar algo assim, sabendo que seguramente<br />

não é o melhor momento para fazê-lo. Ontem à noite tínhamos chegado a um<br />

ponto no qual comecei a me perguntar o que aconteceria se eu tirasse a camisa de<br />

<strong>Otter</strong>, mas me contive. <strong>Otter</strong> havia respeitado isso e parecia conformar-se em<br />

apenas estar ao meu lado. Na realidade não tinha pensado detidamente sobre a...<br />

mecânica... de quais poderiam ser os seguintes passos. Me passam pela cabeça<br />

imagens a toda velocidade e minha boca fica seca.<br />

—Claro —Digo, tentando me desfazer das imagens de <strong>Otter</strong> nu. —Farei com<br />

que ele saiba.<br />

—Obrigado, cara.<br />

Estou a ponto de desligar quando Creed pronuncia meu nome com<br />

excitação.<br />

— O quê? —Digo, irritado.<br />

—Se certifique de que a senhora Paquinn cuide de <strong>Kid</strong> no último sábado de<br />

agosto. Antes de eu partir daremos uma festa como jamais se viu em Seafare.<br />

Convidei pessoas para virem à cidade e imagino que poderia ser uma espécie de<br />

última travessura antes de voltar a me comportar como adulto.<br />

—Isso soa… legal. —Digo.<br />

—Você tem certeza de que está bem? Você parece estranho.<br />

—Eu? —Resmungo. —Oh, estou ótimo. Nada me preocupa aqui.<br />

—Se você diz… se cuida, papai <strong>Bear</strong>.<br />

E desliga.<br />

Suspiro e desligo o telefone. <strong>Otter</strong> começa a rir. Me assusta por um


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página157<br />

momento porque pensei que ainda dormia. Ele solta a minha perna e se volta de<br />

costas, segurando o estômago em meio ao riso. Olho para ele com raiva e cruzo os<br />

braços.<br />

—O que é tão engraçado? —Pergunto, franzindo a testa.<br />

—Aqui está tudo ótimo? — Esbraveja, zombando de mim. —Parecia a ponto<br />

de vomitar durante toda a conversa!<br />

Meus olhos se estreitam.<br />

—Estava acordado durante toda a conversa?<br />

Concorda com a cabeça, enxugando os olhos.<br />

Lhe dou um pontapé em sua perna.<br />

—Por que diabos não me ajudou? —Grito.<br />

Levanto a perna para golpeá-lo de novo, mas é mais rápido que eu. No<br />

momento em que meu pé dispara, ele dá a volta rapidamente e me aprisiona<br />

contra a cama. Estou chateado, então levanto as mãos para afastá-lo de mim, mas<br />

ele se estica e agarra meus dois braços com uma mão grande e me puxa para baixo<br />

em cima da cama. Coloca meus braços para os lados, os imobiliza com seus joelhos<br />

e senta agachado sobre meu estômago. Acontece tão rápido que não me dá tempo<br />

para reagir. Sorri para mim com malícia, sua intenção manifesta em seu rosto.<br />

Lanço um olhar feroz para ele, com uma expressão de desprezo nos lábios. Inclina<br />

a cabeça para um lado.<br />

—Aqui está tudo ótimo, <strong>Bear</strong>? —Diz através de um sorriso.<br />

—Sai de cima de mim, <strong>Otter</strong>! —Exclamo.<br />

Tento retorcer-me e escapar dele. É inútil. É muito grande e o movimento de<br />

nossos quadris t<strong>amp</strong>ouco favorece precisamente a minha causa.<br />

—Eu também lhe desejo um bom dia. —Diz, arqueando as sobrancelhas.<br />

Se inclina para frente até que seu rosto fica a escassos centímetros do meu.<br />

Não me movo, não querendo ser o que demonstra fraqueza. Não perderei esta<br />

batalha. Seu nariz toca o meu e me distrai do que está fazendo realmente, e quando<br />

sobe a mão e começa a fazer cócegas, arregalo os olhos e começo a gritar como uma<br />

garota. Minha mente fica em branco e tento escapar. Grito com ele de forma<br />

estridente, mas é em vão. Segue com seu rosto perto do meu, e faço a única coisa<br />

que posso fazer: me levanto, aprisiono seu lábio inferior com os dentes e puxo sem<br />

muita delicadeza. <strong>Otter</strong> deixa de me fazer cócegas na hora e não se afasta. Inclino<br />

um pouco a cabeça para um lado, ameaçadoramente.<br />

—Você vai parar? —Pergunto com a boca cheia com a de <strong>Otter</strong>.<br />

—Depende do que você vai fazer a seguir. —Diz.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página158<br />

Aperta seu rosto contra o meu e toma minha boca na sua. Lhe devolvo o<br />

beijo ao mesmo tempo em que soam os alarmes em minha cabeça. Faço uma careta,<br />

pois ambos temos gosto parecendo que lavamos nossas bocas com animais mortos,<br />

mas ele introduz sua língua na minha boca, minhas mãos buscam suas costas e<br />

esfregam a área por cima da camiseta. Ele se estende sobre mim e posso sentir sua<br />

ereção dura contra minha perna. Encontro o lugar onde a camiseta subiu um<br />

pouco desde o seu traseiro, minha mão toca sua pele nua e meu cérebro entra em<br />

curto-circuito novamente quando deslizo um dedo vacilante embaixo da cintura de<br />

seu calção.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Chama uma voz do outro lado da porta fechada.<br />

Minha mão para no ato. Arregalo os olhos, e <strong>Otter</strong> rola rapidamente para o<br />

lado. Sobe a coberta em torno da cintura, mas não antes de notar seu pênis<br />

delineando através de seu calção, duro e saliente contra o tecido. Abaixo o olhar e<br />

vejo o mesmo efeito em mim, e ele também. Ele teve um breve momento para olhar<br />

para mim com avidez antes que a porta se abrisse e aparecesse <strong>Kid</strong>. Coloco o<br />

edredom sobre meu colo antes que ele veja demais.<br />

—O que foi, Ty? —Digo, e minha voz sai profunda e áspera.<br />

Ty pula na cama e senta em uma extremidade.<br />

—Você voltaram a brigar, garotos? —Nos pergunta acusadoramente. —<br />

<strong>Bear</strong>, acordei com seu gritos.<br />

Coro e desvio o olhar.<br />

—Isto… não... —Gaguejo, me afastando o mais longe possível de <strong>Otter</strong> sem<br />

cair da cama. —<strong>Otter</strong> estava…estava…<br />

Não sei como terminar. Posso estar sob o domínio do ecoterrorista<br />

vegetariano em formação de nove anos, mais inteligente do mundo, mas há coisas<br />

que não deveriam ser ditas nem sequer a ele. Sobretudo quando nem sequer sei o<br />

que diabos estou fazendo.<br />

<strong>Kid</strong> olha para mim com expectativa, e abro a boca para tentar algo quando<br />

<strong>Otter</strong> sai em meu resgate.<br />

—Eu estava fazendo cócegas nele. —Diz muito sério.<br />

Lanço a ele um olhar que o adverte que lhe darei um pontapé no traseiro<br />

mais tarde, e ele encolhe os ombros e exibe seu sorriso torto.<br />

Ty ri.<br />

—Por isso <strong>Bear</strong> parecia uma garota. —Lhe diz <strong>Otter</strong>. —Sempre faz isso<br />

quando lhe fazem cócegas.<br />

Olho para os dois com a testa franzida e eles riem um pouco mais de mim.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

<strong>Otter</strong> estende um braço e bagunça o cabelo de <strong>Kid</strong>, e Ty lhe dedica um sorriso tão<br />

bonito que deixo que minha pseudo cólera se esfume. Desafio a você a continuar<br />

aborrecido quando um filho postiço sorri assim e um cara deitado ao seu lado que,<br />

até poucos minutos atrás, fazia coisas que jamais havia passado por sua cabeça.<br />

Ty pula da cama e se encaminha até a porta.<br />

Página159<br />

—Vou ver MSNBC 17 . Eu gostaria de alguns waffles para me acompanhar. —<br />

Nos diz quando se marcha.<br />

—Há desenhos animados! —grita <strong>Otter</strong> às suas costas.<br />

—Desenhos? —Pergunta <strong>Kid</strong>, incrédulo. —<strong>Otter</strong>, já tenho nove anos, não<br />

sou uma criança.<br />

<strong>Otter</strong> olha para mim com indignação.<br />

—O que esperava? —Lhe pergunto. —Agora tem nove anos.<br />

Sorri e me estende os braços, mas seu telefone volta a tocar. Resmunga<br />

quando o passo para ele. Começo a seguir Ty e já quase estou na porta quando o<br />

ouço levantar-se de um salto da cama. Agarra minha mão, me faz girar e me beija<br />

novamente.<br />

Solto um resmungo e me afasto.<br />

—<strong>Kid</strong> está acordado! —Lhe sussurro.<br />

<strong>Otter</strong> revira os olhos e uma sombra atravessa fugazmente seu semblante,<br />

sem que eu possa identificar do que se trata. Ele disfarça e mostra um sorriso torto.<br />

Quando leva o telefone ao ouvido, diz «Me deve uma», enquanto enfia<br />

suavemente um dedo no meu peito. Ele atende o telefone, e estou prestes a virar e<br />

sair quando vejo que o sorriso desaparece rapidamente de seu rosto.<br />

—Ah, ola. —Diz ao telefone. —O que houve?<br />

Me vê ainda de pé no quarto, tapa o celular e diz que vai descer em seguida.<br />

Aceno com a cabeça, saio do quarto e estou a ponto de descer as escadas quando o<br />

ouço dizer: «O que você quer, Jonah?» Isto me faz parar.<br />

Alguma vez tentou escutar uma conversa telefônica às escondidas? É foda.<br />

Só consegue ouvir uma parte, e você quer ver a outra pessoa que está do outro<br />

lado. Não porque queira saber que aspecto tem nem nada, mas porque deseja<br />

colocar um rosto ao nome. Ouve a pessoa que está perto de você dizer coisas como:<br />

«Por que diz isso?» e «Jonah, não sei do que você está falando», e a única coisa que pode<br />

fazer é imaginar o que lhe diz para fazê-lo responder dessa maneira. T<strong>amp</strong>ouco<br />

17<br />

MSNBC (estilizado como msnbc) é uma rede de televisão paga de notícias 24 horas sediada nos Estados<br />

Unidos, também disponível na Europa, África do Sul, Oriente Médio e o Canadá


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

serve de muita ajuda que comece a sentir algo curiosamente parecido a ciúmes,<br />

que corrói você por dentro como se fosse ácido. Você tenta lidar com isso e<br />

empurrá-lo para longe, mas você perde, e o envolve completamente. Você fecha<br />

seus punhos e range os dentes ao ouvir a pessoa dizer: «E o que você espera que eu<br />

faça?» E pensa: «Espero que desligue o telefone, e esse pensamento o assusta porque não<br />

sabe de onde vem.» A intensidade dessa sensação o deixa enjoado. Você se pergunta<br />

porque não esteve verdadeiramente enciumado até hoje (ainda que em realidade<br />

não seja ciúme; tudo isso não são mais que hipóteses), e começa a se questionar se<br />

você está se metendo um uma situação que não pode controlar, e começa a pensar<br />

que talvez as últimas doze horas foram um grande erro e que a vida estava<br />

perfeitamente bem até que certa pessoa (que é exatamente a que está falando no<br />

telefone com outra certa pessoa) voltou para casa. Começa a desconfiar de você<br />

mesmo e do ocupante do quarto ao lado, que agora diz: « Eu nunca quis que você<br />

pensasse assim!», e força um sorriso ao ver a rapidez com que isso tudo está<br />

ocorrendo a você. Você nunca pediu isso, não é? Antes você estava bem. Você<br />

estava fodidamente bem. E então, não consegue distinguir as seguintes palavras<br />

que ele diz e se aproxima um pouco mais do quarto, sabendo que o que havia<br />

perdido era certamente o que mais lhe interessava ouvir. Quando já quase está de<br />

volta ao quarto, você fica gelado porque ouve que o telefone fecha de um golpe e<br />

ouve um suspiro. Então você dá a volta, envergonhado e se afasta rapidamente<br />

antes que o pegue.<br />

Você já se encontrou em uma situação como esta antes?<br />

Eu só estou perguntando.<br />

******<br />

Página160<br />

No domingo pela manhã, Ty me faz um pedido que me pega desprevenido.<br />

Sei que deveria tê-lo esperado cedo ou tarde, mas quando ele me pede, fico<br />

espantado. Quero dizer, com tudo o que vem acontecendo nos últimos tempos,<br />

achei que estávamos a quilômetros de distância disso. E que me condenem se isso<br />

não doeu.<br />

—Você o quê? —Lhe digo, sem poder acreditar no que acabo de ouvir.<br />

Suspira e senta no sofá ao meu lado.<br />

—Você sabe que amanhã não tenho aula porque é um dia de qualificação<br />

para os professores, não é?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página161<br />

Eu aceno com a cabeça. Hoje tenho que trabalhar até mais tarde e tinha<br />

planejado levar Ty para a casa de <strong>Otter</strong> antes de ir.<br />

—Pois bem, meu amigo da escola quer que eu vá passar a noite em sua casa.<br />

—Explica pacientemente, como se ele fosse o adulto e eu a criança.<br />

—Você quer ir? —Pergunto pausadamente.<br />

Ele se ergue no sofá e faz uma careta.<br />

—Creio que sim. —Responde por fim. —Mas se eu quiser voltar para casa,<br />

você iria me buscar? —Se apressa a acrescentar.<br />

—Mas é claro. —Digo com tristeza. —Ou eu ou <strong>Otter</strong>, se ainda estiver<br />

trabalhando. —E balanço a cabeça. —Quem é esse garoto? De onde o conhece? Eu<br />

o vi alguma vez? Eu conheço os seus pais?<br />

Ele revira os olhos.<br />

—Sim, <strong>Bear</strong>. Eu já falei, é meu amigo da escola. Você conheceu a ele e a seus<br />

pais na minha festa de aniversário. Você se lembra de Alex Herrera? Sua mãe foi<br />

que perguntou a você onde você tinha conseguido o castelo inflável, porque quer<br />

um para seu aniversário no mês que vem. Você disse que Alex era muito educado.<br />

É curioso, eu sei, mas eu não tive que enfrentar isso ainda. <strong>Kid</strong> parecia se<br />

conformar em não passar a noite na casa de amigos, nem ir brincar nem nada que<br />

os garotos normais fazem. Claro que saía para brincar, mas nunca ia a casa de<br />

ninguém. Começo a acreditar que isso será muito mais difícil para mim que para<br />

ele. «Cheguei a depender dele tanto assim?» —Penso, aturdido. —«Sempre acreditei que<br />

era o contrário. Os pais se sentem assim quando seus filhos saem de casa pela primeira vez?<br />

Santo Deus, necessito uma vida.»<br />

Antes de me dar conta estou falando ao telefone com a senhora Herrera,<br />

quem me diz que logicamente Ty pode ir a sua casa, e que é um garoto muito doce<br />

e inteligente. Ela se pergunta em voz alta por que <strong>Kid</strong> e Alex nunca dormiram um<br />

na casa do outro e eu lhe digo que Ty não come carne e que se necessitar de algo é<br />

para me ligar. Ou ligar para <strong>Otter</strong>. Ou Anna. Ou Creed. Ty parece envergonhado<br />

quando peço à senhora Herrera que repita para mim os números de telefone. Ela<br />

diz que sim, que sabe o número do centro de intoxicação. Sim, sabe que não deve<br />

deixar Ty ir sozinho para a praia. Não, está convencida de que não vai chover, mas<br />

caso contrário não lhe deixará sair na chuva. Sim, está segura de que não necessito<br />

preparar nenhuma comida vegetariana especial. Me diz que não, que não conhece<br />

a reanimação cardiopulmonar, e estou a ponto de lhe dizer que hoje não é uma boa<br />

noite, talvez outro dia, quando Ty me dá um pontapé na canela. Então comunico à<br />

senhora Herrera que o deixarei no caminho ao trabalho.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página162<br />

Obrigo Ty a levar o carregador para que possa recarregar o celular se por<br />

acaso precisar me ligar. Diz que o terá carregado se por acaso necessito ligar para<br />

ele. Preparamos sua mochila, eu coloco quatro mudas de roupa lá e ele olha para<br />

mim com a testa franzida e retira algumas. Me certifico de que ele está levando sua<br />

escova de dente (pasta de dente, fio dental, solução bucal, Tylenol infantil, Band-<br />

Aids e pinças). Me detém quando preparo um tupperware cheio de granola de<br />

amêndoa, porque não me perdoarei que passe fome porque o único que servem é<br />

costela de cordeiro com molho de carne de porco, acompanhado de bolo de carne.<br />

Ele me leva ao sofá e tem outra conversa comigo. Sento com as mãos no colo e<br />

concordo.<br />

Quando ele não está olhando, eu embalo a granola de qualquer maneira.<br />

—Você ficará bem? —Pergunta quando saímos do estacionamento do<br />

apartamento.<br />

Olho no retrovisor e vejo o pálido que estou.<br />

—E você, vai ficar bem? —Replico; não me agrada sua expressão divertida.<br />

—Estarei bem, papai <strong>Bear</strong>. —Responde serenamente. —Mas ainda que<br />

decida ficar toda a noite, poderei ligar antes de deitar?<br />

Sorrio, digo que sim e ambos relaxamos. Não é até mais tarde que percebo<br />

que ele o disse mais por mim que por ele.<br />

—O que você vai fazer essa noite? —Me pergunta quando chegamos ao<br />

bairro da casa de seu amigo. —Provavelmente não deveria ficar sozinho.<br />

Eu resmungo.<br />

—Você está me gozando? —Lhe digo. —É minha primeira noite sem que eu<br />

tenha que ficar pendente de você. Eu vou sair e me divertir.<br />

Ele olha para mim com cumplicidade.<br />

—Deveria ir para a casa de <strong>Otter</strong>. —Sugere enquanto olha através da janela.<br />

—Assim saberei onde está e saberei que está bem.<br />

—Que estou bem? —Lhe pergunto, espantado. —Por que não deveria estar?<br />

Guarda silêncio por um momento, e estou prestes a perguntar de novo<br />

quando diz:<br />

—Já sei que estará bem. Mas sei que estará melhor ainda se estiver com<br />

<strong>Otter</strong>. —Volta a olhar para mim. —Isso faz sentido?<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Me explique.<br />

Sinceramente, desconheço o que passa por sua cabeça. Sei que não é<br />

possível que saiba que… já sabem, sobre nós (quer dizer, o que estou fazendo com


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página163<br />

<strong>Otter</strong>), mas também sei que é mais perspicaz que ninguém que eu tenha conhecido.<br />

Sinto curiosidade por saber o que ele percebeu.<br />

Suspira.<br />

—Fiz <strong>Otter</strong> prometer que cuidaria de você. —Diz. —Lembra quando nós<br />

dormimos em sua casa alguns dias atrás? Foi quando lhe sussurrei isso em seu<br />

ouvido.<br />

—Por que você lhe pediu isso? —Pergunto, optando por não dizer que eu já<br />

sabia.<br />

—Porque sim, <strong>Bear</strong>. Você cuidou de mim praticamente durante toda minha<br />

vida, e eu ainda não sou o bastante grande para cuidar de você. <strong>Otter</strong>, sim.<br />

Paro o carro diante da casa dos Herrera. Estaciono, pego <strong>Kid</strong> pela nuca e<br />

aperto minha testa contra a sua. Ele cantarola alegremente e brinca com meus<br />

dedos.<br />

— Você fez um ótimo trabalho cuidando de mim. —Lhe digo em voz baixa.<br />

—Mais que ninguém no mundo.<br />

Ele sorri para mim.<br />

—Estou tentando. —Diz com seriedade. —Mas <strong>Otter</strong>…<br />

Se interrompe.<br />

—Mas <strong>Otter</strong> o quê? —Insisto com delicadeza.<br />

Ele dá de ombros.<br />

—<strong>Otter</strong> faz você sorrir. Já sei que eu também. —Se apressa a dizer quando<br />

abro a boca para interromper. —Mas tem estado triste por muito tempo, e eu não<br />

podia descobrir o porquê, e depois eu soube.<br />

—E o que você sabe, <strong>Kid</strong>?<br />

Ele olha para mim de um modo estranho, como se eu não tivesse que<br />

perguntar isso.<br />

—Você estava triste... —Diz— Porque <strong>Otter</strong> tinha ido embora. Mas agora ele<br />

voltou, e já não está triste. E isso me faz ter esperança de que ele não volte a ir<br />

embora nunca mais.<br />

Sorrio tristemente para o meu pequeno adulto e lhe beijo a testa. Seu amigo<br />

abre a porta principal da casa e a senhora Herrera nos cumprimenta com a mão<br />

atrás dele. Ty retira o cinto de segurança e pega a mochila do banco traseiro do<br />

carro. Abre a porta, diz olá a seu amigo a gritos, sorri para mim por cima do ombro<br />

e se afasta. O vejo correr até a porta principal, se volta e me diz adeus com a mão e<br />

eu lhe devolvo o gesto freneticamente. Então eles entram e a porta se fecha.<br />

Arranco o carro e me afasto, sentindo-me estranhamente só. Meu celular emite um


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

zumbido, avisando-me de que tenho uma nova mensagem de texto de <strong>Kid</strong>.<br />

«Amo você, papai <strong>Bear</strong>»<br />

********<br />

Página164<br />

—Foi <strong>Kid</strong> quem pediu a você para passar a noite na casa de um amigo?—<br />

Me pergunta <strong>Otter</strong> horas depois, quando estou no meu horário de descanso. —<br />

Nossa. Como você está se sentido?<br />

Mudo meu celular de ouvido e dou um chute no chão.<br />

—O que você quer dizer com como eu estou sentindo? —Digo com<br />

amargura. —Nunca estive melhor.<br />

Evidentemente.<br />

Ele solta uma risadinha em meu ouvido.<br />

—Isso parece. —Se interrompe durante um momento antes de dizer: —<br />

Talvez seja um bom sinal, <strong>Bear</strong>. Talvez, por fim, começa a confiar no mundo outra<br />

vez.<br />

Sei que é difícil para ele dizer isso, porque ambos sabemos que ele é um<br />

motivo importante de que <strong>Kid</strong> perdesse essa confiança. Não é tudo culpa de <strong>Otter</strong>,<br />

claro, mas não há dúvida de que isso não ajudou. Me ocorrem umas seis coisas<br />

para dizer, mas eu deixo para lá. Devo estar ficando velho.<br />

—Acho que você tem razão. —Suspiro. —Mas pensei que isso não<br />

aconteceria até que tivesse pelo menos trinta anos.<br />

—É bom que aconteça agora. —Diz a mim com delicadeza. —Penso que<br />

começará a ser ele mesmo. Mas você… tem que deixá-lo.<br />

—Eu sei disso! —Exclamo, mais irritado do que pretendia. —Eu quis isto<br />

mais que tudo nos últimos três anos, sabe? Que ele estivesse bem. Mas agora que<br />

está acontecendo… não sei. Acho que está indo depressa demais. E se algo<br />

acontecer? Não estarei ali para me certificar de que esteja bem!<br />

<strong>Otter</strong> respira fundo.<br />

—<strong>Bear</strong>, você não pode estar sempre à disposição dele para tudo. Vocês dois<br />

têm de ser capazes de fazer suas próprias coisas. Nem sequer teve oportunidade de<br />

fazer coisas estúpidas como a maioria das pessoas da sua idade.<br />

—Eu não preciso fazer coisas estúpidas! —Respondo. —Estou muito<br />

satisfeito fazendo o que tenho feito durante os últimos três anos. Nos mantive<br />

vivos até agora, não?<br />

Começo a respirar com dificuldade, começando a sentir a escuridão do


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desespero. Não digo a <strong>Otter</strong> que não pude me concentrar o dia todo. Não lhe disse<br />

que olhei para meu celular a cada minuto durante as últimas quatro horas. Não lhe<br />

disse que já liguei para a casa dos Herrera e falei com a senhora Herrera, quem me<br />

garantiu que tudo estava bem. Sei que <strong>Otter</strong> tem razão: na realidade, não tive a<br />

oportunidade de fazer nada. Estive tão preso me certificando de que Ty estivesse<br />

bem, que nunca me concentrei no que eu quero. Sim, houve momentos nos quais<br />

experimentei pequenas ondas de ressentimento, mas aprendi a conter esses<br />

sentimentos antes que pudessem significar algo. Mas ainda assim… agora que por<br />

fim tenho a oportunidade de fazer algo por mim mesmo (ainda que somente por<br />

uma noite), por que desejo que tudo volte a ser como antes?<br />

—<strong>Bear</strong>, ele só está na casa de um amigo. —Diz <strong>Otter</strong>, se mostrando<br />

divertido e exasperado ao mesmo tempo. —Eu acho que ele vai ficar bem. E sei<br />

que você ficará bem.<br />

Balanço a cabeça. Uma vez mais, as pessoas simplesmente não entendem.<br />

—Eu acho que sim. —Murmuro.<br />

O ouço sorrir através do telefone.<br />

—E então, o que vai fazer esta noite?<br />

Eu não havia pensado nisso. Estou diante de uma noite inteira sem<br />

obrigações, sem que tenha que me preocupar pelo bem-estar de outra pessoa.<br />

Estremeço quando sinto a solidão mordiscando meus calcanhares.<br />

—Eu não sei. —Digo a <strong>Otter</strong> melancolicamente. —Acho que irei para cama e<br />

tentarei dormir um pouco.<br />

Ele bufa no meu ouvido.<br />

—Eu só perguntei por educação. Me parecia descortês pedir para trazer sua<br />

bunda até aqui quando sair do trabalho.<br />

—Não sei, <strong>Otter</strong>. Acho que não vou ser uma companhia muito agradável<br />

esta noite.<br />

—<strong>Bear</strong>! —Ele grita comigo, e eu estremeço. —Não me venha com essa<br />

merda!<br />

—Minha casa fica mais perto do lugar onde Ty está, se ele precisar de mim.<br />

—Eu digo. —Me sentiria melhor se eu tivesse pelo menos isso.<br />

—Muito bem. —Responde. —Então eu irei para sua casa.<br />

—<strong>Otter</strong>… —Murmuro, a ponto de dizer que não.<br />

E eu acho que estou apenas me enganando, porque existe uma fome intensa<br />

e sombria que se apoderou de minha mente. É a ideia de que Ty não está comigo. É<br />

a ideia de ficar sozinho pela primeira vez. É a ideia de não ter que guardar silêncio


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página166<br />

ou me preocupar com o que <strong>Kid</strong> está fazendo no quarto ao lado. Este anseio me<br />

atravessa parte por parte, e faço bem pouco para sufocá-lo. Me sinto mal,<br />

envergonhado e sujo, mas não posso contê-lo. Pensamentos espontaneamente<br />

passam pela minha cabeça, e eu coro furiosamente, dando graças por que ninguém<br />

pode ler meus pensamentos e ver o depravado que sou. O horrível que sou. Como<br />

me comporto como um… o que seja.<br />

—Não aceitarei um não como resposta. —Rosna <strong>Otter</strong> em meu ouvido, o<br />

que não ajuda a esmagar o monstro que ruge em algum lugar dentro de mim.<br />

Me sinto tonto e me pergunto o que está acontecendo comigo.<br />

« Vou dar três palpites, e os dois primeiros não contam.» —Diz a voz docemente.<br />

—«No entanto, creio que já superamos isso, não? Por que não faz aquilo que sabe que você<br />

quer fazer? Sempre haverá lugar para remorsos amanhã. Mas até lá …»<br />

Penso de forma incoerente em demônios e suas línguas prateadas.<br />

—Está bem. —Digo docemente.<br />

<strong>Otter</strong> exala em meu ouvido, e soa bem.<br />

—Irei ao seu trabalho antes que saia e pegar algo para o jantar. —Me diz<br />

alegremente.<br />

—Você vai me preparar o jantar? —Digo, esforçando-me para não sorrir<br />

como um idiota. —Outra vez?<br />

O ouço sorrir.<br />

—Verei você dentro de algumas horas.<br />

—Está bem.<br />

—Ei. —Diz.<br />

—Ei, você.<br />

—Estou orgulhoso de você. Você sabe disso, não é?<br />

E desliga.<br />

Reviro os olhos e coloco o celular em meu bolso. Estendo os braços, penso<br />

mais coisas inconcebíveis e tenho que me obrigar a parar. Não creio que andar por<br />

aí com uma ereção seja muito propício para um bom atendimento ao cliente.<br />

Estou prestes a levantar quando vejo um carro conhecido entrar no<br />

estacionamento. Ordeno às minhas pernas que se movam, sabendo que é uma<br />

estupidez, porque terei que vê-la de qualquer jeito mesmo. Minhas pernas não me<br />

obedecem. Me apoio na beirada da mesa e me esforço para levantar, com isso bato<br />

meus joelhos contra a barra metálica que há por baixo. Eu resmungo de dor e volto<br />

a sentar. Estou prestes a tentar novamente quando ela desce do carro e eleva a mão<br />

para frente, para seus olhos do sol. Olha para mim diretamente, e da minha


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página167<br />

posição posso ver que Anna vacila.<br />

Só passou alguns dias desde que a vi pela última vez, mas para mim parece<br />

uma eternidade. Havia estado tão ensimesmado em meu sofrimento por Ty que<br />

nem sequer me ocorreu consultar o horário, para ver se Anna trabalharia esta<br />

noite. Ela caminha devagar, como se ambos estivéssemos pensando que ela tem<br />

que passar ao meu lado para entrar no supermercado. Digo a mim mesmo que<br />

estou bancando o tonto, que nos veríamos outra vez, que só era questão de tempo.<br />

Pelo amor de Deus, trabalhamos juntos. Fico olhando para ela por um momento<br />

antes de baixar os olhos e encontrar uma pinta interessante em meu braço direito<br />

que merece toda a minha atenção. Tenho pensamentos confusos de que ao ver meu<br />

rosto ela descobrirá tudo. Lhe bastará um olhar e verá tudo ali escrito, como se<br />

tivesse um rótulo de neon aceso na minha testa, proclamando que sou um<br />

MARICA, que estive fazendo COISAS DE MARICAS e que vou fazer COISAS DE<br />

MARICAS OUTRA VEZ. Solto um gemido por dentro e passo minhas mãos pelo<br />

rosto. Penso que talvez, quando as retire, ela desaparecerá, seja do supermercado<br />

ou do planeta. Francamente, não sei o que seria melhor.<br />

Mas ela não passa ao lado, nem t<strong>amp</strong>ouco desaparece. Senta-se no outro<br />

extremo da mesa. A ouço tossir, amaldiçoou em voz baixa e ponho as mãos sobre a<br />

mesa. Me atrevo a olhar para ela e me sinto encorajado ligeiramente. Ela não está<br />

zombando de mim, e não recua quando olha para mim.<br />

—Ei. —Diz, parecendo quase tão nervosa como eu.<br />

—Ei, você. —Respondo, felicitando-me ao ver que me sai uma voz normal.<br />

― Parece que você trabalha essa noite.<br />

«Isso soou muito inteligente.»<br />

Ela acena com a cabeça.<br />

—Sim, hoje sou eu que fecho. Não viu no horário?<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Acho que não.<br />

Anna brinca com uma de suas unhas.<br />

—Bem, como você está?<br />

—Ah, já sabe… —Começo a dizer.<br />

E acabo mentalmente: «Ah, já sabe, o de sempre. Dormi na cama de <strong>Otter</strong> duas ou<br />

três vezes. Oh, não se preocupe! Na realidade não fizemos nada. Salvo contarmos histórias<br />

sobre você. E de mim. E dele. Você sabia que ele me deseja já há muito tempo? Na realidade<br />

ele foi embora porque precisava tanto de mim que lhe causava dor, e acreditava que estava<br />

projetando. Lembra de quando eu dizia isso de você? Que estava projetando? Pois bem, ele


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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também pensou. Mas no caso dele era tão terrível que o utilizou como desculpa para fugir,<br />

mas então ele regressou, e eu ainda não consigo entender o porquê. Ah, e é possível que nós<br />

tenhamos feito. E é possível que eu tenha gostado. E isso depois que nós rompemos após...<br />

quanto tempo? Dois dias? Três? Depois de estarmos juntos desde o segundo ano? Enfim, já<br />

sabe, o de sempre.»<br />

—Já sabe. —Repito.—O de sempre.<br />

Ela acena com a cabeça novamente.<br />

—Isso é bom ou ruim?<br />

Dou de ombros.<br />

—Nenhum dos dois, eu acho. —Respondo sinceramente. —É… o que existe.<br />

—Como está Ty? —Pergunta.<br />

Pego ordenadamente em uma barra de tinta sobre a mesa.<br />

—Está bem. Passará esta noite na casa de um amigo.<br />

Seus olhos se arregalam ligeiramente.<br />

—Um amigo da escola? Nossa, <strong>Bear</strong>. Como o convenceu de fazer algo<br />

assim?<br />

Eu rosno.<br />

—Não o convenci de nada. Ele que me pediu.<br />

De repente, uma sombra de preocupação floresce em seu rosto. Me conhece<br />

muito bem, e amaldiçou mais uma vez.<br />

—Como você se sente sobre isso? —Pergunta em voz baixa.<br />

—Eu? Oh, estou bem. —Digo, tentando sorrir. Mas acaba saindo como uma<br />

careta. —Isto estava prestes a acontecer cedo ou tarde, não?<br />

Ela ergue um pouco a cabeça.<br />

—Claro que sim. —Diz lentamente. —Mas eu me pergunto por que decidiu<br />

fazer isso agora.<br />

Quase lhe digo estupidamente que se deve ao fato de que <strong>Kid</strong> acredita que<br />

me sinto seguro e feliz agora que <strong>Otter</strong> está em casa. Que começo a perceber que a<br />

única razão pela qual passou a se comportar como o <strong>Kid</strong> que é, é que alguém lhe<br />

prometeu que cuidaria de mim. Não acredito que fosse ser muito bem recebido,<br />

assim que me limito a dizer que eu não sei.<br />

Ela pergunta por Creed, e eu pergunto por sua mãe. Ambos vão bem. Ela<br />

diz que recebeu suas notas da faculdade, e que são boas. Eu lhe explico que<br />

coloquei comida na mochila de kid para que não passasse fome esta noite. Ela me<br />

conta que ontem à noite participou de uma fogueira na praia com alguns amigos<br />

seus. Lhe digo que deve ter sido divertido. Ela confirma que foi. Nenhum de nós


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

dois diz nada acerca de <strong>Otter</strong> e nada sobre mim e ela, e quando penso que já não<br />

posso me sentir mais incomodado, Anna olha seu relógio e anuncia que deve<br />

entrar e bater o ponto ou chegará tarde. Lhe digo que entrarei em um minuto. Se<br />

levanta e parece querer acrescentar algo mais. Olho para ela com expectativa e sei<br />

que responderei ao que ela diga, mas muda de ideia, sacode o cabelo e entra. Não<br />

olha para trás.<br />

*******<br />

Página169<br />

Quatro horas mais tarde estou sentado no escritório principal, tentando<br />

preencher alguns papéis para os caras do estoque. Está noite há pouco movimento,<br />

e eu já enviei um caixa para casa. Havia dito a Anna que ela podia ir também se<br />

quisesse, mas respondeu que precisava das horas extras. Apareceu o gerente<br />

noturno, e aproveitei a ocasião para me trancar no escritório e fingir que estava<br />

ocupado. Disse a mim mesmo que era porque realmente estava ocupado, que não<br />

pretendia me esconder de ninguém, mas uma parte de mim mesmo me<br />

considerava um farsante. Estou guardando uns papéis no arquivo quando ouço<br />

um risinho relaxado às minhas costas.<br />

Dou a volta e vejo <strong>Otter</strong> apoiado na porta, como costuma fazer. Está usando<br />

calça jeans, botas negras e uma camiseta negra justa debaixo de uma jaqueta de<br />

coro, que apenas pode dissimular o fato de que é musculoso sob todo esse<br />

vestuário desnecessário. Olho para ele com admiração e penso que o caras héteros<br />

sabem apreciar quando outro cara é atraente, assim que não posso ser tão gay, mas<br />

a maioria não conclui seus pensamentos querendo ver o musculoso que é um<br />

corpo sem toda essa roupa.<br />

—O que é tão engraçado? —Digo quando volta a rir entre dentes.<br />

Ele sorri.<br />

—Está muito sexy com esse avental.<br />

Corro para frente, resmungando. Passo a seu lado e olho por cima de suas<br />

<strong>amp</strong>las costas, me certificando de que ninguém o ouviu.<br />

—Não diga essas coisas. —O recrimino, franzindo a testa. —Estamos em<br />

meu local de trabalho!<br />

Pelo menos eu havia mantido reservados meus pensamentos obscenos para<br />

mim mesmo!<br />

Arqueia uma sobrancelha.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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—Por que não? Você pode dizer a eles que sou o irmão mais velho e gay de<br />

seu melhor amigo, que voltou para a cidade.<br />

Ele levanta a gola da jaqueta, saca um pente imaginário do bolso de trás e<br />

começa a passá-lo pela cabeça. Olho para ele irritado por um momento mais antes<br />

de bufar com desgosto.<br />

—O que você faz aqui? —Rosno enquanto ele cruza os braços sobre o peito.<br />

Ele parece surpreendido.<br />

—Eu disse a você que viria quando estivesse saindo. Eu lhe disse que<br />

pegaria algo para…<br />

—<strong>Otter</strong>? —Diz uma voz às suas costas.<br />

Deus me odeia.<br />

Ele se volta e vê Anna de pé junto à porta. Não posso ver sua reação, mas<br />

não vacila em avançar para abraçá-la. Ela sorri, mas não antes de olhar para mim<br />

por cima do ombro de <strong>Otter</strong>. Esse olhar diz muitas coisas, mas não sei interpretálas.<br />

Me pergunto, não pela primeira vez, o que Anna sabe, ou o que pensa saber.<br />

Procuro não estremecer ao pensar nisso.<br />

—Como você está? —Pergunta a Anna.<br />

Solto um gemido interno. «Como crê que está?» —Quero gritar a ele. —<br />

«Terminamos a uns três dias atrás por sua causa! Pense por um fodido segundo!»<br />

Anna me surpreende quando diz:<br />

—Estou bem. —Parece sincera. Lança para mim outro olhar furtivo e eu<br />

desvio o olhar para a parede, que de repente se tornou muito interessante. —O que<br />

você faz aqui? —Pergunta a <strong>Otter</strong>.<br />

Ele dá de ombros.<br />

—Só pensei em passar por aqui. Estava aqui perto e queria pegar um pouco<br />

de comida. Creio que já comi tudo o que havia em casa.<br />

Ela começa a rir e eu me arrepio.<br />

—Isso é bom. —Lhe diz. —Estou contente de voltar a ver você, <strong>Otter</strong>. Me<br />

alegro que tenha decidido ficar algum tempo mais desta vez. Você já pensou<br />

quanto tempo vai ficar aqui?<br />

<strong>Otter</strong> nega com a cabeça.<br />

—Na verdade, não havia pensado nisso. —Olha para mim por cima do<br />

ombro. É um olhar rápido, não dura mais que um segundo. Como uma espécie de<br />

piscadela. —Suponho que ficarei todo o tempo que me queiram.<br />

Anna olha para ele com os olhos ligeiramente entrecerrados.<br />

—Sempre queremos você aqui, <strong>Otter</strong>. Não é certo, <strong>Bear</strong>?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Murmuro algo para o propósito.<br />

—Não ligue para ele. —Ela diz a <strong>Otter</strong>. —Passou toda a noite encerrado<br />

nesse escritório, tentando me evitar.<br />

—Não estou evitando você. —Eu a provoco. —Tinha trabalho urgente para<br />

fazer.<br />

Ela sorri para mim com doçura.<br />

—Claro que sim.<br />

<strong>Otter</strong> nos olha e arqueia uma sobrancelha. Tento me conter para não erguer<br />

a mão e socar a ambos.<br />

—Você tem planos para essa noite? —Pergunta Anna a <strong>Otter</strong>. —Poderíamos<br />

sair para tomar um café ou algo assim, quando eu sair do trabalho. Já sabe,<br />

recuperar o atraso em nome dos velhos tempos.<br />

—Podemos deixar para outro dia? —Lhe pergunta ele. —Tenho… coisas<br />

para fazer. Mas nos veremos logo, ok?<br />

Anna sorri de novo e acena com a cabeça.<br />

—Claro. —Volta a olhar para mim. —<strong>Bear</strong>, não está saindo? Por que não<br />

acompanha <strong>Otter</strong> enquanto faz as compras?<br />

Minha mão está sobre o gr<strong>amp</strong>eador, e eu estou me preparando para lançálo<br />

em um dos dois (não me importa quem) quando Anna dá outro abraço em <strong>Otter</strong><br />

antes de dar a volta e se afastar. <strong>Otter</strong> a segue com o olhar por um momento e<br />

depois se volta para mim.<br />

—<strong>Bear</strong>, largue esse gr<strong>amp</strong>eador antes que se machuque. —Diz, observando<br />

meu braço levantado.<br />

*******<br />

Página171<br />

—Anna parece… estar bem. —Comenta <strong>Otter</strong> enquanto subimos com as<br />

compras pela escada.<br />

Eu me atrapalho com as chaves enquanto tento abrir a porta.<br />

—Acho que sim. —Murmuro.<br />

Encontro a chave correta, abro a porta e acendo a luz da sala. Ele entra,<br />

deixa as sacolas sobre a mesa, se volta para mim, pega as sacolas da minha mão e<br />

as deixa junta às outras. Então me atrai para os seus braços, e tento não protestar


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demais. Coloco a cabeça sobre o seu ombro e me debruço contra ele. Ele coloca sua<br />

mão na parte inferior das minhas costas e me rodeia os ombros com outro braço.<br />

Me sinto seguro quanto estou com ele assim, mas isso é algo que não quero lhe<br />

dizer porque eu mal posso dizer a mim mesmo. É uma sensação estranha poder<br />

estar tão em conflito com algo, mas esse conflito parece esfumar-se tão logo me<br />

recosto comodamente sobre ele. Só levamos alguns dias fazendo o que estamos<br />

fazendo, mas não importa. Me sinto seguro.<br />

Ele se afasta um pouco.<br />

—Como você está? —Ele pergunta.<br />

—Sinceramente? —Pergunto, e ele acena com a cabeça. —Foi um dia muito<br />

estranho.<br />

—É a primeira vez que viu Anna desde que romperam?<br />

Concordo com a cabeça e me afasto. Sento na mesa, cansado.<br />

—Eu acho que ela sabe. —Digo em voz baixa.<br />

—O que ela sabe? —Pergunta enquanto começa a retirar as compras.<br />

Vacilo. Não queria ter dito isso em voz alta. Não queria sacar esse assunto,<br />

mas esse pensamento está dando voltas em minha cabeça desde que a vi. Me<br />

tranquei no escritório para evitá-la, mas não porque acreditava que ela pudesse se<br />

inteirar de algo em meu rosto. Mas porque sei que Anna pode me decifrar quase<br />

melhor que ninguém. Me escondi dela para não ter que olhá-la enquanto ela<br />

olhava para mim.<br />

Suspiro.<br />

—Sabe… isto. —Digo, estendendo os braços. —Eu acho que ela sabe sobre…<br />

nós.<br />

<strong>Otter</strong> se detém, logo pega uma lata, a deixa sobre o balcão e se volta para<br />

mim com os braços cruzados.<br />

—Por que pensa isso, <strong>Bear</strong>? —Pergunta, com um semblante amável e<br />

pensativo.<br />

Dou de ombros.<br />

—Por certas coisas que disse. —Murmuro.<br />

—Tão mal seria se ela soubesse? Que soubesse sobre «isto»?<br />

Eu bato na mesa com um punho, que surpreende tanto a <strong>Otter</strong> como a mim.<br />

—O que é isto? —Lhe pergunto com veemência. —O que estamos fazendo,<br />

<strong>Otter</strong>?<br />

—Não sei, <strong>Bear</strong> —Responde sinceramente. —Não deixo de me perguntar o<br />

mesmo.


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Página173<br />

Estremeço ao ouvir essas palavras.<br />

—De verdade você acha? Você acredita… acredita que é algo ruim?<br />

Ele ri baixinho, se agacha e se ajoelha frente a mim. Coloca suas mãos sobre<br />

as minhas em meu colo.<br />

—Ei. —Diz.<br />

—Ei, você. —Respondo, incapaz de afastar o olhar, esperando que<br />

responda.<br />

—Não creio que seja algo ruim. —Diz muito sério. —Já disse a você que<br />

aceitaria o quisesse me dar, sempre e quando, ao final de tudo isso, segue sendo<br />

meu amigo. Isso será sempre uma prioridade e espero que você entenda isso.<br />

—Eu entendo. —Digo. —Mas poderia se conformar que fôssemos só<br />

amigos? Já sabe, depois de…<br />

Pensa por um momento antes de dizer:<br />

—<strong>Bear</strong>, eu realmente acho que sim. Eu já disse que aconteça o que acontecer,<br />

sempre serei sincero contigo.<br />

Esboço um sorriso.<br />

—Mesmo que seja ruim?<br />

Ele ri.<br />

—Mesmo que seja ruim. Você sempre deverá ouvir a verdade de mim.<br />

—Posso te dizer uma verdade? —Pergunto, respirando fundo. Ele concorda<br />

com a cabeça. —Tenho medo, <strong>Otter</strong>. De tudo… isto. E se não sei quem sou? —<br />

Afasto o olhar. —Não quero machucar você.<br />

—Você acredita que poderia?<br />

—Não quero fazê-lo. — Sussurro, segurando suas mãos. —Eu acabo de ter<br />

você de volta, e não quero fazer nada que faça você se afastar. Mas ontem a noite e<br />

hoje provei uma coisa e me preocupa.<br />

—Do que se trata, <strong>Bear</strong>?<br />

Eu conto a ele. Explico que ontem à noite, depois de me assegurar que <strong>Kid</strong><br />

estava dormindo, liguei o computador e me conectei com a internet. Conto que<br />

tentei olhar outros caras … e essas coisas. Comecei por gente famosa. Logo entrei<br />

nessas páginas de encontro e olhei fotos de homens. Depois passei para imagens<br />

pornográficas. De caras fazendo coisas que jamais me haviam passado pela cabeça.<br />

Finalmente tomei coragem suficiente para clicar em um vídeo e, depois de me<br />

certificar que o volume estava baixo, passei a assistir a coisa toda. Nada. Não me<br />

excitei em nenhum momento.<br />

E hoje, no trabalho, enquanto fazia meu turno e entre minha inquietude por


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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Anna e por <strong>Kid</strong>, havia olhado alguns dos caras que entravam no supermercado.<br />

Havia baixos e altos, gordos e magros, mais velhos e mais jovens, musculosos e<br />

sem músculos. E nenhum só deles me havia chamado a atenção. Não foi até que<br />

<strong>Otter</strong> apareceu usando aquela roupa, que eu senti certo interesse.<br />

Enquanto conto a ele tudo isso, sua expressão permanece inalterada, e<br />

desejo abraçá-lo por isso. Poderia ter rido, bufado ou mostrar-se aborrecido<br />

comigo, mas não fez nada disso. Não se moveu até que terminei, e então olha para<br />

mim pensativo, e torno a experimentar esse desejo, e me pergunto se estou<br />

quebrado, com defeito, ou algo assim. Estou a ponto de dizer a ele para improvisar<br />

uma piada, quando ele se levanta e pressiona seus lábios contra os meus. No início<br />

me sinto chocado, mas fecho os olhos, ergo as mãos, tomo sua cabeça entre elas e<br />

passo os dedos pelo seu cabelo. Suspiro dentro de sua boca quando se abre, e me<br />

explora com sua língua. Eu sinto suas grandes mãos acariciando minhas pernas<br />

suavemente, e então se separa dos meus lábios e beija a linha de minha mandíbula<br />

até meu pescoço, onde ele belisca e morde suavemente. Minhas costas se arqueiam<br />

languidamente ao sentir essa sensação, e estou a ponto de lhe devolver o favor<br />

quanto ele se afasta.<br />

—Você sentiu algo agora? —Pergunta.<br />

Concordo com a cabeça, com os olhos arregalados.<br />

—E o que isso significa? —Diz enquanto afasta uma mecha de cabelo do<br />

meu rosto.<br />

Vacilo antes de responder em voz baixa:<br />

—Não sei.<br />

Ele senta no chão, cruza suas largas pernas diante dele e olha para as mãos,<br />

absorto em seus pensamentos. Me farto dele enquanto posso. Seu cabelo loiro está<br />

crescendo e cai sobre seu rosto. O afasta para trás com uma de suas grandes mãos.<br />

Respira fundo, e vejo como seu peito se incha devagar debaixo da camiseta. O<br />

modo em que está encurvado agora mesmo o faz parecer tão pequeno, mas sei que<br />

é só uma ilusão. Tem o nariz um pouco torcido, como seu sorriso, mas isso não<br />

compromete sua imagem. De fato, o torna ainda mais atraente. Uma incipiente<br />

barba loira lhe recorre pelas bochechas. Não posso ver seus olhos, mas sei como<br />

são: ouro verde. Ele estica o braço e coça a parte de trás de sua cabeça, e eu posso<br />

ver o quão forte são os seus braços, mesmo com o casaco. Tento recordar seu tato<br />

quando me rodeiam. Tento imaginá-los contra a minha pele nua. Sua mão<br />

esfregando suavemente meu peito. Ele se deteria em meu coração, só para sentir<br />

como bate, mas logo seguiria adiante, com um dedo passando com suavidade (mas


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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não demais) ao longo de meus mamilos. Eu perceberia seu calor contra mim e o<br />

verde ouro brilharia e sua boca cairia sobre a minha e haveria estrelas …<br />

Com um grito meio estrangulado, me levanto da cadeira e caio sobre ele.<br />

Mais rápido que nunca (é como se tivesse me esperado sempre), seus braços se<br />

erguem e se fecham ao meu redor. Eu pressiono meus lábios contra os seus, e<br />

tenho os olhos abertos, e os seus também estão abertos, e nos olhamos, e ele se<br />

senta reto e me atrai mas para perto dele, e minhas mãos estão aqui, ali, em todas<br />

as partes, e como não quero parar me balanço e me esfrego contra ele. Ele engasga<br />

um pouco e contra-ataca com renovada energia. Posso senti-lo debaixo de mim e<br />

de repente estala em meu interior uma dor, uma coceira que implora para ser<br />

aliviada. É quase o suficiente para afastar todas as minhas inibições. Quase.<br />

Respirando com dificuldade, me sento, com seus braços descansando em torno de<br />

minha cintura, seus dedos sobre meu traseiro. Ele olha para mim com os olhos<br />

semicerrados, e eu não posso deixar de rir através do meu pânico. Ele balança a<br />

cabeça para afastar a confusão dela e solta uma risada.<br />

—O que foi isso? —Pergunta. E sorri para mim agradecido.<br />

Dou de ombros, tentando não dar importância ao quanto estou excitado.<br />

—É estranho, <strong>Otter</strong>. É evidente que sinto algo por você, mas por que será<br />

que ninguém mais me provoca o mesmo?<br />

Ele me puxa para frente e beija o meu nariz. Faz cosquinha e queima ao<br />

mesmo tempo.<br />

—Não sei, <strong>Bear</strong>. Talvez eu não devesse tentar discernir por que você não<br />

sente algo por outros caras. Isso significa que eu terei você só para mim.<br />

Solto um gemido e lhe dou um soco no braço.<br />

—Isso não ajuda em nada.<br />

Eu olho para ele, e me responde com seu sorriso torto. Seus olhos me<br />

demonstram o que sente por mim e quero encolher-me de medo, mas me esforço e<br />

consigo afastar essa sensação. Como pode ser que me faça isso? Não é<br />

humanamente possível que eu seja... assim somente com uma pessoa, não é? Não é<br />

assim como funciona a biologia. Mas, por outro lado, nunca senti essa necessidade<br />

com ninguém. «Nem sequer foi tão intensa com Anna». Penso sombriamente. É como<br />

se <strong>Otter</strong> tivesse acendido um fogo debaixo de mim e depois tivesse me deixado ao<br />

sol. Uma vez mais penso no que Anna me pediu ao terminar nossa discussão e me<br />

pergunto se isso é o que ela viu. Ela me viu com <strong>Otter</strong> muitas vezes, mas foi algo<br />

que fiz? É evidente que nunca antes havia atuado assim com ele. Como Anna<br />

podia ter percebido isso? E por que ninguém mais pode fazê-lo?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página176<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz <strong>Otter</strong>, me resgatando dos meus devaneios. —Você já esta<br />

pensando demais novamente. Deixe de tentar analisar tudo o tempo todo.<br />

Reviro os olhos.<br />

—Apenas pensava em algo que Anna disse. —Respondo quase sem dar-me<br />

conta.<br />

Parece que sou incapaz de impedir que meus pensamentos saiam da boca<br />

por nada no mundo.<br />

—O que ela disse?<br />

Me afasto dele, vou até o balcão e começo a desempacotar os resto dos<br />

mantimentos. Tento ganhar tempo, tento inventar algo em minha cabeça que<br />

pareça remotamente plausível, mas seria mentira, e não posso lhe mentir, por mais<br />

que me esforço. Posso omitir a verdade, mas seria incapaz de olhar em seus olhos e<br />

ser desonesto. Me dá a impressão de que ele tem muito poder sobre mim e coro em<br />

silêncio.<br />

<strong>Otter</strong> se aproxima por trás de mim, tira os mantimentos de minha mão. Eu<br />

seguro a beirada do balcão e tento não tremer quando me vem um onda de<br />

vertigem. Eu sei que se ele me pergunta, vou confessar o que ela me disse. Uma<br />

parte de mim quer fazê-lo. A outra parte, não. Dizer coisas para que os outros<br />

ouçam nunca me levou a lugar nenhum.<br />

— O que foi que ela disse, <strong>Bear</strong>? —Insiste.<br />

«Merda», penso. Tenho os nós dos dedos brancos, quando respondo:<br />

—Ela… ela perguntou se você tinha dado em cima de mim.<br />

—Quando foi isso? Na última vez que vocês brigaram?<br />

Não há recriminação em sua voz como eu esperava. Creio que agora ele<br />

sabe que eu não lhe contei tudo.<br />

Arrisco um olhar, e vejo que seu semblante é amável. Isto me anima um<br />

pouco.<br />

—Sim. Me perguntou isso e… algo mais.<br />

— O que mais?<br />

—Perguntou se…<br />

As palavras se engasgam em minha garganta e não sei se posso seguir<br />

falando. Eu não quero fazê-lo surtar nem nada disso. Dois caras não deveriam<br />

manter uma conversa assim. Nunca deveria ter chegado a isso.<br />

«Então, por que custa tanto, <strong>Bear</strong>?» —Sussurra a maldita voz. —«Se não deveria<br />

ser assim, por que tem tanto medo? Pensa que ele sentirá asco? Que sairá pela porta e não<br />

voltará mais? Que terá passado por tudo isso por nada? Talvez o faça; ou talvez não. Mas


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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se você não perguntar nunca, se não disser nunca o que há em seu coração, então é<br />

preferível que desista agora. Você nunca será nada na vida.»<br />

Eu tento ouvir, mas não posso evitar.<br />

—Não importa. —Digo energicamente. —Não tem importância.<br />

Passo ao seu lado para ir a qualquer lugar, menos ali onde estou, mas ele me<br />

segura pelo braço e me detém no ato. O amaldiçoo em silêncio e procuro não<br />

resistir.<br />

—A estas alturas já deveria saber que isto não funciona comigo. —Diz com<br />

severidade. —Seja o que for, pode me dizer. Fará que tudo isso se torne mais fácil.<br />

Suspiro, irritado.<br />

—<strong>Otter</strong>, você não pode entender o quão difícil isso é para mim! Você acha<br />

que só porque eu tenho agido desta maneira em torno de você que é uma coisa<br />

fácil de fazer. —Pisco furiosamente quando as lágrimas ameaçam brotar. —Você<br />

não sabe como é. —prossigo com aspereza— Colocar em dúvida tudo quanto tem<br />

feito. Isto não tem sentido para mim! Por que somente quero a você? Se em teoria<br />

eu sou… isso, então por que não me chama a atenção ninguém mais? Em que<br />

diabos isso me converte?<br />

—Eu gostaria de poder lhe responder a isso. —Responde bruscamente. —Eu<br />

gostaria de ter uma explicação para você que deixasse a nós dois satisfeitos. Você<br />

só quer a mim, maravilhoso. Deveria me fazer sentir no topo desse fodido mundo.<br />

—Respira ofegante. —Mas não é assim. Isso me faz perguntar se eu tinha razão ao<br />

pensar que influenciei você de algum modo. Que eu o fiz assim.<br />

Reviro os olhos.<br />

—Eu acho que isso é fodidamente retardado .<br />

Ele solta uma risada trêmula.<br />

—Eu sei que é. —Admite. —Mas qual é a outra alternativa? Você não pode<br />

ser… gay para uma pessoa, <strong>Bear</strong>. Não funciona assim.<br />

—Eu não sou gay. —Eu me apresso a dizer, e na mesma hora me sinto como<br />

um imbecil.<br />

—Nunca disse que você fosse. —Me tranquiliza <strong>Otter</strong>. —Você é você. Não<br />

poderia pedir mais, nem esperaria menos. Além disso...—Acrescenta, rindo<br />

baixinho—...detesto rótulos. Você não precisa ser rotulado de nenhuma maneira.<br />

Eu penso muito, mas só por um momento.<br />

—Se eu contar a você o que ela disse, poderei lhe perguntar algo?<br />

Concorda com a cabeça.<br />

—Qualquer coisa. Você sabe disso.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página178<br />

Viro-me para encará-lo, não precisamente porque queira fazê-lo, mas por<br />

medo de não ver seu rosto quando falar em seguida. Tenho que saber o que pensa.<br />

—Anna me perguntou se havia dado em cima de mim. —Declaro. —Eu lhe<br />

disse que não, porque em realidade não acredito que tenha feito isso. Mas, então,<br />

me perguntou outra coisa, e é por isso que penso que ela sabe. Por isso ela ligou<br />

para você depois que brigamos, porque viu algo em meus olhos ou me ouviu dizer<br />

algo que soou falso.<br />

—Muito bem. —Diz, sem soltar meu braço.<br />

—Ela me perguntou… —«DIGA, IDIOTA!». —Ela perguntou se você estava<br />

apaixonado por mim.<br />

Isso saiu de um golpe, e me sinto bem ao dizê-lo para alguém, por arrancálo<br />

do meu peito. Só tinham passado alguns dias e havia tentado não dar<br />

importância demais, mas devia ter passado muito mais tempo ali do que eu<br />

imaginava, porque logo em seguida percebo como se um peso fosse retirado de<br />

mim.<br />

—Não sabia o que fazer, então eu me apavorei e gritei com ela. Ela me disse<br />

que eu mentia. —Tenho dificuldade para respirar agora, mas não quero parar, não<br />

posso. —Então me perguntou se eu estava apaixonado por você e me senti<br />

dominado pelo pânico, <strong>Otter</strong>. E me deixei levar por ele. Respondi que não logo em<br />

seguida, e não sei o que isso significa porque me senti culpado imediatamente e<br />

quis retirá-lo porque parecia algo definitivo.<br />

Quero olhar para ele, mas não posso. Ainda não.<br />

—Ainda estava furioso com você por ter ido embora e voltado. Estava<br />

furioso porque parecia que, mesmo tendo voltado, ainda brigávamos e guardava<br />

dentro todo esse ódio. Eu não sabia quanto tempo você ficaria. Não sabia se<br />

acordaria e você teria ido embora novamente. Não sabia por que não pôde me<br />

responder quando perguntei sobre o que Anna havia dito, que você acreditava que<br />

havia perdido a única possibilidade de ser feliz. Pensava que era eu. Pensava que<br />

havia feito algo ruim para afugentá-lo desse modo. Mas nem sequer então pude<br />

me manter afastado. Nunca me senti tão confuso e nem tão em conflito com nada<br />

em toda a minha vida!<br />

― Eu fico me perguntando o que teria ocorrido se você não tivesse voltado<br />

nunca. E se <strong>Otter</strong> tivesse decidido não voltar nunca? E isso me assusta, porque eu<br />

sei que eu ainda estaria onde eu estava. Não sei se isso é bom ou ruim. Não estava<br />

tão mal onde me encontrava antes. Eu amava Anna. Eu amo a Anna. Mas já não é<br />

como antes, ainda que tenha passado muito poucos dias, e isso me afeta. Ela esteve


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ao meu lado mais tempo que você, mas aqui estou, mantendo essa conversa com<br />

você e não com ela. Estou triste porque tenho que mentir a ela. Sei que ela gosta de<br />

mim, mas não sei se ela poderia entender isso. Como poderia, se nem mesmo eu<br />

sou capaz?<br />

Ouço <strong>Otter</strong> grunhir, e sei que está a ponto de intervir, de me interromper e<br />

me consolar como sempre faz. Mas eu balanço a cabeça como advertência, sabendo<br />

que se eu não termino agora, não o farei nunca. Ele suspira, mas não diz nada.<br />

—Tenho que mentir para Creed. Eu não posso dizer a ele que passei os<br />

últimos três dias fascinado pelo seu irmão. Eu não poderia suportar vê-lo olhar<br />

para mim desse jeito. Se sentirá magoado porque pensará que não pude recorrer a<br />

ele com isso, e terá razão. Se sentirá enganado de alguma maneira. Pensará que<br />

nunca pude confiar nele. E logo está a parte que diz respeito a você. Você é o irmão<br />

dele, e eu sou o melhor amigo. Eu nunca poderia fazer nada que lhe machucasse.<br />

Agora as palavras me saem mais depressa.<br />

—E além disso tem <strong>Kid</strong>. Eu lhe disse que ele me perguntou se você era gay?<br />

Isso foi o que de alguma maneira iniciou toda a briga entre Anna e eu. Nós<br />

contamos a ele a verdade, mas como posso lhe dizer isso sobre mim? Nem sequer<br />

sei quem sou. Como posso esperar criá-lo como é devido se nem sequer entendo a<br />

mim mesmo?<br />

― E aí tem você. Oh, Deus, tudo se reduz a você. Você me dá mais medo que<br />

todos os demais. Tenho medo que agora que me ouve pense mal de mim. Me<br />

assusta que eu não seja nunca capaz de lhe dar o que você quer, que você construa<br />

uma imagem mental de mim a qual não possa estar à altura nunca. Tenho medo<br />

que se dê conta disso e vá embora e que eu volte a ficar sozinho.<br />

Respiro fundo.<br />

—Mas o que mais me assusta de tudo isso é que Anna pode estar certa.<br />

Você me disse que parecia que a luta por mim era tudo o que sempre conheceu.<br />

Penso muito nisso e em alguma parte dentro de mim, em algum lugar secreto que<br />

somente posso vislumbrar de vez em quando, sei que tem razão. Sei disso porque<br />

eu estive lutando para que você voltasse para casa. Eu estive gritando, ansiando e<br />

rezando para que voltasse para casa, e levou muito tempo, mas agora é como se<br />

nunca tivesse partido, e eu não consigo fazer com que isso se encaixe dentro da<br />

minha cabeça.<br />

«Diga a ele.»—sussurra a voz—. «Você já chegou até aqui. O que tem a perder?»<br />

«Tudo», penso.<br />

—Nunca disse isso a ninguém, mas cada vez que me sentia triste, sozinho,


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Página180<br />

com raiva ou chateado, rezava a Deus para fazer com que você voltasse. Prometia<br />

que faria o que Ele quisesse, contanto que o colocasse em minha porta. Você era o<br />

único que me fazia sentir seguro quando os terremotos ameaçavam tragar-me.<br />

Necessitava que regressasse porque quando não está aqui não tenho casa. Por isso<br />

me enfureci tanto com Anna, me assustou tanto o que havia dito. Se havia<br />

aproximado mais da verdade do que eu jamais havia feito, e eu não sabia que<br />

outra coisa fazer.<br />

― Não posso prometer a você grande coisa, <strong>Otter</strong>. Quero fazê-lo, mas não<br />

posso. Posso prometer que aceitarei isso dia a dia. Posso prometer que tentarei lhe<br />

contar tudo. Posso prometer que tentarei fazer com que você sinta tudo o que me<br />

faz sentir. Quero que você esteja seguro e protegido, e quero ser eu quem o faça<br />

porque as vezes, oh, Deus, as vezes, a luta por você é tudo o que sempre conheci. E<br />

estou muito cansado de lutar. Estou cansado, <strong>Otter</strong>, mas se você estiver aqui<br />

comigo, sei que tudo ficará bem. Sei que posso dar outro passo.<br />

Me detenho, drenado, absolvido, aterrorizado.<br />

Arrisco olhar para <strong>Otter</strong>. Não vejo horror nem compaixão como eu temia.<br />

Não. O que vejo é um orgulho apaixonado, um olhar arregalado que me deixa sem<br />

alento. Se move depressa e me pega pelos braços, e antes que possa protestar me<br />

leva pela sala até o meu quarto. Tenho tempo de pensar no estranho que resulta<br />

que me encaixe tão bem onde estou. Ele me coloca com delicadeza sobre a cama, se<br />

afasta, tira sua jaqueta, a joga no chão e salta sobre mim. Sua boca me asfixia, abro<br />

os olhos e o único que posso ver é ele e eu, e somos os únicos que sobraram no<br />

mundo. Sua avidez se espalha e me aperto contra ele, abro sua boca com minha<br />

língua e gemo um pouco. Estou farto de esperar e me questionar, assim que agarro<br />

a barra de sua camiseta e a tiro por cima de sua cabeça. Se esforça para tirá-la e<br />

ambos ouvimos que se rasga, mas não paramos, não nos importa, seguimos<br />

adiante. Minha camiseta já não está mais, desapareceu como por arte de magia. Se<br />

estende sobre mim e assalta minha boca outra vez, e sinto o cheiro de queimado<br />

porque os fios voltam a entrar em curto-circuito dentro de minha cabeça. Noto sua<br />

pele quente contra a minha, logo está fervendo e finalmente arde. Engasgo quando<br />

ele abaixa a cabeça da minha boca, passa a língua sobre meu peito e a agita<br />

maliciosamente contra meus mamilos. Inclino a cabeça para trás e agarro as bordas<br />

da coberta.<br />

Então ele faz outro truque, e de repente minha calça já não está e a roupa<br />

que havia debaixo desapareceu. Manipulo torpemente a fivela de seu cinto e ouço<br />

que alguém sussurra: «Preciso de você, preciso de você», e não sei qual dos dois é, mas


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não importa. Sua calça é baixada e seu pênis dispara livre, e antes que possa fazer<br />

algo ele estende todo seu corpo contra o meu. Acredito que o atrito bastará para<br />

me deixar louco. Há muitas coisas que quero fazer, mas não sei como. Estendo os<br />

braços para ele, mas ele os agarra, imobilizando-os sobre minha cabeça e diz: «Não,<br />

<strong>Bear</strong>, não. Agora é para você. Somente para você», e eu concordo, e sua boca abaixa<br />

outra vez, mais abaixo do peito, e eu coloco as mãos em seu cabelo quando beija<br />

meu estômago, ao meu lado, no osso do quadril.<br />

Então meu pênis está dentro de sua boca, e é isso o que se sente? Oh, Deus,<br />

como não pude saber que seria assim? Balbucio torpezas incoerentes e me enfio<br />

mais em sua garganta. Reviro os olhos e conto as estrelas que passam a toda<br />

velocidade, e há uma, e há duas, e logo há um céu inteiro repleto de estrelas e<br />

muito reluzentes. Arqueio as costas novamente e digo: «<strong>Otter</strong>, oh, meu <strong>Otter</strong>», e<br />

então ele se levanta e volta a me beijar doce, maravilhosa e dolorosamente. Noto<br />

sua respiração alterada em minha boca, e a minha é igual, mas não tem<br />

importância porque somente estamos eu e ele, <strong>Bear</strong> e <strong>Otter</strong>, e nesse momento eu<br />

não me importo com o que os outros pensem, ou que alguém saiba. Não me<br />

importa o que ocorreu no passado nem o que possa ocorrer no futuro. O único que<br />

me importa é sentir seu coração batendo contra o meu, e penso como é curioso que<br />

os dois batam compassadamente até o ponto de parecer que somos uma mesma<br />

pessoa, uma mesma alma e um mesmo tudo.<br />

Mas quero ir mais longe, quero entrar nele e ficar ali para sempre, e digo<br />

isso a ele, ou insinuo algo assim tanto quanto minha mente o permite. Ele concorda<br />

com a cabeça; seu suor goteja de sua testa sobre meu peito. Ele o lambe e depois<br />

me levanta sobre ele, ele se deita de costas e diz algo acerca de seu bolso, está em<br />

seu bolso. Baixo uma mão e encontro um tubo de algo («quando ele conseguiu isto?»),<br />

algo que não conheço porque minha mente está frita e é incapaz de formar algum<br />

tipo de compreensão. Me produz uma sensação fria quando <strong>Otter</strong> o aplica em<br />

mim, o noto viscoso e efervescente, e minha pele está viva e em ebulição, e ele está<br />

vivo debaixo de mim. Eu coloco minhas mãos em ambos os lados de sua cabeça<br />

enquanto ele encolhe suas grande pernas sobre seu peito. Noto que ele me agarra e<br />

me guia ao mesmo tempo em que sorri para mim, com o mesmo sorriso torto de<br />

sempre e sei que é <strong>Otter</strong>. Este é <strong>Otter</strong>, e está em casa. Se inclina e me beija com<br />

delicadeza, encontro sua língua, e então, de repente, uma estreiteza envolve meu<br />

pênis, e é uma sensação quente, estranha e maravilhosa. Pressiono devagar porque<br />

não quero lhe fazer dano, mas ele rosna para mim, solta um gemido grave e<br />

faminto, e eu empurro até que meus quadris batam contra os dele. Ele geme, e


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coloco minha testa contra a sua porque a luta por ele é tudo quanto conheci,<br />

mesmo eu sabendo sempre disso ou não. Então ele empurra para trás, e eu balanço<br />

contra ele e ele balança contra mim, e fecho os olhos com força. E enquanto<br />

pronuncia meu nome uma e outra vez em meu ouvido, o único que vejo são<br />

novamente as estrelas, e todas e cada uma delas são douradas, e todas e cada uma<br />

são verdes, porque todas e cada uma são da cor de seus olhos.<br />

*****<br />

Página182<br />

Algum tempo depois (está bem, não mentirei. Não foi tanto tempo assim;<br />

não durei muito) estou estendido sobre ele, com a cabeça recostada sobre as<br />

minhas mãos perto de seu peito. Se inclinou contra a parede que está atrás da<br />

minha cama, com sua mão outra vez em meu cabelo. Me esforço para não pensar<br />

no que acabo de fazer, no que isso me converte, e em grande parte eu consigo. O<br />

fato de que ele olha para mim ajuda, com os olhos cheios de assombro. Não posso<br />

evitar sorrir como um idiota, meu rosto arde e eu o enterro contra ele, e ele ri<br />

baixinho. Começa a fazer frio no quarto, mas <strong>Otter</strong> irradia calor contra mim e<br />

suspiro, aparentemente satisfeito pela primeira vez em muito tempo.<br />

—Bem… isso foi bom. —Diz, divertido.<br />

—Sim? —Pergunto, parecendo uma criança esperando um elogio.<br />

—Sim.—Responde.<br />

Sorrio contra ele. Há um ruído suave dentro da minha cabeça, do qual terei<br />

que me ocupar cedo ou tarde, mas por agora fica em silêncio. Por agora, me<br />

permite saborear este momento.<br />

—E que significa isso? —Pergunto.<br />

E então eu lhe dou uma lambida, com um movimento rápido de minha<br />

língua.<br />

Ele ri de novo, com um som estrondoso que noto sair dele.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Com voz jovial.— Significa o que você quiser que signifique.<br />

Podemos fazer nossas regras agora. Não tem que ser nada que já exista. Somos o<br />

que você quer que sejamos.<br />

Penso por um momento. «O que eu queira que sejamos? Nem sequer eu sei quem<br />

sou.» O ruído em minha cabeça se intensifica um pouco.<br />

—O que você quer que sejamos? —Pergunto, tentando ignorar a repentina<br />

inquietação que sinto.<br />

—Quero que sejamos felizes. —Responde com voz baixa. —E para


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consegui-lo, você tem que ser feliz. Com isso. Comigo. —Sorri satisfeito. —Eu não<br />

posso forçá-lo a fazer isso, por mais que eu gostaria. Posso ouvir os mecanismos<br />

girando dentro de sua cabeça daqui.<br />

Lhe dou um tapa amistoso, tentando descontrair, mas isso me dá o que<br />

pensar. «Agora há duas pessoas que podem me decifrar como se eu fosse um livro aberto»,<br />

medito.<br />

—Não sei. —Lhe digo com uma cara séria. —É possível que tenhamos que<br />

fazer isto um pouco mais até que eu me sinta feliz realmente.<br />

<strong>Otter</strong> revira os olhos e me ergue até seu peito, e eu vertiginosamente<br />

aproveito a curta viagem cheia de fricção contra seu corpo. Ele me beija<br />

suavemente e logo me recosta sobre seu ombro, um lugar que já estou começando<br />

a pensar em ficar. É meu.<br />

—O faremos até que esteja cem por cento satisfeito. — Me sussurra ao<br />

ouvido, o que me provoca calafrios por todo o corpo, como gelo fluindo em meu<br />

interior.<br />

<strong>Otter</strong> cantarola feliz quando nota que estremeço.<br />

Guardamos silêncio por um tempo, somente ele e eu, cada um absorto em<br />

seus pensamentos. O ruído ao fundo da minha mente parece ter deixado de<br />

crescer, e o toco com cautela, provando a temperatura da água. Não ondula tanto<br />

como pensei, mas ainda assim não mergulho nela. Eu não preciso. Como oceano,<br />

que faz ondas, mesmo com a maré ainda baixa, mas me lambe perigosamente os<br />

pés. Fecho os olhos e o olho com irritação, desejando que o que se estendia diante<br />

de mim fosse um deserto. Imagino um vento soprando suavemente através do<br />

meu cabelo, mas com ele chegasse vozes desconexas, dizendo coisas como «o que<br />

você está fazendo?» e «é isso o que você é na realidade?» e «oh, Deus, <strong>Bear</strong>, oh, meu Deus».<br />

Tento ignorá-las e me concentro no calor que sinto debaixo de mim, mas o vento<br />

trouxe sementes e, mesmo que não tenham germinado, começaram fincar raízes.<br />

Eu faço uma careta amarga para elas, sinto raiva de mim mesmo por duvidar<br />

disso, por duvidar dele. «Ele é a única coisa que tenho!» —Grito para o mar. —«Não<br />

se atreva a tirá-lo de mim!» Começo a me sentir melhor quando o oceano se acalma,<br />

mas então uma voz diz: «Não seremos nós que levaremos você para longe, <strong>Bear</strong>. Muito<br />

em breve você vai querer vir para dar um mergulho, mas não seremos nós que o<br />

obrigaremos.»<br />

—Ei. —Diz <strong>Otter</strong>, resgatando-me de minha loucura. Levanto os olhos até<br />

ele, tentando mascarar meu rosto para que não veja nenhum de meus<br />

pensamentos. Ele me beija na testa e anuncia: —Agora você tem que me perguntar


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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algo.<br />

—O quê? —Exclamo, sem saber do que ele está falando.<br />

—Você disse que se me contava o que Anna disse, eu teria que lhe<br />

responder algo. O que você quer saber?<br />

«Ah. Isso», Penso. Volto a me refugiar na curva de seu pescoço e inalo<br />

brevemente. Cheira a <strong>Otter</strong>, e é a melhor coisa que eu já senti. O noto rir baixinho<br />

quando meu alento faz cosquinha ao exalar. «Vá em frente.» —Diz o oceano. — «Vá<br />

em frente, pergunte. Talvez ele salve você de se afogar.»<br />

Penso em não lhe dar ouvidos, que direi a ele que perguntarei algo mais<br />

tarde. Mas, claro, quando abro a boca se derrama o que eu queria dizer realmente.<br />

É minha maldição.<br />

—Sobre o que você e Jonah conversavam quando ele ligou? —sussurro<br />

contra seu pescoço, e noto que fica tenso.<br />

—Você ouviu, não é? Eu já imaginava. —Diz com uma voz serena.<br />

Me afasto dele, necessitando ver seu rosto. Quando o faço, ele sorri<br />

timidamente, e sua mão volta a alisar meu cabelo.<br />

—Não pretendia fazê-lo. —Apresso-me a dizer. —É só que… merda. Não<br />

sei. Eu… queria assegurar-me de que estava bem. Vi a expressão de seu rosto<br />

quando atendeu ao telefonema e…<br />

Não termino a frase, não sabendo como continuar.<br />

Seu sorriso se alarga, e quase volta a parecer normal.<br />

—Você queria ter certeza de que eu estava bem? Sou crescidinho, <strong>Bear</strong>. Sei<br />

como manejar essas coisas.<br />

Olho para ele com a testa franzida, sem querer.<br />

—Eu poderia dizer para você o mesmo de mim. Mas isso não impede que o<br />

faça de todo modo.<br />

<strong>Otter</strong> nega com a cabeça.<br />

—Eu sei, eu sei. —Dá de ombros. —No entanto, não posso evitar.<br />

—Então deixa que eu me preocupe com você. —Lhe disse com seriedade. —<br />

Pare de pensar que eu sou o único que pode desmoronar.<br />

Ele solta um rosnado.<br />

—Sim, senhor. Levarei isso em conta.<br />

—Bom. —Digo, levantando as sobrancelhas.— Vai me dizer ou não?<br />

Suspira, apenas brevemente.<br />

—Era a primeira vez que falava com ele desde que parti. —Disse. —Ele já<br />

tinha ligado várias vezes e havia deixado algumas mensagens, mas eu nunca liguei


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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de volta. Talvez não fosse justo, mas não sabia o que dizer a ele. É… Foi… uma<br />

parte importante da minha vida. Você não pode apagar alguém por completo e<br />

pensar que não terá repercussões.<br />

—Como nós dois não podíamos fazê-lo um ao outro? —Pergunto, tentando<br />

disfarçar a esperança da minha voz.<br />

Ele sacode a cabeça, e sinto frio.<br />

—Não é nada disso, <strong>Bear</strong>. Você tem que querer se livrar de algo assim para<br />

ser capaz de fazer isso. Eu nunca quis afastar você. Não totalmente. Eu disse a mim<br />

mesmo que sim, e Deus sabe que eu tentei, mas isso não aconteceu.<br />

― E eu não estou dizendo que eu queira fazer isso com ele, porque eu não<br />

quero. Não estou dizendo que eu queira estar com ele nem nada, mas quando você<br />

compartilha com uma pessoa tanto quanto nós compartilhamos, isso se torna<br />

quase impossível.<br />

Mantenho o rosto sério, mas em meu interior há uma tormenta se formando<br />

sobre o oceano. Retumbando trovões que ainda estão longe, mas volta a soprar o<br />

vento e temo que está arrastando a tormenta para a costa.<br />

—Eu acho que o amava de certa forma. —Acrescenta <strong>Otter</strong>, com o olhar<br />

perdido como se invocasse uma recordação feliz. —Acho que eu fiz o melhor que<br />

pude. Mas quando ele ligou, foi quase como conversar com um estranho. Não<br />

sabia o que dizer, como agir. Então começou a perguntar quando eu voltarei para<br />

casa, quanto mais ficarei aqui. Ele diz que acreditava que eu precisasse de algum<br />

tempo mais, para resolver o que tivesse que resolver. E então eu me senti um<br />

pouco triste, <strong>Bear</strong>. Digo isto não para machucar você, mas porque quero ser<br />

sincero. Fiquei um pouco triste porque soube que já não consideraria a casa dele<br />

como a minha nunca mais. Era como se uma porta tivesse se fechado de um só<br />

golpe e eu não tivesse a chave para abri-la. —Suspira outra vez e acaricia meu<br />

cabelo. —Não sabia como dizer isso a ele, assim que… não disse. Então me disse<br />

que não queria falar mais e que me ligaria logo. —Ele volta a desviar o olhar. —<br />

Não sei o que lhe diria se o fizesse. —Murmura, mais para si mesmo que para<br />

mim.<br />

—O que quer dizer a ele? —Pergunto devagar, sentindo a água quente<br />

lambendo meus tornozelos. Começo a entrar no mar, mas não posso me deter. O<br />

vento se torna violento e sacode brevemente o meu cabelo. —O que você diria a ele<br />

se pudesse dizer algo?<br />

—Honestamente? —Pergunta ele, e aceno com a cabeça, tentando não olhar<br />

para a tempestade. —Eu o agradeceria. O agradeceria por tudo o que me deu


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página186<br />

durante todos esses dois últimos anos. Eu lhe diria que só quero que ele seja feliz,<br />

como ele me fez. Diria que oxalá pudesse ter-lhe dado tudo o que ele deu a mim.<br />

Esfrega os olhos com sua grande mão. Eu beijo seu peito e me invade um<br />

pensamento irracional, que me pede que lhe morda, que o marque como minha<br />

propriedade. Nunca vi esse homem do qual estamos falando, mas eu o odeio.<br />

Odeio que tenha compartilhado uma parte da vida de <strong>Otter</strong> que eu não<br />

compartilharei nunca. O odeio porque eu levei <strong>Otter</strong> até ele. O odeio porque não<br />

parece uma pessoa merecedora de ser odiada.<br />

—Mas... —Prossegue <strong>Otter</strong>. — O principal que eu gostaria de lhe dizer é<br />

que não deveria me esperar. Que, pensando sobre isso agora, tenho a sensação de<br />

que eu só estava esperando o momento propício. Isso parece duro, já sei. —(Na<br />

verdade, eu acho que soa perfeitamente bem)— Mas é a verdade. Ele me deu<br />

muito, mas nunca teria bastado. —Olha para mim com ar pensativo. —Nunca teria<br />

bastado.—Diz.— Porque não era você.<br />

—Você tem certeza de que eu posso sê-lo? —Pergunto com voz rouca. —<br />

Você tem certeza de que eu posso ser o suficiente para você?<br />

Ele toma meu rosto entre suas mãos, e de novo não existe nada além dele no<br />

mundo. Seus olhos soltam chispas, pelo menos nesse momento, sinto que a<br />

tempestade se afasta. As águas secam e as nuvens se dissipam, e creio que é devido<br />

a ele.<br />

—Independentemente se eu sabia disso completamente ou não. —Diz—<br />

Você era com quem eu comparava tudo. Sempre será suficiente porque é você<br />

quem eu sempre quis. E eu ainda não posso acreditar que tudo isso é real, que vou<br />

acordar e me encontrarei em San Diego, e tudo voltará a estar como antes. Quando<br />

não estávamos falando durante anos e o único que tenho de você é uma foto, e o<br />

único que você tem de mim é uma carta. — Sua voz se torna tênue e pastosa. —Se<br />

isso ocorrer, se desperto e nada disso é verdadeiro, pegarei o primeiro voo para cá,<br />

para torná-lo realidade. Tem que acreditar em mim quando digo isso, papai <strong>Bear</strong>.<br />

—Mas por que, <strong>Otter</strong>? Por que acha isso? —Eu pergunto, necessitando de<br />

repente estar seguro, necessitando que ele o diga. Sei que está aí, aflorando em<br />

seus lábios, e mesmo que eu não possa dizer isso de volta, necessito ouvi-lo,<br />

assegurar-me daquilo que meu coração deseja. —Não fiz nada para merecer você.<br />

—Acrescento, fungando. —Eu afastei você, e ainda assim você voltou.<br />

Ele sorri, e é o sorriso de <strong>Otter</strong>.<br />

—Por quê? Por que eu penso isso? Por que voltei me arrastando,<br />

praticamente suplicando o seu perdão? Pensei que você fosse mais inteligente.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Pensei que você soubesse.<br />

—Diga! —Grito a ele.<br />

Ele se inclina e me beija, longa e intensamente. Eu lhe correspondo,<br />

duramente e às cegas. Quando se afasta, apenas um pouco, com seus lábios ainda<br />

roçando os meus. Noto como se movem quando fala.<br />

—Oh, <strong>Bear</strong>. Sempre foi você. Sempre será você. Eu amo você, e é por isso<br />

que sempre será suficiente.<br />

Página187


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

8<br />

Onde <strong>Bear</strong> fica olhando para o sol<br />

Página188<br />

Eu sei que vocês provavelmente estão se perguntando se eu respondi<br />

alguma coisa. Eu não fiz, mas antes que fiquem irritados e me digam algo assim<br />

como: «Pelo amor de Deus, <strong>Bear</strong>, mas ele foi tão doce, tão terno e vulnerável», devem<br />

saber que tenho minhas razões. Pode ser que as nuvens se dissiparam e o oceano<br />

voltou para o lugar de onde tinha vindo, mas eu sabia que ele ainda estava ali, em<br />

alguma parte. Tratar de conciliar essa mudança absoluta que estive<br />

experimentando se tornou mais esgotante do que havia pensado. Durante dias,<br />

não quis outra coisa que dormir em minha cama sozinho ou com ele. Ainda que<br />

quando durmo com ele, geralmente durmo rapidamente quando me recosto sobre<br />

o travesseiro. Tenho o corpo letárgico e os pensamentos confusos, mas não é tão<br />

ruim. Ouvi-lo dizer o que me disse me proporcionou um novo conhecimento de<br />

quem eu sou e quem eu quero ser. Se alguém pode se importar comigo a esse<br />

ponto, a despeito de todos os meus defeitos, a despeito de todas as vezes que eu o<br />

desprezei, apesar de tudo isso, isso faz com que todas as tempestades e todos os<br />

oceanos valham a pena. Só espero que eu possa recordar isso. É um pensamento<br />

com o qual durmo, e é com ele que eu acordo. É meu mantra, e eu o repito tantas<br />

vezes que sei que ele é real.<br />

Mas, eu o amo? Não sei. Não me interpretem mal, eu sempre amei <strong>Otter</strong>,<br />

mas não da maneira que estamos falando agora. Se eu o amo de verdade (Deus,<br />

que pobre soa isso), é de uma maneira que eu nunca senti antes. Penso<br />

frequentemente no que eu sentia por Anna. Tento comparar os sentimentos, mas<br />

não é possível. Existem diferenças demais entre ambos (Tirando o fato de que um<br />

tem um pênis) que parece que não posso sentir nunca por Anna o que sinto por<br />

<strong>Otter</strong>. Mas sei que nunca poderia sentir por <strong>Otter</strong> o que Anna e eu sentíamos.<br />

Lembro-me do que Ty disse aquele dia em que fomos a Portland buscar Creed.<br />

Somente transcorreram umas semanas, mas me parecem anos. Ele disse que era<br />

como se seu estômago queimasse mas de uma forma agradável. Disse que era<br />

como se não pudesse passar outro dia mais sem essa pessoa. Eu lhe havia dito que<br />

era quando essas estúpidas músicas de amor do rádio começavam a fazer sentido.<br />

A única razão pela qual creio que ambos temos razão é que o seu raciocínio tem<br />

sentido, mas me surpreendo cantando uma canção de Celine Dion que toca no


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página189<br />

rádio.<br />

E então eu entendo.<br />

Assim, pois, o que significa tudo isso? Eu gostaria de saber. Parece que<br />

ainda não posso me livrar dos sombrios ciúmes sem sentido que experimentei<br />

quando <strong>Otter</strong> falava de Jonah. Sei que está aqui comigo agora, e diz que não irá a<br />

nenhum lugar, mas não posso evitar pensar que seu passado não está enterrado<br />

como eu gostaria. Se expressou perfeitamente quando disse que não pode apagar<br />

sua história sem mais nem menos, e eu goste ou não, Jonah faz parte da vida de<br />

<strong>Otter</strong>. Talvez não seja uma parte atual, mas está aí. <strong>Otter</strong> não me deu nenhum<br />

motivo para duvidar dele desde que iniciamos o que quer que estejamos fazendo.<br />

Tento me concentrar nisso. Mas, às vezes, noto as ondas lambendo meus pés e<br />

ouço o retumbar de uma tempestade ao longe. Nunca se aproxima, mas sempre<br />

está ali. Me sinto estranhamente entusiasmado por tudo isso. Parece perigoso,<br />

secreto e equivocado, mas, oh! Tão bom. É como fazer algo errado mas sabendo<br />

que não te pegarão. É como ganhar sem motivo, apenas ganhar.<br />

É como tomar banho no oceano enquanto há relâmpagos sobre sua cabeça.<br />

Ty sobreviveu à sua noite fora de casa com êxito, para meu assombro. <strong>Otter</strong><br />

e eu fomos buscá-lo no dia seguinte, e a senhora Herrera me disse que ele havia se<br />

comportado como todo um cavalheiro e que podia ir para sua casa sempre que<br />

quisesse. Me disse que ela e seu marido levariam Alex para ac<strong>amp</strong>ar tão logo<br />

acabem as aulas e queriam convidar Ty para ir com eles. Respondi que pensaria<br />

nisso. O que na verdade estava pensando era que de nenhuma maneira eu iria<br />

permitir que alguém o levasse da cidade. Tanto <strong>Kid</strong> como <strong>Otter</strong> me repreenderam<br />

durante todo o trajeto para casa, pois meus pensamentos se refletiam visivelmente<br />

em meu rosto, em forma de uma testa franzida que pensei haver ocultado.<br />

—Eu realmente estou sendo irracional? —Me queixei aquela noite a <strong>Otter</strong><br />

pelo telefone depois que Ty foi dormir. —Pensei que eu estava fazendo muito bem<br />

aqui.<br />

Ele começou a rir pelo telefone.<br />

—Creio que vocês dois têm que dar passos de bebês. —Respondeu. —Tenho<br />

certeza de que isso é tão difícil para ele como é para você.<br />

Eu gostaria de poder ter acreditado nele, mas <strong>Kid</strong> parecia avançar a saltos e<br />

passos de gigante. Nos poucos dias que se seguiram a sua incursão na<br />

normalidade deu a impressão de que Ty se dava conta de tudo o que havia estado<br />

perdendo. Ele já não se agarrava a mim como antes e esteve me perturbando para<br />

que o deixasse ir a esse maldito ac<strong>amp</strong>amento. Eu lhe dizia que conversaríamos


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Página190<br />

quando se aproximasse da data, ele sorria alegremente e voltava a tocar no tema<br />

uma hora depois. É egoísmo de minha parte não dizer sim, eu sei, mas não posso<br />

evitar a sensação de que nós dois estamos sendo puxados em direções opostas, ele<br />

com sua florescente liberdade e eu com minha recém adquirida apreensão de tudo<br />

o que <strong>Otter</strong> representa. Eu me pergunto frequentemente se a maioria dos pais<br />

passam por isso, vendo seus filhos descobrirem o que a vida tem a oferecer e não<br />

podendo impedi-lo. Eu não sou seu pai, mas sou o mais parecido que tem de um<br />

pai e creio que meus sentimentos estão justificados; pelo menos, isso é o que digo a<br />

mim mesmo quando permaneço acordado depois que todos vão dormir. Tanto ele<br />

como eu, sabemos muito bem que este mundo tem dentes e atacará quando mais<br />

dócil pareça.<br />

E assim seguimos: Ty encontrando-se a si mesmo pela primeira vez em três<br />

anos e eu encontrando-me a mim mesmo pela primeira vez em minha vida. Os<br />

poucos dias que nos restam antes de Creed voltar foram os melhores e os piores da<br />

minha existência. Desfrutava tendo <strong>Otter</strong> só para mim, sem necessidade de<br />

responder perguntas. Me acovardava ao ver Ty chegar a escola entre uma<br />

multidão de amigos que lhe esperavam. Gemia quando <strong>Otter</strong> encontrava esse<br />

ponto na parte interior da minha coxa que me fazia esquecer, inclusive, como me<br />

chamava. Suspirava quando ia trabalhar e via que Anna não entrava até depois<br />

que eu fosse embora. Me preocupava a medida que a volta de Creed se<br />

aproximava cada vez mais e nada seria o mesmo, a menos que estivesse disposto a<br />

me confessar culpado de algo pelo qual havia estado lutando desde aquela noite.<br />

Nesses últimos dias tive orgasmos trêmulos, períodos de profundo colapso no<br />

desespero e momentos de paz como nunca senti antes. Experimentar tantas coisas<br />

tão rapidamente basta para levar a alguém ao limite.<br />

—Então, quando você volta? —Pergunto a Creed enquanto observo <strong>Otter</strong> e<br />

Ty jogando xadrez em nossa casa.<br />

<strong>Otter</strong> me disse que ele é muito bom, mas pelo que vi do ecoterrorista<br />

vegetariano em aprendizado, bem poderia ser Bobby Fischer 18 disfarçado. Não sei<br />

como aprendeu; eu nunca levantei uma única peça de xadrez em minha vida. O<br />

vejo romper o silêncio de cinco minutos movendo uma figura parecida a um<br />

castelo quadrado, e <strong>Otter</strong> geme.<br />

—Provavelmente mais cedo. —Responde Creed ao meu ouvido. —Quero<br />

voltar e não provar vodka nunca mais. É a bebida do diabo.<br />

18<br />

Robert "Bobby" James Fischer foi um famoso enxadrista originalmente norte-americano, naturalizado<br />

islandês e ex-c<strong>amp</strong>eão mundial de xadrez.


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Página191<br />

—O que você está fazendo agora?<br />

—Tomando vodka. Você sabia que eles fazem com sabor de framboesa?<br />

Eu rosno.<br />

—Enfim. —Diz.—Prometo não ir a nenhuma parte até que tenha que voltar<br />

à faculdade. Podemos nos ver todas as vezes que queira.<br />

—Genial. —Respondo, tentando disfarçar o tremor de minha voz.—Isso<br />

soa… genial.<br />

Creed começa a rir.<br />

—Por que tenho a sensação de que não diz a sério? O que aconteceu desde<br />

que parti?<br />

—Nada. —Respondo. —O de sempre. Já sabe como é Seafare.<br />

—Sei. —Diz. — Sério, papai <strong>Bear</strong>. Você está bem?<br />

—Estou bem. — Afirmo, com a testa brilhando de suor. —Melhor que<br />

nunca.<br />

—Se você diz… —Se detém um momento antes de perguntar: —<strong>Otter</strong> está<br />

aí?<br />

—Ah, sim. Quer falar com ele? Agora mesmo está perdendo uma partida de<br />

xadrez para um garoto de nove anos.<br />

<strong>Otter</strong> me lança um olhar maligno.<br />

—Não. —Responde Creed. —O verei amanhã.<br />

—Bem. Divirta-se com sua vodka.<br />

—Ei. —Diz.<br />

—Ei, você. —Respondo.<br />

Creed vacila, e não quero saber o que lhe passa pela cabeça.<br />

—Não importa. Falaremos quando voltar. Até logo, cara.<br />

Ele soa estranho. Meu suor se intensifica.<br />

Consulto meu relógio quando desligo o telefone.<br />

—Ty, é hora de deitar.<br />

Suspira e se retira da mesa.<br />

—Está bem. <strong>Otter</strong> estava sendo aniquilado. Ia ganhar dele nas quatro<br />

jogadas seguintes.<br />

—Eu não estava sendo aniquilado. —Responde <strong>Otter</strong> com indignação em<br />

sua voz.<br />

Ty estica um braço sobre o tabuleiro e lhe mostra as quatro jogadas<br />

seguintes. <strong>Otter</strong> revira os olhos.<br />

—Existe alguma coisa na qual você não é bom? —Pergunta a <strong>Kid</strong>.


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Página192<br />

Ty dá de ombros.<br />

—Não que eu saiba. Mas estou certo de que haverá algo.<br />

Rio baixo enquanto <strong>Otter</strong> olha para o tabuleiro com a testa franzida. Estou a<br />

ponto de dizer a <strong>Kid</strong> que mova sua bunda quando seu rosto se contrai como fazia<br />

antes de executar uma jogada, como faz quando pensa em coisas sérias. Solto um<br />

gemido por dentro, pouco disposto a responder as perguntas de Ty acerca de por<br />

que as pessoas acreditam que os alienígenas desenham círculos nas plantações<br />

quando é evidente que o fazem os agricultores entediados; ou como resolver a<br />

fome do mundo de uma forma vegetariana. Balanço a cabeça e espero. <strong>Otter</strong> olha<br />

para ele, olha para mim e logo se reclina em sua cadeira. Ele sabe.<br />

—Derrick? —Diz <strong>Kid</strong> por fim.<br />

—Sim, Ty? —Respondo.<br />

—Posso fazer uma pergunta?<br />

Não posso evitar de sorrir.<br />

—Você sempre faz. —digo, zombando dele.<br />

—Tem que me prometer que não ficará bravo. —Me adverte, o que é<br />

novidade.<br />

<strong>Kid</strong> nunca introduziu uma pergunta desse modo. Me vem pensamentos à<br />

cabeça, tentando discernir qualquer situação possível na que acredita que eu<br />

ficaria bravo com ele. Não me ocorre nada, e não tenho mais remédio que prometer<br />

a ele. Durante um momento não diz nada, como se avaliasse a sinceridade de<br />

minhas palavras. Olha despreocupadamente para <strong>Otter</strong> e depois para mim, e justo<br />

quando abre a boca e antes que fale eu sei o que sairá, o que dirá, e disponho<br />

somente de uns segundos para optar entre mentir ou ser sincero com uma das<br />

poucas pessoas que dão importância ao que digo.<br />

—<strong>Otter</strong> é seu namorado? —Pergunta.<br />

—O quê? —Exclamo, tentando ganhar tempo.<br />

De repente <strong>Otter</strong> se ergue muito reto em sua cadeira. Tem os olhos<br />

arregalados e olha para <strong>Kid</strong> com a cabeça inclinada, como se tentasse determinar se<br />

ouviu bem o que Ty acaba de perguntar.<br />

—O quê?<br />

—<strong>Otter</strong> é seu namorado? —Repete <strong>Kid</strong>.<br />

O sangue corre pelo meu rosto quando digo:<br />

—Por que pergunta?<br />

A culpa que sinto por não poder responder à sua pergunta logo em seguida,<br />

é superada facilmente pela crescente sensação de horror que experimento. Mas


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página193<br />

tudo isso é eclipsado pela palavra «namorado». Nunca o considerei assim. É isso o<br />

que <strong>Otter</strong> é para mim? Meu… namorado? Sim, <strong>Otter</strong> é alguém que me importa<br />

(«Importa?» —Pergunta a voz. —«Qual é, <strong>Bear</strong>»), mas nunca havia estabelecido essa<br />

relação com o que temos. Nem sequer sei o que temos. Claro que me faz coisas que<br />

fazem com que minha cabeça dê voltas, e canto junto com Celine Dion, mas daí a<br />

dizer que é meu… que sou seu… enfim, já sabe. Olho para <strong>Otter</strong> em busca de<br />

ajuda, mas ele ainda segue observando <strong>Kid</strong>, com a boca aberta.<br />

— É algo no que estive pensando esses dias. —Explica Ty. —Não sabia se<br />

devia perguntar, mas então pensei que sempre é melhor perguntar que ficar<br />

especulando. —Seu semblante se relaxa e sorri para mim com cautela. —Isto é<br />

certo?<br />

Não sei o que dizer.<br />

Deveria lhe assegurar que, logicamente, está tudo bem em fazer perguntas.<br />

Deveria lhe dizer que sempre poderá vir até mim quando tenha algo na cabeça.<br />

Todas estas palavras e mais se formam em minha mente, mas descarrilam e<br />

morrem a caminho da minha boca. Penso absurdamente por um momento em<br />

como não me perguntou se eu era gay quando perguntou se <strong>Otter</strong> o era. Ele não<br />

havia pretendido etiquetar-me nesse sentido, senão perguntar, a sua maneira, se<br />

<strong>Otter</strong> era meu e se eu era dele. Isto não para de dar voltas em minha cabeça, e volto<br />

a pensar em como queria que me ocorresse o que <strong>Otter</strong> é para mim.<br />

«Então por que não pode lhe responder? » —Pergunta a voz. —«Por que fica aí<br />

sentado como se tudo fosse desaparecer se você o ignorar? Se tão estranhamente lhe<br />

entusiasma a ideia de que ele é seu, por que não pode responder a maldita pergunta? Ele<br />

tem nove anos! Tem nove anos e suficiente coragem para perguntar coisas sobre as quais<br />

nem sequer se atreve a pensar.»<br />

—Isto é certo. —Digo a <strong>Kid</strong> em voz baixa, e se mostra aliviado no ato.<br />

Lança um olhar a <strong>Otter</strong>, que agora concentrou sua atenção em mim, com<br />

uma expressão de admiração e manifesta adoração em seu rosto. Gostaria que<br />

pudesse ver até que ponto se aproximou a tempestade.<br />

—Ty. —Diz <strong>Otter</strong>, desviando o olhar de mim para se concentrar em <strong>Kid</strong>. —<br />

Na realidade <strong>Bear</strong> e eu não… falamos sobre o que somos. Isso é algo muito novo<br />

para nós dois.<br />

—É por isso que Anna e ele terminaram? —Lhe pergunta <strong>Kid</strong>.<br />

<strong>Otter</strong> nega com a cabeça<br />

—Não foi só isso. Havia muitas coisas de adultos entre eles, coisas que não<br />

tem nada a ver contigo nem comigo. As vezes acontece isso com as pessoas.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página194<br />

—Eu sei disso. —Responde <strong>Kid</strong> rapidamente. —Algumas pessoas não estão<br />

destinadas a ficarem juntas. Mas isso não significa que não podem continuar se<br />

gostando.<br />

<strong>Otter</strong> ri trêmulo.<br />

—Isso é certo. E <strong>Bear</strong> e Anna se amam muito, e nós te amamos muito. —<br />

Sorri. —Mas, inferno, <strong>Kid</strong>. Você me pegou desprevenido com essa pergunta.<br />

Ty olha para suas mãos.<br />

—Significa que você também ama a <strong>Bear</strong>?<br />

—Sim. —Responde <strong>Otter</strong> sem vacilar. —Significa que eu amo <strong>Bear</strong>.<br />

—Então é seu namorado.<br />

—Ty, ele disse a você que ainda não falamos sobre isso. —Intervenho, com<br />

mais aspereza do que pretendia. —É algo que <strong>Otter</strong> e eu devemos resolver.<br />

Ty não compreende e não deixa o assunto.<br />

—Mas, <strong>Bear</strong>. —Diz— Se <strong>Otter</strong> ama você e você o ama, por que não o chama<br />

de seu namorado? —Entrecerra os olhos. —Você ama <strong>Otter</strong>, não é?<br />

—Eu… eu… eu…<br />

Me assombro de quão bom sou em gaguejar.<br />

<strong>Otter</strong> vem em meu auxilio mais uma vez:<br />

—Como eu disse, <strong>Kid</strong>, ainda estamos tentando entender as coisas. Tudo isso<br />

é muito novo para o papai <strong>Bear</strong>, e devemos deixá-lo pensar sobre essas coisas por<br />

si mesmo.<br />

Ty sacode a cabeça e olha para <strong>Otter</strong> com tristeza.<br />

—Espero que você saiba... —Lhe diz— Que só porque ele não pode<br />

expressá-lo não significa que não o sinta. Ele sempre foi assim, seja o que for que<br />

tenha que entender, espero que você possa permitir isso a ele.<br />

Eu quero correr para <strong>Kid</strong> e levantá-lo em meus braços. Quero cobrir-lhe de<br />

tudo aquilo que eu possa lhe dar, porque sempre encontra formas de demonstrarme<br />

que me conhece melhor que eu mesmo.<br />

—Eu sei. —Diz <strong>Otter</strong>, acariciando as mãos de Ty. —E eu não esqueci o que<br />

lhe prometi. Mas creio que você já sabe.<br />

Ty acena, se levanta da mesa, se dirige até <strong>Otter</strong> e recosta a cabeça sobre seu<br />

ombro. <strong>Otter</strong> o rodeia com seus grandes braços, o estreita com força e o beija no<br />

topo de sua cabeça. De onde estou, ouço <strong>Kid</strong> sussurrar algo a <strong>Otter</strong>. Diz: «Obrigado<br />

por cuidar de <strong>Bear</strong>. Ele necessitou disso durante muito tempo.» Se afasta de <strong>Otter</strong>, se<br />

volta e se encaminha devagar até mim.<br />

—Não me importa quem você seja. —Diz, com voz clara e forte. —Não me


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

importa que ame de uma forma diferente dos demais. Não me importa porque<br />

ainda assim é meu irmão.<br />

Ele me dá a sua mão e eu abaixo o olhar para esse garotinho, essa pessoa<br />

que é mais sábia do que eu poderia ser nunca. Aperto sua mão com força e ele<br />

também, e sei que sabe tudo o que eu não posso dizer. Me faz agachar com um<br />

sinal com o dedo, me inclino para frente e me sussurra ao ouvido: «Fico feliz que<br />

<strong>Otter</strong> tenha voltado. Me alegro de que o encontrasse novamente. Mas, se não se importa, eu<br />

continuarei gostando das garotas.»<br />

Dito isso, sai da cozinha, cantarolando para si.<br />

Acho que eu já disse a vocês que ele é uma das poucas pessoas no mundo<br />

que pode me deixar sem fala. Mas, alguma vez já aconteceu com vocês que todos<br />

os seus neurônios se chocam e sua mente fica em branco? Não é que não possa<br />

falar, porque em geral, em situações de saturação dos neurônios, passam um<br />

bilhão de coisas por sua cabeça e você é incapaz de escolher o que dizer. Me refiro<br />

a não ter nenhum pensamento concreto, nenhuma resposta, refutação, negação…<br />

nada que venha à sua mente. É quase maravilhoso não ter nada o que dizer.<br />

Apenas a branca e pura felicidade.<br />

******<br />

Página195<br />

—Você está bem? —Pergunta <strong>Otter</strong>.<br />

Acaba de regressar depois de dar boa noite a <strong>Kid</strong> e me encontrou no mesmo<br />

lugar que ocupava desde que Ty começou a fazer perguntas. Fui incapaz de me<br />

mover e ainda estou tentando colocar meu cérebro de volta em funcionamento.<br />

Tudo quanto posso fazer é assentir com a cabeça.<br />

<strong>Otter</strong> sorri e se coloca de frente para mim. Esfrega meus braços e minhas<br />

costas.<br />

—Um dia desses vou averiguar como diabos <strong>Kid</strong> ficou tão inteligente.—Diz<br />

com voz risonha. —Ele não deixa escapar nada.<br />

—Quando descobrir, me deixe saber. —Digo fracamente, reencontrando por<br />

fim minha voz.<br />

Meu cérebro é lento, mas girou e finalmente começa a funcionar. Posso<br />

respirar fundo, mas o reinício me deixou incapaz de processar qualquer coisa.<br />

—Não creio que saibamos nunca. —Responde <strong>Otter</strong>, beijando minha testa.<br />

—Mas suponho que não há nenhum problema. Será uma dessas pessoas que


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página196<br />

dizem algo e no instante seguinte tem um milhão de seguidores. —Ele ri de novo.<br />

—Sei que eu sou um deles.<br />

Reviro os olhos.<br />

—O quê? Como o evangelho segundo <strong>Kid</strong>? Ele será capaz de dizer qualquer<br />

coisa que você não sabia que estava pensando?<br />

<strong>Otter</strong> arqueia uma sobrancelha.<br />

—Você nunca pensou sobre isso? —Ele me repreende. —Em nada disso?<br />

Olho para ele com a testa franzida.<br />

—Basta. Você já sabe a que me refiro. Como diabos percebeu algo sobre<br />

isso? Fomos cuidadosos, pelo amor de Deus! —Eu estreito os meus olhos enquanto<br />

o olho com receio. —Você lhe disse alguma coisa?<br />

—Ora, vamos. —Zomba. —De verdade acredita que eu faria uma coisa<br />

assim?<br />

—Não. —Respondo de má vontade. —Mas não posso ter sido tão evidente,<br />

não é? Ele é fodidamente perceptivo ou algo assim.<br />

<strong>Otter</strong> bufa.<br />

—Realmente importa se é evidente ou não? —Pergunta. —<strong>Kid</strong> estava muito<br />

bem com isso. De fato, está muito contente. Quem se importa como ele descobriu?<br />

Afasto um passo de <strong>Otter</strong> e enfio as mãos nos bolso.<br />

—Eu me importo. —Digo irritado. —Se uma criança de nove anos pode se<br />

dar conta, o que faremos com todos os demais?<br />

A felicidade branda, a sensação de apagão, desapareceu. Em seu lugar o<br />

oceano está enchendo as fissuras do fundo do mar, o vento sopra com fúria ao meu<br />

redor e me sinto como se estivesse à beira de algo e não pudesse retroceder nem<br />

um passo. Não consigo entender como passei de sentir vazio a isto, em tão pouco<br />

tempo, mas aí está e não posso me desfazer disso.<br />

—Seu irmão... —Provoco <strong>Otter</strong>. —Meu melhor amigo, chega amanhã em<br />

casa. O que diabos vamos fazer a respeito?<br />

Lembro-me vagamente de falar com Creed por telefone há pouco tempo<br />

atrás (ou passou mais tempo que isso? Dias? Meses? Anos?) e estar a ponto de lhe<br />

contar tudo.<br />

—Qualquer coisa que decidamos fazer. —Responde <strong>Otter</strong>, mostrando-se<br />

irritado. —Se não quer lhe dizer nada, está bem. Mas é meu irmão, e é seu melhor<br />

amigo, e acho que isso lhe outorga certo direito a saber. O que você acha que<br />

acontecerá se ele descobrir? Que não vai falar com você nunca mais?<br />

Balanço a cabeça com indignação.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página197<br />

—Não sei o que vai acontecer, nem quero saber. Você me disse... —Lhe<br />

sinalei com um dedo.— Que me daria algum tempo para resolver isso. Você sabe<br />

que eu não sei o que diabos estou fazendo. Você sabe que isso é a coisa mais<br />

assustadora que já fiz em minha vida.<br />

Seu rosto se suaviza, fecha a distância que nos separa e pega a minha mão.<br />

Quero soltá-la, mas sua grande mão tem um aperto bem firme em mim e seria<br />

inútil. Eu olho para o chão com irritação, querendo regressar ao estado de vazio.<br />

Relâmpagos e trovões retumbam, e me pergunto o que aconteceria se houvesse um<br />

terremoto na beira desse oceano. Eu me pergunto se os tremores bastariam para<br />

me tragar inteiro. Eu penso incoerentemente em maremotos.<br />

—Eu sei. —Diz <strong>Otter</strong> amavelmente. —Sinto muito que lhe pareça que quero<br />

obrigá-lo a fazer algo, porque é a última coisa que gostaria. Faremos à sua maneira.<br />

Eu prometo.<br />

—Desculpe. —sussurro.<br />

Ele, então, me abraça, e me recosto comodamente em meu lugar sobre seu<br />

ombro. Ele é grande, muito mais corpulento que eu, e espero que isso baste para<br />

resguardar-me do que possa vir. Ele acaricia minhas costas e as águas recuam até<br />

se perderem de vista. Ainda posso ouvir a sutil cacofonia das ondas, mas soa<br />

atenuada pelo refúgio que se levantou ao redor de mim.<br />

—Eu sei, papai <strong>Bear</strong> —Diz <strong>Otter</strong> de algum lugar acima de mim, suas<br />

palavras amortecidas pelo meu cabelo. —Mas às vezes você tem que confiar em<br />

mim, ok? Já sei que é difícil acreditar, mas de vez em quando sei do que estou<br />

falando.<br />

—Eu confio em você. —Suspiro. —É comigo que tenho dificuldades.<br />

Ele se afasta, pega meu rosto entre suas mãos e me beija com doçura. Exibe<br />

seu sorriso torto, e seus olhos voltam a mostrar tudo aquilo que sente por mim,<br />

todas as emoções manifestas em seu rosto. As águas se aproximam um pouco, mas<br />

não tanto como antes. Ele acaricia minha bochecha e ri baixinho.<br />

— O que é tão engraçado? —Pergunto.<br />

—Bem, tirando o fato de que Ty sabe sobre nós, descobrimos outra coisa<br />

interessante.<br />

—Qual? —Pergunto, perplexo.<br />

Arqueia uma sobrancelha.<br />

—Que você me ama.<br />

Fico boquiaberto.<br />

—Claro que não!


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Lhe dou um soco no ombro com toda a minha força. Ele estala em<br />

gargalhada e tenta se afastar, mas salto sobre suas costas e envolvo os braços em<br />

seu pescoço. Se dirige para sala tropeçando. Aperto meus joelhos ao seu redor e<br />

bato em seu peito com as mãos. <strong>Otter</strong> se rompe em gargalhadas, e sei que não o<br />

estou machucando mais que uma mosca incômoda, quando consegue mover um<br />

braço para trás, me solta de suas costas e me lança por cima do ombro até o sofá.<br />

Caio de lado, e ele cai em cima de mim, sorrindo o seu sorriso e o verde-ouro<br />

brilhando, se inclina para frente e sussurra ao meu ouvido: «Claro, eu t<strong>amp</strong>ouco te<br />

amo, papai <strong>Bear</strong>.» Então sua boca se pega à minha e, por um momento, aquela<br />

sensação de felicidade volta, mas esta vez vem acompanhada de algo mais, algo<br />

que sei que se parece curiosamente ao sol.<br />

*******<br />

Página198<br />

—Portanto, antes de chegarmos lá, temos que conversar sobre algumas<br />

coisas. —Falo para <strong>Kid</strong>, tentando ocultar o nervosismo que sinto. —Para que<br />

estejamos de acordo.<br />

Ty baixa o vidro da janela do carro e coloca uma mão, para deixar que a<br />

brisa sopre em seus dedos. Seu cabelo, recém cortado, se agita sobre sua cabeça, e<br />

ele olha para mim com certa expectativa.<br />

—Se refere a você e a <strong>Otter</strong>? —Pergunta sem rodeios.<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Eu apenas quero me assegurar de que você entende o que falamos ontem<br />

à noite. De que… —Aperto o volante com força. —De que <strong>Otter</strong> é… é…<br />

— Seu namorado?<br />

Suspiro. Isto não está indo bem, mas é minha culpa.<br />

—Como você descobriu isso? —Pergunto a ele com curiosidade, olhando<br />

fixamente para frente.<br />

Noto que ele encolhe os ombros.<br />

—Eu… não sei. Acho que percebi depois que você e Anna terminaram, e<br />

que ele esteve conosco com muito mais frequência. Não eram muito amigos antes<br />

disso.<br />

—E isso é tudo? —Pergunto, incrédulo.<br />

Nega com a cabeça.<br />

—Não, não foi só isso. Sabia que <strong>Otter</strong> era gay, e sabia que amava você pela


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página199<br />

forma que o olhava. É a mesma forma que Anna olhava para você. —Me encolho,<br />

maldizendo a Deus por haver dado a <strong>Kid</strong> a capacidade de observar mais que todos<br />

os outros juntos. —E faz alguns dias que vi que você olhava para <strong>Otter</strong> da mesma<br />

maneira. —Acrescenta, voltando a colocar o braço dentro do carro. Cruza os braços<br />

sobre o peito e olha para mim acusadoramente. —Por que não diz a <strong>Otter</strong> que o<br />

ama? —Pergunta <strong>Kid</strong>. —É tão difícil assim dizer a ele o que sente?<br />

—Não é tão fácil como você insinua. —Respondo apertando os dentes.<br />

Ele revira os olhos.<br />

—Bem, com certeza não é tão difícil como você insinua. —Replica. —Eu<br />

acho que se você encontra alguém que ama você tanto como ele, faria qualquer<br />

coisa para se assegurar de que saiba que você sente o mesmo. Pelo menos , assim é<br />

como eu gostaria que fosse.<br />

—Nem tudo é preto no branco, Ty! —Exclamo, deixando-me dominar pela<br />

exasperação. Eu quero acreditar que tudo é tão simples como ele diz. Mas, por<br />

mais inteligente e sábio que seja, tenho que lembrar que ele não é mais que uma<br />

criança. Um garoto muito maduro, mas não deixa de ser uma criança. —As coisas<br />

não podem ser sempre de uma determinada forma só porque você quer!<br />

—Por que não? Por que as pessoas se importam tanto com quem você ama?<br />

Você não prejudica a ninguém, não é?<br />

—Que eu saiba, não. — Respondo, tentando afastar minha mente dos<br />

pensamentos sobre Anna.<br />

—E você não está fazendo nada de errado?<br />

—Não, Ty.<br />

Então agita as mãos no ar.<br />

—Então quem se importa? Nunca entenderei por que as pessoas não deixam<br />

que os outros sejam como são. De qualquer forma não os afetam em nada. —Se<br />

volta e olha para mim com a testa franzida. —E até que você se dê conta disso... —<br />

Acrescenta com voz baixa.— Como você vai poder ser justo com <strong>Otter</strong>?<br />

—Não se trata somente de ser justo com <strong>Otter</strong>. —Respondo, sem conseguir<br />

conter minha ira. —Se somente fosse isso, as coisas seriam muito mais simples de<br />

como são. Tenho muitas outras coisas com que me preocupar, <strong>Kid</strong>. —Logo adiante,<br />

o tráfego se detém, e lanço um olhar para Ty. —Nunca pensei em nada parecido, e<br />

muito menos imaginei-me fazendo isso. Isso muda tudo para mim, e levará muito<br />

tempo para que eu possa assimilar. E além do mais, tenho que pensar em tudo o<br />

que estava acontecendo antes. O fato de que <strong>Otter</strong> esteja aqui e esteja ocorrendo<br />

isso, não significa que minha vida tenha que parar totalmente para poder me


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Página200<br />

concentrar nele. Ainda tenho responsabilidades. Meu emprego, nossa casa, você.<br />

Não posso deixar que ele seja o único ao qual dirijo todos os meus esforços.<br />

Ty faz uma careta para mim.<br />

—Nem se atreva a me colocar nisso. Estou bem, muito obrigado. —Volta a<br />

olhar pela janela. —Melhor do que estive em muito tempo. —Murmura. —Papai<br />

<strong>Bear</strong>, você também tem que ter sua vida. Se não pode fazer agora, então, quando?<br />

É o mesmo velho argumento que tenho ouvido milhares de vezes de mil<br />

pessoas diferentes. «Quando fará algo para você, <strong>Bear</strong>?» —Dizem. —«Quando vai se<br />

colocar na frente dos demais?» Mas nunca ouvi isso de <strong>Kid</strong>, e isso não parece certo.<br />

Sempre contei com Ty para que me dissesse a verdade, eu gostasse ou não. E isso<br />

complica mais ainda as coisas. Quero dizer a ele para calar a fodida boca e se<br />

ocupar de seus malditos assuntos. Quero lhe dizer que tudo o que fiz foi pensando<br />

nele. Que passei os últimos três anos me certificando de que ele saiba que no final<br />

do dia, ainda que todos os outros o tenham abandonado, ainda tem a mim. Ouvilo...<br />

se posicionar assim contra mim equivale a uma traição como nunca senti antes.<br />

«Talvez esteja com tanta raiva porque ele é o único que lhe diz a verdade.» —<br />

Sussurra a voz. —Sempre pôde confiar em que ele dissesse as coisas que ninguém mais se<br />

atreveria a falar com você. E é por isso que dói tanto, não? Queima e lhe dá bolhas porque<br />

ele assim o diz, ele sim canta a velha canção de sempre, então todos os outros terão razão. E<br />

é por isso que você está tão furioso, <strong>Bear</strong>. É por isso que você quer… qual expressão tão<br />

eloquente você empregou? Ah, sim: que cale sua fodida boca. Você quer que ele cale a fodida<br />

boca porque se ele disser isso, você sabe em seu lugar secreto que é verdade. Mas a pergunta<br />

que deve fazer, a verdadeira pergunta que ninguém parece fazer, é por que cada um e todos<br />

demonstram tanto interesse em empurrá-lo para <strong>Otter</strong>. Por que estão todos tão desejosos de<br />

lhe ver feliz? O que você fez para merecer isso?»<br />

«Eu fiz tudo!»—Protesto. —«Eu fiz tudo o que pude!»<br />

Sua risada ressoa dentro de minha cabeça. «Então… Qual é o problema?»<br />

—<strong>Bear</strong>? —Pergunta Ty. —Você está bem?<br />

Estremeço quando a voz volta a rir dentro da minha cabeça.<br />

—Estou bem. —Resmungo. —Podemos esquecer disso por um segundo e<br />

voltar ao que eu estava tentando dizer?<br />

Ele exala ruidosamente.<br />

—Tudo bem. Mas só se me prometer que, pelo menos, pensará no que<br />

acabo de dizer.<br />

—Veremos, Ty. Mas, no momento preciso que me prometa que guardará o<br />

que sabe para você. Não há nenhuma necessidade de ir por aí falando sobre isso,<br />

ok?


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Página201<br />

—Você se refere a Creed, não é? —Diz com uma voz quase inaudível.<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Sim. É exatamente a quem me refiro. Chegaremos lá daqui a alguns<br />

minutos e preciso que me prometa que me deixará resolver isto à minha maneira.<br />

Terá que manter a boca fechada sobre isto por agora.<br />

—Por que você não diz a ele? —Pergunta <strong>Kid</strong>. —Se realmente é seu amigo…<br />

—Ty! —Quase grito.<br />

É o mais próximo que cheguei de gritar com ele em muito tempo, e não<br />

deixo de perceber como se encolhe. Me sinto mal, mas não posso evitar. A<br />

tempestade se aproxima, as ondas se rompem, estamos entrando em sua fodida<br />

rua e preciso ter essa garantia.<br />

Preciso saber que isto pode se manter em segredo até que resolva o que<br />

fazer. Penso em ontem e me vejo querendo contar tudo a Creed quando falei com<br />

ele. Não reconheço essa pessoa. Essa pessoa está louca, essa pessoa está doente,<br />

essa pessoa está equivocada. Não pode acontecer agora, e se não consigo obter essa<br />

promessa de Ty passarei longe de sua casa, voltarei para a minha, fecharei a porta,<br />

me refugiarei debaixo das cobertas e esperarei até que todo este maldito mundo<br />

comece a adquirir um mínimo de sentido.<br />

—Sempre me pediu que dissesse a verdade, em todas as circunstâncias. —<br />

Diz <strong>Kid</strong>, e me arrependo no ato do meu inoportuno conselho. —Assim pois, se<br />

você quer que eu faça isso por você, tem que me prometer uma coisa.<br />

—O que você quiser! —Respondo, dominado pelo pânico quando a casa<br />

aparece à vista.<br />

Ty respira fundo antes de dizer:<br />

—Tem que prometer que não deixará que <strong>Otter</strong> vá embora. Tem que<br />

prometer que não o afastará. Tenho medo do que possa acontecer a você se ele o<br />

faz.<br />

—Prometo que posso tentar. —Declaro docilmente.<br />

—Então, eu também prometo tentar. —Diz ele, fazendo-me cair na<br />

armadilha.<br />

Estou a ponto de passar direto.<br />

—Já era hora de vocês chegarem! —Grita Creed quando <strong>Kid</strong> e eu<br />

caminhamos até a porta. —Estava a ponto de sair para buscá-los.<br />

Me abraça com força, e vejo Ty por cima de seu ombro, mas evita meu olhar.<br />

Sei que está aborrecido comigo, mas isso é a única coisa que me ocorreu fazer.<br />

—Desculpe. —Digo, forçando um sorriso quando me solta. —Não sabia que


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Página202<br />

tinha que aparecer na hora que você quer.<br />

Ele bufa.<br />

—Você faz o que eu digo e quando eu digo, <strong>Bear</strong>. Isso você já sabe. —Se<br />

dirige a <strong>Kid</strong>. —E como está meu homenzinho favorito em todo o mundo? —Ele o<br />

levanta e o coloca sobre seu quadril. —Por que está tão calado? —Pergunta com<br />

receio. —Por acaso papai <strong>Bear</strong> bateu em você? Tenho que lhe dar uns açoites?<br />

Isso faz com que <strong>Kid</strong> ria tolamente, e me sinto relaxar. Ty coloca um braço<br />

em volta de seu pescoço e beija sua bochecha.<br />

—Ei, tio Creed —Diz.<br />

—Ei, você. —Responde Creed. —Assim está melhor. Pensei que íamos ter<br />

algum problema.<br />

Ele leva <strong>Kid</strong> para a cozinha, e o ouço perguntar a Ty pela noite que passou<br />

fora de casa, e Ty imediatamente conta tudo em detalhes, e eu não tenho mais<br />

remédio que segui-los. Passo junto às fotografias, e sei que todas me estão<br />

assinalando e rindo de mim. «Ha, ha. Você é tão engraçado!», dizem. Acelero o<br />

passo.<br />

<strong>Otter</strong> está na cozinha, pega <strong>Kid</strong> dos braços de Creed e o faz girar em<br />

círculos. Ty emite seus falsos protestos de costume. <strong>Otter</strong> o levanta, a cabeça de Ty<br />

à altura da sua e vejo sua boca movendo-se enquanto sussurra algo, em voz tão<br />

baixa que nem Creed nem eu podemos ouvir o que diz. <strong>Kid</strong> se afasta, com uma<br />

expressão séria em seu rosto que reflete a que apareceu no rosto de <strong>Otter</strong>. Este<br />

acena com a cabeça, Ty escapa de seus braços e dá a mão a Creed.<br />

—Posso te mostrar algo que encontrei na internet na escola, tio Creed? —<br />

Diz, puxando Creed até a escada.<br />

Creed sorri para mim e quando viram a esquina o ouço dizer:<br />

—Se você me mostrar um site pornô, na segunda-feira vou reclamar na<br />

diretoria da escola.<br />

Os observo com o olhar até perdê-los de vista. Sei o que <strong>Kid</strong> está fazendo e o<br />

xingo em silêncio em minha cabeça. Uma parte de mim quer saber o que ele disse a<br />

<strong>Otter</strong>, mas a outra parte quer segui-los e não me preocupar com isso. Antes que eu<br />

possa me mover, <strong>Otter</strong> se coloca ao meu lado. Ele estende a mão timidamente e<br />

toca meus dedos. Suspiro, entrelaço meu mindinho como seu e ele sorri.<br />

—Ei. —Diz.<br />

—Ei, você. —Respondo.<br />

—Você está bem? —Pergunta com voz preocupada.<br />

—O que <strong>Kid</strong> disse a você?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página203<br />

—Você não respondeu à minha pergunta.<br />

Reviro os olhos.<br />

—Você não respondeu a minha.<br />

Ele agarra a minha mão e a aperta suavemente.<br />

—Eu perguntei primeiro. —Insiste, sorrindo.<br />

Mas o sorriso não chega a seus olhos.<br />

—Estou bem. —Digo, soltando sua mão e esfregando meus braços.<br />

<strong>Otter</strong> arqueia uma sobrancelha.<br />

—Parece assustado, <strong>Bear</strong>.<br />

O fulmino com o olhar.<br />

—Existem muitas coisas acontecendo no momento, <strong>Otter</strong>. Não sei se é uma<br />

ideia muito boa estarmos aqui.<br />

Ele bufa.<br />

—Então… o quê? Pensa em ignorar Creed durante o resto de sua vida? —Se<br />

aproxima de mim um passo mais, como tenho as costas contra a parede, não posso<br />

me mover. —Pensa em me ignorar pelo resto de sua vida?<br />

Levanto as mãos para afastá-lo e pousam sobre seu peito, grande, forte e<br />

musculoso. Ele levanta suas mãos para cobrir as minhas, e a única coisa que quero<br />

fazer é deixar que ele me proteja. Quero me aconchegar contra ele, permitir que ele<br />

entre em minha cabeça e faça desaparecer todo o mal. Isso é muito curioso. Posso<br />

sentir toda a dúvida, a raiva e a inquietude que queira, mas assim que estou em<br />

sua presença, assim que posso tocá-lo, vê-lo, ouvi-lo, sentir seu cheiro e provar seu<br />

gosto, tudo isso se afasta. Não por completo, mas apenas o bastante longe. Eu não<br />

sei o que isso diz sobre ele. Não sei o que isso diz sobre mim. Ele olha para mim,<br />

aguardando uma resposta.<br />

Dou de ombros.<br />

—Não sei, <strong>Otter</strong>. —Sussurro. —Isso será mais difícil do que pensei.<br />

Sua testa se enruga levemente.<br />

— O quê? Com Creed?<br />

Concordo com a cabeça.<br />

Ele levanta minhas mãos e as beija suavemente.<br />

—Você só terá que contar a ele e eu me preocuparei com Creed. —Ele diz.<br />

— Até então, serei bom. —Sorri. —Mas você ficará me devendo. —Acrescenta,<br />

beijando minhas mãos novamente. —O fato de que Creed esteja aqui não significa<br />

que tenhamos que passar fome durante os próximos meses. Se for necessário, eu<br />

vou nocauteá-lo e vou colocá-lo dentro da minha mala, até que eu possa curtir


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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você umas oito ou nove vezes.<br />

Por fim me agarra, e eu começo a rir. Ele sorri e se inclina para beijar meu<br />

lábios. Fecho os olhos com impaciência e tenho a oportunidade de pensar: Talvez<br />

tudo saia bem, e então ouço Creed e <strong>Kid</strong> baixando ruidosamente a escada. Eu<br />

suspiro e me movo apressadamente para o outro lado da cozinha, escondendo<br />

minha crescente ereção atrás do balcão do centro. <strong>Otter</strong> sorri para mim satisfeito e<br />

sacode a cabeça, e posso ver aquela sombra passando outra vez sobre seu rosto,<br />

breve, mas presente. Sei que de algum modo sou eu quem a provoco, mas não sei o<br />

que fazer. Abro a boca para dizer algo, qualquer coisa, para fazer que a situação<br />

seja um pouco melhor, mas então entra Creed com <strong>Kid</strong> sobre suas costas. O coloca<br />

sobre o balcão e olha para mim.<br />

—E então? —Pergunta, repentinamente sério.<br />

—E então, o quê? —Respondo, tentando dar de ombros com indiferença.<br />

Mas o gesto mais parece um ataque e me bato na orelha.<br />

—Por que não me contou? —Resmunga Creed, com os olhos faiscando.<br />

O oceano sobe, a tempestade estala e o ruído brando ao fundo de minha<br />

mente se precipita. Olho para Ty, que tem os olhos arregalados. Nega com a cabeça<br />

atrás de Creed, tentando me fazer saber que não disse nenhuma palavra enquanto<br />

estavam lá em cima. <strong>Otter</strong> olha para Creed estupidamente, com a boca aberta.<br />

—Dizer o quê? —Articulo com voz trêmula.<br />

Creed se aproxima e fica diante de mim, com seu rosto a escassos<br />

centímetros do meu. Cruza os braços, inclina a cabeça para a esquerda e semicerra<br />

seus olhos. Sei o que descobriu, e sei que está tentando entender como diabos<br />

acabei transando com seu irmão. Ele sabe, e está a ponto de surtar e chutar a minha<br />

bunda, e <strong>Otter</strong> deixará que o faça porque eu terei merecido. Tento encontrar todas<br />

as negativas possíveis, mas não me ocorre nada. O pânico desatado não é nunca<br />

um bom momento para se estar e tentar improvisar mentiras.<br />

— Sobre você e Anna! —Diz.— Tive que saber por ela!<br />

—Eu e… quem? Eu e Anna? —Digo, ainda tentando encontrar uma mentira.<br />

Uma metade do meu cérebro ainda não havia se conectado com a outra, e<br />

não entendo o que ele está dizendo.<br />

—Você terminaram! —Exclama Creed, me dando um soco no ombro. —<br />

Como diabos não pôde me dizer? Sabia que algo estava acontecendo com você<br />

quando falei contigo ontem à noite!<br />

—Ah, sim. —Digo, acreditando em Deus agora cem por cento. —Sim, nós<br />

terminamos.


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Página205<br />

—Liguei para ela esta manhã quando eu cheguei. —Explica, passando ao<br />

meu lado para abrir a geladeira. Saca umas cervejas («Pensei que já não queria beber<br />

mais!», penso), passa uma a mim e outra para <strong>Otter</strong> e abre a sua. —Me disse que<br />

terminaram no fim de semana passado. —Continua, apoiando-se no balcão. —Mas<br />

não me disse exatamente o porquê. Se mostrou muito estranha a respeito.<br />

Concordo com a cabeça e esvazio três quartos da cerveja de um só gole.<br />

— E, então? —Ele provoca.<br />

— E, então o quê? —Digo, com o líquido da cerveja gotejando pelo meu<br />

queixo.<br />

—<strong>Bear</strong>! O que diabos aconteceu?<br />

—Oh. Ah, bem, acabou.<br />

Revira os olhos e me dá um tapa na nuca.<br />

—Você está cansado esta noite ou o quê? —Olha para mim com a testa<br />

franzida. —Já sei que se acabou, <strong>Bear</strong>, obrigado por me recordar esse fato. Quero<br />

saber por que.<br />

Olho de soslaio a <strong>Otter</strong> e Ty em busca de ajuda, mas desviam do meu olhar.<br />

Suspiro e volto a olhar para Creed. Bebo um longo trago.<br />

—Isto… não funcionava —Aventuro.<br />

Ele me observa detidamente.<br />

—<strong>Bear</strong>, terá que fazer isso melhor. Fico longe por duas semanas e quando<br />

volto tudo está de pernas pro ar! —Levanta uma mão e começa a contar com os<br />

dedos. —Você e Anna terminaram. <strong>Kid</strong> passa a noite na casa de seu amigo. <strong>Otter</strong><br />

deu um giro completo de cento e oitenta graus ou algo assim. Juro por Deus que<br />

parece que todo o fodido mundo se voltou de ponta cabeça, e eu não sei o que<br />

diabos está acontecendo!<br />

Torno a dar de ombros.<br />

—É que já não era como antes. —Digo pausadamente. —Ela e eu não… nos<br />

dávamos muito bem. E quanto a <strong>Kid</strong>, acho que está provando algo diferente. E<br />

<strong>Otter</strong>… <strong>Otter</strong> deve… estar em um bom estado de espírito?<br />

Estas últimas palavras saíram como um chiado, e vejo que <strong>Otter</strong> tapa a boca<br />

e tenta conter o riso. Me certifico de lembrar de matá-lo mais tarde.<br />

Creed toma outro trago, se inclina e murmura (ainda que bastante alto para<br />

que todos ouçam):<br />

—Creio que <strong>Otter</strong> voltou com Josh ou Jason. Mas não quer admitir, esse<br />

marica.<br />

—Se chama Jonah —Digo com voz serena, sem querer.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página206<br />

Creed parece surpreendido.<br />

—Bem, Jonah então. —Lança um pano de cozinha na cabeça de <strong>Otter</strong> e<br />

acrescenta: —Mas não quer me dizer nem uma fodida palavra sobre isso. Parece<br />

que você sabe mais a respeito. Me lembre de perguntar mais tarde.<br />

—Eu já disse que não voltei com Jonah. —Responde <strong>Otter</strong>.<br />

Ele lança de volta o pano para Creed, que desvia e deixa cair sobre a<br />

bancada.<br />

—Bem, é evidente que está sacando algo de algum lugar. —Diz Creed. —<br />

Você está praticamente saltitando pela casa desde que cheguei. Me estremeço ao<br />

pensar que classe de orgias de maricas tem tido lugar aqui desde que parti. —Se<br />

volta para mim e olha com curiosidade. —Você viu algum homem de calças de<br />

couro rachadas com o traseiro para o ar em minha ausência? —Pergunta a mim.<br />

—Não. —Respondo. —Nada de calça de couro.<br />

—Tudo bem. Eu não gostaria de interromper…<br />

—Não deveria falar assim. —Intervém <strong>Kid</strong> com frieza. —Não fica nada bem<br />

dizer esse tipo de coisas, tio Creed.<br />

Creed arregala os olhos, da mesma forma que <strong>Otter</strong> e eu. Só posso falar por<br />

mim, mas creio que todos estaríamos de acordo que nós nunca ouvimos <strong>Kid</strong> se<br />

expressar dessa forma. Tem os olhos entrecerrados e os braços cruzados, ao mesmo<br />

tempo em que fulmina Creed com o olhar.<br />

—Uhm… dizer o quê, <strong>Kid</strong>? —Pergunta Creed.<br />

—Não diga marica. —Lhe rosna Ty. —É uma palavra muito feia para dizer<br />

a alguém. Você não gostaria que eu o chamasse assim, então, eu não gosto quando<br />

o diz a <strong>Otter</strong>.<br />

Creed olha para <strong>Kid</strong> com estranheza, depois para mim, a <strong>Otter</strong> e novamente<br />

para <strong>Kid</strong>. Acena com a cabeça lentamente.<br />

—Você tem razão, Tyson. —Admite em voz baixa. —Eu só estava<br />

brincando, mas prometo que não voltarei a dizer diante de você.<br />

—Não diga diante de ninguém. —O adverte Ty.<br />

Creed levanta as mãos em um gesto de rendição.<br />

—Ok, ok, não voltarei a dizer diante de ninguém. Caramba, <strong>Kid</strong>. Você<br />

assustaria ao próprio Jesus.<br />

<strong>Kid</strong> segue olhando feio para Creed, e faço um sinal para <strong>Otter</strong> para que o<br />

leve antes que avance contra Creed, e o tire daqui. <strong>Otter</strong> assente, levanta <strong>Kid</strong> do<br />

balcão e o leva em seus braços. Ty recosta a cabeça sobre seu ombro, e <strong>Otter</strong> lhe<br />

beija sua cabeça e lhe sussurra algo ao ouvido. De onde estou posso distinguir seu


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página207<br />

sorriso. Saem da cozinha, e só depois de escutarmos o som da TV (a CNN outra<br />

vez) que Creed se volta para mim, com o rosto pálido e o olhos arregalados.<br />

—Muito bem. —Diz, com voz trêmula. —De onde veio isso? Como diabos<br />

sabe de <strong>Otter</strong>?<br />

—Você não estava sendo muito sutil, digamos assim. —Observo.<br />

Creed agita as mãos no ar.<br />

—Assim que minha falta de divulgação faz que um garoto do terceiro ano<br />

possa perceber as tendências sexuais de meu irmão? E como diabos isso se voltou<br />

contra mim? Eu deveria estar lhe dando uma bronca, não levando um chute no<br />

traseiro.<br />

—Não é um garoto normal. —Digo, me recordando pela enésima vez.<br />

Creed toma outro trago de sua cerveja e a deixa.<br />

—Isso eu já sei. —Diz. —E não podemos culpar a ninguém por isso, exceto a<br />

nós mesmos. —Sacode a cabeça. —Mas isso não responde a pergunta, <strong>Bear</strong>.<br />

Vamos, desembucha.<br />

Encolho os ombros.<br />

—Ele perguntou a mim e a Anna na semana passada se <strong>Otter</strong> era gay. Não<br />

vi nenhuma necessidade de mentir a respeito. —Eu sei, eu sei. Não foi exatamente<br />

isso o que aconteceu. Se Anna não tivesse estado ali, provavelmente ainda estaria<br />

sentado no sofá com a boca aberta enquanto ele repetia a pergunta. Dá na mesma.<br />

—Ele tem demonstrado uma e outra vez que é mais capaz de manejar coisas que a<br />

maioria nos fariam sair correndo. —Explico a Creed. —De que serve não lhe dar<br />

atenção se de todo o modo vai descobrir um dia?<br />

«Cuidado, <strong>Bear</strong>.» —Sussurra a voz. —«Você quase chegou a essa crítica etapa<br />

hipócrita. Mas, pelo menos, superou a ira e a rejeição, não é? Oh, os passos são<br />

divertidíssimos! Creio que a aceitação está dando a volta na esquina! Orgulho gay, aí vamos<br />

nós! Chovem homens no YMCA 19 ! ALELUYA!»<br />

Desvio os olhos de Creed.<br />

—Assim, <strong>Kid</strong> sabe, então? —Diz Creed com assombro. —Bem, isso muda<br />

muito as coisas. Agora sim, deverei ter cuidado com o que digo. Você não acha…?<br />

Se interrompe e fica olhando para a garrafa, que passa de uma mão para a<br />

outra.<br />

—Acho o quê? —Pergunto com curiosidade.<br />

Vacila antes de dizer:<br />

—Você não acha que <strong>Otter</strong>… se ofenda pelo que eu digo, não é? —Começa a<br />

19<br />

Faz referência a musica do Vilage People.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página208<br />

falar mais depressa. ― Quer dizer, eu não me importo nem um pouco com quem<br />

ele dorme. Não me importa que ele seja mar… gay. Não dou a mínima que seja<br />

gay. Por que deveria me importar? —Esboça um sorriso. —É meu irmão. Você não<br />

despreza alguém como ele só porque ele gosta de pênis, em vez do que é bom.<br />

Solto uma risada.<br />

—Não há dúvida de que você não perdeu o jeito com as palavras.<br />

—<strong>Bear</strong>, estou falando sério! —Exclama. —Será que <strong>Otter</strong> acredita que sou<br />

um homofóbico que anda por aí batendo nos gays? Pensei que ele soubesse que<br />

sempre estou brincado!<br />

Reviro os olhos.<br />

—Claro que ele não acredita nisso, imbecil. <strong>Otter</strong> teria lhe esmurrado há<br />

anos se pensasse isso. —Sorrio e tomo outro gole de minha cerveja. —Ele até acha<br />

que deveríamos lhe contar…<br />

Eu congelo, e as palavras morrem na minha garganta. Minha língua gruda<br />

no céu da boca e meu estômago se revira. De novo, meus lábios se esquecem de<br />

dizer ao cérebro que não devia mover-se sem prévia autorização. «Oh, meu Deus! »<br />

—Grito mentalmente. —«Alerta vermelho! Alerta vermelho! Tranquem as escotilhas e<br />

FECHEM A FODIDA BOCA!» Seguro a garrafa de cerveja com tanta força que temo<br />

que se despedace em minhas mãos. Creio que deveria buscar uma distração,<br />

porque Creed olha para mim intrigado, esperando que eu acabe.<br />

—Contar para mim o quê? —Pergunta.<br />

«SOBRE NÓS!» —Grita a voz. —«ELE ACHA QUE DEVERÍAMOS FALAR<br />

COM VOCÊ SOBRE NÓS! CREED! ESTÁ OUVINDO? BEAR ESTÁ TRANSANDO<br />

COM SEU IRMÃO! MALDITO ESTÚPIDO, ESTÁ TRANSANDO COM SEU<br />

IRMÃO!»<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

Tento sorrir para ele, mas sei que uma careta estica meu rosto. Uma vez<br />

mais, um momento de pânico que cega se introduz em meu interior e não me<br />

ocorre nenhuma só palavra para dizer. A voz dentro de minha cabeça não deixa de<br />

gritar, de pedir, de ameaçar, de suplicar-me que diga a verdade. Me domina<br />

durante uma fração de segundo, e minha boca se abre para fazê-lo quando a fecho<br />

de golpe, recuperando um breve domínio sobre mim mesmo. «Poderia acabar com<br />

tudo de uma vez! » —Uiva com raiva. —«Poderia acabar com tudo se tivesse culhões! O<br />

que teme que acontecerá se ele está aqui, praticamente ajoelhado de preocupação pelo que<br />

<strong>Otter</strong> possa pensar? Este não é um homem que possa odiar você! Bem, ele ficará chocado.»<br />

—Admite,—«mas vai superar! Você só tem que dizer o que há dentro desse lugar secreto


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página209<br />

que mantém cerrado a sete chaves. Por favor, <strong>Bear</strong>. Não continue ocultando!» Abro a boca<br />

de novo, sem saber o que sairá, e me sinto salvo (amaldiçoado?, frustrado?)<br />

quando <strong>Otter</strong> entra na cozinha.<br />

Creed não deixa escapar a ocasião.<br />

—Assim, que vocês estão me ocultando segredos? —Repreende seu irmão.<br />

<strong>Otter</strong> parece assustado.<br />

—Como? Que tipo de segredos?<br />

Ele olha para mim, e quero agitar os braços freneticamente, mas não posso<br />

me mover. Não posso respirar.<br />

Creed me dirige um olhar triunfal antes de se voltar para <strong>Otter</strong>.<br />

—<strong>Bear</strong> disse que vocês decidiram me contar algo. Me sentia muito mal por<br />

ter chamado você de mar… isto é, gay, desculpe, e <strong>Bear</strong> disse que queriam me falar<br />

sobre algo.<br />

—Verdade? —Diz <strong>Otter</strong>, incapaz de ocultar a surpresa em sua voz.<br />

Ele olha para mim de novo, e tento lhe mostrar meu interior, para que veja a<br />

tempestade que está se formando na borda do oceano. Tento falar, gritar, fazer<br />

qualquer ruído para expressar minha discordância, mas estou paralisado e não<br />

posso me mover por nada no mundo. «Acaba com isto.» —Sussurra a voz enquanto<br />

tento fazê-la calar. —«Acaba com isto antes que seja tarde demais.» E, então<br />

desaparece, silenciada e trancafiada em minhas entranhas.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Diz <strong>Otter</strong>. —Você tem certeza?<br />

Três palavras: «Você tem… certeza.» Três palavras que já as ouvi juntas no<br />

passado (e que eu mesmo as usei) mas nunca antes me haviam parecido tão<br />

ameaçadoras, tão carregadas de mudanças. Enquanto meus olhos viajam entre<br />

<strong>Otter</strong> e Creed, a única coisa na qual posso pensar é no quanto eu queria que fosse<br />

outono, que Creed tivesse voltado para o Arizona e nunca tivéssemos tido essa<br />

conversa. Desejo que Creed tivesse decidido ficar um dia a mais em Portland.<br />

Desejo… Deus! Desejo muitas coisas. Mas, vocês querem saber o que desejo de<br />

verdade? Desejo poder olhar ao meu melhor amigo e a meu… namorado… e dizer<br />

a ambos o que querem ouvir. O esconderijo secreto de meu interior range, as<br />

correntes que o mantém fechado tremem, a ferrugem se solta e por um momento<br />

—um momento brilhante e vertiginoso— creio que se romperá, enviando seus<br />

estilhaços ricocheteando ao redor de mim. Mas as correntes são firmes e o<br />

esconderijo secreto está fortificado. Range sim, e também treme, mas fui um<br />

construtor cuidadoso e ele resiste.<br />

Resiste.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página210<br />

—Eu falei que decidimos contar como Ty descobriu que você é gay. —<br />

Declaro com muita lábia, odiando a aspereza da minha voz e ignorando o fulgor<br />

de aborrecimento que vislumbro nos olhos de <strong>Otter</strong>. Me volto para Creed. —Em<br />

certa ocasião Ty ouviu você e <strong>Otter</strong> falando que ele estava brigando com seu…<br />

namorado. —«Oh, <strong>Bear</strong>», sussurra a voz. —Disse que não pretendia escutar às<br />

escondidas nem nada, mas, o que se há de fazer? —Dou de ombros. —Crianças são<br />

assim.<br />

O olhar de Creed viaja entre <strong>Otter</strong> e eu com receio. Me disponho a continuar<br />

cuspindo meias verdades quando ele começa a rir.<br />

—Então fui eu. —Diz Creed, tomando o resto de sua cerveja. —Bem, merda,<br />

<strong>Bear</strong>, sinto muito. Não pretendia dar essa ideia a <strong>Kid</strong> desse modo. —Volta a olhar<br />

para <strong>Otter</strong>. — Talvez ele tenha razão. —Acrescenta. —Talvez deva ter cuidado com<br />

o que eu digo.<br />

—Está tudo bem. —Respondo.<br />

Eu dou uma rápida olhada para <strong>Otter</strong> e vejo a decepção passando pelo seu<br />

rosto, escondendo-se, zombando de mim. Rogo a ele em silêncio que olhe para<br />

mim, que entenda de onde venho, que se lembre de que me prometeu há um<br />

momento atrás me deixar lidar com isso ao meu ritmo. Suspira, abaixa seus<br />

ombros e por fim olha para mim, e ainda que exista essa promessa entre nós dois,<br />

não faz nada para diminuir a dor que vejo em seus olhos. Quero cruzar correndo a<br />

cozinha, estreitá-lo entre meus braços e sussurrar desculpas, pronunciar esse velho<br />

clichê «não é você, sou eu», mas não servirá de nada. Pelo visto , isso não é quem eu<br />

sou. Ele se dirige para a geladeira, pega uma garrafa de água e passa ao meu lado,<br />

e por um momento o tempo corre mais devagar. É um desses momentos nos quais<br />

se tem a sensação de vocês dois são as únicas pessoas no mundo. Tudo parece<br />

andar na ponta dos pés, o lugar que te rodeia se dissolve em nada, e é um suspiro<br />

no tempo que deveria te fazer sentir mais conectado com alguém do que nunca<br />

esteve antes. Agora, se imaginem viver um desses momentos no qual o tempo se<br />

detém, ele passa ao seu lado e seus olhos se encontram, mas não é o lento palpitar<br />

de seu coração o que faz que sua respiração pare, mas a sombra que vê passar no<br />

rosto dessa pessoa muitas vezes, uma sombra que você sabe que provocou e que<br />

poderia curar se tivesse a coragem . Se…<br />

—Espera —exalo, estendendo a mão e segurando seu braço.<br />

«Creed, há algo que venho querendo dizer a você. Você vê, se passaram muitas<br />

coisas depois que você partiu. De fato, se passaram muitas coisas durante anos. Eu sou o<br />

culpado por <strong>Otter</strong> ter ido embora. Tanto se ele está de acordo comigo ou não, eu provoquei


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

sua partida e sua ausência. Algo aconteceu entre seu irmão e eu, Creed, e aconteceu justo<br />

depois que minha mãe partiu. Eu estava triste e assustado e ele veio até minha casa na noite<br />

antes de partir, e fiz algo que não deveria ter feito. Eu o beijei. Beijei seu irmão. Mas não foi<br />

isso o que fiz de mal. O que esteve mal foi que deixei que me afetasse tanto que ele foi<br />

embora. Eu poderia tê-lo detido. Eu poderia ter evitado os últimos três anos se de verdade eu<br />

quisesse. E não me interprete mal, uma parte de mim queria detê-lo. Mas tudo o demais se<br />

desmoronava ao meu redor e não sabia que outra coisa fazer. Sei que não posso continuar<br />

usando isso como desculpa, por mais que o entenda. »<br />

«Mas aconteceu algo estranho, Creed. <strong>Otter</strong> voltou. <strong>Otter</strong> voltou e algo em mim se<br />

moveu, algo em meu interior se libertou. Pela primeira vez em muito tempo me via a mim<br />

mesmo através dos olhos de outro. Estava cego porque era como olhar para o céu. Nunca<br />

tive alguém que me olhasse assim dessa maneira. Algo em mim mudou e desde então estive<br />

lutando contra isso. É uma batalha penosa todos os dias, não vejo o final e isso me apavora.<br />

Mas se você quer saber a verdade, quero que você saiba. Eu o amo. Eu amo <strong>Otter</strong>. Creio que<br />

sempre o amei, e creio que sempre o amarei. Já sei que parece estranho vindo de mim. Sou a<br />

última pessoa da qual esperaria ouvir algo assim. Mas já não quero guardar isso. Estou<br />

cansado de combatê-lo, e <strong>Otter</strong> me disse que a luta por mim é tudo quanto sempre conheceu,<br />

e eu já não posso fazer isso. Não quando por fim regressou para mim. Não quando posso<br />

fazer com que isso seja mais fácil para nós dois. Eu estou apaixonado pelo seu irmão, Creed,<br />

e tudo vai ficar bem. Não mudará nada entre você e eu por causa disso. Você continua<br />

sendo meu melhor amigo, continua sendo meu irmão. Você entende? Por favor, diga que<br />

sim.»<br />

—O que, <strong>Bear</strong>? —Pergunta <strong>Otter</strong> em voz baixa, esperando.<br />

Creed nos observa com curiosidade. As palavras podem sair, sei que<br />

podem. Eu sei.<br />

—Nada. —Murmuro, soltando seu braço.<br />

<strong>Otter</strong> olha para mim durante um momento mais, com os olhos impregnados<br />

de tristeza. Logo encolhe levemente os ombros e sai da cozinha. O sigo com o olhar<br />

e me parece uma eternidade.<br />

—Então <strong>Kid</strong> já sabe? —Diz Creed, completamente alheio a queda do<br />

mundo. —Como disse antes, sinto muito, cara. Não sei em que estava pensando.<br />

—Eu também sinto muito. —sussurro.<br />

Página211


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

9<br />

Quando <strong>Bear</strong> e <strong>Kid</strong> conspiram e fazem planos (e escrevem<br />

poemas ruins)<br />

Página212<br />

—O que vou fazer? —Solto um gemido entre minhas mãos. —É como se<br />

pudesse ver que sou franco e sincero em tudo, mas não reconhecesse essa pessoa. E<br />

temo que se não posso fazê-lo, <strong>Otter</strong> se sentirá frustrado e irá embora. Como<br />

diabos me meti nessa situação?<br />

Estou sentado no sofá de minha casa dois dias depois do fiasco que resultou<br />

do regresso de Creed. Tenho me chutado durante as últimas 48 horas, relembrando<br />

a expressão no rosto de <strong>Otter</strong> uma e outra vez, até que já não posso suportar vê-la.<br />

Assim que, naturalmente, justo quando acredito que o superei, volta a aparecer<br />

dentro de minha cabeça, e seus olhos mostram algo que não é possível expressar<br />

com palavras. A culpa me esteve roendo por dentro. Não durmo e nem como. Não<br />

posso funcionar a um nível cotidiano normal como deveria. Passei os últimos dois<br />

dias envolto em uma névoa impregnada de <strong>Otter</strong> e, a menos que consiga algum<br />

tipo de alívio, vou enlouquecer. Não o vi desde que levei Ty para casa esta noite.<br />

Falamos por telefone, mas estes dias tive que trabalhar até mais tarde e não tive<br />

nenhuma oportunidade de me atirar a seus pés e pedir perdão. Acreditem em<br />

mim, não passa despercebido como eu pareço. Nunca havia me comportado assim,<br />

nem sequer com Anna. Com ela, se alguma vez cometia alguma estupidez e se<br />

aborrecia comigo, sempre sabia que ela me perdoaria. Só tinha que lhe dar algum<br />

espaço e, finalmente, ela me ligava, no dia seguinte ou após uma semana. Era<br />

assim que funcionava. Mas agora, com <strong>Otter</strong>, só se passaram dois dias,<br />

mantivemos contato numa breve conversa na qual não se havia dito nada<br />

importante e estou quase subindo pelas paredes. Me sinto patético.<br />

O rosto ao qual corresponde o ouvido diante do qual me inclino se recosta<br />

em sua cadeira, com as perninhas balançando sobre a borda sem tocar o chão. Ty<br />

coloca uma mão debaixo do queixo e o esfrega com ar pensativo. Posso ver que<br />

está pensando, planejando algo, e não posso evitar sentir um resquício de<br />

esperança abrindo-se ao meu redor. Essa sensação é cortada de imediato pela ideia<br />

de que estou esperando que meu irmão mais novo, de nove anos resolva a crise da<br />

minha recente sexualidade descoberta e meu... namorado, pelo qual eu<br />

aparentemente suspiro como se tivesse doze anos. Hei, pelo menos eu sei que sou


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página213<br />

patético.<br />

—Então nós estabelecemos que você ainda não está preparado para dizer às<br />

pessoas. —Assinala <strong>Kid</strong> prosaicamente. — E não sabemos quando estará<br />

preparado, não é?<br />

Concordo com um aceno de cabeça.<br />

—E sabemos que <strong>Otter</strong> prometeu a você que se adaptaria a suas condições<br />

(por mais injustas que sejam), e que respeitaria sua decisão de não revelar a<br />

ninguém sobre vocês, não é?<br />

Aceno novamente, passando por alto seu comentário.<br />

—De modo que você acredita que <strong>Otter</strong> está furioso porque você teve a<br />

oportunidade de dizer algo e não o fez. E você está furioso com <strong>Otter</strong> porque<br />

acredita que ele está lhe pressionando para algo, embora tenha prometido que não<br />

o faria. Mas, ao mesmo tempo, você entende a posição em que você o colocou, por<br />

que ele não teve que esconder quem ele é e com quem ele está em anos, e você<br />

percebe que você o está forçando a isso.<br />

Eu aceno com a cabeça, amando <strong>Kid</strong> mais do que poderia expressar.<br />

—Assim que agora você deve encontrar uma modo de fazer <strong>Otter</strong> feliz<br />

novamente e, ao mesmo tempo, fazer você feliz também e assegurar que seja uma<br />

felicidade que durará até que você esteja disposto a confessar a verdade para as<br />

pessoas que, com certeza, ficarão aborrecidas porque você ocultou isso durante<br />

muito tempo. E com isso, você também quer descobrir o que seria necessário para<br />

que você possa estar pronto para dizer às pessoas sobre você, mas você precisa<br />

entender por que você está tão assustado com isso, porque, eventualmente, você<br />

quer que os demais saibam sobre sua relação com <strong>Otter</strong>, mas só pelo simples fato<br />

de que quer que <strong>Otter</strong> e você possam viver sem ter que se preocuparem com os<br />

segredos que guardam e que os outros saibam. —Se interrompe e respira fundo. —<br />

Você acredita que isso abrange todo o problema?<br />

Concordo com a cabeça fracamente.<br />

<strong>Kid</strong> suspira.<br />

—<strong>Bear</strong>, isso é bastante óbvio.<br />

Me sobressalto.<br />

—É mesmo?<br />

Ele balança a cabeça.<br />

—Eu me recuso a acreditar que você tem estado refletindo sobre isso<br />

durante os dois últimos dias e ainda não chegou a essa conclusão. Eu o escutei<br />

apenas durante os últimos vinte minutos e até eu sei o que você deve fazer.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—O quê? —Quase grito. —Diga-me o que devo fazer!<br />

—Você quer que <strong>Otter</strong> fique com você, não?<br />

Faço uma careta, mas concordo.<br />

—E quer que ele seja feliz?<br />

—Sim.<br />

—E você quer poder fazer algo por ele que o faça saber o que você sente por<br />

ele?<br />

—Sim! —Respondo, praticamente ofegando.<br />

—E se eu disser a você o que deve fazer, não vai questioná-lo e apenas fará<br />

o que eu disser, porque no fundo saberá que tenho razão?<br />

—Juro por Deus, Ty!<br />

<strong>Kid</strong> olha para mim fixamente.<br />

—Você deve dizer a ele que você o ama. Você nunca disse. Você deve tê-lo<br />

diante de você e deve dizer-lhe o quanto você o ama e que não sabe o que faria sem<br />

ele.<br />

—Bem, eu não sei nada sobre isso. —Respondo com evasivas.<br />

—<strong>Bear</strong>! —Grita o aspirante a ecoterrorista. —Acaba de jurar. Por Deus. Não<br />

pode jurar por Deus em vão para uma criança dizendo que vai fazer algo e depois<br />

não fazê-la. De fato, poderia traumatizar minha infância. —Fica parado com o<br />

olhar perdido e uma expressão melancólica no rosto. —Sem falar que,<br />

seguramente, nunca poderia ter uma relação normal quando for um adulto.<br />

Viveria sempre contigo e me converteria em uma solteirona que só possui gatos.<br />

Olho para ele com assombro.<br />

—Você detesta gatos.<br />

Ele revira os olhos.<br />

—Sim, bem, agora eu os odeio. Mas não terei outro remédio. Creio que será<br />

inevitável. E seguramente terei que organizar festas de aniversários para meus<br />

companheiros felinos e fazer bolos Fancy Feast 20 . E tudo porque não cumpriu com<br />

seu juramento a Deus.<br />

Noto que minhas mãos estão suadas quanto as esfrego.<br />

—Ty. —Digo— Não posso fazer com que ele venha e dizer: «Olá, obrigado<br />

por ter vindo. Quer que eu guarde sua jaqueta? Ah, a propósito, eu amo você, assim que,<br />

Página214<br />

20<br />

Marca de comida de gato.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página215<br />

por favor, não fique bravo comigo.» —Nego com a cabeça. —Pareceria um retardado.<br />

—Bem, claro que não. —Responde <strong>Kid</strong> com voz juvenil. —Você tem que<br />

fazer algo especial para ele. Por Deus, <strong>Bear</strong>, não sabe nada sobre romance? Você<br />

teve uma namorada e um namorado; pensei que deveria ter aprendido alguma<br />

coisa.<br />

—Eu sei sobre romance. —Respondo. —Posso ser… romântico se eu quiser.<br />

<strong>Kid</strong> se reclina em sua cadeira, e sua camiseta com a legenda A CARNE<br />

NÃO É PURA se ergue pelos lados.<br />

—Está bem. —Diz fazendo uma careta. —Se você é uma pessoa tão<br />

apaixonada, por que não me diz o que pensa que deveria fazer?<br />

Ele cruza as mãos sobre o estômago e sorri para mim satisfeito.<br />

—Tudo bem. —Digo com certa veemência. —Vou dizer o que farei. Vou…<br />

Ok, espera um momento. Bem, não, isso é patético. Poderia… espera, não, creio<br />

que isso é ilegal nesse Estado. Poderia… fazer para ele… algo? —Concluo olhando<br />

<strong>Kid</strong>, que faz gesto com a mão incitando-me a continuar. —Poderia… lhe preparar o<br />

jantar? E… poderia haver… velas? —Ele concorda e volta a agitar a mão. —E<br />

poderíamos… fazer… algo mais? Diabos, Ty, eu não sou uma máquina! Não posso<br />

pensar em algo instantaneamente.<br />

Ele sacode a cabeça.<br />

—<strong>Bear</strong>, você tem muita sorte de ter a mim. —Diz muito sério.<br />

—Eu sei. —O tranquilizo.<br />

Ele se reclina na cadeira, e me divirto vendo seu porte altivo enquanto<br />

conduz o futuro de minha presumida vida amorosa. Demora um pouco para falar,<br />

e isso me dá um momento para meditar sobre a situação na qual me encontro<br />

agora. Se alguém tivesse me dito há alguns anos atrás que eu estaria sentado no<br />

chão desse apartamento esperando que <strong>Kid</strong> resolvesse a melhor maneira de dizer<br />

ao irmão do meu melhor amigo que eu o amo, teria pensado que essa pessoa era<br />

viciada em crack. Há uma agitação nervosa em meu interior, um zumbido de<br />

impaciência pelo que <strong>Kid</strong> e eu estamos planejando. «Realmente terei que dizer a <strong>Otter</strong><br />

que eu o amo? » —Penso. —«Será que isso vai resolver alguma coisa? » —Constato com<br />

um pouco de diversão que nunca ponho em dúvida o fato de que eu o amo ou não.<br />

— «Bem, pelo menos isso está claro», digo a mim mesmo com ironia.<br />

Os olhos de Ty brilham, ele se endireita na cadeira e bate palmas.<br />

—Já sei o que fazer! —exclama. —<strong>Bear</strong>, você vai ficar me devendo muito<br />

depois disso!<br />

—O quê? —Digo, entusiasmado e apavorado ao mesmo tempo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—Bem, você disse que queria fazer um jantar para <strong>Otter</strong>, não é isso?<br />

—Certo.<br />

—E nós dois sabemos que você se dá super bem na cozinha, não é?<br />

—Oh, obrigado. Mas é verdade.<br />

Ele ignora e segue adiante.<br />

—Pois isso é o que faremos…<br />

******<br />

Página216<br />

A ideia de Ty era brilhante. Era algo típico dos filmes românticos de<br />

Hollywood, exagerados e bregas. Juro por Deus que <strong>Kid</strong> conquistará o mundo<br />

quanto for adulto. Ok, apague isso; seguramente o conseguirá dentro dos<br />

próximos cinco anos. No entanto, como disse, a ideia era incrível, mas a<br />

execução… bem, a execução deixa bastante a desejar.<br />

Maldição.<br />

Bem, antes de deixar que vocês vejam como eu faço o mais espantoso dos<br />

ridículos, permita-me que os coloque a par de todo o planejamento.<br />

Ty sugeriu que nós nos jogássemos com tudo sobre isso. Sua filosofia era<br />

que se você ia fazer algo como dizer ao seu namorado, pela primeira vez, que você<br />

o ama, você deve ser ambicioso ou então ficar em casa. Eu contei a <strong>Kid</strong> como <strong>Otter</strong><br />

disse a mim pela primeira vez, e não foi nada sofisticado. Ele me havia feito relatar<br />

a história de uns dias atrás, quando eu praticamente supliquei a <strong>Otter</strong> que o<br />

dissesse. Quando terminei, <strong>Kid</strong> comentou que parecia fabuloso, e logo riu<br />

dissimuladamente. Eu lhe disse que não o entendia. Ty disse que eu ficasse quieto<br />

e o escutasse, pois eu não sabia do que estava falando. Eu disse a ele para agir de<br />

acordo com sua idade. Ele respondeu para eu fazer o mesmo. Decidi ficar quieto e<br />

escutá-lo. Agora eu acho que ele estava apenas sendo obsceno.<br />

A ideia de Ty seguia consistindo em que eu fizesse um jantar para <strong>Otter</strong>,<br />

mas acrescentou que fazer o jantar em si era bom, mas não bastava. Disse que<br />

teríamos que fazê-lo na praia, diante do oceano e sob as estrelas. Ele pretendia<br />

levar uma mesa, colocá-la na areia, cobri-la com uma toalha branca e fazer com que<br />

nos vestíssemos com nossas melhores roupas (olhou para mim com certo desdém<br />

quando disse essa última parte e então me perguntou se eu tinha um roupa<br />

elegante), colocar velas e música, e enquanto ele falava tentei imaginar tudo isso<br />

em minha cabaça e fui incapaz de me ver fazendo qualquer coisa disso, e pensei<br />

em que diabos estávamos pensando, e estive a ponto de pegar o telefone e dizer a


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página217<br />

<strong>Otter</strong> naquele mesmo momento. Assim o disse a Ty, e já havia pego o celular e me<br />

dispunha a ligar para <strong>Otter</strong> quando Ty me arrancou o celular e ameaçou dizer a<br />

<strong>Otter</strong> que eu gostava que me batessem durante o sexo.<br />

Isto nos levou a uma longa discussão na qual o obriguei a me explicar como<br />

ele sabia que determinadas pessoas gostam de apanhar durante o sexo. Respondeu<br />

que talvez tenha ouvido isso enquanto assistia a MSNBC. Lhe disse que estava de<br />

castigo sem poder ver esses canais de notícias durante uma semana. Aqui é onde<br />

toda essa consulta deveria ter terminado, mas então me vi obrigado a explicar o<br />

que era o sadomasoquismo e bondage ao meu irmão mais novo, que insistiu com o<br />

tema e logo ficou olhando para mim com crescente horror quando por fim lhe<br />

expliquei. Então percebi que talvez eu havia me excedido, e durante os cinco<br />

minutos seguintes tive que jurar por Deus que não havia tentado nem tentaria<br />

nunca fazer nada semelhante. Agora é possível que Ty seja o único garoto de nove<br />

anos que tenha ouvido expressões «anel peniano» e fisting 21 . Minhas habilidades<br />

como pai não tem precedentes.<br />

Quando por fim voltou a olhar em meus olhos, sabia que a única maneira<br />

em que podia recuperar sua confiança (diga o que diga, sei que agora <strong>Kid</strong> acredita<br />

que eu gosto que me batam) consistia em levar adiante seu plano. Me perguntei em<br />

voz alta como íamos conseguir que <strong>Otter</strong> colocasse uma roupa elegante e fosse à<br />

praia sem dar nenhuma pista do que estava acontecendo. <strong>Kid</strong> disse que ligaria<br />

para <strong>Otter</strong> e lhe indicaria quando e para onde ele deveria ir. Tentei me safar sem<br />

muito entusiasmo novamente argumentando que se alguém nos visse, não<br />

estragaria o nosso propósito de guardar segredo? <strong>Kid</strong> respondeu dizendo que<br />

ambos conhecíamos um pequeno trecho da praia aonde ninguém nunca ia. E Ty?<br />

Onde estaria enquanto eu fazia tudo isso? Parecia que essa era a ocasião perfeita<br />

para me pedir se podia ir para aquele maldito ac<strong>amp</strong>amento com Alex e sua<br />

família na quarta-feira, ao sair da escola. Me dei conta da habilidade com que <strong>Kid</strong><br />

arquitetou seu plano e eu teria ficado chateado se não fosse tão bom.<br />

Quarta-feira. Algum dia já soou a você tão sinistro? Quarta-feira. Eu disse a<br />

<strong>Kid</strong> que acreditava que «quarta-feira» era a denominação em latim para Satanás, e<br />

que seguramente não deveríamos fazer isso então, porque podia trazer má sorte.<br />

Então <strong>Kid</strong> se empenhou em explicar-me que a palavra «quarta-feira» é originária<br />

do latim Quarta Feria e que povos pagãos antigos reverenciavam seus deuses<br />

dedicando esse dia ao astro mercúrio, o que significava o «dia de Mercúrio», que<br />

21<br />

Fist fuck ou fisting ou fist fucking é uma prática sexual que envolve a inserção damão ou antebraço na<br />

vagina (brachio vaginal) ou no ânus (brachio procticus). 1


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na mitologia romana era um deus muito importante do comércio (jamais saberei<br />

como diabos ele sabe essas coisas). Logo me disse que deixasse de me comportar<br />

como se fosse uma garota. Isso lhe pareceu engraçado, e me perguntou, entre risos,<br />

se eu era a menina em minha relação com <strong>Otter</strong>. Franzi a testa e joguei um<br />

travesseiro em sua cabeça.<br />

Assim, <strong>Kid</strong> ligou para <strong>Otter</strong> e lhe indicou aonde teria que ir e que roupa<br />

colocar. Tentei escutar a conversa, mas Ty me lançou um olhar irritado até que se<br />

trancou no banheiro, abriu a torneira da pia e o chuveiro e deu a descarga<br />

reiteradamente para afogar seus sussurros. Bati na porta e gritei que Al Gore<br />

poderia chutar sua bunda por desperdiçar toda essa água. Após cinco minutos saiu<br />

e me disse que, em primeiro lugar, Al Gore deixou de ser influente quatro anos<br />

atrás e, segundo, que não havia revelado nada a <strong>Otter</strong>. Mas acrescentou que havia<br />

uma nova condição e era que não podíamos levar sapatos. Arquei uma<br />

sobrancelha ao ouvir isso e ele disse que isso não era para ser mais romântico,<br />

senão mais prático. Comentou que <strong>Otter</strong> havia tentado descobrir o que tramava,<br />

mas <strong>Kid</strong> o fez prometer que não fizesse mais perguntas a ele nem a mim. <strong>Otter</strong> o<br />

prometeu.<br />

Nós revisamos tudo o que eu tinha no guarda-roupa, e Ty ia desanimandose<br />

cada vez mais a medida que íamos adentrando entre as prateleiras de roupa.<br />

Finalmente sacou a última roupa do guarda-roupa, com o quarto em completa<br />

desordem, e se sentou no chão sacudindo a cabeça e perguntando por que eu não<br />

tinha nem ao menos algum tipo de terno. Lhe disse que eu não era o bastante<br />

pretensioso. Respondeu que eu nem sequer sabia o que significava aquela palavra.<br />

Então eu lhe disse o que significava. Resmungou durante alguns minutos até que<br />

abriu os olhos arregalados, se levantou de um salto da cratera de roupa que havia<br />

feito e disparou correndo pelo corredor. O ouvi dirigir-se para o antigo quarto de<br />

nossa mãe. Isto me estranhou, porque nunca entra ali por nada. Me levantei e o<br />

segui. Vi que havia aberto a porta do guarda-roupa. Me perguntei o que buscava,<br />

porque nossa mãe havia levado a maior parte de sua roupa, e ainda que não o<br />

tivesse feito, eu não tinha intenção de colocar nada seu. Abri a boca para dizer a<br />

<strong>Kid</strong> que sim, que me dispunha a dizer a um cara que eu o amava, mas isso não<br />

significava que teria que fazê-lo trajando um vestido de segunda mão e salto alto.<br />

Antes que eu pudesse falar, soltou um grito triunfal e se afastou do guarda-roupa,<br />

segurando um smoking que esteve na moda vinte anos atrás. Havia me esquecido<br />

que estava ali. Pertencia ao pai de Ty e havia ficado ali com as outras coisas,<br />

quando ele e nossa mãe haviam deixado de fazer o que quer que seja que


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Página219<br />

estivessem fazendo. Minha mãe havia dito que não tinha coragem de jogá-lo fora e<br />

que acreditava que Ty talvez o colocasse no dia de seu casamento. Recordo que<br />

olhei para minha mãe com certo respeito. É claro que se desfez de imediato quando<br />

seguiu dizendo que queria que Ty o usasse no dia de seu casamento como uma<br />

advertência para não ser nunca um maldito filho da puta idiota como seu pai foi.<br />

Ty abriu o zíper do saco onde o smoking estava e cheirava a mofo, mas <strong>Kid</strong><br />

disse que Febreeze 22 exterminaria qualquer cheiro. Lhe disse que não tinha a<br />

intenção de usar isso. Respondeu que me calasse e que o experimentasse. E o fiz, e<br />

quando me coloquei de frente ao espelho, o traje ficava surpreendentemente bem<br />

(de que outra forma poderia ir este conto de fadas?). Fiquei pasmado ao ver o<br />

magnífico aspecto do reflexo que o espelho me devolvia. Tínhamos dispensado a<br />

gravata borboleta pois era de tecido xadrez (ou pelo menos Ty havia dispensado a<br />

gravata porque era xadrez; em minha opinião dava um ar muito retrô) e também a<br />

faixa combinando foi deixada de lado. O que nos restou foi um smoking negro com<br />

uma camisa branca que Ty me obrigou a colocar. Comecei a fazer as péssimas<br />

imitações de James Bond no espelho, e Ty me advertiu que se fazia isso na praia<br />

com <strong>Otter</strong> eu ficaria sozinho para sempre. Eu parei. Quando olhei para <strong>Kid</strong>, para<br />

ver se me dava a sua aprovação, sorriu e disse que estava quase apresentável.<br />

Nós o cobrimos com Febreeze.<br />

Os dias seguintes transcorreram em estados alternados de pânico e<br />

preparação. <strong>Otter</strong> me ligou um bilhão de vezes para me perguntar o que<br />

estávamos tramando eu e <strong>Kid</strong>, e logo me fez jurar que não dissesse a Ty que ele<br />

havia quebrado sua promessa. Lhe respondi que não sabia do que ele estava<br />

falando. Me chamou de mentiroso. Eu o chamei de idiota. Ele me perguntou se<br />

podia vir em casa, mas eu disse que não, que estava ocupado. Na realidade eu<br />

estava ocupado me preparando para tudo aquilo, mas t<strong>amp</strong>ouco o queria ver antes<br />

do dia dessa coisa acontecer. Não queria estragar a surpresa, sabendo, na realidade<br />

que eu não desejava vomitar sobre ele quando aparecesse em meu apartamento.<br />

<strong>Otter</strong> ligou uma hora depois, mostrando-se receoso, e novamente exigiu saber por<br />

que Ty lhe havia dito que colocasse um smoking sem sapatos e fosse para a praia<br />

às oito da noite seguinte. Lhe repeti que não tinha nem ideia do que ele estava<br />

falando. Resmungou através do telefone, em voz baixa e ofegante, e acabou sendo<br />

a primeira vez que tive sexo por telefone. Sujo, negócio sujo esse.<br />

Ty aprovou o menu (tudo frio, o que facilitava a preparação e o<br />

deslocamento até a praia) e o corte do cabelo (tentei fugir disso, mas ele disse a<br />

22<br />

Eliminador de odores


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Página220<br />

Sam, o cara que tem cortado meu cabelo desde que eu era um bebê, que o deixasse<br />

o mais curto possível, mas ainda me deixando com cabelo; quando terminou, eu<br />

estava tosquiado e horrorizado e <strong>Kid</strong> sorria satisfeito). Aprovou a mesa (uma<br />

grande mesa negra da loja de móveis), a toalha (branca) e as velas (longas e<br />

afiladas; eu queria que fossem perfumadas, mas disse que essas coisa são para<br />

quando a gente come carne e tem que fazer cocô; não me dei ao trabalho de lhe<br />

explicar que eu faço ambos). Aprovou a música (algumas músicas fáceis de ouvir<br />

que não atrapalhava a conversa), as flores (eu disse que não queria nenhuma flor;<br />

ele disse que, tanto gay como heterossexual, as pessoas gostavam de flores, e nós<br />

concordamos com duas rosas) e minha etiqueta (pelo visto, segundo o lord<br />

britânico do século XVIII, que parece estar preso no corpo de meu irmão mais<br />

novo, meus modos à mesa deixam algo a desejar e, por incrível que possa parecer,<br />

os cotovelos não combinam nunca com uma mesa). Eu basicamente bancava o seu<br />

chofer enquanto nos movíamos de um lado para o outro, preparando tudo o que já<br />

tinha previsto dentro de sua cabeça. A única coisa que deixou ao meu encargo era<br />

o que eu realmente diria a <strong>Otter</strong> (mas me recomendou que fosse breve e doce. Ah,<br />

e também que o dissesse depois de comer. E que o olhasse nos olhos. E que não<br />

colocasse os cotovelos sobre a mesa quando o fizesse. E que, nesse caso ele deveria<br />

fazer uma rima, já que estavam aprendendo poesia na escola).<br />

Assim pois, enquanto levava meu irmãozinho e pensava em sua noite de<br />

sonho na qual eu ia entregar a <strong>Otter</strong> a chave de meu coração (palavras literais dele,<br />

não minhas), me deixava levar pelo pânico em silêncio e compunha versos ruins.<br />

Normalmente eu levo muito jeito para escrever poemas e letras de canções que<br />

jamais cantarei, mas aquilo era espantoso. Por exemplo:<br />

Eu te amo<br />

Você me ama<br />

Agradeço a Deus por isso<br />

Sou muito feliz<br />

E o preferido de Ty (ao que contribuiu):<br />

<strong>Otter</strong>! <strong>Otter</strong>! <strong>Otter</strong>!<br />

Não leve vacas ao abatedouro!<br />

Tenho que dizer que te amo<br />

Deveria tê-lo dito antes.<br />

Mas você não deveria comprar atum de golfinhos!<br />

Ty me perguntou se eu entendia a mensagem subliminar de seu poema. Eu<br />

respondi que era claro e contundente.<br />

Assim pois, levado pelo pânico, preparei a noite mais sofisticada e


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página221<br />

maravilhosamente assustadora da minha vida. Pensei que teria suficiente tempo<br />

para fazer tudo o que devia fazer. Mas então chegou quarta-feira e deixei Ty na<br />

escola para seu último dia. Depois já era a tarde de quarta-feira, recolhi Ty na<br />

escola e o levei à casa dos Herrera e o deixei ali. Estive aturdido durante todo o<br />

tempo que transcorreu entre o levar a escola e o pegar. Antes de descer me fez<br />

revisar a lista e uma vez que esteve satisfeito de que eu me havia recordado de<br />

tudo (e depois de dizer a ele por três vezes que eu não pensava em utilizar seu<br />

poema) me deu um abraço, me sussurrou ao ouvido que me amava e me disse que<br />

nos veríamos no domingo quando regressariam. Para que você tenha uma ideia do<br />

quão nervoso eu estava, só o fiz prometer duas vezes que me ligaria para me dizer<br />

que estava bem. Tudo bem, e duas vezes no carro a caminho dali. Na verdade<br />

foram quatro vezes, e foi quando estávamos estacionados diante da casa de seu<br />

amigo, mas, vamos, posso ser um desastre sem deixar de ser um bom irmão mais<br />

velho.<br />

Voltei para casa e durante algumas horas estive andando de lá para cá.<br />

Logo, como não tive mais remédio, carreguei tudo no carro e me dirigi para a<br />

praia. Peguei o poema de Ty, só para garantir. O trajeto até lá me custou<br />

escassamente uns dez minutos, mas foram os dez minutos mais longos da minha<br />

vida. Só demorei quinze minutos para descarregar as coisas do carro, mas foram os<br />

quinze minutos mais longos da minha vida. Levi vinte minutos para arrumar tudo,<br />

e foram os vinte minutos mais curtos da minha vida. Para meu horror. E, então, já<br />

eram sete e quarenta e cinco, troquei minha roupa apressadamente no carro<br />

mesmo e me borrifei com uma colônia que Ty havia escolhido. Comecei com um<br />

borrifo só, mas não me parecia o suficiente, então, acabei, sem querer, borrifando<br />

em mim outras seis vezes.<br />

Regressei à praia com a intenção de esperar, cheirando a um acidente em<br />

uma seção de perfumaria. Quando eu alcanço a elevação que presidia o lugar em<br />

que havia colocado a mesa, os últimos raios de sol se projetavam sobre o oceano.<br />

Baixei os olhos e vi a toalha branca ondulando suavemente pela brisa, a luz das<br />

velas tremulando, e ouvi a música elevando-se tenuemente até mim e, de repente,<br />

compreendi por que Ty é um gênio. Era perfeito. Todo aquele cenário era perfeito<br />

para um reality show de encontros.<br />

Esperei na praia e às oito em ponto ouvi um carro que parava. Peguei a rosa,<br />

me situei diante da mesa, levantei a vista até a colina e vi <strong>Otter</strong> alcançando o topo,<br />

onde eu havia estado momentos atrás. Vestia também um smoking, e sorri<br />

divertido ao comprovar que não levava gravata borboleta, faixa e nem sapatos,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página222<br />

conforme as ordens. Ele baixou o olhar , e seu sorriso foi tão <strong>amp</strong>lo que quase<br />

partiu o mundo em dois. Desceu lentamente do morro e se colocou diante de mim.<br />

Lhe fiz uma leve reverência (conforme instruções de Ty) e lhe ofereci a rosa. Ele<br />

começou a rir baixinho, a aceitou e me beijou intensamente nos lábios, e foi<br />

agradável, e percebi o quanto tinha sentido sua falta durante os últimos dias e<br />

quão disposto eu estava para fazer qualquer coisa por ele. Se Creed tivesse<br />

aparecido naquela hora, eu teria contado tudo para ele. Se Anna tivesse aparecido<br />

naquela hora, eu teria dito de todo jeito.<br />

Justo quando se afastava, com o sorriso torto em seu rosto, o brilho verdeouro,<br />

prendendo-me com tal olhar que estive a ponto de soltar tudo de repente, me<br />

dei conta de que o amava pura e simplesmente. Não é uma coisa de lógica ou<br />

equação. É uma coisa do meu coração.<br />

Assim, então, tudo está perfeito? Até o último detalhe? Tudo ia muito bem.<br />

E, então tudo sucedeu de uma vez.<br />

—Hum, <strong>Bear</strong>? —Me disse <strong>Otter</strong>.<br />

—Sim? —Respondi, olhando em seus olhos.<br />

—Há uma gaivota comendo nosso jantar. —Disse ele, e foi a coisa mais<br />

romântica que ouvi em minha vida.<br />

—Eu sei, <strong>Otter</strong>. E é por isso que fiz tudo isso. Promete a Ty que não o diria<br />

agora, mas tenho que fazê-lo. <strong>Otter</strong>, eu... Espera, uma o quê?<br />

Sinalizou por cima do meu ombro. Dei a volta e vi que uma gaivota havia<br />

pousado sobre a mesa e picotava a comida que eu havia colocado com tanta<br />

delicadeza e esmero. Arregalei os olhos, gritei de cólera e comecei a correr até o<br />

estúpido pássaro que estava estragando tudo. <strong>Otter</strong> ria às minhas costas, e tive a<br />

intenção de matar o pássaro e depois ele. Cheguei até a mesa e comecei a dar<br />

palmadas fortes, tentando afugentar a gaivota. Deu um salto e voltou a pousar<br />

sobre a mesa. Agitei as mãos em frente a ela, estufando o peito para parecer maior.<br />

O pássaro se assustou, retrocedeu derrubou os copos e duas velas. Estas caíram<br />

sobre a mesa e atearam fogo na toalha no mesmo instante. A gaivota bateu asas,<br />

começou a levantar o voo e derrubou as outras duas velas, que incendiaram o lado<br />

oposto da toalha. Fiquei paralisado, com o olhar fixo sobre a mesa, ouvido o<br />

pássaro se afastar voando e ouvindo a estrondosa risada de <strong>Otter</strong> atrás de mim. O<br />

aparelho de som passou para outra canção, uma versão leve, uma interpretação de<br />

Achy Breaky Heart de Billy Ray Cyrus, e eu não sabia como a noite poderia piorar.<br />

Peguei um copo e corri até o oceano, decidido a conseguir água do mar para<br />

apagar o fogo e por fim podermos sentar e comer o jantar que a gaivota não tinha


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página223<br />

comido. Ou pisoteado. Ou defecado em cima. Enchi o copo até o topo, e quando<br />

regressava para derramar a água o céu sobre nossas cabeças se abriu. As nuvens,<br />

que tão longe pareciam quando chegamos até aqui, se haviam fechado sobre nós e<br />

agora descarregavam uma chuva como não havia visto nunca cair do céu. Fiquei a<br />

meio metro da mesa, com o copo na mão, contemplando como as chamas se<br />

apagavam sob a chuva. Achy Breaky Heart emudeceu quando o aparelho de som<br />

entrou em curto-circuito com um estalo, e o único que eu podia ouvir era a chuva e<br />

<strong>Otter</strong> tentando recuperar o fôlego quando seu riso se extinguiu.<br />

E é aí onde estamos. Uma ideia brilhante, uma péssima execução.<br />

<strong>Otter</strong> se aproxima de mim, ainda rindo baixinho, com o cabelo grudado<br />

contra a sua testa e a jaqueta do smoking colado até a pele. Se posiciona diante de<br />

mim, retira o copo da minha mão e o deixa sobre a mesa. Segura meu rosto com<br />

sua mão, se inclina para frente e me beija suavemente nos lábios. Se afasta, esboça<br />

seu sorriso e levanta minha mão; vejo que ainda segura a rosa e agora a coloca em<br />

minha mão. Volto a olhar em seus olhos.<br />

—<strong>Otter</strong>, <strong>Otter</strong>, <strong>Otter</strong> —Murmuro.<br />

—Sim, <strong>Bear</strong>? —Diz ele maravilhosamente.<br />

—Não leves vacas ao abatedouro. —Digo.<br />

Arqueia uma sobrancelha.<br />

—Como?<br />

Respiro fundo.<br />

—Eu amo você e sei que deveria ter dito antes.<br />

Seus olhos se arregalam ligeiramente.<br />

—Espera, o quê? Você… me…?<br />

Sacudo a cabeça.<br />

— Mas você não deveria comprar atum de golfinhos.<br />

—<strong>Bear</strong>, o quê diabos? Você acaba de fazer… uma rima?<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Eu o escrevi. Ty me ajudou. Ele aprendeu poesia na escola.<br />

Se inclina e me beija de novo; sua boca tem gosto de chuva. Volta a se<br />

afastar, mas apenas o suficiente para poder falar. Abro os olhos e os seus estão<br />

abertos e, meu Deus, eles são tudo.<br />

—Isso tudo era para mim? —Sussurra através da chuva.<br />

—Sim.<br />

—E você quis dizer o que…acaba de dizer?<br />

Não vacilo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—Sim, eu quis dizer isso. Amo você, <strong>Otter</strong>.<br />

Ele pressiona sua testa contra a minha.<br />

—Eu também amo você, <strong>Bear</strong> —Diz.<br />

E então, seus lábios posam sobre os meus, estamos ardendo e queimamos o<br />

mundo.<br />

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<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

10<br />

Quando <strong>Bear</strong> vê o olho da tempestade<br />

Página225<br />

Assim, então, eu lhe disse.<br />

Eu lhe disse e foi mais fácil do que eu esperava, mais fácil do que deveria ter<br />

sido. Houve um momento nessa noite, quando ele entrou em mim pela primeira<br />

vez, me senti mais completo do que nunca. Não estou tentando ser gráfico nem<br />

nada disso, porque necessariamente não o digo no sentido sexual. Bem, sim,<br />

suponho que, de certo modo, o digo nesse sentido, já que notei uma picada e<br />

depois a dor, mas logo o superei e foi como se flutuasse sobre mim mesmo,<br />

separado e elevado. Apenas tinha uma vaga sensação do que me estava<br />

acontecendo, mas depois uma onda me sacudiu dos pés à cabeça, e regressei<br />

repentinamente ao meu corpo e o enfrentei em meio a uma confusão de suspiros e<br />

golpes. Quando gozei (sem sequer me tocar, como é possível?), algo estalou em<br />

meu interior ao disparar em meu peito, e meu cérebro, ébrio pelo prazer, somente<br />

podia pensar em Deus criando o universo. No princípio não havia nada e depois<br />

existia tudo. <strong>Otter</strong> me segurou enquanto meu corpo se balançava e sacudia e, pela<br />

primeira vez me dei conta de que existem terremotos bons, que enquanto você<br />

dispõe de alguém no qual se agarrar, o movimento do mundo pode ser algo<br />

maravilhoso. Ainda me dava um medo atroz, mas eu não estava disposto a deixar<br />

que isso me afastasse dele. Não mais.<br />

De modo que, rapidamente e inevitavelmente, os dias passaram.<br />

<strong>Otter</strong> manteve sua promessa e não tentou me pressionar em nada. Creio que<br />

Ty tinha razão, <strong>Otter</strong> apenas necessitava ouvir o que eu realmente sentia por ele.<br />

Qualquer tensão que persistia se esfumou e fomos capazes de descobrir o que<br />

havíamos querido dizer quando verbalizamos nossos sentimentos recíprocos. Não<br />

passou nem um só dia, mesmo se brigássemos ou não, sem que eu não soubesse o<br />

que ele sentia por mim. Tentei me assegurar de que ele pensasse o mesmo.<br />

Eu pensava frequentemente em como foi diferente para ele e para mim em<br />

relação a como foi com Anna e comigo. Ainda me lembrava da primeira vez que<br />

disse a Anna que a amava. Tínhamos quinze anos, foi doce e eu o disse de verdade,<br />

com toda a sinceridade de um garoto de quinze anos podia dizê-lo. Ela me havia<br />

oferecido com um sorriso, logo me beliscou no braço e disse que já sabia. Então me<br />

senti no topo do mundo. Com <strong>Otter</strong>, no entanto, superei o topo há muito tempo


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página226<br />

atrás. Ignorava que uma pessoa podia sentir tantas coisas por outra sem chegar a<br />

explodir.<br />

Como havia dito, <strong>Otter</strong> manteve sua promessa, e por mais que eu soubesse<br />

que isso, com certeza, era uma carga para ele, não podia deixar de admirar sua<br />

paciência. Eu, em seu lugar, teria me chutado para fora há muito tempo, uma e<br />

outra vez. Não me interpretem mal: ele ainda fica irritado às vezes, nos momentos<br />

que me deixo levar pelo pânico e estava seguro de que todo o mundo sabia sobre<br />

nós e murmurava às nossas costas. Mas eu nunca mais vi essa sombra atravessar<br />

seu rosto desde aquela noite na praia. Fui eu quem a colocou lá, e eu era o único<br />

que podia tirá-la de lá.<br />

Durante os dois meses seguintes minha vida mudou, de maneiras que eu<br />

nunca julguei ser possível.<br />

Ty voltou de seu ac<strong>amp</strong>amento no domingo seguinte ao encontro mais<br />

desastroso a que havia comparecido. Falei com ele infinitas vezes durante sua<br />

excursão, e por mais que ele perguntasse, me neguei a contar o ocorrido. Ele<br />

gritava comigo ao telefone e exigia falar com <strong>Otter</strong>. Eu me despedia e desligava.<br />

Após alguns segundos soava o celular de <strong>Otter</strong>, e Ty se queixava mais um pouco<br />

ao ver que era eu que atendia. Naquele domingo <strong>Otter</strong> e eu fomos à casa dos<br />

Herrera e achamos graça ao ver Ty sentado no meio fio junto a suas malas, com a<br />

testa franzida e sacudindo o joelho com impaciência.<br />

—E, então? —Disse quando abriu a porta da frente do passageiro do Jeep de<br />

<strong>Otter</strong> e sentou no meu colo.<br />

O abracei.<br />

—Olá, <strong>Kid</strong>. —Disse alegremente. —Como foi a excursão?<br />

Não me deu atenção e olhou para <strong>Otter</strong>.<br />

—E, então? —Insistiu.<br />

<strong>Otter</strong> sorriu.<br />

—Você se divertiu no ac<strong>amp</strong>amento?<br />

Ty olhou para nós dois irritado. Pude ouvir <strong>Otter</strong> se esforçando por<br />

mostrar-se sério. Eu tentava pensar em coisas tristes e desagradáveis para manter o<br />

riso longe. Havia começado a reproduzir uma e outra vez dentro da minha cabeça<br />

a cena na qual disparavam na mamãe de Bambi quando <strong>Kid</strong> sorriu para mim<br />

maliciosamente, se voltou par <strong>Otter</strong> e disse:<br />

—<strong>Bear</strong> gosta de ser espancado na hora do sexo.<br />

Se fez um silêncio dentro do carro, e então <strong>Otter</strong> já não pode se conter mais<br />

e explodiu, o que me fez começar a rir também. <strong>Kid</strong> resmungou entre dentes


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

enquanto nos olhava como se estivéssemos loucos. Quanto por fim pudemos nos<br />

acalmar (mas não antes de <strong>Otter</strong> me lançar um olhar repleto de luxúria que me<br />

anunciou que já falaríamos disso mais tarde), me inclinei para frente, envolvi <strong>Kid</strong><br />

entre meus braços e lhe contei o incrivelmente mal que havia ido. Cheguei à parte<br />

na qual lhe disse que havia recitado seu poema, e seu rosto se iluminou com tal<br />

resplendor que me fez rir de novo.<br />

—Você captou a mensagem extra que eu escrevi? —Perguntou a <strong>Otter</strong><br />

quando terminou.<br />

<strong>Otter</strong> sorriu e lhe bagunçou o cabelo.<br />

—Claro que sim, <strong>Kid</strong>. Por isso o levaremos agora para jantar em uma<br />

churrascaria. Bem-vindo à casa.<br />

<strong>Kid</strong> começou a rir sem parar.<br />

******<br />

Página227<br />

Anna e eu voltamos a nos falar, umas três semanas depois que <strong>Kid</strong> voltou<br />

para casa. Surgiu do nada, considerando que ambos ainda tínhamos a involuntária<br />

intenção de nos evitar. Cada semana eu ia trabalhar e segurava a respiração<br />

quando pegava o horário para a semana seguinte, rezando para que estivéssemos<br />

em turnos diferentes. Em sua maior parte, isso funcionava assim. Se ela trabalhava<br />

durante o dia, eu o fazia à noite, e vice-versa. Claro que nossos caminhos se<br />

cruzavam de vez em quando, mas só por alguns momentos, e nunca houve diálogo<br />

entre os dois. Eu sabia que havia sido ela que tinha feito isso, ir até o encarregado<br />

da programação dos turnos e pedir que trabalhássemos em turnos diferentes. Me<br />

senti aliviado e triste ao mesmo tempo. Naqueles breves momentos em que a via,<br />

ambos estávamos tão ocupados nos ignorando que nunca demos um tempo para<br />

provar a temperatura da água, para ver se algum dos dois seria receptivo a algum<br />

tipo de contato. Para ser franco, por injusto que pareça, havia começado a deixar<br />

que se distanciasse discretamente de mim. Ainda havia vezes nas quais eu me<br />

debruçava sobre a programação de horários e outras vezes nas quais suspirava<br />

com alívio, mas isso era tudo. Em realidade nunca acreditei nessa história de que<br />

olhos que não veem, coração que não sente, pois as únicas pessoas no mundo que<br />

haviam se encontrado nessa situação (<strong>Otter</strong> e minha mãe) sempre haviam estado<br />

presentes em meus pensamentos. Uma delas havia voltado para mim e a outra não<br />

o faria nunca.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página228<br />

Assim pois, imaginem minha surpresa quando cheguei ao trabalho uma<br />

noite para cobrir a última metade do turno de fechamento para fazer um favor a<br />

um amigo e encontrei Anna fazendo também seu turno de fechamento. E não só<br />

isso, também seria a última empregada trabalhando ali das nove às onze de uma<br />

noite de terça-feira, quando havia menos movimento. Xinguei em silêncio quando<br />

a vi chegar e soltei um palavrão quando Mary, a outra caixa, colocou a cabeça<br />

dentro do escritório e anunciou que ia para casa.<br />

—Está bem. —Murmurei, quebrando sem querer um lápis com o qual<br />

estava preenchendo ordens de compra.<br />

—Sabe? Isto poderia ser uma boa ocasião para você. —Disse da porta,<br />

aparentemente divertida.<br />

—Uma boa ocasião para quê? —Perguntei, sem me preocupar em levantar a<br />

cabeça.<br />

—Para falar com Anna, <strong>Bear</strong>. —Respondeu. —Vocês não se falaram desde…<br />

Se interrompeu.<br />

Foi então quando levantei os olhos, com receio.<br />

—Desde quando?<br />

Teve suficiente educação para corar.<br />

—Já sabe. —Disse, inquieta. —Desde que vocês terminaram e tudo isso.<br />

— Eu não sabia que era da conta de alguém, além da nossa. —Respondi<br />

com frieza.<br />

Mary deu de ombros.<br />

—Ela não me contou os detalhes, <strong>Bear</strong>, se isso é o que o preocupa. O que<br />

quero dizer é que vocês estiveram juntos desde antes que você soubesse o que isso<br />

significava. Não acredita que ela merece algo assim?<br />

—Como o quê? —Perguntei, sem me preocupar em dissimular a cólera em<br />

minha voz. —Ela terminou comigo!<br />

Mary olhou para mim fixamente.<br />

—O que você fez para lhe dar motivos para isso?<br />

Baixei os olhos para os papéis que tinha diante de mim e comecei a escrever<br />

de novo.<br />

—Nada —Resmunguei.<br />

Ela suspirou.<br />

—<strong>Bear</strong>, só… trata de não ser machista nisto. Às vezes o melhor que um<br />

garoto pode fazer é admitir que errou e tentar compensar. Sabe quantas vezes eu e<br />

Frank terminamos?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página229<br />

Frank era seu namorado motoqueiro, o único motoqueiro em Seafare. Era<br />

grande e robusto (uma espécie de urso, se você preferir) e usava botas com bicos<br />

de aço, calças de couro e uma jaqueta de couro com franjas por todo o lado. Mas<br />

dizer que você é o único motoqueiro de Seafare é como dizer que você é o garoto<br />

mais inteligente de uma sala de recuperação na escola. Grande coisa.<br />

—Não é o mesmo. —Respondi a Mary, desejando que esquecesse o assunto.<br />

—Desta vez acabou.<br />

—Você deseja isso? —Perguntou com curiosidade.<br />

Vacilei, só por um momento, mas em seguida me senti culpado. Sim queria<br />

que terminasse, e sabia que jamais voltaríamos ao lugar em que estávamos, mas<br />

que era mais por mim que por ela. Ainda que ela me aceitasse de volta, e ainda que<br />

eu quisesse voltar, sabia que durante o resto de minha vida seria consciente de que<br />

algo faltava, de que me faltava uma peça fundamental de mim que completava o<br />

quebra-cabeças. «Oooh, que coisa mais doce, <strong>Bear</strong>! » —Zombou a voz. — «Isso vai<br />

muito mais fácil agora! Bom trabalho. De nada.»<br />

—Sim.— Respondi a Mary em voz baixa.<br />

Ela não disse mais nada, e quando levantei o olhar ela já tinha ido. Ouvi sua<br />

voz quando desejava boa noite a Anna, e logo as portas se abriram e se fecharam e<br />

Anna e eu éramos os únicos que ficaram para as próximas duas horas. Comecei a<br />

consultar o relógio, contanto os segundos.<br />

Às nove e meia soou o telefone.<br />

—Obrigado por ligar ao armazém. Aqui é <strong>Bear</strong>. Em que posso ajudá-lo? —<br />

Disse sombriamente, com o olhar fixo no relógio enquanto transcorriam uns<br />

segundos mais.<br />

—Você parece tão quente quando diz isso… —Respondeu uma voz rouca<br />

ao meu ouvido.<br />

Sorri, revirei os olhos e, por um momento, tudo estava bem.<br />

—Isso soa quente? Talvez eu devesse ler para você o pedido dos produtos,<br />

para ver o que acontece.<br />

<strong>Otter</strong> soltou uma risada.<br />

—Traga-o para casa e então falaremos. Como vai o trabalho?<br />

Voltei a levantar o olhar para o relógio. Ainda era nove e trinta.<br />

—O de sempre. —Respondi. —Melhor agora. O que você está fazendo?<br />

Como está <strong>Kid</strong>?<br />

Ouvi que <strong>Otter</strong> passava o telefone de um ouvido para o outro.<br />

—Bem, queria esperar acordado até que você voltasse, mas o embebedei,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página230<br />

depois lhe dei Nyquil 23 e o acorrentei à cama. Podemos simplesmente ficarmos nus<br />

quando você chegar.<br />

—Você drogou meu irmão mais novo para dormir comigo? —Perguntei,<br />

divertido.<br />

Ele bufou.<br />

—É mais fácil isso que drogar meu irmão mais novo para poder dormir com<br />

você. Creed não se deixaria enganar nem um em um milhão de anos.<br />

—Obrigado por cuidar dele esta noite.<br />

—Oh, vamos. Você acha que tinha que torcer o meu braço para me<br />

convencer a vir esta noite? Estava a ponto dar uma surra em Creed, assim foi bom<br />

para eu ficar longe por um tempo.<br />

Isto era novo para mim.<br />

—Hum... —Disse. —Por que, o que ele está fazendo?<br />

Se fez silêncio, e logo <strong>Otter</strong> suspirou no telefone.<br />

—Está sendo… Creed. —Começou a rir, mas parecia uma risada forçada. —<br />

Não deixa de me perguntar o que está acontecendo entre Jonah e eu.<br />

—Jonah? —Disse, espantado. —Por que pergunta por ele?<br />

—Não sei. Ele vem com esse assunto a toda hora, me perguntando se<br />

ultimamente tenho falado com ele. Ele acredita que a minha suposta «volta a<br />

normalidade» tem a ver com o fato de que Jonah e eu voltamos a nos falar. Coisa<br />

que não fazemos. —Se apreçou a dizer.<br />

Senti uma pontada de ciúmes, mas o afastei.<br />

—Bem, não importa. —Disse, tentando ocultar a amargura da minha voz—.<br />

Deixemos que Creed pense o que ele quiser. Você pode vir a minha casa quando<br />

quiser.<br />

O ouvi sorrir do outro lado do telefone e fechei os olhos, imaginando seu<br />

rosto, seu sorriso torto também. Uma onda de calor percorreu meu corpo<br />

lentamente, e me maravilhei outra vez pela facilidade com que ele podia me fazer<br />

sentir assim.<br />

—Tudo o demais está bem? —Perguntou alegremente.<br />

—Bem…<br />

—O que está havendo?<br />

Me levantei o mais silenciosamente que pude e olhei da porta para os<br />

caixas. Anna estava de costas para mim a uns seis metros, folheando uma revista.<br />

23<br />

Vicks NyQuil é uma marca de medicação durante o contador fabricado pela Procter & Gamble destinado ao<br />

alívio de vários sintomas da constipação comum. Todos os medicamentos dentro do cunho NyQuil conter<br />

sedativo anti-histamínicos, hipnóticos, ou álcool, e destinam-se a ser tomada antes de dormir.


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Página231<br />

Voltei para a cadeira e baixei a voz o máximo que pude.<br />

—Anna está trabalhando esta noite.<br />

—Verdade? Ela tentou falar com você?<br />

—Não.<br />

Ele começou a rir.<br />

—Você esteve no escritório toda a noite?<br />

—Não! —Exclamei. E logo disse: — Sim.<br />

—Talvez devesse falar com ela. —Sugeriu pensativamente. —Ela disse que<br />

ainda queria fazer parte de sua vida, e sei que <strong>Kid</strong> as vezes sente falta dela.<br />

—Ele sente? —Perguntei, perplexo.<br />

Era a primeira vez que ouvia isso.<br />

—Sim, ele a menciona de vez em quando. Pergunta como ela está e se eu<br />

falei com ela.<br />

—Você falou?<br />

Bufou de novo.<br />

—O que você acha, <strong>Bear</strong>?<br />

—Não sei, <strong>Otter</strong>. O que eu diria a ela? Sinto que tenhamos terminado, e que<br />

não falo com você há um mês, mas não se preocupe comigo, recebi um pau na<br />

minha bunda?<br />

Ele riu estrondosamente.<br />

—Não seja grosseiro. —Me advertiu alegremente. —Se você não pode<br />

pensar em nada para dizer, então talvez não devesse fazê-lo. Mas creio que vocês<br />

se odiarão por toda a vida se não tentarem resolver isso.—Se deteve. —Mas não<br />

resolva demais. Creio que eu poderia ser prejudicado.<br />

—Certo —Zombei. —Isso é o que vai ocorrer.<br />

—Está bem. Então, o que tem a perder?<br />

—Detesto quando você tem razão.<br />

—Então deve detestar muito. Sempre tenho razão.<br />

Rosno.<br />

—Você é um maldito idiota.<br />

—Sim, mas sou o seu maldito idiota, não se esqueça. E diga a Anna que não<br />

ponha suas mãos sujas em cima de você. Nunca bati em uma garota, e não quero<br />

começar agora.<br />

Eu comecei a rir.<br />

—Tudo bem. —Disse. —Falarei com ela.<br />

—Muito bem. Então você me contará como foi quando chegar em casa.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página232<br />

Não posso evitar de me sentir um pouco tonto quando ele disse: «em casa».<br />

Não «quando chegue em sua casa», mas «em casa». Como se também fosse a sua.<br />

«Quieto, garoto.» —Digo a mim mesmo. —«Ainda não estão morando juntos.»<br />

—Adeus, <strong>Otter</strong>. —Disse, corando furiosamente.<br />

—Ei. —Ele diz.<br />

—Ei, você.—Respondi.<br />

—Amo você.<br />

«Em casa.» Pensei de novo.<br />

—Eu também amo você. —Eu disse calmamente.<br />

<strong>Otter</strong> cantarolou satisfeito e desligou.<br />

Desliguei o telefone e olhei para a papelada diante de mim. Sabia que se<br />

começasse a trabalhar neles outra vez, não me moveria dali até que ela partisse. O<br />

que <strong>Otter</strong> havia dito, que Anna e eu lamentaríamos toda a nossa vida, não deixava<br />

de dar voltas em minha cabeça. Seria verdade? Um de nós dois olharia para trás e<br />

sentiria uma pontada de remorsos por não haver tentado, pelo menos, reconstruir<br />

a ligação que existia entre nós? Logicamente, nada que construíssemos agora seria<br />

tão importante como antes, mas ela não merecia, pelo menos, ter alguma coisa?<br />

Lembrei-me do que ela havia dito na última noite quando brigamos: «Você partiu<br />

meu coração, mas era meu para lhe dar». Se ela pôde me dar isso, então eu podia fazer<br />

todo o possível para entregar-lhe algo em troca, por pequeno que fosse.<br />

Suspirando, me levantei novamente da cadeira e sai do escritório. Percorri<br />

os corredores com o olhar enquanto me aproximava dela e vi que o lugar estava<br />

vazio. Anna ouviu o som de meus passos e levantou o olhar, surpreendida. Sorri<br />

timidamente. Pareceu desconcertada por um momento e logo retribuiu o sorriso,<br />

com idêntica timidez. Senti uma pequena pontada de alívio e percorri a distância<br />

que nos separava até me deter a uns centímetros dela.<br />

—Ei. —Disse ela.<br />

—Ei, você. —Respondi.<br />

Recordei que <strong>Otter</strong> acabava de completar esse diálogo com «amo você». Ri<br />

em silêncio por dentro, me perguntando o que Anna pensaria se pudesse ouvir o<br />

que me passava pela cabeça.<br />

—O que está acontecendo? —Perguntou.<br />

—Nada. Como você tem passado?<br />

Anna inclinou a cabeça para um lado, como se tentasse julgar minha<br />

sinceridade.<br />

—O mesmo de sempre. —Respondeu pausadamente.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página233<br />

Deu uma olhada em sua revista e depois para mim, tentando decidir no que<br />

deveria se concentrar.<br />

—Isso é bom, não? —Disse, obviamente, soando extremamente inteligente.<br />

—Eu acho que sim.<br />

Um incômodo silêncio caiu sobre nós. Torci as mãos com força, e ela ficou<br />

com a cabeça inclinada. Tentei pensar em algo para dizer e fiquei mudo ao não me<br />

ocorrer nem uma só palavra. Estava diante de uma garota a quem conheço desde<br />

os oito anos, uma garota com a qual havia crescido, com a qual transei, com a qual<br />

conversei, com a qual havia feito tudo. E agora, após um mês, era incapaz de dizer<br />

algo. Gemi por dentro quando comecei a perceber que aquilo havia sido uma<br />

péssima ideia. Pensei em oito ou nove maneiras de me retirar, mas ela voltou a<br />

falar.<br />

—Como está <strong>Kid</strong>? —Perguntou.<br />

—Oh, bem! —Respondi, aliviado. —Já terminou a escola, de modo que<br />

está… bem.<br />

Ela acena com a cabeça concordando.<br />

—Isso é bom.<br />

—Sim, é bom. —«Pare de dizer bom!». —Mandou lembranças para você. —<br />

menti, pois <strong>Kid</strong> nunca me dizia.<br />

—Bem, diga-lhe que eu lhe mandei de volta.<br />

—Eu vou dizer. —Eu disse, suando.<br />

Parecia um bom momento para fugir. Agitei a mão nervosamente, e já tinha<br />

virado para regressar a minha cova quando Anna pronunciou meu nome. Fiquei<br />

paralisado, querendo avançar, fechar a porta de um só golpe às minhas costas e<br />

esconder-me até que fosse embora. Mas me voltei.<br />

Seu rosto se suavizou e seus olhos eram gentis.<br />

—Como você está? —Perguntou.<br />

—Eu estou bem. —Respondi, forçando um sorriso.<br />

—Bom, me alegro disso. —Ela disse em voz baixa. —Eu estive preocupada<br />

com você, <strong>Bear</strong>.<br />

—Por quê?<br />

—Porque você é daqueles que não se preocupa consigo mesmo. Alguém<br />

tem que fazê-lo por você. —Disse com tristeza.<br />

—Você não precisa se preocupar.—Repus.—Sei cuidar de mim mesmo.<br />

Ela negou com a cabeça.<br />

—Eu não me referia a isso. Eu sei que você é perfeitamente capaz de cuidar


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página234<br />

de si mesmo. E de Ty. Quero dizer, você tem estado fazendo isso durante anos,<br />

não?<br />

—Certo. —Respondi, sem saber o que acrescentar.<br />

Anna suspirou.<br />

—Assim, eu me pergunto por que eu me preocupo com você, quando é<br />

evidente que não necessita que o faça. Nunca necessitou que o fizesse, mas ainda<br />

assim, eu estou aqui, me preocupando de qualquer maneira.<br />

Eu estremeci.<br />

—Oh, vamos, Anna. Você sabe que isso não é verdade.<br />

Ela desviou o olhar.<br />

—Mas você sabe que é assim. Não é que você não quisesse isso. É que você<br />

realmente não precisava. Creio que isso foi parte de nosso problema.<br />

—Talvez sim. —Eu disse, sem saber exatamente do que estava falando.<br />

—Como está <strong>Otter</strong>? —Perguntou, mudando rapidamente de tática.<br />

Isso me fez pensar se ela estava tentando me pegar desprevenido, tentando<br />

me dizer alguma coisa. Para me enganar.<br />

—Oh, bem, eu acho. —Respondi, atuando como se não tivesse falado com<br />

ele só há alguns minutos atrás, ou o tivesse ouvido dizer que eu era quente, que eu<br />

tivesse dito que o amava.<br />

—Você o tem visto sempre? —Perguntou ela.<br />

Dei de ombros.<br />

—Vou muito a casa de Creed. Sempre está lá.<br />

Me detive, deixando que ela preenchesse os espaços em branco com o que<br />

lhe passava pela cabeça.<br />

Anna assentiu.<br />

—Isso é bom.<br />

— O que é bom?<br />

—Que você esteja com Creed. Já sabe, antes dele partir. —Me disse,<br />

desviando um pouco os olhos.<br />

Só faz isso quando não está sendo totalmente sincera, e por enésima vez me<br />

perguntei o que ela sabia, ou o que acreditava saber. Então, eu disse a mim mesmo<br />

que seria muito mais fácil abrir a boca, contar tudo a ela e acabar com as malditas<br />

especulações que, pelo visto, passavam desenfreadamente por sua cabeça. Mas,<br />

por mais que tentei, fizesse o que fizesse, meus lábios permaneceram grudados e<br />

eu não disse nada.<br />

Então as portas se abriram novamente com um rangido e entraram um par


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página235<br />

de adolescentes. Nos saudaram com um gesto de cabeça, Anna lhes sorriu e<br />

aproveitei a ocasião para observá-la sem que se desse conta. Seguia sendo bonita.<br />

Eu sorri dolorosamente quando me lembrei de imediato tudo sobre ela. Era como<br />

se essa parte de mim estivesse armazenada e agora eu estivesse revirando entre as<br />

caixas para invocar o passado. Ela me surpreendeu olhando para ela e me<br />

observou interrogativamente, porém sacudi a cabeça e murmurei que tinha que ir.<br />

Ela deu de ombros, mas captei algo em seu olhos, algo debaixo da indiferença. Não<br />

sei o que era, mas estava ali. Virei a cabeça e me afastei. Pude notar seus olhos<br />

cravados em minhas costas. Entrei no escritório, fechei a porta e me deixei cair<br />

contra ela até o chão, com o coração batendo velozmente. Tentei invocar<br />

novamente aquela expressão em seus olhos para poder vasculhar em meu cérebro<br />

em busca do que significava, mas tudo o que vi foi aquele brilho verde-ouro e quis<br />

ir para casa. «Em casa.»<br />

Quando chegou a hora de fechar, esperei que Anna saísse pela porta e<br />

fechei. Quando me voltei, ainda estava atrás de mim, observando-me com seus<br />

olhos grandes. Olhei para os meus pés, sem saber o que dizer. Tive a sensação de<br />

que deveria dizer algo porque não era só de mim que ela havia cuidado, mas<br />

também de <strong>Kid</strong>. Ty necessitava tanta gente ao seu redor como pudéssemos<br />

conseguir, e sabia que Anna era parte integrante de sua vida. Tentei pensar no que<br />

podia dizer, o que podia fazer para poder fazê-la entender que ele (eu?, nós?)<br />

necessitava que estivesse ali. Não me ocorreu nada e comecei a afogar-me embaixo<br />

de uma grande onda de tristeza. A ouvi rir baixinho e levantei o olhar.<br />

Ela sorriu para mim.<br />

—Você está sempre pensando. —Disse em voz baixa. —Sempre foi assim. É<br />

uma das coisas que me fizeram… —Se deteve, quase como se pensasse que era<br />

melhor não terminar a frase. Mas disse: —É algo que me fez amá-lo.<br />

—Eu ainda a amo, Anna. —Sussurrei. —Mas… não da maneira como creio<br />

que deveria.<br />

—Por que, <strong>Bear</strong>? O que está acontecendo com você que o faz incapaz de me<br />

amar?<br />

Ali estava, dando-me outra oportunidade, outra ocasião para nivelar o<br />

terreno do jogo, de ser honesto com ela totalmente. E foi então que eu soube, com<br />

certeza, que ela entendia o que <strong>Otter</strong> significava para mim e eu para ele. Era uma<br />

constatação a qual poderia ter chegado muito tempo atrás, se eu não tivesse tido<br />

tanto medo do que isso podia implicar. Eu havia tido uma vaga ideia, uma<br />

suspeita de que Anna sabia de <strong>Otter</strong> e de mim, mas esse foi o momento em que eu


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Página236<br />

não podia mais duvidar do que ela via em mim, em nós. Abri a boca para ser<br />

finalmente sincero com ela porque eu mesmo me disse, acaso ela não merecia? De<br />

todo o mundo (exceto <strong>Otter</strong>, logicamente), não havia ganho o direito de sabê-lo?<br />

Eu a conduzi por um caminho sem alternativa, sem nenhum caminho de volta.<br />

Sabem por que? Tão logo me ocorreu essa epifania sobre ela, me veio outra quase<br />

ao mesmo tempo: eu sabia que, independentemente de como isso pudesse ter<br />

acontecido, independentemente de quanto tempo teria levado, <strong>Otter</strong> teria me<br />

encontrado de novo o eu o teria encontrado. Sempre havia pensado que a ideia de<br />

destino era para os tolos ou para Celine Dion. No entanto, parecia que era só uma<br />

questão de tempo.<br />

—Porque não posso. —Disse, odiando-me por não poder lhe dar o que ela<br />

pedia. —Não tem nada a ver contigo, Anna. É coisa minha.<br />

Ela assentiu com a cabeça e desviou o olhar, mas não antes que eu visse a<br />

dor em seus olhos, uma dor que eu havia causado uma vez mais. Me amaldiçoei<br />

em voz baixa, me perguntando o que diabos era necessário para eu poder lhe dizer<br />

finalmente a verdade. Qualquer coisa seria melhor que ver aquela expressão em<br />

seu rosto. Qualquer. Ainda que seu eu dissesse, e ela me olhasse da mesma forma,<br />

pelo menos, então, teria um motivo justificado para fazê-lo. Talvez pudesse...<br />

Talvez...<br />

—Anna? —Disse, com o ar preso dentro do peito. —Anna, eu…<br />

—Não, <strong>Bear</strong>. —Sussurrou, tremendo. —Não posso fazer isso agora. Não<br />

posso. Pensei que estava disposto a… dizer a mim. Pensei que um dia pudesse se<br />

abrir e me contar tudo o que me oculta.<br />

—Estou tentando. —Respondi com aspereza. —Isso não é algo fácil para<br />

mim!<br />

Seus olhos brilham.<br />

—Não se torna mais fácil se você guarda tudo dentro de si! —Gritou. —<br />

Como pode esperar estar a seu lado se não confia em mim?<br />

Não pude olhar para ela. Finalmente ouvi seus passos enquanto se afastava.<br />

Tão logo eu cheguei em casa, <strong>Otter</strong> viu a expressão em meu rosto, me<br />

estreitou entre seus grandes braços e me embalou como se eu não fosse mais que<br />

uma criança. «Está tudo bem». —Sussurrou ao meu ouvido. —«Está tudo bem.»<br />

Quando comecei a me acalmar, meus pensamentos divagaram sobre a revelação<br />

que eu havia tido antes, referente a ele e a mim. Eu soube então que eu tinha tudo<br />

em minhas mãos para me assegurar de que ele permanecesse ao meu lado. Tinha<br />

que fazer tudo para me certificar de não perdê-lo nunca. Chame-o de destino,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

sorte, ciclone de hormônios raivosos, não me importa. Assim como acredito que Ty<br />

estaria perdido sem mim, eu sabia que estaria perdido sem <strong>Otter</strong>.<br />

Assim, o tempo passou, e houve dias bons e dias ruins. Houve dias nos<br />

quais o sol brilhava tanto que me dava a sensação de estar olhando diretamente<br />

para ele. Houve dias nos quais eu podia notar o oceano lambendo meus pés e o<br />

trovões retumbando ao longe, sem se aproximar nunca, mas sempre advertindo de<br />

sua presença. Houve dias nos quais me senti mais em êxtase do que havia sentido<br />

em minha vida, mas eram seguidos da sensação de cair em um abismo sem fim.<br />

No entanto, através de tudo aquilo, ele se manteve ao meu lado. Me tinha atado a<br />

ele, meu norte magnético, enquanto minha mente divagava aqui ou ali. Sempre o<br />

soube. De alguma maneira eu sempre o soube.<br />

********<br />

Página237<br />

Ouvi dizer que os casais que brigam são aqueles que perduram. Essas<br />

desavenças e discussões fortalecem as relações. Serei o primeiro em afirmar que<br />

isso é uma besteira. <strong>Otter</strong> e eu raras vezes brigávamos por algo, e quando o<br />

fazíamos era por estúpidas mesquinharias que um dos dois era muito teimoso para<br />

dar o braço a torcer. Houve coisas sem importância, insignificantes para tudo e<br />

para todos. Como por exemplo que eu planejava deixar de trabalhar ou que <strong>Otter</strong><br />

deixasse de fazer fotos (ainda que soubesse que se seguia insistindo nisso, teríamos<br />

uma boa briga, assim, que sempre parava). Vocês sabem, essas coisas que são<br />

sempre fáceis de superar e você se pergunta por que você estava remotamente<br />

chateado no início. Mas não pretendia afirmar que nunca tivemos uma grande<br />

discussão, que nos deixou tremendo e lambendo nossas feridas. A única coisa que<br />

me recordo é que enquanto eu gritava com ele e ele avançava contra mim, desejei<br />

que se acabasse. E quando aconteceu, ambos tínhamos os olhos arregalados, eu<br />

estava tonto e não queria repetir nunca mais algo semelhante. Se era isso o que<br />

fortalecia as relações, me parecia muito bom como era a nossa.<br />

Tudo começou por culpa de Creed.<br />

—Onde está <strong>Kid</strong>? —Perguntou Creed quando eu entrei em sua casa<br />

algumas semanas depois de minha conversa com Anna.<br />

—Está na casa de seu amigo, Gage. —Respondi.<br />

Fechei a porta nas minhas costas e, em seguida, agucei meu ouvido<br />

esperando ouvir meu namorado, ao mesmo tempo em que perguntava por que


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página238<br />

ainda não tinha baixado a escada correndo.<br />

— Gage? —Perguntou Creed. —Pensei que seu amigo se chamasse Alex.<br />

Revirei os olhos.<br />

—Pelo visto arrumou outro. Juro por Deus que saem debaixo das pedras.<br />

Não sabia que havia tanta gente em sua escola.<br />

Assim como eu estava tentando trabalhar em todo o resto, procurava deixar<br />

que <strong>Kid</strong> levasse sua vida. Parecia se despojar de sua antiga personalidade como se<br />

fosse uma pele velha e empoeirada na qual havia estado envolvido demasiado<br />

tempo. Eu fazia todo o possível para não me intrometer no caminho de sua recente<br />

descoberta afinidade com tudo aquilo que era próprio das crianças. Houve mais<br />

noites em casas de amigos, mais saídas para brincar. Eu estava preocupado e<br />

assustado, mas dizia a mim mesmo constantemente, que não estava sendo justo<br />

com nenhum dos dois. Além disso, se ele podia se distrair com suas coisas de vez<br />

em quando, isso proporcionava a <strong>Otter</strong> e a mim algum tempo a sós,<br />

merecidamente.<br />

—Isso é genial. —Disse Creed. —Você está bem com isso?<br />

Dei de ombros, meio escutando a ele e meio escutando para ver se <strong>Otter</strong><br />

estava vindo.<br />

—Eu acho que ele merece. Pelo menos, eu sei que é algo que ele quer fazer.<br />

Creed assentiu com a cabeça.<br />

—Bem, isso é bom.<br />

Se deteve, considerando algo que tinha na cabeça antes de dizer. Abriu a<br />

boca para falar e logo volto a fechá-la.<br />

Eu cruzei os braços.<br />

—O quê?<br />

Sorriu.<br />

—Talvez eu tenha que me retirar essa noite. Eu esqueci que tinha planos.<br />

Olhei para ele com uma sobrancelha arqueada. Havíamos combinado de<br />

fazermos um churrasco, aproveitando que o tempo estava bom. Era final de julho e<br />

fazia calor, pela primeira vez desde que podia recordar. O oceano ainda estava<br />

muito frio, mas podíamos permanecer na praia sem nos preocuparmos em<br />

congelar nossas bundas. Mas a partida de Creed tinha suas vantagens. Detestava<br />

admitir isso naquele momento, mas me senti aliviado por esse giro dos<br />

acontecimentos, mais do que provavelmente deveria me sentir. Com Creed fora de<br />

casa, <strong>Otter</strong> e eu poderíamos fazer... nossas coisas.<br />

—Aonde você vai? —Perguntei, tentando tirar da minha cabeça a imagem


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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de eu montando <strong>Otter</strong> até que gozássemos juntos.<br />

Creed deu de ombros.<br />

—Sair… com alguns amigos.<br />

—Quem?<br />

— Você não os conhece. —Respondeu de forma imprecisa, desviando o<br />

olhar.<br />

Eu bufei.<br />

—O que é que você não está me dizendo, Creed?<br />

«Parece que nós dois guardamos segredos», pensei, não tão divertido por aquela<br />

possibilidade como pensei que me sentiria.<br />

Agitou um braço no ar com seu gesto de desdém característico.<br />

—Não é nada com que deva preocupar a sua cabecinha. —Disse. —Apenas<br />

sairei para ver em que confusão posso me meter.<br />

Comecei a rir.<br />

—Tem certeza de que não precisa de companhia? —Perguntei, e logo em<br />

seguida me arrependi de ter oferecido.<br />

Ele me salvou dizendo:<br />

—Não. Você e <strong>Otter</strong> podem ficar aqui e seguramente se divertirem mais que<br />

eu.<br />

—Você está bem? —Perguntei, ao ver sua testa suada.<br />

«Talvez tenha um namorado.» —Sussurrou a voz. —«Não seria isso a autêntica<br />

definição de ironia?» A afastei da minha mente.<br />

Creed sorriu de novo, e pareceu falso.<br />

—Estou bem, papai <strong>Bear</strong>. Como disse, não tem por que se preocupar. Com<br />

certeza me aborrecerei e voltarei para casa mais cedo.<br />

—Tudo bem. —Disse, observando-o de novo. Olhei ao redor, chateado<br />

porque seu irmão ainda não havia aparecido. —Onde está <strong>Otter</strong>?<br />

Creed sacudiu a cabeça, indicando que seu irmão se encontrava lá em cima.<br />

Levantei os olhos e vi sua porta fechada. Voltei a olhar para Creed, que levou um<br />

dedo aos lábios e me fez um sinal para segui-lo. Dei outra olhada para a porta e<br />

segui atrás de Creed. Através da cozinha até a porta do pátio, a abriu e saiu. O<br />

segui, me perguntando de repente por que todo o mundo parecia esconder<br />

segredos aqueles dias. Fechou a porta às nossas costas e se voltou para mim.<br />

— Então? —Perguntei, tentando ocultar o nervosismo em minha voz. — Por<br />

que temos que vir aqui fora?<br />

—Não quero que <strong>Otter</strong> me ouça. Ele já acha que eu me intrometo demais. —


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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Respondeu, sentando em uma cara cadeira Adirondack 24 que havia no jardim<br />

traseiro.<br />

—Se intromete em quê? —perguntei, sem querer saber.<br />

Creed sacudiu a cabeça e estendeu os braços para cima e para trás,<br />

esticando-se.<br />

—Você sabe. —Disse. —Eu só quero o melhor para <strong>Otter</strong>. Não sei por que<br />

ele não o vê assim.<br />

Fazia calor, mas senti um calafrio.<br />

—O que você fez?<br />

Ele se mostrou surpreendido.<br />

—Eu não fiz nada. Santo Deus, vocês passam demasiado tempo juntos. Você<br />

começa a se parecer com ele.<br />

Dou de ombros, sem dar importância ao comentário.<br />

— Está bem. —Cedi.—O que foi que ele fez?<br />

—É o que ele anda fazendo, <strong>Bear</strong>. Vamos, você já o viu. Tem estado<br />

saltitando por aí durante os dois últimos meses como se não lhe preocupasse nada.<br />

Não quer me dizer o que aconteceu. E pelo que você me contou... —Acrescentou,<br />

olhando para mim fixamente—T<strong>amp</strong>ouco disse algo para você.<br />

—Talvez não haja nada para dizer, Creed. Por acaso uma pessoa não pode<br />

ser feliz sem ter um bom motivo para isso?<br />

Ele começou a rir.<br />

—Podia ser, mas não. Não no caso de <strong>Otter</strong>. Deveria saber disso tão bem<br />

como eu. Esse cara usa seu coração na manga. Se há algo que o faça feliz ele o<br />

demonstra. E se há algo que o faça em pedaços, também o demonstra. Você se<br />

lembra de quando chegou?<br />

Assenti com a cabeça.<br />

—Nunca o tinha visto assim. —Disse Creed, passando o olhar pelo jardim<br />

traseiro. —Eu não sabia o que fazer. Mas então eu fiquei fora algumas semanas,<br />

voltei, e o vi como nunca o havia visto antes outra vez. Mas é tudo ao contrário,<br />

ok? Como se tivesse encontrado a melhor coisa do mundo e agora estivesse no<br />

sétimo céu. No início pensei que fosse bipolar ou algo assim, mas isso não<br />

desapareceu. Faz dois fodidos meses que esta feliz e corado. Quero saber o que<br />

diabos ocorreu para ter ficado desse jeito.<br />

24


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página241<br />

Olhei para minhas mãos, procurando ocultar a sensação de bem-estar que<br />

havia começado a esquentar meu corpo. «É por minha causa.» —Pensei, enchendome<br />

de assombro. —«Seu irmão está assim por mim.»<br />

Naquele instante me decidi, e me dispunha a contar tudo a Creed quando<br />

disse:<br />

—Creio que é por Jonah.<br />

— Jonah? —Disse, incapaz de ocultar o veneno que continha minha voz.<br />

Creed, no entanto, não parecer notar.<br />

—Sim, creio que ele e Jonah começaram a esclarecer as coisas, e é isso o que<br />

está acontecendo com ele. Lhe pergunto a respeito, e naturalmente o nega como o<br />

vadio que é, mas o ouço falar por telefone de vez em quando. Nunca consigo<br />

entender o que dizem, por mais que me esforço. Mas, qual outra coisa seria? Não<br />

se pode dizer que esteja transando com alguém aqui em Seafare. Ou está comigo<br />

ou está com você. E posso lhe garantir que não é nenhum de nós dois que o faz tão<br />

tonto e alegre.<br />

Minha mente não queria computar.<br />

—Ele fala por telefone com Jonah? —Perguntei como um idiota.<br />

Creed me lançou um olhar, completamente alheio ao fato de que a água do<br />

mar havia subido até a altura de meus joelhos em segundos. Ele não podia ouvir a<br />

tempestade que surgia sobre a costa, porque estava dentro da minha cabeça. Está<br />

sempre dentro da minha cabeça.<br />

—De vez em quando, sim. —Respondeu. —Mas, como eu disse, não quer<br />

comentar nada comigo a respeito.<br />

—Por que ele iria querer falar com ele? —Perguntei, mais para mim mesmo<br />

que para Creed.<br />

—E por que não? —Respondeu Creed, perplexo. —Jonah era seu namorado.<br />

<strong>Otter</strong> não é o tipo de pessoa que esquece alguém, assim sem mais.<br />

Estas palavras me soaram familiares, e, então, eu me lembrei de que <strong>Otter</strong><br />

havia dito o mesmo justo depois da primeira vez que transamos. Estávamos<br />

deitados em minha cama, e ele me explicou que não podia se livrar de alguém tão<br />

depressa, não quando havia sido parte importante de sua vida. Recordei que eu<br />

havia ficado triste ao pensar que eu nunca seria parte desse período do passado de<br />

<strong>Otter</strong> e que experimentei várias pontadas de ciúmes. No entanto, isso não era nada<br />

comparado com o que sentia agora mesmo. Nem de longe.<br />

Eu tinha os dentes apertados quando disse:<br />

—Então você acredita que tudo isso é por causa de Jonah? Você acha que


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Página242<br />

Jonah é o motivo pelo qual ele esteja tão feliz?<br />

«NÃO É ELE!» —Eu quis gritar. —«JAMAIS VOLTARÁ A SER ELE! SOU EU<br />

QUEM FAZ OTTER FELIZ! É POR MIM, FILHO DA PUTA!»<br />

Mas logicamente, como é natural e previsível, eu não disse nada.<br />

Creed deu de ombros.<br />

—Como eu disse, <strong>Bear</strong>, não sei que outra coisa poderia ser. Só fala conosco,<br />

com <strong>Kid</strong> e com Jonah. Sei que não é por nada que nós tenhamos feito. Assim, pois,<br />

por eliminação, quem sobra?<br />

Bem, eu sabia que ele estava errado, ou, pelo menos isso é que eu tentei<br />

dizer a mim mesmo. Não podia ser Jonah, porque era eu. Eu era o motivo pelo<br />

qual <strong>Otter</strong> tinha mudado, o motivo pelo qual tinha sido tão feliz durante os<br />

últimos meses. Diabos, para começar havia sido eu quem o havia feito voltar para<br />

casa. «Voltou para casa por mim.» Jonah já não tinha nada a ver com isso. Ou isso eu<br />

havia acreditado. «Por que diabos está falando com Jonah?» —Pensei sem poder evitar.<br />

—«Por que diabos fala com ele, e por que diabos não me disse nunca nada sobre isso? Tudo<br />

isso ficou no passado! Se supõe que tudo isso é coisa do passado!» Pensei que talvez fosse<br />

porque se sentisse infeliz comigo por alguma razão. Pensei que talvez eu não fosse<br />

tão bom na cama como era Jonah. Pensei que talvez se devesse ao fato de que<br />

estava mantendo <strong>Otter</strong> dentro do armário. Pensei que talvez fosse porque o fiz<br />

prometer que fosse discreto com o nosso relacionamento. Pensei muitas coisas,<br />

cada uma mais irracional que a anterior, mas não podia evitar. Eu já tinha dito<br />

antes: eu nunca fui um cara ciumento. Com Anna, sabia que qualquer cara que<br />

tentasse atraí-la não iria a nenhuma parte. Mais tarde sempre ríamos deles. Com<br />

Anna, isso nunca foi um problema. «Então por que isso existe com ele?» —Perguntou<br />

a voz. —«Se você o ama como nunca amou ninguém em sua vida, por que não pode confiar<br />

nele sobre isso?»<br />

Eu não soube responder.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Disse Creed, resgatando-me da tempestade. —Você está bem?<br />

—Sim. —Murmurei, sem ser totalmente verdadeiro.<br />

—Me deu a impressão de que eu o tinha perdido por um segundo. —Disse,<br />

olhando fixamente para mim. —Dava a impressão de que estava a ponto de<br />

vomitar.<br />

—Creed, há algo que eu devo lhe contar.<br />

As palavras saíram antes que eu pudesse detê-las.<br />

—O que é, <strong>Bear</strong>? —Perguntou Creed.<br />

Aí estava. Esse ia ser o momento. Ia ser a ocasião em que eu diria a ele. Eu ia


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lhe contar algo que deveria ter feito há muito tempo. Ele merecia. Era meu irmão.<br />

Ele tinha me visto em meus piores momentos e nos melhores. Me abraçou<br />

enquanto chorava quando minha mãe foi embora. Se ele pôde fazer isso, como não<br />

poderia aceitar o que agora me dispunha a revelar? Minha mente estava<br />

descontrolada, e queimava, mas, Deus, eu tinha que fazê-lo.<br />

—Sinto não ter contado… —Comecei, mas fui interrompido quando a porta<br />

da varanda se abriu às minhas costas e <strong>Otter</strong> apareceu.<br />

—Ei, o que está havendo? —Ele sorriu para mim, esse torto e belo sorriso. —<br />

Não ouvi você chegando.<br />

— Isso é porque você estava sendo todo meloso ao telefone. —Bufou Creed.<br />

—Santo Deus, <strong>Otter</strong>, não sei por que você não fala conosco sobre Jonah. Sei que<br />

estava falando com ele pelo telefone. Até <strong>Bear</strong> está de acordo comigo. Não é<br />

verdade, <strong>Bear</strong>?<br />

Creed olhou para mim e piscou um olho, e eu quis lhe dar um soco na<br />

garganta.<br />

—Verdade, Creed —Respondi com voz oca, com a água à altura do peito.<br />

—Vê? —Disse Creed, rindo. —Agora se dê por vencido e nos conte. Quando<br />

conheceremos a futura senhora <strong>Otter</strong> Thompson? Você podia trazê-lo aqui.<br />

Imagina a cara de mamãe e papai? Seria divertidíssimo!<br />

Creed estalou em outro ataque de riso, sem se dar conta de que era o único<br />

que achava graça. Notei os olhos de <strong>Otter</strong> sobre mim, e por mais que não quisesse,<br />

me voltei para ele. Tinha uma expressão sombria, triste e receosa ao mesmo tempo.<br />

Recuou um pouco ao ver o que havia em meu semblante, e eu não fiz nada para<br />

impedi-lo. «Por pouco» —Pensei amargamente. —Estive a ponto de ser sincero<br />

finalmente.»<br />

«O que impede você? » —Perguntou a voz. —«Ainda pode resolver isso. Diga a<br />

Creed que cale sua boca por um fodido segundo e conte a ele. Faça-o entender, nem ele e,<br />

com certeza, nem Jonah, pode fazer <strong>Otter</strong> feliz como você. Não é demasiado tarde para dizer<br />

a verdade. Nunca é demasiado tarde para dizer a verdade.»<br />

Mas não o fiz, e em princípio não pude entender por que. Olhei para <strong>Otter</strong>,<br />

ele olhou para mim, Creed não parava de rir e, então, compreendi: o motivo pelo<br />

qual eu não disse a Creed era que <strong>Otter</strong> não havia feito nada para negar o que seu<br />

irmão havia dito. Ficou ali, olhando-me boquiaberto, e não fez nada para negá-lo,<br />

nada para apagá-lo. Apertei os dentes, saboreando a pressão que exercia sobre<br />

minha mandíbula. Tinha trovões nos ouvidos e água do oceano em meu nariz. Era<br />

como se me afogasse.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página244<br />

—Bem, já vejo que será tão franco como sempre. —Disse Creed,<br />

consultando seu relógio. —Tenho que sair daqui para… fazer o que disse que tinha<br />

que fazer.<br />

Percebi o tom vacilante em sua voz, mas a maré o levou. Creed se levantou,<br />

me deu uns tapinhas nas costas e disse que me veria mais tarde. Riu baixinho<br />

quando deu um soco de brincadeira no ombro de <strong>Otter</strong> e passou ao seu lado. A<br />

porta da varanda se fechou atrás dele. Ouvi o tilintar de suas chaves através do<br />

vidro e, então, a porta principal se abriu e fechou. Ouvi que ligava o carro. Ouvi o<br />

carro se afastando. Ouvi tudo isso através da tempestade que se desatava dentro<br />

de minha cabeça e meu coração.<br />

<strong>Otter</strong> suspirou, se aproximou de mim e se agachou em frente a mim.<br />

Normalmente, quando fazia isso, sempre me parecia um gesto encantador. Mas<br />

desta vez o fulminei com o olhar.<br />

—<strong>Bear</strong> —Disse, estendendo o braço para pegar minha mão.<br />

—Não. —Eu rosnei para ele, afastando minha mão como se fosse me<br />

queimar.<br />

Me levantei e passei ao seu lado, disposto a regressar para dentro da casa<br />

(para entrar?, para fugir?), mas antes que pudesse alcançar a porta, <strong>Otter</strong> me<br />

segurou pelo braço. Me debati em vão para escapar. Sua enorme mão me segurava<br />

bem apertado, e finalmente me voltei para lhe dirigir um olhar feroz.<br />

—Aonde você vai? —Me perguntou com nervosismo na voz. —Ia partir sem<br />

sequer falar sobre isso?<br />

—Me parece... —o provoquei, franzindo a testa.— Que se quisesse falar<br />

disso, já o teria feito. Me diga uma coisa, <strong>Otter</strong>: Quantas vezes você falou com<br />

Jonah?<br />

Continuou me aprisionando pelo braço com força. Seus olhos eram duros.<br />

—<strong>Bear</strong>, não é o que você pensa. —Me disse com voz apagada. —Seja o que<br />

for que está dando voltas em sua cabeça, tem que parar agora.<br />

—Por que não pode me responder a pergunta? —Gritei de repente. O vi<br />

recuar, mas não me soltou. —Quantas vezes? Por que diabos fala com ele?<br />

—Falo com ele de vez em quando. —admitiu <strong>Otter</strong>, e me dei conta de que<br />

tentava manter a voz serena. —Não é sobre nada importante, <strong>Bear</strong>. Já disse a você<br />

antes. Não posso ignorar alguém assim desse modo. Eu não sou assim.<br />

Segui olhando para ele irritado, e então havia dois <strong>Otter</strong>s, logo quatro, e eu<br />

senti a picada amarga de umas lágrimas raivosas se formando em meus olhos. Ele<br />

também as viu, seu rosto se suavizou e a pressão de sua mão sobre meu braço


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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diminuiu.<br />

—Você falou de mim? —Perguntei, desejando que a água desaparecesse de<br />

meus olhos. Mas não aconteceu. —Você falou sobre nós?<br />

De todas as perguntas que eu podia ter feito, sabia que essa era a que lhe<br />

fazia mais dano. Já conhecia a resposta antes que ele respondesse e liberei meu<br />

braço de sua mão. Me afastei dele e apoiei minha testa contra o vidro da porta da<br />

varanda, que era fria e dura. Uma das lágrimas raivosas me desafiou, saltou do<br />

meu olho, pousou em minha bochecha e seguiu deslizando para baixo.<br />

—Do que você fala com ele? —Perguntei. —O que é tão fodidamente<br />

importante que você tem que falar com ele?<br />

Ouvi que <strong>Otter</strong> respirava ruidosamente atrás de mim, mas vinha do mesmo<br />

lugar que ocupava antes. Isso significava que não tentava se aproximar de mim.<br />

Bom.<br />

—Eu já falei com você sobre isso, <strong>Bear</strong>. Não posso cortar…<br />

—Não foi isso o que eu perguntei! Do que vocês falam?<br />

—Não importa, <strong>Bear</strong>. —Ele disse estupidamente. —De todo o modo você<br />

não acreditaria em mim, vendo que já tomou uma decisão. Desde quando deixou<br />

de confiar em mim?<br />

Me voltei para ele.<br />

—Desde quando decidiu não me contar sobre as ligações secretas com seu<br />

ex-namorado? —O provoquei.<br />

—Nunca dei nenhum motivo para não confiar em mim.<br />

—Até agora. —Cuspi. —Você mentiu para mim.<br />

Em algum lugar dentro de mim, a voz gritava que o escutasse, que me<br />

acalmasse e o deixasse dizer o que tinha que dizer. O afastei com um empurrão.<br />

Então <strong>Otter</strong> olhou para mim, e eu soube que o havia ferido.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Disse com voz baixa. —O que você acha que poderia ocorrer? Ele<br />

está na Califórnia. Eu estou aqui. Com você. Isso não mudará.<br />

—Então por que você precisa falar com ele? —Perguntei enfurecido. —O<br />

que ele dá a você que eu não posso dar?<br />

E aí temos, meninos e meninas, a grande pergunta, o pensamento que me<br />

rondava a cabeça. Percebi que a única razão pela qual <strong>Otter</strong> falaria com o estúpido<br />

e fodido Jonah (além do mais, que classe de nome é esse?) era que recebia dele algo<br />

que não podia receber de mim. O que poderia ser? Vocês perguntarão. Não tinha<br />

nenhuma fodida ideia, mas era isso que eu tinha me dado conta, era o medo que<br />

eu mais temia.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página246<br />

<strong>Otter</strong> sacudiu a cabeça.<br />

—Não posso acreditar que você pensa… <strong>Bear</strong>, eu amo você. Realmente<br />

pensa que eu diria isso e faria algo que o comprometesse?<br />

—Não está… respondendo… a pergunta. —O pressionei.<br />

Seu olhar voltou a endurecer, e vi um tique que lhe contraía a mandíbula.<br />

—Está bem! —Gritou, com a raiva fervendo. —Você quer saber do que<br />

falamos? Realmente você quer saber, <strong>Bear</strong>? Quer saber o que eu estive fazendo por<br />

ele?<br />

De repente, eu não quis saber. Não pelo que havia dito, mas porque nunca<br />

tinha visto <strong>Otter</strong> agir assim. Mas já era demasiado tarde.<br />

—Cada vez que liga para mim, cada fodida vez, eu atendo o telefone. Sei<br />

onde me meto quando o faço, mas ainda assim atendo. E sabe o que ele diz, <strong>Bear</strong>?<br />

Cada vez que liga para mim é para me repreender, é para me ferir, é para me<br />

esmagar. Atendo ao telefone, e ele grita, grita para mim que me odeia, e eu o<br />

permito. Você quer saber por quê? O faço porque creio que é a única forma de que<br />

ele o supere. Creio que se o deixo me apunhalar com suas palavras, chegará um<br />

dia em que se renderá. O faço porque, apesar do que tivemos, apesar do que tenho<br />

agora, ele continua sendo meu amigo. E os amigos não abandonam um ao outro só<br />

porque as coisas estão ruins. Pois então, sim, eu falo com ele, e sim, me dói cada<br />

vez que eu o faço, mas não porque eu esteja apaixonado por ele, nem porque<br />

guardo algum desejo secreto de voltar para ele. Dói porque eu o tornei assim. Eu o<br />

tornei uma pessoa raivosa, e por isso penso que a única coisa que posso fazer é<br />

deixar que descarregue sua maldita ira sobre mim. Eu mereço, não? Não é mesmo?<br />

Sei que parece ridículo. Acredite-me, eu sei disso cada vez que soa meu telefone e<br />

vejo que é ele. Não quero responder, mas tenho que fazê-lo porque é culpa minha<br />

que seja como é.<br />

Tentei interrompê-lo, deter o que havia iniciado, mas me fulminou com o<br />

olhar quando abri a boca e esta se fechou por si só.<br />

—Então eu o deixo dizer tudo o que lhe apeteça até que se sente melhor e<br />

então desliga. Poderia ter parado isso há muito tempo, <strong>Bear</strong>, eu sei. Mas você quer<br />

saber o que ele me disse? O que ele me disse para me obrigar a fazer isto cada vez<br />

que ele liga? Disse que queria vir aqui. Que queria vir a Seafare para falarmos cara<br />

a cara. Sim, quero que seja feliz. Quero tentar ser seu amigo, mas o faço porque não<br />

quero que venha aqui. Se ele vier, ele vai ver você, e não quero que isso aconteça.<br />

Mas não da maneira que está pensando.<br />

Ele respirou ofegantemente e eu quis que ele parasse. Desejei


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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desesperadamente que se calasse. Já não podia suportar sua ira, aquela sensação<br />

ácida que me provocava no coração e no estômago. Mas ainda não havia<br />

terminado.<br />

—Não quero que venha aqui e lhe veja porque tenho medo de que afaste<br />

você de mim. Faria tudo o que estivesse em minhas mãos para garantir que isso<br />

não acontecesse nunca, mas tenho medo, <strong>Bear</strong>. Tenho medo de que se você olhasse<br />

para ele aconteceria o que está acontecendo agora. A expressão do seu rosto, a<br />

postura na qual se encontra, disposto a me dar um soco. Deveria saber que nem<br />

sequer seria necessário tê-lo aqui para afugentá-lo. E por isso eu sinto muito. Amo<br />

você demais para mostrar a você meu passado, porque não quero recordar<br />

nenhum tempo no qual você não estivesse nele. Aqueles três anos que passei fora,<br />

com ele, não foram nada em comparação com o que tenho agora. Mas preciso que<br />

você confie em mim, <strong>Bear</strong>. Nunca faria nada para lhe machucar intencionalmente.<br />

Eu lamento se você se sente assim.<br />

Então ficou em silêncio, com lágrimas nos olhos e o olhar fixo no chão. Logo<br />

se dirigiu para a sala e já abria a porta da varanda quando segurei seu braço.<br />

—Aonde você vai? —Sussurrei com voz rouca, devolvendo suas próprias<br />

palavras. —Você pretendia ir embora?<br />

—<strong>Bear</strong> —Disse, com a voz forçada em um tom de advertência.<br />

—Não, <strong>Otter</strong> —Disse, balançando a cabeça. —Agora é a minha vez de falar.<br />

Olhe para mim. Olhe para mim! — E ele fez. —Não me importa no que você<br />

acredita nem por que você o faz, mas não quero que volte a falar com ele. —Ele<br />

começou a interromper, mas eu o cortei. —Não porque eu esteja com ciúmes ou<br />

porque me preocupo que você me deixe e volte para ele, mas por você. Pelo que ele<br />

está fazendo a você. Ninguém deveria ter que passar por isso. Não me importa que<br />

acredita que você é o responsável por ele agir assim nem que acredite que necessita<br />

isso para esquecê-lo. Tem que parar de pensar que transformou alguém em algo<br />

que não quer ser. Ele está com raiva, <strong>Otter</strong>. Ele está muito chateado, e se você<br />

continuar a falar com ele, isso apenas vai continuar para sempre. E eu não vou<br />

permitir isso. —Minha voz se reduziu a um resmungo. —Ninguém nunca mais vai<br />

voltar a falar assim com você, não enquanto estivermos juntos.—Seus olhos<br />

brilharam ao ouvir isso, e vi um sorriso contraindo os cantos de sua boca. —Você é<br />

meu, está ouvindo? Meu. Juro por Deus que se ele tem intenção de vir aqui, ou de<br />

ligar para voltar a se meter com você, ele vai me ouvir. Entendido? Você entende,<br />

<strong>Otter</strong>? Amo você com loucura, e ninguém nunca mais voltará a fazer isso com<br />

você.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Me senti quente e suado, seus olhos brilharam de novo e o sorriso estava ali,<br />

irado e orgulhoso, e era meu. Era para mim. Ele pulou em mim, o peguei em meus<br />

braços e o estreitei contra mim, e ele chorou. Chorou contra mim como eu havia<br />

feito contra ele uma e outra vez, e eu o acalantei, o balancei e sussurrei: «Meu, você<br />

é meu.» E ele soltou tudo.<br />

Quando ele acabou, nós dois estávamos trêmulos, nós dois estávamos<br />

tremendo. Minha garganta apertava, e eu o abracei com mais força contra mim.<br />

Quando finalmente os soluços diminuíram, se afastou e me beijou. Notei a pressão<br />

do seu rosto inchado contra o meu, e a intensidade de seu beijo me fez tremer<br />

novamente enquanto me empurrava contra o vidro. De repente ambos usávamos<br />

demasiada roupa, e então desapareceu, e nos esfregávamos juntos, e ele me<br />

mordeu no ombro enquanto eu chupava sua garganta, e quando inclinei minha<br />

cabaça para trás e me arqueei contra ele, o ouvi gemer: «Meu, meu, meu.» Eu o<br />

acolhi, e se converteu em um cântico até que ambos rosnamos, salivamos e nossos<br />

pênis estavam em sua mão, e gozamos ao mesmo tempo, e juro por Deus que o<br />

concreto tremeu, ondulou e finalmente se partiu abaixo de nossos corpos.<br />

«Meu.»<br />

Na próxima vez que Jonah ligou, <strong>Otter</strong> não respondeu.<br />

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11<br />

Quando <strong>Bear</strong> se vê obrigado a entrar no oceano<br />

Página249<br />

—Não é verdade! —Resmungo olhando para <strong>Otter</strong>, que me sorri de sua<br />

posição sobre meu peito.<br />

Ele bufa e mordisca suavemente meu estômago, o que faz me contorcer.<br />

—Continue dizendo isso. —Responde. —Tudo o que sei é que, cada vez que<br />

qualquer parte de minha boca está sobre qualquer parte de seu corpo, você faz essa<br />

cara.<br />

E ele a mostra de novo, revirando os olhos e abrindo a boca, com a língua<br />

para fora enquanto ele geme. Eu começo a rir e o bato na cabeça com o travesseiro.<br />

—Seja como for... —Eu digo, sorrindo para ele. —Se você acha que faço isso<br />

porque é uma boa coisa, você se engana. É minha cara de aborrecimento. Quem<br />

dera você soubesse praticar melhor o sexo. Santo Deus, <strong>Otter</strong>, você é o gay aqui;<br />

pensei que soubesse como dar prazer a outro cara.<br />

Seus olhos brilham maliciosamente, volta a abaixar os lábios até meu<br />

estômago e creio que pensa em lamber esse lugar. Me preparo para não fazer essa<br />

cara (que é, claro, a expressão do ápice do êxtase ao que me eleva) quando aperta<br />

os lábios contra meu estômago e sopra com todas as forças. O ruído de peido<br />

ressoa dentro do quarto, e todos os meus sentidos estalam ao mesmo tempo, e<br />

antes que eu possa evitar grito como uma garota e tento tirá-lo de cima de mim.<br />

Seus braços me rodeiam enquanto me mantém imobilizado, e posso notar como<br />

sorri contra meu tronco, quando volta a fazê-lo. Idiota.<br />

Finalmente se afasta de mim e se estende de costas, colocando um braço<br />

sobre os olhos enquanto suspira satisfeito. Esse sorriso torto que cheguei a desejar<br />

tanto, adorna seu rosto. Enquanto o contemplo, me vem à cabeça as palavras que<br />

disse Creed há umas semanas atrás: «Esse cara carrega o coração na manga.» Nada<br />

mais certo. Quando <strong>Otter</strong> está aborrecido ou deprimido, se vê em seu olhos.<br />

Quando está feliz, é como estar no sétimo céu. E quando essa felicidade se dirige<br />

para mim… bem, digamos que sei que vou colocar essa cara em algum momento<br />

em um futuro imediato. Rio interiormente.<br />

<strong>Otter</strong> levanta o antebraço de seu rosto e olha para mim com uma<br />

sobrancelha arqueada. Nego com a cabeça e passo a ocupar meu lugar sobre seu<br />

ombro. Ele rosna agradecido, me rodeia com os braços e me puxa mais para perto


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dele.<br />

—Isso é uma besteira, sabe? —Diz, com a voz abafada contra meu cabelo.<br />

—O quê?<br />

—Faz quase três meses que coloca essa cara. Você fez isso na primeira vez, e<br />

o tem feito desde então. Eu sei o que estou fazendo.<br />

Reviro os olhos e decido me dar por vencido.<br />

—Sim, sim, sim. Está bem, grandão. Você venceu. —O belisco no mamilo<br />

com suavidade, e ele sussurra suavemente e se dobra sobre o peito. —Você faz uns<br />

boquetes de primeira.<br />

—É claro que sim. —Rosna, apertando minha mão contra seu peito.<br />

Nós ficamos ali deitados um pouco mais, sem falar, com o sol do meio da<br />

manhã de agosto entrando pelas janelas. «Quase três meses.» —penso, divertido.—<br />

«Já passou tanto tempo assim?» Me repreendo de brincadeira, sabendo que eu me<br />

pareço a um garoto de treze anos em sua primeira relação. Estes três meses tem<br />

sido os três meses mais longos que eu pensei que algo assim duraria. Desde a<br />

nossa colossal briga na varanda de trás, <strong>Otter</strong> e eu entramos em um entendimento<br />

maravilhoso, um entendimento que nos permite olhar timidamente para o futuro.<br />

Eu comecei a estudar o que precisarei para regressar à faculdade. Há algumas<br />

semanas, <strong>Otter</strong> voltou a usar sua câmera e começou a tirar fotos. Inclusive saiu<br />

para comprar uma câmera para <strong>Kid</strong>, e esses dois têm se dedicado a essa atividade<br />

como demônios. Acontece que <strong>Kid</strong> é muito bom, para grande desgosto de <strong>Otter</strong>.<br />

Eu acho curioso ver onde eu me encontrava um ano atrás e compará-lo com<br />

onde estou agora. Tudo mudou, quase tudo para melhor. Pela primeira vez em<br />

muitíssimo tempo me conformo com não saber o que me espera o dia de amanhã.<br />

Claro que ainda tenho as preocupações por ser um irmão/pai de vinte um anos e<br />

os questionamentos sobre quem eu sou realmente, mas não parece ter a<br />

importância de antes. Ultimamente andei pensando que se as coisas podem ser tão<br />

boas, que se posso ser tão feliz, por que deveria então seguir me escondendo? Por<br />

que deveria manter isso em segredo daqueles que mais gostam de mim? Por isso,<br />

tomei a decisão que ainda tenho que comunicar a <strong>Otter</strong>. Bem, não deixe para<br />

amanhã o que pode fazer hoje.<br />

—Ei. —Digo.<br />

—Ei, você. —Responde <strong>Otter</strong>.<br />

—Quero contar a Creed.<br />

Sua mão, que até então estava brincando com meu cabelo, parou no ato.<br />

Noto como sei peito se levanta quando respira profundamente e solta o ar devagar.


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Página251<br />

Então <strong>Otter</strong> vira para o lado dele e me coloca delicadamente sobre o travesseiro ao<br />

lado dele. Apoia sua testa contra a minha e olha em meus olhos, buscando alguma<br />

seriedade do que acabo de dizer. Eu sorriu com timidez e ele retribui, e posso<br />

sentir seu alento cálido em meu rosto.<br />

—Você tem certeza? —Pergunta com os olhos esperançosos.<br />

Concordo com a cabeça lentamente.<br />

—Tenho pensado nisso já há algum tempo. Eu disse a mim mesmo que teria<br />

que falar com ele sobre nós antes de ele partir. Quando dará esta festa... dentro de<br />

nove dias? E parte dois dias depois?—<strong>Otter</strong> assente. —Isso me dá menos de duas<br />

semanas para reunir coragem suficiente.<br />

<strong>Otter</strong> levanta uma mão e acaricia a bochecha com suavidade.<br />

—Tem certeza de que quer fazer isso, <strong>Bear</strong>? Já sabe que eu não vou obrigá-lo<br />

a fazer isso, não é? Quero que seja sua própria decisão, e eu vou apoiá-lo seja ela<br />

qual for.<br />

—Eu sei. —Digo, e é a verdade.<br />

<strong>Otter</strong> tem sido fiel à palavra. E isso me faz sentir melhor saber que ele<br />

percebe que não é só necessariamente sobre nós, que é principalmente sobre mim.<br />

Sim, <strong>Otter</strong> é meu namorado e o irmão mais velho de Creed, mas Creed terá que<br />

enfrentar o fato de que seu melhor amigo é alguém que gosta de pênis. E não<br />

qualquer pênis, mas sim o que pertence ao seu irmão. Esta conversa poderia tomar<br />

tantas direções diferentes que me pareceu mais fácil tentar não pensar nessa parte.<br />

<strong>Otter</strong> oferece seu sorriso e me beija nos lábios.<br />

—<strong>Bear</strong> McKenna, você acaba de alegrar meu dia.<br />

Eu sorrio para ele satisfeito.<br />

—Pensei que tinha alegrado seu dia quando deixei você transar comigo<br />

durante as duas últimas horas.<br />

Seu sorriso se torna perverso e volta a se colocar em cima de mim,<br />

intensificando seus beijos enquanto esfrega seu corpo para cima e para baixo sobre<br />

o meu. Seus lábio abandonam os meus, me beija a mandíbula subindo até a orelha<br />

e logo gira a língua, o que faz com que meus dedos dos pés se contraiam e eu solte<br />

um gemido suavemente. Ele ri em meu ouvido e o faz de novo. Então sua língua<br />

desaparece, substituída por seus lábios, que sussurram:<br />

—Deus, espero que saiba o quanto amo você.<br />

—Eu sei. —Suspiro enquanto ele beija meu pescoço.<br />

Para grande desgosto meu, detém sua exploração e olha para mim.<br />

—Você quer que eu esteja presente quando você disser para ele?


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Penso por um momento antes de negar com a cabeça.<br />

—Acho que seria melhor que estejamos os dois sozinhos. Eu não sei como<br />

isso vai se passar, e não quero que você esteja ali, o ameaçando lhe dar um pé na<br />

bunda se ele reagir mal.<br />

—O mataria se dissesse alguma coisa estúpida. —Admite <strong>Otter</strong>. —Mas, na<br />

realidade, não acho que vai lhe importar muito. É possível que a única coisa que o<br />

incomodará será não ter descoberto antes.<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Eu tenho pensado nisso, e se tenho sorte isso será a única coisa pela qual<br />

ficará com raiva de mim. É a única coisa que justificaria qualquer raiva. Mas não<br />

posse evitar me sentir como se fosse entrar na cova de um leão.<br />

<strong>Otter</strong> beija minha testa.<br />

—Não se preocupe com nada. Tomara Deus que tudo corra bem, mas<br />

lembre-se que ele vai voltar para faculdade em algumas semanas. Se ele ficar<br />

realmente chateado com isso, pelo menos vocês terão algum tempo para resolvê-lo.<br />

Realmente foi melhor você ter esperado até agora para dizer a ele.<br />

— Sim? —Pergunto. —Eu também pensei assim. De fato... —Lanço um<br />

olhar ao despertador na mesinha de cabeceira. —Onde ele está agora?<br />

Os olhos de <strong>Otter</strong> se arregalam um pouco.<br />

—Agora? Você quer fazer isso agora?<br />

Dou de ombros.<br />

—Seria um bom momento, antes que eu perca a coragem.<br />

—Ele disse que ia sair para comer com alguém e que voltaria mais tarde.<br />

—Com quem ele anda se encontrando ultimamente? Você sabe? —Pergunto<br />

a <strong>Otter</strong>.<br />

Desde o dia em que Creed me falou sobre Jonah e <strong>Otter</strong>, estava saindo a<br />

qualquer hora, dizendo que saía para se encontrar com amigos ou ia fazer algo.<br />

Nunca dava detalhes, nunca se explicava. Se alguém o perguntava, sorria e<br />

mudava de assunto. Creed nunca havia sido daqueles que guardam segredos, por<br />

isso me desconcertava um pouco o fato de que parecia que ambos o fazíamos.<br />

<strong>Otter</strong> nega com a cabeça.<br />

—Não sei. Nunca me conta. Creio que está namorando alguém daqui, mas<br />

nunca vi ninguém vir em casa nem o ouvi falar ao telefone com alguém.<br />

—Tudo isso seria mais fácil se ele estivesse se encontrando com um cara. —<br />

Digo a <strong>Otter</strong>, que começa a rir. —Desse modo não poderia ficar com raiva de mim<br />

por ter escondido isso.


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—Duvido muito que meu irmão mais novo dê sua bunda a um cara. —Diz<br />

<strong>Otter</strong>, e ambos nos estremecemos ao pensar nisso.<br />

Isso seria… de muito mau gosto.<br />

—Ele disse a que horas voltaria?<br />

—A qualquer hora dessa noite. Tenho que desaparecer ou algo assim?<br />

Eu me agarro à minha resolução. É agora ou nunca.<br />

—Você poderia? —Pergunto a <strong>Otter</strong>. —Se ele voltar a tempo, talvez você<br />

pudesse ir até minha casa e substituir a senhora Paquinn de seu trabalho de cuidar<br />

de <strong>Kid</strong> em meu lugar. Eu disse que voltaria em torno das sete.<br />

—Tudo bem. Mas é melhor você me ligar se precisar de algo. Juro por Deus,<br />

<strong>Bear</strong>, que se Creed começar a passar dos limites, será melhor que me avise.<br />

Eu pisco meus olhos para ele.<br />

—Por que, para você vir e me salvar?<br />

Ele me beija de novo.<br />

—Sim, e aproveito para dar um chute no traseiro dele.<br />

Eu começo a rir.<br />

—Meu herói. —Digo, passando os braços em volta de seu pescoço e o<br />

puxando sobre mim.<br />

—Chuveiro? —Sugere esperançoso contra meu pescoço.<br />

<strong>Otter</strong> tem essa coisa estranha (e ao mesmo tempo muito excitante) de fazê-lo<br />

no chuveiro.<br />

—Chuveiro. —Respondo alegremente.<br />

Grito quando me levanta com um braço e me carrega sobre seu ombro. Mas<br />

eu não me importo. Tenho uma vista maravilhosa de seu traseiro.<br />

Talvez todo esse assunto com Creed não irá tão mal quanto penso.<br />

Uma hora mais tarde regressamos ao seu quarto, molhados e<br />

tremendamente esgotados. Não desejo outra coisa que me aconchegar sob as<br />

cobertas com <strong>Otter</strong>, mas <strong>Kid</strong> está em casa, e tenho que verificar onde se encontra<br />

Creed. Grito a <strong>Otter</strong> quando me bate no traseiro nu com sua mão, enquanto estico<br />

o braço para pegar o celular em minha calça. Ele ri e se estende de costas sobre a<br />

cama, sorrindo para mim e movendo suas sobrancelhas enquanto passa sua mão<br />

lentamente pelo seu corpo. Minha boca seca por uns segundos enquanto meu pênis<br />

tenta colocar-se em marcha, mas é inútil. Seis vezes em quatro horas é suficiente<br />

para deixar exausto a qualquer um, mesmo que o objeto de seu desejo esteja<br />

deitado à sua frente, fazendo todo o possível para conseguir uma ereção. <strong>Otter</strong><br />

sorri satisfeito enquanto me queixo e sento na cama ao seu lado, procurando não


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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dar atenção aos seus toques em si mesmo. Abro o celular e me surpreendo ao ver<br />

cinco chamadas perdidas. Não há mensagem de voz. Não pude ouvir o toque do<br />

chuveiro. Enrugo a testa enquanto vejo a lista de chamadas perdidas e percebo que<br />

<strong>Kid</strong> me chamou três vezes e a senhora Paquinn as outras restantes.<br />

Tentando controlar o pânico, mostro o celular para <strong>Otter</strong>. Fica olhando para<br />

ele pensativo, estica o braço sobre mim e pega seu celular.<br />

—<strong>Kid</strong> também me ligou várias vezes. —Diz. —E outro número que eu não<br />

reconheço.<br />

O diz em voz alta e coincide com o número do celular da senhora Paquinn.<br />

—Por que não deixaram nenhuma mensagem de voz? —Pergunto, mais alto<br />

do que deveria.<br />

Minhas mãos começam a tremer um pouco, <strong>Otter</strong> se dá conta, ele as pega<br />

entre as suas e as esfrega com suavidade.<br />

—Estou certo de que não é nada, <strong>Bear</strong>. —Diz <strong>Otter</strong> docemente. —Se fosse<br />

algo importante, teriam deixado uma mensagem, não?<br />

Retira uma mão, pega seu telefone, aciona o botão e o leva ao ouvido.<br />

—Para quem você está ligando? —Pergunto, tentando me acalmar.<br />

—Para <strong>Kid</strong>. —Responde, sorrindo-me tranquilizador. —Com certeza só que<br />

saber a que horas você chegará em casa. —Seu sorriso vai se apagando quando<br />

ouço a mensagem da caixa de correio do celular de Ty. —Hum. —Murmura. Corta<br />

a chamada e liga para outro número. —Senhora Paquinn? —Diz após um<br />

momento. —Sou <strong>Otter</strong> Thompson. Estou bem. E você? —Movo as mãos diante do<br />

rosto de <strong>Otter</strong>, instigando-o para ir direto ao ponto. —Você ligou para mim agora<br />

há pouco? Sim? Ah, ele está aqui. Sim. <strong>Kid</strong> está bem? Desculpe, quis dizer Ty.<br />

Tyson está bem? —Tapa o telefone e anuncia: —Ty está bem, <strong>Bear</strong>. —Experimento<br />

uma onda de alívio e me deixo cair sobre a cama. Santo Deus. <strong>Otter</strong> segue falando<br />

por telefone. —Como disse? Agora? Sim, vou dizer a ele. Diga a Ty que estaremos<br />

aí em uns minutos. Está bem, adeus.<br />

Desliga o telefone e olha para mim com ar pensativo.<br />

—O que está havendo? —Pergunto nervoso, com uma sensação de<br />

ansiedade revirando meu estômago de novo.<br />

—Ela disse… —Se interrompe e vira a cabeça para um lado. —Ela disse que<br />

você tem que ir para casa logo para «ajudar a resolver uma situação».<br />

—Uma situação? O que diabos significa isso? —Pergunto, ao mesmo tempo<br />

em que enfio as pernas em minha bermuda.<br />

—Não sei, papai <strong>Bear</strong>. Acho que descobriremos quando chegarmos ali.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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Solto um gemido por dentro. Parece que não poderei falar com Creed esta<br />

noite.<br />

Dez minutos depois, chegamos ao prédio do meu apartamento. <strong>Otter</strong><br />

estaciona seu Jeep ao lado do meu carro, onde tem estado desde que passou aqui<br />

para me pegar anteriormente. Desliga o motor, se volta para mim e me dá um<br />

sorriso torto. Quero retribuir, mas não posso; ele parece entender e não se importa.<br />

Se inclina sobre o painel central e me beija rapidamente. Noto sua barba incipiente<br />

áspera e deliciosa contra meu rosto. <strong>Otter</strong> aperta minha mão, descemos do carro,<br />

subimos a escada e chegamos até a porta. Vacilo antes de introduzir a chave na<br />

fechadura. Não sei por que, mas de imediato tenho uma sensação muito ruim<br />

sobre o que há do outro lado dessa porta. Pelo visto Ty está bem e não parece que<br />

tenha acontecido nada com a senhora Paquinn, e não me ocorre nada no mundo<br />

sobre que outra coisa pode se tratar. «Não pergunte para mim.» —Diz a voz. —«Eu<br />

estou tão confusa quanto você.» Noto que <strong>Otter</strong> coloca uma mão em minhas costas e<br />

isto me transmite uma pequena dose de coragem. Abro a porta e entro.<br />

Tão logo eu entro, <strong>Kid</strong> chega correndo pelo corredor e se lança sobre meus<br />

braços. Me pega de surpresa e me faz chocar ligeiramente contra <strong>Otter</strong>. Noto que<br />

<strong>Kid</strong> está tremendo, ele coloca seu rosto contra o meu peito e seu coração bate<br />

velozmente contra o meu. Volto a olhar para <strong>Otter</strong>, que tem uma expressão<br />

preocupada em seu lindo rosto. Passa os braços ao redor da minha cintura, sobe<br />

pelas costas de <strong>Kid</strong> e o acaricia tranquilizadoramente.<br />

—O que está acontecendo, Ty? —Pergunta <strong>Otter</strong>.<br />

Ty se afasta o suficiente para que eu possa ver seus olhos, arregalados.<br />

—Ela está aqui. —Sussurra.<br />

—Quem está aqui? —Pergunto, confuso e assustado.<br />

Ty sacode a cabeça e volta a se refugiar em meu peito e respira<br />

agitadamente contra mim. Não o vi assim em muitos meses.<br />

<strong>Otter</strong> fica junto a mim e me rodeia com o braço. Olho para ele, e ele sorri e<br />

aperta meu ombro. Ordeno a meus pés que comecem a se mover e finalmente o<br />

fazem, um atrás do outro. Não há mais que oito ou nove passos até a sala de estar,<br />

mas é o percurso mais longo da minha vida. Quando dobramos a esquina, vejo a<br />

senhora Paquinn sentada muito reta em uma cadeira, de frente para o sofá do<br />

outro lado da sala. Olha para mim e percebo algo em seus olhos, algo que não sei<br />

identificar. Creio que pode ser tristeza, ou medo, ou uma série de coisas que a<br />

gente pensa quando está a ponto de cair uma bomba. Sinceramente, ainda não<br />

posso entender o que é tão ruim. Ty está em meus braços, respirando são e salvo


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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(ainda que esteja aterrorizado por algo), e nosso apartamento não pegou fogo, e a<br />

senhora Paquinn no está morta. Tento me deixar levar por certa sensação de alívio.<br />

Tento, até que ouço <strong>Otter</strong> falar ao meu lado.<br />

—Oh, Jesus Cristo. —Murmura.<br />

—Olá, <strong>Bear</strong>. —Diz minha mãe.<br />

Creio que devo estar sofrendo de alucinações, porque não pode ser ela. Me<br />

permito distrair-me por uma fração de segundo com a ideia de que ainda possa<br />

reconhecer sua voz depois de todos esses anos. Então, creio que vejo alucinações<br />

quando me volto para olhar o sofá, porque parece impossível que aquilo que vejo<br />

está realmente ali. Julie McKenna está sentada no sofá, com as costas tão rígidas<br />

como a senhora Paquinn. Agora usa o cabelo escuro mais curto e puxado para trás<br />

em um rabo de cavalo. Para a maioria das pessoas isso lhe conferiria um aspecto<br />

mais juvenil, mas o que mais me impressiona quando a vejo depois de mais de três<br />

anos, é quão velha ela parece. As rugas ao redor de seus olhos marcam seu rosto.<br />

Tem as bochechas inchadas e dá a impressão de que engordou. O vestido feio que<br />

usa proclama aos quatro ventos que foi comprado nas lojas de departamento do<br />

Kmart, e os sapatos são fora de moda e vulgares. O colar que usa brilha demasiado<br />

para ser outra coisa que não plástico barato. Parece abatida, vencida pelo tempo,<br />

como se nada em sua vida lhe tivesse sido favorável. Instintivamente, seguro <strong>Kid</strong><br />

com mais força, tentando fazê-lo desaparecer para que não tenha que ver nunca de<br />

onde veio, mas apenas para onde vai. Meus olhos não se afastam em nenhum<br />

momento dos de minha mãe, e quase me horrorizo ao comprovar que são as únicas<br />

coisas nela que não murcharam, a única coisa dela que se mantém igual. Parecem<br />

os mesmo, porque tem o marrom de meus olhos e o marrom dos olhos de <strong>Kid</strong>.<br />

Noto uma mão protetora sobre meu ombro e percebo que é a de <strong>Otter</strong>.<br />

Afasto por um momento meus olhos de minha mãe e olho para ele. Tem o rosto<br />

tenso e os olhos duros. Olha para minha mãe com ódio e não faz nada para ocultálo.<br />

Sente os meus olhos sobre ele, se volta para mim e aperta meu ombro<br />

novamente. Sua expressão abandona a ira para acolher-nos, a Ty e a mim, na<br />

mesma estima que nos concede sempre. Quase basta para afastar de mim o<br />

asfixiante medo. Quase. Seus olhos recuperam a frieza quando volta a olhar para<br />

minha mãe. Ela nos observa nervosa, tenta esboçar outro sorriso e fracassa<br />

miseravelmente.<br />

A senhora Paquinn tosse atrás de mim, e a ouço resmungar quando se<br />

levanta da cadeira.<br />

—<strong>Bear</strong>, você pode acompanhar uma velha até a porta? —Pergunta em voz


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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baixa.<br />

Aceno em concordância, beijo <strong>Kid</strong> na cabeça e o passo para <strong>Otter</strong>, cujos<br />

braços já o esperam. Tão logo recebe Ty, <strong>Kid</strong> se enrola contra seu peito e <strong>Otter</strong> se<br />

inclina e sussurra palavras tranquilizadoras ao ouvido. Seus olhos contradizem<br />

suas palavras, como aço macio.<br />

A senhora Paquinn me espera na entrada. Quando me dirijo até ela, ela fala<br />

para minha mãe:<br />

—Foi… interessante voltar a ver você, Julie. —Diz com voz apagada. —<br />

Espero que saiba que <strong>Bear</strong> criou um menino extraordinário.<br />

Minha mãe concorda com a cabeça, mas não responde.<br />

Sigo a senhora Paquinn através da porta e a fecho suavemente atrás de mim.<br />

Se volta para mim, como se aguardasse a minha chuva de perguntas.<br />

—O que diabos ela faz aqui? —Pergunto. —Quando apareceu?<br />

A senhora Paquinn se estremece e se reclina contra a porta.<br />

—Ela chegou faz algumas horas. —Responde com voz trêmula. —Bateram<br />

na porta e Ty foi correndo para abrir achando que eram você e esse <strong>Otter</strong>. Voltou<br />

com a cara pálida, seguido por ela, toda sorrisos. No início não a reconheci, mas<br />

então abriu a boca e eu soube quem era logo em seguida. Tyson e eu tentamos ligar<br />

para você.<br />

Diz essa última parte sem nenhum tom de acusação, o que faz que a ame<br />

mais ainda.<br />

—Eu sei, sinto muito. Não ouvi meu celular. —Sacudo a cabeça. —O que ela<br />

faz aqui, senhora Paquinn? Ela disse algo?<br />

Inclina a cabeça para trás e fecha os olhos.<br />

—Para ser sincera, não disse muita coisa, <strong>Bear</strong>. Disse que voltou para ver<br />

como estavam seus filhos. Esteve tentando fazer com que Tyson falasse com ela,<br />

mas quando esse garoto não estava ao telefone tentando falar com você, estava<br />

encolhido contra mim. —Ela abre os olhos e olha para mim. —Seja qual for o<br />

motivo que tenha voltado, não pode ser bom. —Diz. —Nenhuma mãe se mantém<br />

afastada durante três malditos anos, deixando seus filhos sozinhos e depois volta<br />

sem querer algo.<br />

—Merda. —Murmuro.<br />

Não consigo me concentrar, porque parece que todos os pensamentos que<br />

tive em minha vida invadem agora minha cabeça. Minhas mãos estão suadas e<br />

sinto que minhas pernas estão fracas. Quero entrar correndo, pegar <strong>Otter</strong> e <strong>Kid</strong> e<br />

sair daqui. As palavras da senhora Paquinn incrementam a confusão dentro de


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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minha cabeça.<br />

Coloca minha mão na sua e a leva diretamente a seus lábios cinzentos.<br />

—<strong>Bear</strong>, se você precisar de algo, o que seja, já sabe onde estou. Pode ser que<br />

já não seja tão ágil como antes, mas levo algum tempo cuidando desse garoto e sei<br />

como proteger às pessoas que amo.<br />

A estreito entre meus braços e ouço uma suave exalação de surpresa, mas<br />

me acolhe de bom grado, com uns braços mais fortes do que imaginei. Me solta<br />

após alguns momentos e, sem acrescentar mais nada, se dirige mancando até a sua<br />

porta e entra no apartamento.<br />

«Nenhuma mãe se mantém afastada durante três malditos anos, deixando seus<br />

filhos sozinhos e depois volta sem querer algo.»<br />

Volto a entrar. Tão logo chego à sala, minha mãe se põe de pé com<br />

expectativa. Vejo que <strong>Otter</strong> levou <strong>Kid</strong> da sala, passo junto a minha mãe sem dizer<br />

uma palavra e a ouço suspirar enquanto volta a sentar-se. Que se foda. Que espere.<br />

Meus rapazes não se encontram na cozinha, assim que percorro o corredor e vejo<br />

que a porta de nosso quarto está fechada e a luz acesa. Giro a maçaneta, mas a<br />

porta esta fechada com chave.<br />

—Quem é? —Pergunta <strong>Otter</strong> rispidamente.<br />

—Sou eu. —Respondo em voz baixa.<br />

Ouço o clic da fechadura e a porta se abre. Olho para dentro do quarto e<br />

vejo <strong>Kid</strong> sentado em sua cama, com as costas apoiada contra a parede. <strong>Otter</strong> fecha<br />

a porta, dá a volta na chave, me empurra até a cama, onde se encontra Ty, nos<br />

acolhe a ambos entre seus braços e nos balança suavemente. Nos beija no topo da<br />

cabeça. Ty ainda tem os olhos arregalados e espantados, e sinto a primeira grande<br />

onda de cólera que começa a invadir-me. <strong>Otter</strong> nota como fico tenso sob suas mãos<br />

e começa a esfregar minhas costas.<br />

Como diabos pode estar aqui? Depois de abandonar sua família por um<br />

fodido cara, como tem a coragem de aparecer novamente, e muito menos respirar<br />

o mesmo ar dessa cidade? A bile sobe, quente e amarga, mas consigo fazê-la descer<br />

até que se desliza como graxa para meu estômago. Três anos é muito tempo para<br />

deixar que a ira e o ódio por alguém apodreça, e para ser sincero, pensei tê-los<br />

superado em sua maior parte. Sim, quando fugiu foi um golpe terrível, duvidava<br />

de mim mesmo e de todos os que me rodeavam e me perguntava como diabos ia<br />

manter a um garoto, quando eu mesmo ainda o era. Houve dias em que eu alternei<br />

entre xingá-la e rogar a Deus para que a fizesse voltar para casa. Com o tempo se<br />

reduziu a uma dor leve que sempre levava comigo, mas da qual não dava


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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importância com estranha habilidade.<br />

Agora ela voltou, e é como se a ferida se abrisse e começasse a sangrar<br />

novamente. Mas desta vez vem acompanhada de algo mais, algo muito mais<br />

sombrio. Tento me concentrar nisso, sem conseguir compreender o que é. O<br />

melhor modo que eu posso descrevê-lo é que estou ofendido, ofendido pelo fato de<br />

que ela esteja aqui, ofendido pelo seu atrevimento de aparecer outra vez. Não creio<br />

estar necessariamente desgostoso pela ideia de que se encontre realmente aqui,<br />

mas mais pelo fato de que considere que pode aparecer assim, caída do céu, como<br />

se nada tivesse acontecido. Como se os fodidos três anos nunca tivessem ocorrido.<br />

Como se eu nuca tivesse chegado a casa um dia e encontrado um bilhete de nossa<br />

covarde mãe, dizendo que sentia muito, mas devia partir, que Tom dizia que ela<br />

podia conseguir um emprego, que eu sempre fui um bebê feliz e que havia me<br />

deixado 137,50 dólares do meu dinheiro que era destinado a minha faculdade, mas<br />

que necessidade tinha eu de universidade para ser um escritor? Três anos de<br />

medo, cólera, economias, tristeza, solidão, três anos me sentindo perdido, como se<br />

me tivessem abandonado e me colocado em uma situação da qual eu não era capaz<br />

de sair. A amargura aumenta em meu interior, e aperto meus garotos com mais<br />

força.<br />

—Devemos chamar Creed. —Sugere <strong>Otter</strong> após algum tempo. —Para que<br />

venha buscar <strong>Kid</strong>.<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Isso soa bem…<br />

—Não. —Grita <strong>Kid</strong>.<br />

Nós dois nos sobressaltamos. Eu o afasto de <strong>Otter</strong> para ver bem o seu rosto<br />

e tenho que me abster de afastá-lo com um empurrão, porque ele está visivelmente<br />

furioso. Seus olhos brilham ao mesmo tempo em que sua boca se contrai em um<br />

sorriso de escárnio e é a primeira vez que vejo essa expressão nele. A ira volta a<br />

aumentar dentro de mim (havia desaparecido em algum momento?), e não desejo<br />

outra coisa que derrubar a porta do quarto, expulsá-la a patadas da nossa casa e<br />

jogá-la escada abaixo. Quero ouvir como se rompem seus ossos enquanto grita ao<br />

desabar contra o chão. Ardo de desejo de quebrar algo e bem poderia ser ela.<br />

—Ty. —digo, sem fazer nada para esconder a maldade em minha voz. —Ty,<br />

não quero você aqui para isso. Ela não tem nenhum direito de vê-lo.<br />

—Não me importa. —Rosna. —Não irei com Creed.<br />

Olho para <strong>Otter</strong> pedindo ajuda. Ele observa Ty com uma expressão de raiva<br />

quase idêntica. Quase quero que minha mãe entre agora, que veja como estamos


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todos, que sinta toda a intensidade de nossa ira. Quero que recue, que saia com o<br />

rabo entre as pernas e nos suplique perdão enquanto se afasta de nossas vidas para<br />

sempre. Ela não merece estar aqui. Não merece poder entrar e destruir a precária<br />

estabilidade que acabamos de conseguir depois de tanto tempo. Não é justo.<br />

—<strong>Otter</strong>… —Começo a dizer.<br />

—Não, <strong>Bear</strong> —Responde, quase que com a mesma veemência de <strong>Kid</strong>. —Já<br />

sei o que você vai me pedir e a resposta é não. Não vou levar <strong>Kid</strong> daqui e deixar<br />

você sozinho com ela. —Ergue o olhar para mim e tem os olhos duros e cintilantes,<br />

mas está mais tranquilo que <strong>Kid</strong> e eu. —Passei os últimos três anos querendo você<br />

de volta sem saber e agora que tenho você não vou deixar que enfrente isso<br />

sozinho. Amo você demais para isso. —Se interrompe e pensa um pouco. Logo<br />

levanta um braço e volta a estreitar <strong>Kid</strong> contra ele. —Amo muito vocês dois para<br />

fazer isso.<br />

—Você não pode me obrigar a sair, <strong>Bear</strong> —Diz Ty, sua voz afiada como uma<br />

navalha. —Não pode nos obrigar. Não quero vê-la, mas t<strong>amp</strong>ouco quero sair<br />

daqui. Você pode tentar, mas aposto que <strong>Otter</strong> e eu podemos derrotá-lo.<br />

Forço um sorriso e meus garotos fazem o mesmo.<br />

—O que ela disse a você <strong>Kid</strong>? —Pergunto em voz baixa. —O que ela estava<br />

falando antes de eu chegar?<br />

Ty nega com a cabeça.<br />

—Esteve me perguntando sobre a escola, quem são meus amigos e coisas<br />

assim. —Esfrega furiosamente os olhos, enxugando as lágrimas. —Perguntou o<br />

que eu queria ser quando crescesse. Também perguntou por você. Muito. Queria<br />

saber onde trabalhava e com quem saía. Perguntou quanto tempo faz que <strong>Otter</strong><br />

voltou e se vinha aqui.<br />

«O que diabos ela está fazendo?» —Penso. —«Que jogo ela está jogando?»<br />

«Cuidado, <strong>Bear</strong>.» —Sussurra a voz. —«É evidente que falta algo aqui, de modo<br />

que deve ir com cuidado.»<br />

—Isso é tudo? —Pergunto a <strong>Kid</strong>.<br />

Ele concorda com a cabeça.<br />

—Não respondi muita coisa. —Dá de ombros. —Não achei que fosse da<br />

conta dela o que estamos fazendo agora. Ela não tem que saber.<br />

Ele tem razão, e sei que é meu irmão porque está pensando exatamente o<br />

mesmo que eu. Então, meu coração se rompe um pouco por <strong>Kid</strong>, por ter que<br />

enfrentar esse tipo de obstáculo em sua idade. Solto um gemido por dentro ao<br />

pensar em como o afetará isso a longo prazo. Volto a xingá-la por dentro, sabendo


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que ela está desfazendo tudo aquilo pelo que me esforcei, tudo o que trabalhamos,<br />

tudo o que fizemos para seguir adiante. De repente, jogá-la escada abaixo volta a<br />

parecer uma boa ideia. Pelo menos, então, estaríamos livres dela para sempre.<br />

Me levanto, mais preparado do que nunca. O peso do mundo recai<br />

novamente sobre meus ombros e uma onda de tontura se estende pelos meus olhos<br />

e a visão embaça. Estendo uma mão para me apoiar em algo, o que seja. Não me<br />

surpreendo muito ao notar o braço de <strong>Otter</strong> sob meu ombro, quando se move para<br />

me segurar. O abraço com força, colocando nisso todo o meu empenho para que<br />

saiba como me sinto. Parece entendê-lo quando me aperta também, e me sinto<br />

esmagado, no bom sentido. Quero que continue me agarrando, para tirar todo o<br />

horror que se enrosca em meu corpo. Se afasta, me beija na testa e se volta para<br />

pegar <strong>Kid</strong>. Ty recosta a cabeça sobre o ombro de <strong>Otter</strong>, com os braços pendurados<br />

flácidos ao longo de seu corpo.<br />

—Espero que não pense que ficarei de braços cruzado se ela irritar você ou a<br />

mim.—Diz <strong>Otter</strong> quando estendo o braço para abrir a porta.<br />

—Eu t<strong>amp</strong>ouco. —Intervém Ty.<br />

Solto um riso amargo.<br />

—Não esperava menos dos meus garotos. —Digo a eles e, então, abro a<br />

porta.<br />

«Nem eu.» Diz a voz enquanto seguimos o largo trajeto pelo corredor.<br />

A caminho pelos escassos três metros que conduzem até a sala, o tempo fica<br />

mais lento e quase se detém. Tem que fazê-lo para que eu possa me concentrar em<br />

tudo o que há dentro de minha cabeça. Oh, Deus, não quero recordar essas coisas.<br />

Não quero pensar nelas, mas não posso evitar e quando dou outro passo até uma<br />

fria inevitabilidade, vou afundando nas ondas e, então... e, então...<br />

E, então…<br />

«É o dia do meu aniversário de cinco anos, mamãe se esqueceu e decide se embebedar<br />

às dez da manhã com um tipo cujo nome desconheço. Tem os olhos vidrados quando me<br />

olham de cima a baixo, me vendo sentar á mesa da cozinha com eles, sabendo que demorará<br />

para gritar “surpresa!” e que haverá bolo, bexigas e presentes. Ela serve outro copo para si<br />

mesma e para o desconhecido, brindam um ao outro e logo levantam os copos para mim, os<br />

esvaziam de um só gole e se dispõem a tomar mais. Ao meio dia ambos desmaiam e eu passo<br />

o resto do dia trancado em meu quarto, lendo sozinho e experimentando um incipiente<br />

tremor. »<br />

E então…<br />

«Agora tenho onze anos, e suplico a minha mãe que me deixe ir a casa de Creed para<br />

passar a noite novamente ali. Ela leva três semanas enfiada no apartamento, com um


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estranho e assustador ataque de depressão dando voltas em sua cabeça. Não toma banho e<br />

nem come. Permanece trancada em seu quarto e só sai para ir comprar cigarros e Bourbon<br />

antes de regressar à sua cova. Tenho ordens estritas de ir a escola e voltar diretamente para<br />

casa porque diz: e se precisar de mim? E se acontecer algo com ela e eu não estiver ali para<br />

ajudá-la? Alguns dias nem sequer posso ir a escola. Mas hoje Creed me convidou para ir a<br />

sua casa porque <strong>Otter</strong> virá para passar uns dias de férias. “<strong>Otter</strong> estará ali” —lhe suplico.<br />

— “Você tem que me deixar ir!” Ela fica olhando para mim por um momento, creio que se<br />

esqueceu quem sou eu, e me atrevo a esperar que assim seja. Isso se despedaça quando um<br />

vago reconhecimento atravessa seu rosto e nega com a cabeça. “Eu disse que não, Der”. —<br />

Ela diz a mim. —“E se eu precisar de você? Poderia me acontecer algo, e você não estaria<br />

aqui.” Dá outra tragada longa no cigarro que está pendurado em seus lábios. — “Poderia<br />

me acontecer algo”— Repete e me dou conta de que se desligou quando fica olhando através<br />

da janela da cozinha. Saio dali para poder me desmoronar na solidão.»<br />

E então…<br />

«Agora tenho doze anos e ela entra em meu quarto sem bater. Afasto rapidamente o<br />

papel no qual estou escrevendo e sinto uma onda de calor no rosto. Estou escrevendo uma<br />

carta para <strong>Otter</strong>, perguntando a ele se, quando ele se formar na universidade e eu me<br />

graduar no colégio, poderei ir morar com ele. É uma carta que sei que não enviarei nunca,<br />

como dezenas de cartas parecidas que estão escondidas debaixo de meu colchão. Mamãe<br />

percorre o quarto com o olhar, finalmente se senta na beirada da minha cama, agacha a<br />

cabeça e brinca com minhas mãos. “Derrick, temos um problema.” —Expõe. —“Não sei<br />

como ocorreu.” Não respondo, esperando que capte o sinal e saia para que eu possa<br />

continuar a minha carta. Espero que me deixe em paz para que eu possa imaginar como<br />

seria chegar a fase adulta e que <strong>Otter</strong> e eu estivéssemos nossa própria casa e pudéssemos<br />

fazer o que quiséssemos sem que ninguém nos proibisse. Mas ela não percebe. “Derrick.” —<br />

Suspira. —“Creio que estou grávida.”— Quando diz isso, tenho a sensação de que o teto<br />

desaba sobre a minha cabeça e fecho os olhos com força, rezando a quem quer que seja, que<br />

me escute e a leve. Para que a obrigue a me deixar em paz. Ou, no mínimo, para que esteja<br />

completamente equivocada sobre o que acaba de me dizer. Não sei o que dizer e, sete meses<br />

depois, tenho um irmãozinho e todas essas cartas seguem sem ser enviadas. »<br />

«Tenho treze anos e, a partir de agora, me chamo <strong>Bear</strong>.»<br />

«Tenho quinze anos, e minha mãe se ausenta por três dias sem me dizer aonde vai.»<br />

«Tenho quase dezessete anos quando menciona a alguém chamado Tom.»<br />

E então…<br />

«Agora estou a ponto de me graduar no colégio, e numa noite volto para casa do<br />

trabalho. Não há ninguém ali, tento não me deixar levar pelo pânico e é então quando a<br />

vejo, a carta de três páginas apoiada sobre a mesa, cheia de palavras mal escritas e


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promessas quebradas. Há um momento, um instante cristalino de claridade pura e é o mais<br />

próximo que cheguei da loucura em minha vida. Sinto que estou me desequilibrando e<br />

começo a me descompor, e os tremores se convertem em ondas de choques, e agarro o papel<br />

em minhas mãos e a magnitude é como algo que jamais senti. A provocam as palavras,<br />

palavras como “Sei que isto será duro para você ler” e “Tenho que partir”. Golpeio uma foto<br />

pendurada na parede, que se rompe contra minha mão e ouço: “Tom diz que Ty não pode<br />

ir” e “o deixei aqui com você”. Sangro, e a única coisa em que posso pensar é em como<br />

terminou a carta, como pôs fim a tudo: “Por favor, não tente me procurar. Mamãe.” Grito.»<br />

«Tenho oito anos e recolho as latas vazias de cerveja.»<br />

«Tenho seis anos e levo um tombo, e ela não beija a minha ferida porque lhe dá<br />

asco.»<br />

«Tenho nove anos, e ela diz que não pode assistir a Noite dos Pais da minha escola.»<br />

«Tenho doze anos, e ela traz um bebê para casa.»<br />

«Tenho quatorze anos e ela traz para casa um tipo que nunca vi antes.»<br />

«Tenho dezessete anos, e ela vai embora.»<br />

Tenho vinte e um anos e ela regressa.<br />

Entramos na sala e vemos que saiu do sofá para contemplar as fotos que<br />

tenho penduradas na parede. A maioria foram tiradas por <strong>Otter</strong>, e mostram Anna,<br />

Creed, <strong>Kid</strong> e eu em diversas etapas da vida. Há algumas individuais, e outras nas<br />

quais estamos todos. Mas aquela na qual se fixa agora me faz vacilar: é uma que<br />

<strong>Kid</strong> tirou há algumas semanas. Nela, <strong>Otter</strong> e eu estamos na praia, o sol está se<br />

pondo às nossas costas e <strong>Otter</strong> tem um braço sobre meus ombros e olha<br />

diretamente para a câmera, com um sorriso capaz de iluminar o mundo inteiro lhe<br />

enfeitando o rosto. Eu também sorrio de orelha a orelha, mas estou concentrado<br />

nele. Meu rosto diz muitas coisas nesse momento congelado e fico nervoso cada<br />

vez que Creed vem, quase até o ponto de querer retirá-la de lá. Mas não o fiz e não<br />

o farei. Ela nos ouve entrar e se volta para nós.<br />

<strong>Otter</strong> leva <strong>Kid</strong> e se senta no sofá e Ty se coloca com as costas recostadas no<br />

peito de <strong>Otter</strong> e suas perninhas entre as grandes pernas de <strong>Otter</strong>. Este apoia o<br />

queixo sobre a cabeça de Ty e dá uma palmadinha no assento do sofá ao seu lado.<br />

Eu me movo rapidamente e sem duvidar e ocupo meu lugar junto aos meus<br />

garotos. Mamãe vacila por um momento, como se não soubesse o que dizer nem o<br />

que fazer. Avança devagar senta em uma cadeira que, até pouco tempo atrás tinha<br />

sido ocupada pela senhora Paquinn. Olha para Ty e para mim, e espero que<br />

perceba quão bem estamos, ou pelo menos estávamos até que ela apareceu. A mão<br />

de <strong>Otter</strong> descansa comodamente sobre o sofá entre sua perna e a minha, e posso<br />

sentir seu dedo, invisível pela posição de nossas pernas, roçando minha coxa de


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forma tranquilizadora. Lanço um olhar para ele, que retribui e o brilho verde-ouro<br />

me diz que tudo ficará bem.<br />

—Como você está, <strong>Bear</strong>? —Pergunta por fim.<br />

—Estou bem. —Respondo friamente. —Estamos bem.<br />

Assente com a cabeça, olha nervosamente para <strong>Otter</strong> por um breve instante<br />

e logo para mim.<br />

—Fico feliz em ouvir isso. —Diz com voz baixa, torcendo as mãos em seu<br />

colo. —Eu já imaginava, mas sempre é bom comprovar com meus próprios olhos.<br />

—O que você quer? —Pergunto, sentindo uma indesejável curiosidade que<br />

se mescla com a ira.<br />

Volta a olhar para <strong>Otter</strong> e logo diz, em um tom quase de desculpa:<br />

—Talvez fosse melhor que isso ficasse em família.<br />

<strong>Otter</strong> bufa.<br />

—Pois não será assim, Julie. Pode dizer exatamente o que tem que dizer em<br />

minha presença.<br />

—Oliver, não creio que isso seja assunto seu…<br />

Ela tenta de novo, mas se detém quando <strong>Otter</strong> a interrompe.<br />

—O que você pensa não tem nenhuma importância para mim. —Diz,<br />

olhando para ela com a testa franzida. —Tanto <strong>Bear</strong> como Tyson me querem aqui<br />

e, enquanto for assim não vou embora.<br />

Ela suspira e olha para mim pedindo ajuda, com essa expressão suplicante<br />

em seu rosto que eu vi uma infinidade de vezes. Eu sinto a pele sob meu olho<br />

contrair involuntariamente, e penso com espanto que ela vai imaginar que eu estou<br />

piscando para ela. Mas não o faz, e acho que sabe que não receberá ajuda de mim.<br />

Quero <strong>Otter</strong> aqui. Necessito <strong>Otter</strong> aqui. O irritante olhar suplicante de minha mãe<br />

se apaga e ficamos com a expressão tímida e rechonchuda que persistiu em seu<br />

rosto desde que chegamos. Mas há algo abaixo. Algo mais profundo.<br />

—Bem, <strong>Bear</strong> —Diz, com a voz embargada. —O que você tem feito?<br />

—O que você quer? —Volto a perguntar, agora em tom enfático.<br />

Minha mãe sacode a cabeça.<br />

—Não posso fazer uma simples pergunta sem que me dê uma bronca? Ty já<br />

me falou da escola e de seus amigos, e eu só quero ouvir como vão as coisas<br />

contigo.<br />

—Não, eu não falei. —Intervém Ty.<br />

—Já sei que não, kid —Digo, dando uns golpes de leve em sua perna.<br />

Mamãe se mostra ofendida.


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—Olha...—Diz irritada.—Apesar do que eu fiz, apesar do quão mal eu reagi,<br />

ainda sou sua mãe. Ainda me preocupo com vocês dois mais do que vocês possam<br />

imaginar.<br />

—Nossa, obrigado. —Zombo, me esforçando para não gritar. —Sem dúvida<br />

isso me ajudou muito durante estes últimos três anos, quando tentava dormir à<br />

noite.<br />

Seus olhos brilharam.<br />

—Não foi fácil para mim, sabe? —Diz com veemência. —Tomar essa decisão<br />

foi o mais difícil que tive que fazer em minha vida. Desde então, me arrependo a<br />

cada dia, mas quanto mais tentava encontrar uma solução, mais tempo passava, e<br />

se tornou cada vez mais difícil.<br />

—Você quer falar do quão difícil foi para você? —Pergunto, incrédulo. —<br />

Você vem aqui, na minha casa, falar sem parar do difícil que foi a vida para você?<br />

Você não sabe nada do que é passar dificuldades!<br />

—Eu fiz o que achava que era o melhor! —Grita. —Não estava em condições<br />

de ser um boa mãe para nenhum dos dois ! Era melhor ir embora do que ficar aqui<br />

e estragar também suas vidas!<br />

Percebo que começo a tremer, ouço trovões em meus ouvidos e sinto<br />

relâmpagos recorrendo em zigue-zague por toda a minha espinha dorsal.<br />

—O que você achava que era melhor? Como pôde pensar que o que fazia<br />

era o melhor? Você deixou um filho de seis anos com um de dezessete! De que<br />

maneira podia ser o melhor?<br />

Ela nega com a cabeça e tenta levantar, mas volta a sentar novamente. Torce<br />

as mãos, começa a ficar vermelha, e lança uns olhares furtivos a nós três. Me<br />

pergunto o que é que vê agora, e sei que se eu me encontrasse em sua situação<br />

estaria tremendo dos pés a cabeça.<br />

—Estava sendo egoísta. Agora eu sei disso! —Exclama. —Não foi justo para<br />

nenhum de vocês e... e quero que saibam que não creio que possam me perdoar<br />

nunca.<br />

Quando termina de falar vejo lágrimas incipientes em seus olhos, mais isso<br />

só faz com que eu me irrite mais, se isso é possível.<br />

—É por isso que você veio? —Rosno.—Para nos pedir perdão?<br />

—Eu… não sei, <strong>Bear</strong>. Pensei que… que se voltasse…<br />

Vira a cabeça e levanta uma mão para secar seu olho, e vejo que sua<br />

maquiagem escorre. Me dá vontade de levantar, agarrar seu pescoço com as mãos<br />

e estrangulá-la até ouvir um barulho em sua garganta quando exale o último


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suspiro.<br />

—Você não deveria estar aqui. —Digo. —Se veio para ver como estávamos,<br />

agora já sabe. Se contente com isso para apaziguar sua fodida consciência.<br />

—Não utilize essa linguagem comigo, rapazinho. —Ela me repreende. —<br />

Ainda sou sua mãe, e não permitirei que me fale assim.<br />

—Não creio que possa lhe impor o que diga ou deixe de dizer. —Solta <strong>Otter</strong>.<br />

—Você perdeu esse direito há muito tempo, Julie, quando fugiu covardemente.<br />

Ela volta sua irritação contra ele.<br />

—Eu não falava com você, Oliver. —Diz, irritada. —Além disso, desde<br />

quanto participa de discussões familiares como essa? Não tem sua própria casa<br />

para ir? Ou você se diverte visitando os bairros mais pobres?<br />

—Não fale assim com <strong>Otter</strong>! —Grita <strong>Kid</strong> de repente.<br />

Eu apenas fico mudo, mas minha mãe recua bruscamente em sua cadeira e<br />

chego a pensar que vai cair de bruços. Olho para Ty e vejo que recuperou a<br />

expressão de pura fúria em seu rosto e a dirige contra a sua mãe.<br />

—Ele é mais da família do que você!<br />

—Ty, isto é assunto para adultos. —Diz ela apertando os dentes. —Por que<br />

não vai para seu quarto e falaremos mais tarde?<br />

—Não diga a ele o que deve fazer! —Grito. —Renunciou a isso quando foi<br />

embora!<br />

—Que outra coisa eu podia fazer? —Responde ela. —Se eu tivesse ficado<br />

tudo teria ido para o inferno, e quem sabe onde estaríamos agora.<br />

—Nós teríamos resolvido de alguma forma! —Exclamo. —Sempre o<br />

fizemos! Por mais difíceis que sejam as coisas, você nunca abandona sua maldita<br />

família! —Me detenho, com as mãos trêmulas. Tanto Ty como <strong>Otter</strong> têm agora suas<br />

mãos sobre a minha perna, e me dou conta quando os olhos de minha mãe se<br />

fixam ali. —Mas lhe direi uma coisa. —Continuo. — Pode ser que tenha razão.<br />

Pode ser que para você o melhor foi ter ido embora. Pode ser que fosse o melhor<br />

para todos nós. Eu sei que eu teria odiado você mais que eu já odeio agora se<br />

tivesse nos arrastado para o abismo contigo.<br />

—Eu não queria… —Sussurra, com lágrimas já transbordando. —Eu não<br />

conseguia ver outra maneira…<br />

—Isso já ficou claro. —Diz <strong>Otter</strong> secamente. —Agora por que não responde<br />

a pergunta de <strong>Bear</strong>? Por que você está aqui?<br />

Mamãe volta a fulminá-lo novamente antes de abaixar o olhar para suas<br />

mãos.


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—Eu já disse: queria saber como estavam meus filhos. Precisava me<br />

assegurar de que estavam bem. Ultimamente estive pensando em vocês dois mais<br />

do que pensei em muito tempo. —Ela estremece e segue. —Já sei o que parece,<br />

acreditem. Não pretendo soar dura de nenhuma maneira. Mas… seja o que seja<br />

que vocês sintam por mim agora, vocês ainda são meus filhos, e eu… não sei.<br />

Penso que é culpa ou outra coisa, mas ultimamente não consigo tirar vocês da<br />

minha cabeça. Às vezes parece que eu os vejo andando pela rua, e sei que não é<br />

possível, mas ainda assim corro atrás de vocês, mas claro, quando chego ali, não<br />

são vocês. Nem sequer se parecem.<br />

<strong>Otter</strong> e eu nos olhamos com olhos arregalados, recordando a história que<br />

me havia contado sobre o período que viveu em San Diego, quando eu o<br />

perseguia.<br />

—É curioso. —Segue dizendo minha mãe.—Mas isso ficou na minha cabeça,<br />

que eu tinha que vir e ver meus filhos. Pensei que talvez pudesse aprender a ser<br />

uma boa mãe e que… —Se detém e levanta o olhar para mim, com os olhos<br />

brilhantes. — Será que tudo o que eu estou dizendo faz sentido? —Pergunta em<br />

voz baixa.<br />

—Sim, faz. —Admito, negando-me a fazê-la entender o porquê. —Entendo<br />

mais do que imagina. — Balanço a cabeça quando começa a se mostrar<br />

esperançosa. —Mas é muito pouco e muito tarde. Seja o que for que esperava fazer<br />

aqui, terminou.<br />

—Você não pode me perdoar? —Pergunta em um fio de voz.<br />

—Algum dia, talvez. Agora? Não. Não posso. E sua presença aqui não fez<br />

mais do que piorar as coisas. Acho que é melhor para todos que você saia.<br />

—Ty? —Diz mansamente, e a odeio por isso.<br />

<strong>Kid</strong> nega com a cabeça.<br />

—Não quero você aqui. Papai <strong>Bear</strong> cuidou de mim muito mais do que você<br />

o fez ou poderia fazer um dia. Só tenho nove anos, mas posso ver isso. —Dá uma<br />

olhada para mim, eu sorrio e isso lhe dá coragem para continuar. —Teve que<br />

cuidar de mim durante muito tempo e por fim as coisas começam a ficar bem. Eu<br />

fiz o que podia para cuidar dele e creio que eu fiz bem.<br />

—Mas é claro, <strong>Kid</strong>.—Sussurro e ele sorri.<br />

Levanta o olhar para <strong>Otter</strong>, que o beija na testa, e volta a olhar sua mãe.<br />

—E então <strong>Otter</strong> voltou porque se deu conta de que ama <strong>Bear</strong>, e <strong>Bear</strong> o ama,<br />

e não necessitamos que ninguém nos diga como ser uma família.<br />

Se interrompe, e então seu rosto fica pálido.


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Seguramente como o meu.<br />

Os olhos de minha mãe brilham. Fica olhando para <strong>Kid</strong>, logo se fixa em<br />

<strong>Otter</strong> e em mim e balança a cabeça.<br />

—Ele o quê? —Pergunta em voz baixa.<br />

—Nada —Apresso-me a responder. —Você deve ir.<br />

Quando olha para mim em seguida, há algo em seus olhos, algo que não<br />

consigo identificar. Isso me enche de pavor, porque mais se parece a triunfo. Dá a<br />

impressão de que acaba de ganhar algo e meu coração gela no peito. Noto minha<br />

pele fria e úmida.<br />

—Ouvi… algo sobre você. —Diz a <strong>Otter</strong>, com uma voz impregnada de<br />

evidente asco. —Antes de eu sair, alguém me disse que tinham visto você entrar<br />

em um bar de maricas em Portland. Não acreditei. Disse a eles que era<br />

impossível… que você não podia ser assim.<br />

—Você não tem nem ideia… —Começa a dizer <strong>Otter</strong>, com os olhos<br />

brilhando.<br />

—Isso não importa. —Interrompo. —O que ele é nunca será assunto seu. —<br />

Respiro fundo.— O que eu sou não é assunto seu. Não pode voltar a impor como<br />

devemos viver nossas vidas.<br />

—Sou sua mãe. —Espeta. —Eu trouxe você ao mundo, assim, me dá mais<br />

direitos que você! —Sua boca se contrai em um sorriso de escárnio, mas essa é a<br />

minha mãe, até eu posso ver que por baixo ela está sorrindo. —Além disso... —<br />

Acrescenta, desviando os olhos para <strong>Kid</strong>. —Também sou mãe dele. A quem você<br />

acha que as pessoas vão escutar, <strong>Bear</strong>? A um garoto como você que se perverteu,<br />

ou a uma mãe que não deseja outra coisa a não ser ver a seu filho pequeno sendo<br />

criado longe do asqueroso estilo de vida que parece ter adotado?<br />

—Você deve sair. —Rosna <strong>Otter</strong>, colocando <strong>Kid</strong> de lado, como se estivesse<br />

se preparando para atacar. —Agora. Já estou farto de ouvir você.<br />

Ela se estufa tudo o que ela pode, tentando parecer maior, e tenho que<br />

reconhecer esse mérito nela. Se <strong>Otter</strong> olhasse para mim como está fazendo agora<br />

com ela, sairia correndo e não me deteria até chegar a outro Estado. <strong>Kid</strong> está<br />

esmagado entre nós dois, mas posso notar como <strong>Otter</strong> treme. É como se seu pé<br />

estivesse vivo, agitando-se e se arrastando sobre seus ossos. Seus dentes estão à<br />

mostra e há saliva em seus lábios. O fulgor verde-ouro desapareceu, dilatado para<br />

uma escuridão quase completa. Tem a testa enrugada e as narinas dilatadas, e a<br />

única coisa que quero fazer é ficar sentado e deixá-la com ele. Ela merecia. Mas não<br />

posso permitir que <strong>Otter</strong> faça isto. Não posso deixar que lute minhas batalhas em


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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meu lugar. Também sei que se ele sucumbe a essa loucura que parece lamber-lhe<br />

os pés, não demorarei a segui-lo e não quero que Ty nos veja assim. Tomo uma<br />

decisão e dói, dói mais do que imaginei. Só faz umas horas que ela voltou e dá a<br />

impressão que já está ganhando.<br />

Estendo uma mão e pego <strong>Otter</strong> pelo braço. Seu rosto bravo se volta para<br />

mim e, por um momento, recebo todo o impacto do que ele mostrou para minha<br />

mãe. Quase me levanto e saio fugindo, mas sinto certa determinação para afastar<br />

esse impulso e me surpreendo quando nem sequer titubeio. <strong>Otter</strong> respira<br />

agitadamente um instante mais, logo seu rosto se suaviza, seus olhos se tornam<br />

mais brilhantes, seus lábios se relaxam e ele volta para mim, e eu me alegro. Volto<br />

a cabeça para a esquerda e faço um sinal para que me siga. Ele assente, pega <strong>Kid</strong><br />

pela mão e nos levantamos do sofá. Minha mãe parece querer falar, mas lanço um<br />

olhar e ela desiste. <strong>Otter</strong> segue Ty, que, por sua vez, segue a mim, e eu os conduzo<br />

para a porta principal. Sei que minha mãe escuta com atenção, se certificando de<br />

recolher toda a informação que puder. Saímos e fecho a porta às nossas costas.<br />

—Aonde vamos, <strong>Bear</strong>? —Pergunta <strong>Kid</strong> com voz fraca.<br />

Suspiro.<br />

—Nós não vamos a nenhum lugar, Ty. Você irá com <strong>Otter</strong> para sua casa e<br />

vai me esperar lá. —Os dois começam a protestar no ato, mas levanto a mão e eles<br />

se calam. Olho para <strong>Otter</strong>, que parece a ponto de falar a qualquer momento.—<br />

Você tem que tirá-lo daqui. —Digo. —Não quero que <strong>Kid</strong> ouça qualquer ódio que<br />

ela queira manifestar. Leve-o para sua casa. Tire-o daqui, <strong>Otter</strong>. Por favor. —<br />

Insisto quando começa a protestar. —Faça isso por mim.<br />

Encolhe os ombros e rodeia com um braço os ombros de <strong>Kid</strong>, mas ele o<br />

empurra.<br />

—Não, <strong>Bear</strong> —Rosna Ty com indignação. —Temos que fazer isso juntos.<br />

Você disse que faríamos isso juntos…<br />

—Eu sei disso. —O interrompo bruscamente. —Mas isso foi antes que eu<br />

visse que tipo de pessoa ela se tornou. Não tem que estar aqui para isso, <strong>Kid</strong>. Não<br />

quero que esteja aqui para isso. Tem que me deixar resolver isso.<br />

Seus olhos vasculham os meus, e não deve ter gostado do que vê porque seu<br />

corpo começa a imitar o de <strong>Otter</strong>, derrotado e abatido.<br />

—Leve-o para casa —Sussurro a <strong>Otter</strong>. —Leve-o daqui e prometo a você<br />

que os seguirei tão logo eu me livre dela.<br />

<strong>Otter</strong> assente e começa a puxar <strong>Kid</strong> até a escada, mas Ty escapa dele e me<br />

rodeia a cintura com seus braços, com sua cabeça apertando o meu estômago. Me


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inclino e o abraço com todas as minhas forças, tentando fazê-lo esquecer esse dia.<br />

Não sei até que ponto fui bem sucedido.<br />

Após um minuto o afasto e me disponho a entrar, quando ele me segura<br />

pelo pulso e me puxa para baixo. Noto sua respiração quente e urgente em meu<br />

ouvido.<br />

—Você me promete que quando for me buscar, tudo será como antes.<br />

Prometa-me.<br />

Sorrio com tristeza.<br />

—Eu prometo, <strong>Kid</strong>. Até agora eu tenho cuidado de você, não?<br />

Assente com a cabeça.<br />

Me levanto e olho para <strong>Otter</strong>, que parece mais velho, mais velho do que<br />

nunca. Ainda com os ombros caídos, e eu não sei se ele ouviu o que <strong>Kid</strong> disse.<br />

Estendo um braço e pego a sua mão. Ele levanta a cabeça e vejo que tem os olhos<br />

inundados de lágrimas de raiva.<br />

—Ei, nada disso. —O repreendo, levantando uma mão para secar<br />

afetuosamente seus olhos.<br />

—Ty. —Sussurra ele com voz ronca. —Você pode me esperar ao lado do<br />

carro?<br />

Ty olha para nós dois, e me pergunto o que vê. <strong>Kid</strong> pega minha mão livre e<br />

beija o dorso, o que me comove como nunca imaginei ser possível. Sinto que minha<br />

respiração começa a engatar dentro do meu peito e tento me controlar antes que<br />

seja pior. <strong>Kid</strong> desce as escadas e, quanto mais se afasta, menor parece. É como se<br />

dissolvesse cada vez mais e fosse desaparecer se eu afastar o olhar.<br />

Quando Ty já não pode nos ouvir volto a olhar para <strong>Otter</strong>, que parece haver<br />

recobrado certa determinação e autodomínio. Eu sorrio para ele, ele levanta a<br />

cabeça de novo e me dou conta de que esse autodomínio é mentira. Seus olhos<br />

voltam a ser negros, começa a suar e creio que está a ponto de invadir o<br />

apartamento despedaçar membro a membro dela. Começo a abrir a boca, mas me<br />

falta o ar de repente, quando ele me pressiona contra a parede exterior do<br />

apartamento. O corpo e o rosto de <strong>Otter</strong> se apertam contras os meus e seu beijo é<br />

violento e perigoso. Posso notar seus dedos cravados em minhas costas e seus<br />

dentes raspando contra meus lábios. Ainda que minha mãe se encontre a não mais<br />

do que cinco metros, sinto que fico excitado. <strong>Otter</strong> percebe e rosna contra meu<br />

rosto. Levanto as mãos e as coloco atrás de sua cabeça, o atraindo para mim. Ele<br />

beija meus lábios, logo segue mordiscando minha mandíbula e lambendo até<br />

chegar ao pescoço e noto seus dentes afundando suavemente na pele. Então


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

começa a chupar. Recosto a cabeça contra a parede ao mesmo tempo em que reviro<br />

os olhos e começo a me afastar, flutuando sobre uma corrente oceânica. Não há<br />

tempestade, mas agora estou submerso de todo. Não é tão mal como pensei.<br />

Finalmente <strong>Otter</strong> se fasta, e posso sentir a suave queimação em meu pescoço<br />

onde sei que deixou sua marca. Levanto os olhos para meu namorado e vejo a<br />

luxúria fugaz uma vez mais saindo de seus olhos. Apoia sua testa contra a minha.<br />

Ficamos assim durante o que parecem horas, ele exalando enquanto eu respiro, e<br />

me encho de <strong>Otter</strong>, do ar que estava dentro dele e agora está dentro de mim. Noto<br />

uma gota que cai sobre minha mão e abro os olhos, justo a tempo de ver outra<br />

lágrima caindo de seus olhos.<br />

—Agora ela saberá. —Murmura contra meu rosto. —Agora saberá que você<br />

me pertence.<br />

Seguro seu rosto entre minhas mãos e o beijo com delicadeza.<br />

—É claro que ela vai. —Digo a ele.<br />

Se afasta repentinamente, enfia as mãos nos bolsos e se encaminha até às<br />

escadas. Coloco minha mão sobre a maçaneta e o vejo se afastar. Quando chega lá<br />

embaixo se volta, como eu sabia que faria. Deus, me encanta o previsível que <strong>Otter</strong><br />

é.<br />

—Amo você, papai <strong>Bear</strong>. —Diz com voz serena.<br />

—Eu sei. —Respondo. —Creio que eu sempre soube.<br />

Assente com a cabeça momentos antes de desaparecer na escuridão.<br />

*****<br />

Página271<br />

—Desde quando? —Ela diz apressadamente quando volto para sala. —<br />

Quanto tempo faz que você vive em pecado?<br />

Bufo.<br />

—Pecado? Vamos, mãe. —Sento no sofá e olho para ela com ódio enquanto<br />

anda de um lado para o outro diante de mim.—Você nunca foi muito religiosa,<br />

então, com certeza, não é uma boa ideia que comece agora. Só se envergonhará<br />

mais do que já está.<br />

Ela para em frente a mim, mostrando-se incrédula.<br />

—Você se preocupa que eu me envergonhe? Olhe para você! Eu não lhe<br />

criei para se converter na cadela de <strong>Otter</strong>! —Grita. —Você não é um marica, <strong>Bear</strong>!<br />

O que diabos ele te fez?<br />

Volta a retorcer as mãos, e acho que em breve elas vão cair.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página272<br />

—Ele não me fez nada. —Respondo com a testa franzia. —Bem, nada que eu<br />

não quisesse que me fizesse. —É um golpe baixo, eu sei, mas não posso evitar de<br />

experimentar uma maravilhosa sensação de júbilo quando a vejo recuar com os<br />

olhos arregalados. —E não diga «marica». Ty diz que essa palavra é grosseira, e eu<br />

concordo com ele.<br />

—Desde quando? —Pergunta com uma careta, retomando sua caminhada<br />

diante de mim.<br />

—Desde quando o quê, mãe?<br />

—Desde quando ele está pervertendo você?<br />

Eu estreito os meus olhos.<br />

—Meta isso em sua cabeça de uma vez: ele não me fez nada que eu não<br />

quisesse.<br />

—Você não era assim quando eu estava aqui! —Protesta. —Eu não teria<br />

deixado nunca que você se convertesse nessa... essa coisa que parece pensar que é!<br />

—Nesse caso seguramente foi bom que tenha partido! —Eu esbravejo. —E<br />

se você pensa que se tivesse ficado, as coisas teriam sido diferentes, então você é<br />

ainda mais estúpida do que pensei!<br />

—Não… não… —Balbucia. —Não se atreva…<br />

Me levanto de um salto e coloco meu rosto a uns centímetros do seu.<br />

—Que eu não me atreva a quê? —Olho para ela com desprezo, notando<br />

como meu lábio se contrai, e sei que tenho o aspecto de <strong>Otter</strong> há alguns momentos<br />

atrás. Um orgulho feroz me percorre de cima em baixo, começando nos dedos dos<br />

pés e subindo pela espinha dorsal.— Que não me atreva a quê? —Repito, em voz<br />

baixa e veemente.<br />

—A Bíblia diz…<br />

—Já disse para parar com essas idiotices! —Grito. —Quem diabos pensa que<br />

é para entrar em minha casa e me dizer o que é certo e errado? Quem você pensa<br />

que é?<br />

Ela tenta se erguer em toda sua estatura, que nunca foi muito imponente.<br />

—Sei quem sou. —Responde com voz trêmula. —E sem quem você é… ou<br />

quem era. Antes era meu filho, e agora a única coisa que vejo… é este marica<br />

plantado diante de mim.<br />

Quando diz essa última parte, preciso valer de todas as minhas forças para<br />

não erguer o braço e socar sua boca. E ainda assim quase não basta. Me imagino<br />

mentalmente: meu punho atingiria seu rosto e o sangue iria jorrar enquanto sua<br />

boca se rompe e seu nariz se faz em pedaços. Recuaria cambaleando e tropeçaria


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com a mesinha situada atrás de suas pernas. Cairia para trás, bateria sua cabeça<br />

contra a mesinha, que racharia e ficaria ali estendida sem mover-se. Isto me faz<br />

estremecer ainda mais que sua presença aqui. Me faz estremecer ao saber que eu<br />

poderia fazer isso e não sentir nenhum grama de remorso. Fecho os olhos e tento<br />

me desfazer da vertiginosa sensação de tontura que ameaça apoderar-se de minha<br />

mente.<br />

— O que é que você quer? —Pergunto, tentando manter a voz serena.<br />

—Vou dizer o que eu queria. —Responde com desdém. —Não queria<br />

chegar em casa e encontrar…<br />

—Esta não é sua casa. Responda a pergunta.<br />

—<strong>Bear</strong>. —Grita com voz aguda e queixosa, como recordo que era antes. —<br />

Eu já te disse, só queria ver meus filhos!<br />

—Já sei o que você disse. —Continuo com os olhos fechados. —Mas você<br />

está mentindo. O que você quer?<br />

—Não tenho que ficar aqui e permitir que fale comigo desse modo. —Diz, e<br />

noto que se afasta. —Não mereço esse tratamento. —Murmura, quase para si<br />

mesma. —Ainda sou sua mãe, e eu sei o que é melhor para você.<br />

Abro os olhos de um só golpe, já tendo o suficiente.<br />

—QUE PORRA VOCÊ QUER? —Grito, rasgando minha garganta quando<br />

saem essas palavras.<br />

Avanço ainda mais no oceano. Ao longe, os trovões retumbam através do<br />

céu, e mentalmente olho para o horizonte e vejo formar-se nuvens enormes. O<br />

vento sopra suavemente sobre minha cabeça, trazendo consigo o presságio da<br />

chuva. «<strong>Bear</strong>.» —Sussurra a voz. —«<strong>Bear</strong>, você precisa chegar à costa. Tem que chegar à<br />

costa antes que chegue a tempestade. Se não, você será arrastado e nem sequer eu poderei<br />

segui-lo até ali.»<br />

Minha mãe me observa com temor e, pela primeira vez em minha vida me<br />

alegro de que tenha partido como fez. Oh, eu senti algumas coisas que poderiam<br />

fazer fronteira com o alívio que sinto agora, mas durante os últimos três anos esta<br />

abrumadora sensação de justiça nunca prevaleceu tanto em minha mente. Ela disse<br />

que, se tivesse ficado, <strong>Otter</strong> e eu nunca teríamos sido <strong>Otter</strong> e eu, e por mais que eu<br />

gostasse de negar, tenho a horrível sensação de que está correta. <strong>Otter</strong> teria ficado<br />

aqui, eu teria ido para a faculdade e as possibilidades de que <strong>Otter</strong> e eu tivéssemos<br />

nos alinhado tal como fizemos, talvez nunca tivesse acontecido. E, para piorar as<br />

coisas, eu teria deixado <strong>Kid</strong> aqui com ela. Claro, eu teria me chutado e me<br />

repreendido todos os dias por fazer isso, mas creio que teria feito de todo jeito. Se


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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ela tivesse ficado, muitas coisas seriam diferentes, muitas coisas estariam fora de<br />

lugar no mundo. Jamais teria encontrado as últimas peças do quebra-cabeças para<br />

encaixá-las e completar o quadro. Nunca poderia ter visto <strong>Kid</strong> se transformar no<br />

que ele é agora. Agora entendo que nunca poderei odiá-la de tudo, porque me deu<br />

o maior presente do mundo: me deu minha família.<br />

—Mamãe. —Suspiro, minha beligerância esgotada. —Acho melhor você ir<br />

embora. Não quero continuar fazendo isso com você. Acho que você deve ir<br />

embora e não voltar nunca mais.<br />

—<strong>Bear</strong> —Responde ela, estremecendo-se. —Não posso deixar você aqui<br />

desse modo. Não agora que sei que você precisa de sua mãe mais que nunca. —<br />

Balança a cabeça. —Tenho que estar aqui para você.<br />

—Não preciso de você. —Com toda delicadeza que sou capaz. —Já faz<br />

muito tempo que não preciso mais de você. Você diz que veio para ver como<br />

estávamos eu e <strong>Kid</strong>. Já tem a sua resposta. Você viu com os seus próprios olhos e<br />

pode voltar de onde você veio, sabendo que os dois estão bem. E sempre<br />

estaremos.<br />

Dá a impressão que estenderá os braços e me segurará pelos ombros, e por<br />

um momento, creio que o permitirei. Creio que lhe retribuirei o abraço. Creio que<br />

será o último contato que seguramente terei com ela. Se Ty quiser tentar encontrála<br />

algum dia, é com ele. Esta será a última vez que verei a minha mãe, e por mais<br />

triste que pareça, será o melhor. Sairei daqui e irei para casa de <strong>Otter</strong>, deixarei que<br />

meus garotos me envolvam em seus braços e talvez chorarei um pouco, mas,<br />

maldição, creio que ganhei. Creed estará ali, seguramente já informado dos<br />

acontecimentos da família McKenna, e olharei em seus olhos e confessarei a ele que<br />

estou apaixonado por seu irmão. Ele olhará para mim com estranheza por um<br />

momento e se voltará para <strong>Otter</strong>, que sei que exibirá seu sorriso torto, depois<br />

olhará novamente para mim e um sorriso lhe dividirá o rosto. Começará a rir,<br />

sacudirá a cabeça e me repreenderá por não ter contado antes. Ty lhe explicará que<br />

é por isso que não pode seguir dizendo «marica», e Creed se aproximará dele e<br />

abraçará <strong>Kid</strong> até quebrar suas costas, e então nos acomodaremos todos na sala e<br />

passaremos o resto da noite conversando. Ty acabará dormindo no sofá entre nós,<br />

e <strong>Otter</strong> olhará para mim com os olhos sonolentos e me estenderá a mão. Eu a<br />

segurarei, ele me conduzirá ao seu quarto, Creed vai rir baixinho e nos advertirá<br />

que será melhor que não ouça nada obsceno, nós iremos rir de seu comentário e<br />

<strong>Otter</strong> fechará a porta nas minhas costas.<br />

As luzes se apagarão, mas o amanhecer cinzento que só pode se encontrar


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na costa de Oregon filtrará tenuemente através da janela. Haverá sombras nas<br />

paredes que brincarão e dançarão sobre a pele de <strong>Otter</strong>, enquanto devagar tiro sua<br />

camiseta pela cabeça. A gola se enganchará em seu nariz, seus olhos ficarão ocultos<br />

e os braços estendidos por cima de sua cabeça, eu me inclinarei e o beijarei com<br />

delicadeza. Notarei que sorri contra minha boca e terminarei de lhe tirar a<br />

camiseta. Me tomará em seus braços, com os músculos flexionados, quentes e<br />

duros contra meu corpo. O resto de nossa roupa desaparecerá, e quando entre em<br />

mim sei, eu sei que o oceano voltará e evaporar-se, as nuvens se afastarão e haverá<br />

estrelas fugazes no céu, e eu gritarei contra ele, e ele vai gemer algo<br />

suspeitosamente parecido a «Amo você», e saberei que é verdade. O tapa de pele<br />

contra pele ressoará dentro de minha cabeça, e me sentirei arrastado até um limite<br />

no qual nunca estive antes e, então, nós dois saltaremos e estaremos voando. Mais<br />

tarde brincará com meus cabelos e eu dormirei no meu lugar sobre seu ombro,<br />

ouvindo-o dizer: «A luta por você é tudo o que eu sei fazer» e, quando sonhar, será<br />

com ele, porque ela o me deu de presente. Ela me deu a oportunidade de encontrálo,<br />

e por isso nunca poderei odiá-la totalmente.<br />

Sorrio para minha mãe e começo a levantar os braços.<br />

—Eu vou levar Ty. —Declara.<br />

—Você vai… o quê? —Digo, seguro de tê-la entendido mal.<br />

—Tyson, <strong>Bear</strong>. —Diz. —Eu vou levar Tyson. Me dou conta de que não<br />

voltará a ser como era, como deveria ser, então não tenho escolha.<br />

—Você não pode. —Sussurro.<br />

Ela me observa serenamente.<br />

—Posso e o farei. —Afirma com frieza. —Sou a mãe dele, só tem oito anos e<br />

me pertence.<br />

—Ele tem nove, sua cadela estúpida. —Respondo. —E você jamais o levará<br />

daqui. Esta é a sua casa, e <strong>Otter</strong> e eu somos a sua família.<br />

—Tente me impedir. —Diz, e enfia o dedo em meu peito. —Já lhe disse,<br />

<strong>Bear</strong>. Em quem as pessoas acreditarão? Em quem confiarão? Eu sou a mãe dele e<br />

você… você é uma desonra. Nem mesmo sabe cuidar de si mesmo, muito menos<br />

de uma criança.<br />

—Eu fiz suficientemente bem durante os últimos três anos. — Digo<br />

ofegante, ouvindo o sangue pulsar em meus ouvidos. —Ou já se esqueceu? Já se<br />

esqueceu que foi uma covarde e largou tudo para trás? Não acha que as pessoas<br />

farão perguntas sobre vocês?<br />

Dá de ombros, e a sensação de bater nela surge novamente.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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—Que perguntem o que quiserem, <strong>Bear</strong>. Direi que estava doente e tive que<br />

partir. Ou que tive que partir para ir trabalhar e deixei você cuidando dele. Ou um<br />

monte de coisas que eu possa pensar. Não deixarei que você crie meu filho. É<br />

demasiado tarde para que eu salve você, mas isso não ocorrerá com Tyson.<br />

—Você nunca faria isso. —Digo, incrédulo. — Não pode ser tão impiedosa<br />

para fazer isso. Se você o leva daqui, acabará com ele, e juro sobre tudo o que<br />

tenho que estou disposto a morrer antes que deixe que o faça.<br />

Ela sorri para mim, mostrando uns dentes amarelos.<br />

—A longo prazo, eu o estaria ajudando. Se dará conta com o tempo. No<br />

início me odiará, mas um dia entenderá porque fiz o que fiz. Tyson descobrirá que<br />

tudo aquilo no qual você se converteu o teria levado pelo mesmo caminho. Ele me<br />

agradecerá e me amará, porque sou sua mãe.<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Não deixarei fazer isso.<br />

—Não tem escolha, <strong>Bear</strong>. —Responde. —Deveria ter pensado nisso antes de<br />

cair na sarjeta. Você poderia ter impedido que isso ocorresse. De certo modo, tudo<br />

isso é culpa sua.<br />

—Não. —Digo, não querendo acreditar nela.<br />

Ela não está certa. Não pode estar certa. A tempestade ruge com força sobre<br />

minha cabeça, e parece que ouço a voz dentro de minha mente, mas não consigo<br />

entender o que diz e logo se esfuma, desaparece arrastada pelo vento.<br />

—Sim. —Diz ela. —Sim, e agora, se não se importa, ligue para <strong>Otter</strong> e diga<br />

para trazer Tyson aqui. Se não o fizer, chamarei a polícia, e que sejam eles quem<br />

decidam.<br />

—Contarei a eles tudo o que você fez. —Ameacei energicamente. —Não vai<br />

se safar dessa. Você me deu um poder legal assinado pela tutela de Tyson.<br />

Olha para mim arqueando uma sobrancelha, esticando seu rosto, e por um<br />

momento parece uns anos mais jovem e vejo a minha mãe nessa mulher plantada<br />

frente a mim. Estou a ponto de ceder, mas eu vejo que, independentemente de<br />

quem eu acho que ela é, ela está gostando de puxar o laço, prendendo-me até que<br />

eu começo a engasgar.<br />

—É mesmo? —Exclama. —No mínimo, a polícia vai chegar, você dirá o que<br />

tem que dizer e eu direi o que tenho que dizer e o que você acha vai acontecer<br />

então? A única coisa que você tem é uma procuração ilegalmente autenticada<br />

mediante registro em cartório que entrou em vigor antes que completasse dezoito<br />

anos. Você acha que eles o deixarão ficar aqui, <strong>Bear</strong>? Olharão para você e verão que


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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não é nada mais que um garoto e que pecou contra Deus, e todos saberão em que<br />

se converteu. E pode dizer o quiser de mim. Talvez lhe deixem vir comigo ou<br />

talvez não. Se não deixarem, <strong>Bear</strong>, o levarão daqui e o colocarão em algum lugar<br />

até que tudo esteja resolvido. Como acha que Tyson ficará em uma casa de<br />

acolhida? Você acha que o instalarão com uma família que o ama? Uma família<br />

cuja bússola moral não gira sem controle? O tirarão de nós dois, mas poderei<br />

suportar. Pelo menos não estará aqui. Pelo menos não estará aqui contigo.<br />

Meus olhos estão arregalados e minha boca seca, e não me ocorre nenhuma<br />

só palavra que dizer a ela. «É isso que ocorrerá?» —Penso. —«Realmente vão tirá-lo de<br />

mim? Ela não pode ter razão nisso! Só está dizendo isso para me assustar! Ninguém, nem<br />

sequer ela, é tão cruel. Sabe o que isso faria a <strong>Kid</strong>. De alguma maneira ela sabe disso, e eu<br />

serei amaldiçoado se eu deixar isso acontecer.»<br />

—Você não pode fazer isso. —Repito.<br />

Sorri novamente e acaba de apertar o laço.<br />

—Posso e o farei. Mas… —Faz uma pausa, como meditando. —Talvez não<br />

tenha que chegar a isso.<br />

— O quê? —Pergunto, confundido.<br />

«Cuidado, <strong>Bear</strong>!» —Ouço gritar a voz. —«Oh, Deus, não faça isso…»<br />

—Se você e eu pudermos chegar a um acordo, talvez eu reconsidere. —Diz,<br />

voltando a andar diante de mim.<br />

Observo claramente que suas lágrimas secaram totalmente, e penso que<br />

tudo isso não foi mais que um jogo. Penso que, de alguma maneira, ela o planejou<br />

até o último detalhe. Que, de alguma maneira, sempre soube sobre nós.<br />

—Quê acordo? —Pergunto devidamente.<br />

Se detém frente a mim.<br />

—Se deixo Ty aqui com você tem que prometer fazer algo por mim. Se fizer<br />

essa pequena coisa, prometo sair do caminho. Prometo partir de Seafare, e não terá<br />

que me ver nunca mais.<br />

—O que seria isso?<br />

—Termine com <strong>Otter</strong>. —Responde com frieza. —Isto já durou bastante. Não<br />

permitirei que meu filho seja um marica. Nem permitirei que crie Tyson para que<br />

seja um marica. Você dirá a <strong>Otter</strong> que mudou de ideia e não quer vê-lo novamente.<br />

Diga que volte para San Diego.<br />

San Diego? Como sabia…?<br />

—Você não fala sério. —Sussurro.<br />

—Falo muito sério, <strong>Bear</strong> —Diz. —Sei mais do que você pensa, e não deixarei


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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que meus filhos me desonrem desse modo. Se fizer apenas isso para mim, pode<br />

ficar com Ty aqui e eu me manterei afastada. Mas... —acrescenta, cravando o dedo<br />

no meu peito outra vez. — Se eu for embora e souber de algo diferente, isso se<br />

acabará, e voltarei aqui tão rápido que sua cabeça dará voltas. Tirarão Ty de você e<br />

posso prometer que não voltará a vê-lo nunca mais.<br />

—Por que você faz isso? —Murmuro, notando as lágrimas brotando em<br />

meus olhos.<br />

Ela sacode a cabeça.<br />

—Você não escutou nem uma só palavra do que eu disse? Por Deus, <strong>Bear</strong>,<br />

parece que ainda tem cinco anos. Eu já te disse: nenhum filho meu é um marica.<br />

Nenhum filho meu será um marica. Não vou tolerar isso.<br />

Pisco para reprimir o ardor em meus olhos.<br />

—Você percebe... —Pergunto com voz fraca.— Que eu vou odiá-la para<br />

sempre por isso?<br />

Seus olhos se suavizam a as rugas ao redor de sua boca desaparecem, e por<br />

um momento, só por um momento, penso que tudo isso é um sonho, que voltamos<br />

no tempo e ela não foi embora, Ty não tinha nascido e eu tinha seis anos,<br />

esperando que minha mãe me dissesse algo doce, esperando que demonstrasse que<br />

me ama.<br />

—Eu posso viver com isso. —Diz, sorrindo. —Pelo menos saberei que salvei<br />

sua alma.<br />

—Ele lutará por mim. —Respondo, sabendo que é o último recurso. —<strong>Otter</strong><br />

saberá que algo está acontecendo, e lutará por mim.<br />

Assente com a cabeça.<br />

—Provavelmente. Pessoas como ele são sensíveis. Por isso, <strong>Bear</strong>, você tem<br />

que fazer com que ele acredite. Por isso tem que se assegurar de que ele não lutará<br />

por você.<br />

—Ele lutará por mim. —murmuro.<br />

—Que o faça, então. Você já sabe o que há em jogo.<br />

—Você não pode fazer isso.<br />

—Sou sua mãe, <strong>Bear</strong>. Posso fazer o que quiser.<br />

—Eu odeio você.<br />

—Você vai superar com o tempo.<br />

Abaixo a cabeça.<br />

—Não pode… —Digo, sabendo que realmente ela podia.<br />

—Quem é mais importante para você? —Pergunta amavelmente. —Quem


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

precisa mais de você?<br />

Levanto os olhos e olho para a mulher que me deu a vida, mas não me<br />

ensinou nada sobre ela.<br />

Ela não recuou dessa vez.<br />

— Temos um trato? —Pergunta.<br />

******<br />

Página279<br />

Bato na porta. Sinto a madeira sob minhas mãos, mas não posso ouvir o som<br />

que faz, porque finalmente se desatou a tempestade e o vento sopra em meus<br />

ouvidos cada vez que tento sair e tomar ar. Volto a abaixar a mão ao longo do meu<br />

corpo quando outra onda rompe sobre minha cabeça e me afunda. A água entra<br />

em meu nariz e sei que estou afogando. Quero chegar até à superfície, mas não<br />

posso. Está muito longe e requereria mais esforço do que meu corpo possui.<br />

A porta se abre, Creed aparece diante de mim, diz algo e seu rosto está<br />

contorcido. Suas palavras são silenciadas pelo estrondo da tempestade e o bater do<br />

oceano. Entro e murmuro algo; t<strong>amp</strong>ouco sei o que é. Ele tenta me agarrar pelo<br />

braço, mas eu me livro e subo devagar as escadas. Sei que quer me seguir, mas não<br />

faz. Chego até a porta de <strong>Otter</strong> e coloco minha mão sobre a maçaneta. A noto fria<br />

sob minha mão, o trovão retumba nas profundezas da minha cabeça e em meu<br />

coração e penso que se hoje haverá um momento para que eu me salve, será este. A<br />

única coisa que preciso é colocar minha cabeça para fora da água e tomar ar.<br />

Apenas uma vez será o suficiente. Tento subir e, então, uma voz dentro de minha<br />

mente repete o meu ponto de ruptura...<br />

«Quem é mais importante para você? Quem precisa mais de você?»<br />

… e não é a voz, senão a voz dela. Algo me segura pelo tornozelo e me<br />

afunda ainda mais até o fundo.<br />

Giro a maçaneta, o trinco destrava e a porta se abre. A luz do corredor<br />

infiltra no interior da habitação obscurecida e se derrama sobre a cama, onde <strong>Otter</strong><br />

e <strong>Kid</strong> estão deitados. <strong>Otter</strong> tem a cabeça de lado, inspira longa e profundamente e<br />

sei que está dormindo. <strong>Kid</strong> sobe e baixa com cada inalação por sua posição sobre o<br />

peito de <strong>Otter</strong>. O fundo marinho se move sob meus pés, e sei que não demorará em<br />

abrir-se e me tragar. Entro devagar no dormitório e sacudo <strong>Kid</strong> com suavidade.<br />

Seus olhos se abrem na mesma hora e olha ao redor do quarto com cansaço até<br />

pousar sobre mim. Seu sorriso é cauteloso, e sei que ele está testando a água para


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página280<br />

ver como estou. Reúno as forças que me sobram e lhe sorrio também, e deve ter<br />

bastado porque relaxa visivelmente. Levo um dedo aos meus lábios para indicar<br />

que fique em silêncio. Assente com a cabeça e se solta lentamente do abraço de<br />

<strong>Otter</strong>. Este se move um pouco em sonhos, uma mecha de cabelo cai sobre sua testa<br />

e isso parte meu coração. <strong>Kid</strong> se dirige até a porta e se volta para olhar para mim.<br />

O sigo e fecho a porta atrás de mim.<br />

Ty me dá a mão e descemos as escadas. No piso de baixo Creed aguarda<br />

com os braços cruzados, batendo o pé com impaciência. Nos vê e revira os olhos.<br />

— O quê diabos está acontecendo? —Rosna. —E sua mãe?<br />

Dou de ombros.<br />

—Que porra ela queria, <strong>Bear</strong>? Onde diabos ela está?<br />

—Creed, necessito que me faça um favor. —Digo.<br />

Minha voz soa baixa e rouca, como se não tivesse usado em anos.<br />

—O que quiser, <strong>Bear</strong>. Você já sabe disso.<br />

Agarro a mão de Ty com mais força.<br />

—Necessito que leve Ty para casa. Tenho que fazer uma coisa antes de ir.<br />

Noto que <strong>Kid</strong> arranca sua mão da minha, baixo o olhar até ele, ele vê algo<br />

em meus olhos e, assim, ele sabe. Arregala os olhos, seu lábio inferior treme e a<br />

acusação em seu olhar é quase impossível de suportar.<br />

—O que você fez? —sussurra. —Oh, <strong>Bear</strong>. O que você fez?<br />

—A única coisa que poderia fazer —Respondo, e uma lágrima escapa de seu<br />

olho.<br />

—Você me prometeu. —Diz com raiva. —Você me prometeu que nada<br />

mudaria.<br />

Creed nos olha de um para outro, desconcertado.<br />

—O quê? O que muda? O que diabos está acontecendo, <strong>Bear</strong>? O que você<br />

tem que fazer? Sua mãe já não está em sua casa, não é? Porque se estiver ali, juro<br />

por Deus que chutarei seu fodido traseiro…<br />

Sacudo a cabeça e o interrompo.<br />

—Ela se foi. Voltou para o lugar de onde veio. —Volto a olhar para Ty. —Vá<br />

com Creed, <strong>Kid</strong>. —Digo em voz baixa. —Ele cuidará de você até que eu chegue em<br />

casa.<br />

—O que você fez? —Grita, o que faz com que Creed recue de um salto. Eu<br />

nem sequer pisco. —Que diabos você fez, <strong>Bear</strong>?<br />

—Eu fiz o que devia, Ty —Respondo devidamente. —Eu fiz o que devia<br />

para manter você a salvo. Não espero que entenda isso.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página281<br />

Seus olhos começam a suplicar enquanto volta a agarrar minha mão.<br />

—Seja o que for, podemos resolver! —Implora. —Seja o que for que ela<br />

tenha feito, agora ela já se foi! Podemos consertar tudo novamente.<br />

Nego com a cabeça, e agora suas lágrimas fluem livremente.<br />

—Vá com Creed, <strong>Kid</strong>.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Diz uma voz do alto da escada.<br />

O terremoto começa. O noto sacudir meu corpo, e todas as bordas, todos os<br />

refúgios que eu construí se rompem e saem voando. Adagas perfuram meus olhos,<br />

me volto e vejo <strong>Otter</strong> de pé no final da escada, com os cabelos espetados em todas<br />

as direções, esfregando o último pedaço de sono de seus olhos. Me sorri, mas seu<br />

sorriso se desvanece pouco a pouco quando vê em mim o mesmo que viu em <strong>Kid</strong>.<br />

—<strong>Otter</strong>, algo não vai bem. —Anuncia <strong>Kid</strong> em voz alta. —Algo vai mal, e<br />

<strong>Bear</strong> me prometeu…<br />

—Creed. —Digo. —Por favor, leve Ty para casa. Chegarei logo.<br />

—Não! —Grita <strong>Kid</strong> quando Creed o levanta nos braços.—Não, Creed! Você<br />

não entende! Você tem que detê-lo! Tem que deter <strong>Bear</strong>!<br />

Creed olha para mim impotente. Lhe indico a porta, e <strong>Kid</strong> rompe em<br />

soluços.<br />

—Eu a odeio! —Grita. —Eu a odeio! Você não pode deixar que ela ganhe,<br />

<strong>Bear</strong>! Não pode deixá-la ganhar!<br />

Há mais, muito mais, mas é abafado quando Creed fecha a porta atrás deles.<br />

Ouço que <strong>Otter</strong> desce rapidamente as escadas. Olha através da janela até a entrada.<br />

Momentos depois, seu corpo se ilumina quando os faróis do carro de Creed se<br />

acendem. O ouço sair da garagem e logo se faz silêncio.<br />

—O que está acontecendo? —Pergunta <strong>Otter</strong> de repente, voltando-se para<br />

mim. —O que diabos foi tudo isso? O que aconteceu com sua mãe?<br />

Olho para ele que tem uma expressão dura, os olhos receosos. Me dói ainda<br />

mais que olhe para mim desse modo, mas sei que a situação não vai melhorar.<br />

Respiro fundo e abro a boca para falar, para dizer o que eu ensaiei<br />

apressadamente, mas minha garganta aperta. Fico embargado, noto a pressão de<br />

aço fundido contra meu estômago, é afiado e abrasador e creio que me rasgará. Me<br />

curvo para frente segurando meu estômago e ouço <strong>Otter</strong> correr até mim. Então me<br />

rodeia com seus braços e me acalenta, como sempre faz quando o mundo é<br />

demasiado ruidoso, quando as águas ameaçam crescer. Não sabe que eu já me<br />

afundei. Não sabe que já é demasiado tarde.<br />

—Está tudo bem, <strong>Bear</strong>. —Sussurra no meu ouvido. —Tudo ficará bem.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página282<br />

Estou aqui, e tudo ficará bem…<br />

—Não, não ficará bem. —Suspiro ofegante e me afasto dele à força.<br />

<strong>Otter</strong> tropeça para trás e mantém o equilíbrio justo antes de cair de bunda<br />

no chão. Não pretendia empurrá-lo tão forte, mas sinto que começa a resgatar-me<br />

das profundezas. Noto que começo a subir, e sei que se eu vier à tona será<br />

impossível fazer isto, será impossível executar essa farsa. Agora Ty depende de<br />

mim, mais que nunca, e não posso permitir que <strong>Otter</strong> me tire para tomar ar.<br />

—O que está acontecendo, <strong>Bear</strong>? —Insiste, com o olhar duro novamente. —<br />

O que aconteceu?<br />

—Não posso mais ficar com você. —Respondo, sabendo que não posso<br />

voltar atrás.<br />

Fecho os olhos com força e tento retomar minha respiração, tentando mantêla<br />

sob controle. Na escuridão, vejo a tempestade resplandecendo com intensidade<br />

sobre a superfície. Um relâmpago atravessa o céu, e se parece a uma estrela<br />

cadente. Ainda não cheguei tão longe para saber que é mentira.<br />

Ele bufa.<br />

—O quê? Que inferno, <strong>Bear</strong>. Essa foi uma boa tentativa, no entanto.<br />

—Eu não posso mais ficar com você. —Volto a dizer. —Não é o que eu sou.<br />

—O que foi que ela disse a você? —Ele me espeta.<br />

—Ela não me disse nada. —Respondo. —Isto não tem nada a ver com ela.<br />

—O inferno que não tem! —Rosna.<br />

Noto uma corrente de ar e acho que é o vento novamente, mas então sinto o<br />

alento de <strong>Otter</strong> em meu rosto e sei que está de pé de frente para mim. Não abro os<br />

olhos. Não posso.<br />

—O que ela fez, <strong>Bear</strong>? Só se passaram algumas horas! Que porra ela fez a<br />

você?<br />

—Por favor, <strong>Otter</strong> —Sussurro.<br />

—Por favor o quê? —Diz irritado. —Deixo você sozinho com ela contra a<br />

minha vontade e agora você está aqui, diante de mim, sem sequer olhar em meus<br />

olhos, dizendo que não quer ficar comigo? É claro que farei perguntas. É claro que<br />

farei você explicar tudo. Você não escapará tão facilmente. Não ficará aqui<br />

soltando essas estúpidas idiotices!<br />

Abro os olhos de repente e, por primeira vez esta noite, estou com raiva<br />

dele. Irracionalmente, mas com raiva, no entanto. Não sei o que esperava que<br />

acontecesse, mas o modo o modo em que isso brota em meu interior me provoca<br />

náuseas. Quero atacar, bater, arranhar e morder e, por mais que tento dizer a mim


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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mesmo que ele tem todo o direito de atuar assim, todo o direito de exigir uma<br />

explicação que não seja uma mentira deslavada, não posso evitar. É como se todos<br />

os vasos sanguíneos estourassem atrás dos meus olhos, porque tudo o que vejo é<br />

vermelho.<br />

—Não são estúpidas! —Grito, com saliva saindo de meus lábios. —Por que<br />

você não entende, <strong>Otter</strong>? Já não posso fazer isso contigo! Não é quem sou!<br />

Não se move, não se mexe quando minha voz se eleva; é como se tivesse se<br />

convertido em pedra.<br />

— O que diabos você quer dizer que não é quem você é? —Rosna. —Com<br />

quem pensa que está falando, <strong>Bear</strong>? Conheço você melhor do que ninguém no<br />

mundo. Sei quando está mentindo.<br />

—Somente estávamos nos enganando, <strong>Otter</strong>. —Digo, com toda a frieza de<br />

que sou capaz. Então, algo dentro de mim se move e cai no abismo que se abriu em<br />

minhas entranhas, e não creio que volte a recuperá-lo nunca.— Isto... isto que<br />

estava havendo entre nós, não estava bem. Foi um erro.<br />

«OTTER! » —Brama repentinamente a voz dentro de mim. —«OTTER! NÃO<br />

LHE DÊ OUVIDOS! É UM FARSANTE! OH, OTTER! ESCUTE-ME, POR FAVOR!<br />

ELE ESTÁ MENTINDO…»<br />

Cessa quando a envio para esse lugar secreto dentro de mim.<br />

—Um erro? —Diz <strong>Otter</strong> com incredulidade. —Como pode ter sido um erro?<br />

Como pode se colocar diante de mim e dizer isso? O que ela fez a você, <strong>Bear</strong>? O<br />

que ela impôs a você?<br />

—Nada! Ela se foi, <strong>Otter</strong>! Por que diabos eu teria que fazer isso se ela foi<br />

embora?<br />

—Muito bem. —Diz, se afastando de mim. —Muito bem. Vamos.<br />

—Vamos? Aonde vamos?<br />

Começa a subir as escadas.<br />

—Vou me trocar e iremos para sua casa. Iremos ali para que eu possa<br />

comprovar que ela foi embora realmente. E então ligaremos para todos os hotéis de<br />

Seafare para me certificar de que não está hospedada por aqui perto. Você está<br />

mentindo para mim, <strong>Bear</strong>, e juro por Deus que vou verificar por que.<br />

O sigo.<br />

—Não iremos para nenhum lugar! —Grito às suas costas. —Por que não<br />

pode entender isso?<br />

—Porque o <strong>Bear</strong> que conheço nunca faria isso. O <strong>Bear</strong> que conheço nunca<br />

romperia algo assim. Comigo.


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—Então é evidente que não me conhece tão bem como pensa. —Respondo<br />

com a testa franzida.<br />

Sinto que minhas entranhas se derretem. Levanto um braço para tentar<br />

detê-lo. Minha mão segura seu braço e estou pensando na seguinte frase que<br />

poderia dizer a ele, como feri-lo ali aonde mais dói. Eu a odeio e a odiarei pelo<br />

resto da minha vida. Noto que seu braço fica tenso, mas não tenho tempo de me<br />

preparar, ainda que saiba o que viria. Me pergunto se teria podido pará-lo mesmo<br />

se eu quisesse.<br />

—<strong>Bear</strong>. —O ouço dizer.<br />

Sua voz é tingida por algo que não consigo definir. Então se vira, libera o<br />

braço de minha mão e ao fazê-lo me golpeia no peito sem querer. Tento evitar cair<br />

para trás, mas a gravidade é um fenômeno curioso. Nunca funciona quando pensa<br />

nela. Tento alcançar a grade. Tento alcançar a ele, e vejo que arregala os olhos ao<br />

mesmo tempo em que estica os braços, mas quando chegam ao lugar que eu estou,<br />

já tinha caído para trás. Levo esse tempo, enquanto estou suspenso em queda livre,<br />

para pensar nessa situação fodida, e logo eu tento me encolher, mas minhas costas<br />

golpeiam um dos degraus, meus braços se atiram em uma direção, minhas pernas<br />

em outra, minha respiração se interrompe enquanto rodo escada abaixo. «O<br />

tapete!» —Penso, histericamente. —«Graças a Deus pelo tapete!» E tudo se acabou<br />

antes que eu tenha tempo para entender o que fiz. Fico estendido de costas,<br />

olhando para o teto e me perguntando como pude chegar a isso.<br />

—<strong>Bear</strong>? —O ouço sussurrar.<br />

Meus olhos o encontram, ainda de pé no alto da escada, e o vejo tremer de<br />

terror. Meu corpo passa por uma checagem preliminar, tentando localizar as<br />

partes doloridas, tentando fechar as escotilhas contra as inevitáveis ondas de dor<br />

caso algo tenha quebrado.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Repete.<br />

—Oh, Deus —Murmuro.<br />

Ouvir minhas palavras parece ter feito mais efeito sobre <strong>Otter</strong> que qualquer<br />

outra coisa. Em um abrir e fechar de olhos ele desce as escadas e está ao meu lado,<br />

e me permito admirar a rapidez com que se move. Se ajoelha e estende as mãos,<br />

mas se detém justo antes de tocar-me. É quase como se tivesse medo de fazê-lo ,<br />

como fazê-lo, como se eu fosse me desintegrar sob seu toque.<br />

—Meu Deus, <strong>Bear</strong> —Geme. —Santo Deus, você está bem?<br />

A verificação do diagnóstico está feita, e estou quase certo de que as únicas<br />

coisas que estão quebradas dentro de mim são meu coração e minha alma. O corpo


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página285<br />

parece estar bem, ou pelo menos, tão bem quanto pode estar um corpo depois de<br />

dizer à única pessoa que amou de verdade, que tudo se acabou e depois cair de um<br />

lance de escadas. Isto me parece engraçado, de uma forma doentia e retorcida, mas<br />

o riso trava em minha garganta e tomo uma respiração bruscamente.<br />

—Eu não… não queria… —Diz <strong>Otter</strong>, com os olhos muito abertos e<br />

brilhantes.<br />

—Eu sei. —Murmuro. Eu sei realmente? Quero acreditar que sim.<br />

Por fim, ele coloca suas mãos em mim e me apalpa de cima a baixo,<br />

tentando localizar algum osso quebrado, alguma ferida sangrando. Fecho os olhos<br />

por um momento, para meu pesar, e desfruto do contato de suas mãos sobre mim<br />

através da leve dor, que já começou a mostrar sua cara feia. A mão de <strong>Otter</strong> chega<br />

até minha coxa e a toca suavemente, e sem querer me inclino sobre ele, incapaz de<br />

evitar. Sei que ele se dá conta disso, porque contém a respiração e sua mão me<br />

segura com mais força. Uma corrente elétrica flui das pontas de seus dedos e não<br />

posso evitar gemer. Ele ouve e, de repente, suas mãos estão por todo o meu corpo,<br />

noto a pressão de seus lábios contra os meus, sua boca quente e áspera, enquanto<br />

sua língua penetra entre meus lábios. Levanto as mãos para envolver seu pescoço e<br />

puxá-lo sobre mim, quando volto a ouvi-la me advertindo, quando ouço sua<br />

detestável voz dentro de minha cabeça, e é como se estivesse ao meu lado e quero<br />

gritar, mas sei que isso não a afastará da minha mente, não a afugentará, e...<br />

«quem é mais importante para você?»<br />

… soa forte, retumba por todo o meu ser, e deixo de segurar sua cabeça. Me<br />

impeço de empurrá-lo para tão dentro de mim que não possa sair nunca, porque…<br />

«posso garantir a você que não voltará a vê-lo nunca mais.»<br />

… se não o faço, não poderei acabar com isso, não poderei ser quem Tyson<br />

necessita que eu seja, e por isso está aí, a pergunta que invade minha cabeça e<br />

sussurra com tanta força…<br />

«quem precisa mais de você?»<br />

… uma e outra vez e coloco minhas mãos sobre seu peito e o afasto com um<br />

empurrão. Oh, sim, como o afasto.<br />

—Não. —Digo. —Não, <strong>Otter</strong>.<br />

Ele cai para trás sentado, e eu luto para ficar longe dele. Agora dói meu<br />

corpo ao me mover, e sei que amanhã estarei uma merda. Tenho que reprimir um<br />

grito quando piso com força sobre o tornozelo direito e sinto uma pontada de dor,<br />

vítrea e reluzente. Não acho que está quebrado, mas com certeza tem uma forte<br />

torção, e me afasto dele, mancando, consciente do ridículo que devo parecer, do


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ridículo que deve ser toda essa situação. Tenho que sair daqui. Devo partir antes<br />

que ocorra algo mais para me arrepender. Nada pode impedir de ir agora.<br />

—Por que, <strong>Bear</strong>? —Diz ele, com a voz embargada e triste.<br />

Nada, eu acho, exceto isso. Eu paro. E me volto.<br />

—Por que? —Repete quando não me atrevo a olhar para ele.<br />

—<strong>Otter</strong>. —Suspiro profundamente. —Eu já… disse a você.<br />

Uma lágrima consegue escapar do meu rosto, e a enxugo rapidamente antes<br />

que a sigam outras.<br />

—Não acredito em você.<br />

—Então, não sei mais o que dizer.<br />

—Diga a verdade.<br />

—Esta é a verdade, <strong>Otter</strong>.<br />

Minha voz treme, e me esforço por dominá-la.<br />

—Não, não é. Há duas horas você me amava. Há duas horas achava que<br />

faria qualquer coisa por mim, porque sabia que eu faria qualquer coisa por você.<br />

—Amo você, <strong>Otter</strong>. Mas não do modo que você deseja.<br />

Eu nunca me perdoarei por isso.<br />

—T<strong>amp</strong>ouco acredito nisso. De fato, não acreditei em nenhuma só palavra<br />

do que disse desde que chegou aqui essa noite.<br />

—O que mais você quer que eu diga? —Pergunto.<br />

«quem precisa mais de você?»<br />

—Quero a verdade, <strong>Bear</strong>. Acho que, pelo menos, eu mereço isso. Acho que<br />

depois de tudo o que nós passamos, de tudo o que eu fiz para recuperá-lo, eu<br />

ganhei esse direito.<br />

—Volte para casa, <strong>Otter</strong>. —Digo, querendo me deter, mas incapaz de fazê-lo<br />

quando imagino a Ty sendo levado para longe de mim, sendo tirado de mim.<br />

—O quê?<br />

—Volte para San Diego. Volte para casa e viva a sua vida.<br />

Minhas palavras me fazem estremecer, sabendo que me assombrarão<br />

durante o resto da minha vida, sabendo que este momento ficará para sempre<br />

gravado em minha memória.<br />

—Você é um covarde.<br />

—Eu sei. —Sussurro, quase sem querer.<br />

—Então, por que? —Pergunta.<br />

O ouço ficar de pé. Olho para ele e vejo que dá um passo vacilante para<br />

mim, e logo outro, e outro. Tem os olhos duros e úmidos, e nunca olhou para mim


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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dessa maneira, nem sequer quando esteve com mais raiva. Está ferido e magoado,<br />

e fui eu que causei isto. Eu fiz isso acontecer, mas sei que não posso fazer nada<br />

para apagá-lo, para consertar. Esta noite eu o feri, está sangrando diante de meus<br />

próprios olhos e sou o que ele disse: um covarde.<br />

—<strong>Otter</strong>, me deixe ir. —Murmuro. —Me deixe sair daqui. Já não posso<br />

suportar mais. Não posso fazer mais isso…<br />

—Eu lutei por você. —Diz, sua voz refletindo a expressão de seus olhos, e<br />

dá outro passo. —Toda minha vida eu lutei por você.<br />

—Eu sei.<br />

Faço uma careta, meu estômago se contrai de novo e começa a doer minha<br />

cabeça.<br />

—A luta por você é tudo o que eu sempre…<br />

—Não diga isso. —O interrompo. —Não diga isso para mim.<br />

Outro passo.<br />

—Eu vou dizer o que eu quiser. —Rosna. —Amo você, sempre amei, e<br />

lutarei por você. Pode dizer o que quiser, mas voltarei a lutar por você.<br />

Outro passo.<br />

—Não. —Digo, buscando a última gota de determinação que me resta.<br />

Outro passo.<br />

—Sim. —Diz ele.<br />

O oceano começa a baixar, os trovões se afastam e estou perdendo o<br />

controle, mas quase não me importa. Quero que ele me salve. Quero que me<br />

impeça de afogar, e tenho tempo para pensar que talvez isso dará certo, que talvez<br />

seja melhor que estejamos juntos, porque juntos podemos enfrentá-la, juntos<br />

podemos conseguir que tudo aquilo que ela ameaçou não chegue a acontecer. Um<br />

raio de sol penetra nas nuvens e sinto que começo a sentir calor quando <strong>Otter</strong> dá<br />

outro passo, e posso ver que seus olhos se suavizam apenas um pouco e, nesse<br />

momento, sei que o necessito mais do que nunca necessitei a alguém. Dá o último<br />

passo, se coloca frente a mim, olho o brilho verde-ouro e penso que tudo poderia<br />

dar certo, que poderíamos conseguir, que podemos criar nossa vida nesse lugar no<br />

mundo e ninguém voltará a nos incomodar, e envelhecerei com ele e sei que é<br />

possível. Sei que é perfeitamente lógico. Sei que é inevitável, e quem sou eu para<br />

negá-lo, quem diabos sou para impedi-lo? Mas, precisamente isso é o que faz com<br />

que doa muito mais.<br />

E é por isso que sei que não posso correr o risco.<br />

Dou um passo para trás, e mergulho fundo nas profundezas, sentindo-me


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

engasgar com a água salgada e amarga, quando ela queima até o fundo da minha<br />

garganta. Noto o fundo escuro, minhas mãos se fundem em seu lodo e vejo se<br />

enterrar meu último grama de determinação, a última parte de mim que pode<br />

olhar o brilho verde-ouro como se não significasse nada, como se não me houvesse<br />

mudado para sempre, como se não tivesse me afetado profundamente uma e outra<br />

vez. Mas isso é o que tem o oceano: sempre estará ali, faça o que fizer. —Esta coisa.<br />

—Digo em voz baixa— Esta obsessão que você tem por mim tem que acabar.<br />

Ele pisca como se eu tivesse levantado um punho diante de seus olhos, e sei<br />

que desta vez o atingi, e me afeta, mas não tenho outra escolha a não ser fazê-lo. Se<br />

ele admite isso para si mesmo ou não, ele tem obsessão por mim, a ponto de cegálo<br />

para quase tudo mais. Uma parte de mim se entranhou nele, tornando quase<br />

impossível para ele se concentrar em sua própria vida. Eu sei disso, porque ele fez<br />

o mesmo comigo.<br />

O zumbido em meus ouvidos se intensifica, e eu não posso deixar de notar<br />

que se parece muito a escutar as ondas dentro de uma concha.<br />

—Eu não acredito em você. —Diz, rompendo o barulho, mesmo que só por<br />

um momento. —Você não vai escapar disso. Você não pode.<br />

Sei que ele tem razão e é, então, quando dou a volta e saio pela porta,<br />

notando como a bílis de água salgada sobe por minha garganta até alcançar a<br />

cabeça.<br />

<strong>Otter</strong> não me segue.<br />

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12<br />

Quando <strong>Bear</strong> fica à deriva no oceano<br />

Página289<br />

Não me lembro do trajeto de carro até em casa.<br />

Sempre ouvi as pessoas dizerem isso, e sempre pensei que parecia ridículo.<br />

Como pode não se lembrar de ter dirigido até sua casa? Tem que acelerar, parar,<br />

voltar-se em uma direção ou em outra. Há carros circulando ao seu lado, à sua<br />

frente, e ainda assim, pode não conseguir se lembrar do trajeto em si, até que de<br />

repente se encontra sentado no estacionamento do seu prédio de merda, agarrado<br />

ao volante com tanta força que pensa que seus dedos se partirão, não se<br />

importando com o buraco negro que se abriu em seu estômago, meditando por<br />

que acaba de cometer o maior erro de sua vida, mas sabendo que se deve ao fato<br />

de que agora você é um pai, e os pais têm que tomar as decisões mais difíceis,<br />

decisões que ninguém mais pode tomar, ainda que seja apenas para proteger<br />

àqueles que foram confiados a você. Como pode não se lembrar?<br />

Finalmente eu clareio a minha cabeça (me desperto? Recobro a consciência?)<br />

e me dou conta de que levo algum tempo no estacionamento. O nevoeiro de fora se<br />

infiltrou dentro do carro, e tenho as mãos geladas e o pescoço duro. Quando abro a<br />

porta, olho a escada que conduz até o umbral onde um garoto está me esperando<br />

com dor em seus olhos e veneno em suas veias. Um pé precede o outro e, de<br />

alguma maneira, consigo subir os degraus.<br />

Assim que introduzo a chave na fechadura a porta se abre de um golpe só.<br />

Creed olha para mim fixamente, com <strong>Kid</strong> enrolado em seus braços. Tento ignorar o<br />

tremor de seus ombros.<br />

—Que diabos está acontecendo? —Solta Creed.<br />

Estou exausto e o cérebro em piloto automático. Passo devagar junto a<br />

Creed e fecho a porta atrás de mim. Se fecha com um chiado, e não quero que volte<br />

a abrir nunca mais. Eu acho uma boa ideia ficar aqui para sempre, enrolado feito<br />

um novelo em um canto, deixando-me acariciar pela suave corrente. Flutuar<br />

sempre é melhor que machucar alguém.<br />

—Juro por Deus, <strong>Bear</strong>, que se não me diz o que está acontecendo, eu… —<br />

Começa Creed outra vez.<br />

—Você o quê? —Respondo com voz baixa. —O que fará?<br />

Isto o detém, ele aperta seus olhos.


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Página290<br />

—O que ela fez a você? Por que diabos ela voltou?<br />

—Não quero falar disso.<br />

—Azar o seu! —Exclama. —<strong>Otter</strong> traz <strong>Kid</strong> para casa, os dois estão furiosos,<br />

e a única coisa que me dizem é que sua mãe está contigo e que tenta fazer as pazes<br />

ou algo assim.<br />

Riu, mas sem nenhum humor.<br />

—Ou algo assim. —Concordo.<br />

Seus olhos suavizam e, por um momento me sobressalto ao ver o brilho<br />

verde-ouro no qual não havia me fixado nunca. É um pouco mais apagado que o<br />

de <strong>Otter</strong>, mas está aí. Afasto o olhar.<br />

—<strong>Bear</strong>, o que ela fez a você?<br />

—Você quer me ajudar de verdade?<br />

Assente com a cabeça.<br />

—Então preciso que você me faça um favor.<br />

—Eu já disse. Qualquer coisa.<br />

—Vá para a casa. —Levanto uma mão antes que ele possa responder. — Vá<br />

para casa e nós deixe sozinhos por enquanto. Eu sei que tudo o que você quer é<br />

ajudar. Eu entendo. E o amo por isso. Mas agora, preciso que você se afaste de<br />

mim.<br />

Não posso dizer que é porque se parece muito ao seu irmão e isto está me<br />

destroçando.<br />

Ele ainda parece prestes a protestar, mas vê algo em meus olhos ou ouve<br />

algo em minha voz e encolhe os ombros. Levanto os braços e ele me passa <strong>Kid</strong>.<br />

Sinto uma pontada de tristeza quando noto que meu irmão pequeno fica tenso ao<br />

efetuar a troca. Creio que resistirá, mas, em vez disso, me agarra pelo pescoço com<br />

um braço e enfia o rosto em meu peito. Sinto como treme. Deus. Dou a volta para<br />

seguir pelo corredor.<br />

—Você tem que me deixar ajudar. —Diz Creed com desespero na voz. Olho<br />

para trás, Ló e uma estátua de sal, no entanto, e parece quase tão perdido quanto<br />

eu. Acrescenta: —Lembro da última vez que isso aconteceu, o teimoso que você foi,<br />

quão forte você teve que ser. Lembro-me de você, <strong>Bear</strong>. Vocês dois não podem<br />

fazer isso sozinhos. Por favor.<br />

—Estamos sozinhos. —Respondo.<br />

Percorro o corredor, entro no banheiro e fecho a porta atrás de mim.<br />

Transcorre o tempo. Até que:<br />

Ele se estremece em meus braços.


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—Ela fez isso, não foi? —O ouço sussurrar.<br />

Não sei o que dizer.<br />

—Ela fez isso. Ela fez isso. Foi ela! Foi ela!<br />

A última frase sai como um grito, rompendo-se.<br />

Recupero a voz.<br />

—Sinto muito, <strong>Kid</strong>. Fiz o que devia para protegê-lo.<br />

Não sei se me ouve, pois ainda está repetindo como um mantra «ela fez isso,<br />

ela fez isso» em voz baixa, balançando em meus braços. Será que ele sempre foi tão<br />

pequeno?<br />

—Sinto muito. Mas tenho que velar por sua segurança. Tenho que me<br />

assegurar que ninguém afaste você de mim. Você entende? —Minhas palavras são<br />

suaves, porque sei que se as dissesse mais alto soariam falsas. —Fiz uma promessa<br />

para mim mesmo no dia em que ela se foi. Através de toda a raiva que sentia, de<br />

todo o medo que tinha e a culpa, eu fiz uma promessa. Sabe o que prometi, <strong>Kid</strong>?<br />

Segue balançando e dizendo: «Ela fez isso, ela fez isso.»<br />

Levanto as mãos e as coloco suavemente em seu rosto, acalmando seus<br />

movimentos. Seus olhos se fixam nos meus, e me pergunto o quanto pode<br />

aguentar uma criança, ainda que se trate de <strong>Kid</strong>, antes de desmoronar. Apoio<br />

minha testa contra a sua.<br />

—Sabe o que prometi? —Pergunto. Ele nega com a cabeça e uma gotinha de<br />

água cai de seus cílios.— Prometi a mim mesmo que independentemente do que<br />

acontecesse, independentemente para onde fôssemos, independentemente do que<br />

se interpusesse em nosso caminho, sempre seria o primeiro em minha vida.<br />

Ele geme baixinho.<br />

—Prometi que você iria para a escola, que sempre teria o que precisasse.<br />

Prometi que faria todo o possível para que você se orgulhasse de mim e para<br />

transformá-lo em alguém de quem eu sempre estivesse orgulhoso.<br />

—Mas…<br />

Sacudo a cabeça.<br />

—Quieto. —Beijo sua testa, e seus braços pequenos voltam a rodear meu<br />

pescoço. —Nunca quis que voltasse a passar pelo que ela nos fez. Pensei que seria<br />

o bastante forte pelo dois. Quis lhe dar o que eu nunca tive. E...<br />

E não posso continuar porque as palavras ficam presas na minha garganta.<br />

Suas mãos se apertam em minha nuca, me sinto invadido pela ira e o desespero e<br />

eu me agarro nele também.<br />

—Terremotos? —Sussurra em meu ouvido.—Papai <strong>Bear</strong>?


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Página292<br />

Concordo com a cabeça. Ninguém me conhece melhor que ele.<br />

Desce do meu colo, pega minha mão e a puxa. Me conduz até a banheira e<br />

entramos nela. Ele volta a acomodar-se em meu colo e as lágrimas começam a cair,<br />

e notamos que o mundo treme ao nosso redor, que o oceano sobe de nível a nossos<br />

pés. Finalmente nos deixamos arrastar pela corrente, para onde quer que nos leve.<br />

«Você fez isso.» —Sussurra a voz. A sinto subir devagar desde a escuridão e<br />

dar voltas detrás dos meus olhos, faíscas saltando na escuridão. —Quando volta<br />

sua vista para trás, quando as lembranças e os rostos dos afetados começam a se<br />

desvanecer, lembro: «Você fez isso. Pelo menos você sempre vai ter isso, certo? Não é<br />

verdade, <strong>Bear</strong>? Oh, <strong>Bear</strong>. Você fez isso.»<br />

Em alguma parte soa o telefone.<br />

Há um momento de claridade enganosa, esses valiosos segundos entre<br />

despertar e estar acordado em que tudo está bem, porque tudo esta limpo. O<br />

mundo tem sentido porque não é um lugar de dor e raiva. É só pura loucura,<br />

perfeitamente imperfeita. Então a lógica se impõe, os neurônios disparam, os<br />

músculos se movem, o coração se faz notar à medida que os vasos sanguíneos se<br />

contraem e relaxam, é que me recordo de tudo. Tenho os olhos pegajosos inchados.<br />

Minha garganta parece como se estivesse engolido pólvora, minha cabeça é vítima<br />

de uma ressaca provocada por um álcool que não bebi. Obrigo a meus olhos se<br />

abrirem.<br />

Ainda estou na banheira. Sozinho.<br />

O telefone soa outra vez, e bato minha cabeça contra a saboneteira da<br />

parede quando tento me mover para tirá-lo do bolso.<br />

Me acovardo, e meu dedo se dobra dolorosamente quando se engancha no<br />

tecido da calça. Meu tornozelo arde. Amaldiçoou, arranco o telefone do bolso e os<br />

números um e zeros da tela anunciam: «Anna. Anna. Anna.» Aperto a tecla de<br />

ignorar. É muito melhor poder apertar a tecla de ignorar que ignorar um telefone<br />

tocando.<br />

—Tyson? —Minha voz soa fraca.<br />

O banheiro está na penumbra, a porta entreaberta e a luz do sol se filtra pela<br />

fenda aberta, iluminando uma escova de dentes. Me levanto lentamente e não<br />

demoro a descobrir porque as pessoas não passam a noite dormindo sobre a<br />

porcelana. Abro a porta do banheiro e entrecerro os olhos contra a luz. Parece que<br />

é pela manhã.<br />

—<strong>Kid</strong>? —Digo, desta vez um pouco mais alto.<br />

Não há resposta.


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Página293<br />

Ignoro o pulsar acelerado do meu coração, saltando aqui e ali. Percorro o<br />

corredor até nosso dormitório. Deserto. O dela também. Olho na cozinha. Na sala.<br />

Na varanda. Olho dentro dos armários. Debaixo da mesa, em cima da mesa.<br />

—Tyson?<br />

Meu celular volta a tocar. Anna.<br />

Corro para porta de entrada e a abro. Saio para o ar frio da manhã e olho<br />

desesperado ao meu redor. Alguém ri. Passa um caminhão. Há uma televisão<br />

ligada por perto. Uma sirene. Um cão latindo. Um espirro e uma buzina. Esta<br />

manhã parece normal. É mentira. Bato na porta vizinha a minha. Nada. Volto a<br />

bater.<br />

Se abre um pouco e o olho da senhora Paquinn olha para fora. Se dilata ao<br />

me ver, e a porta se abre completamente. Uma mão segura a gola do roupão.<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

—Ele está aqui? —Pergunto, aturdido. —Tyson está aqui com a senhora?<br />

<strong>Kid</strong>! —Grito atrás dela.<br />

A mulher nega com a cabeça.<br />

—Não está aqui, <strong>Bear</strong>. Não o vi desde que o deixei contigo ontem à noite.<br />

—Se… foi? —Lhe digo ou lhe pergunto. Não sei exatamente o que faço. —<br />

Não consigo encontrar…<br />

Dá um passo para frente e me abraça, mas pego o caminho de maior<br />

resistência que fico paralisado entre seus braços. «Agora não é o momento de<br />

abraços»—Penso. — «Este não é o momento dos abraços.»<br />

—Não se preocupe, querido. Vamos encontrá-lo. Não pode ter ido muito<br />

longe.<br />

E dito isso, já não estou mais sozinho e caio para frente. Ela é pequena mas<br />

forte, muito mais forte do que parece. Me agarro a ela e me dá uns tapinhas na<br />

nuca. Cheira como deve cheirar uma idosa, flores empoeiradas e velhas balas de<br />

caramelo embrulhadas.<br />

Não posso evitar de me perguntar sobre esta mulher. Esta mulher pequena<br />

que presenciou da primeira fila o drama de seus vizinhos do lado, durante os<br />

últimos três anos. Esta mulher que aparentemente deixaria tudo se eu necessitasse<br />

que cuidasse de Tyson. As perguntas surgem por acaso em minha cabeça, e me<br />

envergonho de não conhecer as respostas. Quando morreu seu marido (Gerald?<br />

Jonathan?)? Por que não tem filhos? Por que faz o que faz por mim? O que diabos<br />

possui esta mulher para estar aqui de pé, na primeira hora da manhã, me<br />

abraçando enquanto me desfaço, enquanto o enquanto o cocktail químico que é o


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meu ser fica abalado e agitado? E, então, tudo isso desaparece num instante<br />

quando meu verdadeiro temor sai à superfície, algo que estive lutando desde que<br />

gritei pela primeira vez o nome do meu irmão mais novo.<br />

—E se ela o levou? —Solto um gemido.<br />

Me empurra para trás e segura o meu rosto em suas mãos, com os olhos<br />

acesos e a voz gélida de aço.<br />

—Então lutaremos como loucos para recuperá-lo. Custe o que custar.<br />

Meu celular volta a tocar. Anna. Merda, foda.<br />

A senhora Paquinn abaixa os braços quando atendo ao telefone.<br />

—Anna, agora não é o momento —Digo bruscamente. — Ty desa…<br />

—Ele está aqui comigo. —Me interrompe. —<strong>Bear</strong>, o que está acontecendo?<br />

Estava batendo em minha porta, e Creed disse que sua mãe esteve aí.<br />

—Que ele… quê?<br />

Olho impotente para a senhora Paquinn. Ela dá um passo e pega o celular<br />

da minha mão.<br />

—Anna? Sou a senhora Paquinn. Bem, querida, obrigada por perguntar. E<br />

Tyson? Sei. Sei. Não, não sei do que se trata. Não. Não. Contanto que ele esteja<br />

seguro. Sim. <strong>Bear</strong> ficará bem. Ele só teve um pequeno susto. Não, eu o levarei. Não<br />

creio que deva dirigir uma carro nesse momento. Muito bem. Adeus.<br />

Desliga o celular e o devolve para mim.<br />

—Está com Anna? —Deduzo brilhantemente.<br />

Assente com a cabeça.<br />

—Pelo visto apareceu esta manhã, batendo em sua porta. Está em sua casa,<br />

são e salvo. Agora feche a porta e eu o levarei até ele. —Estende o braço ao interior<br />

de seu apartamento e pega a chave do carro da mesa que há junto na entrada.<br />

Quando se volta, vê que eu não me movo. —Derrick, agora.<br />

Fecho a porta, ela me dá a mão e me conduz escada abaixo. Há muita luz lá<br />

fora. Tento recuperar a razão, tento recuperar o controle. «Está a salvo.» —Digo a<br />

mim mesmo. —«Não o levaram. Está a salvo.» Os maiores questionamentos inundam<br />

minha mente, como: por que para a casa de Anna e por que ela já estava inteirada<br />

do sucedido por Creed. Não posso respondê-los agora, então os afasto.<br />

—Podemos pegar meu carro. —Murmuro quando a senhora Paquinn me faz<br />

dobrar a esquina até o estacionamento.<br />

Suspira com delicadeza.<br />

—É muito amável, mas não penso em cair em sua armadilha mortal. Me<br />

preocupo cada vez que vejo você e Tyson subirem nisso para irem a algum lugar,


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porque sei que um dia vocês vão voltar para casa e ele vai pegar fogo.<br />

Ainda não acredito estar bem da cabeça, porque não consigo entender o que<br />

ela quer dizer.<br />

—Fogo?<br />

—Fogo. —Confirma. —Não, podemos pegar meu carro. Meu marido<br />

comprou para mim antes de morrer, que Deus o tenha em sua santa glória. Na<br />

realidade nunca tivemos coisas bonitas, não dessas que são importantes de<br />

verdade. Mas um dia veio para casa nesse lindo carro com um sorriso em seu rosto<br />

como nunca vi antes. Me disse que, independentemente de tudo o que aconteceu<br />

com ele, ele iria saber que ele teria que me conduzir por aí como uma princesa.<br />

—Mas, seu carro não é um pedaço de mer…?<br />

—Cale a boca, Derrick McKenna! Não é tão velho para não lavá-la com<br />

sabão.<br />

Seus olhos cintilaram em minha direção e vejo o sorriso que aparece por trás<br />

das rugas de seu rosto.<br />

—Sim, senhora.<br />

Viramos a última esquina e balança as chaves quando nos dirigimos até seu<br />

Cadillac do início dos anos 80. Tem uma linha ostensiva e uma cor difícil de<br />

decifrar. A senhora Paquinn se aproxima da porta do passageiro, a abre e espera<br />

que eu entre. Suspiro e tento recordar se alguma vez andei em um carro com ela<br />

para ir a alguma parte. Procuro esquecer todos os casos que ouvi de motoristas<br />

idosas invadindo um mercado lotado de gente. Me sento e uma fina nuvem de pó<br />

se levanta o redor de meu traseiro quando sento. Fecha a porta de um só golpe e<br />

rodeia a parte dianteira do veículo. Seus ombros são quase tão alto quanto o capô<br />

do Cadillac. Penso que talvez isso seja uma má ideia, mas sua ameaça de lavar<br />

minha boca com sabão, desfaz qualquer objeção que eu possa cogitar. Entra no<br />

carro e fico olhando para ela, porque sua cabeça mal ultrapassa o volante.<br />

Sorri para mim e arrasta o assento para frente, esmagando seu peito contra a<br />

buzina, que emite um som irritante. A senhora Paquinn ri baixinho, busca no<br />

suporte da porta e retira uns óculos de sol que cobrem todo o seu rosto. Ela parece<br />

um ator dos anos vinte com o rosto maquiado de negro 25 . O carro é ligado com um<br />

rugido e busco rapidamente meu cinto de segurança. Não há.<br />

—Essa coisa arrebentou faz anos. —Diz enquanto abotoa o seu cinto de<br />

25


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segurança. —Então o cortei e o retirei. Mas você pode estar certo de que sempre<br />

que Tyson está neste veículo, ele está sempre seguro no banco de trás.<br />

Quero passar para o assento de trás.<br />

Ela sorri de novo e pisa no acelerador.<br />

Minutos depois descubro que é como ser levado por uma mulher que<br />

acredita que o mundo se acabará se não pisa fundo no acelerador e que, pelo visto,<br />

não existe nenhuma - “Oh, meu Deus” - alavanca para me agarrar dentro de um<br />

Cadillac do início dos anos oitenta de cor merda.<br />

A senhora Paquinn olha para mim de soslaio e deve ter percebido a palidez<br />

de meu rosto, porque diz:<br />

—Oh, querido, tem que ficar calmo. Não te contei que participara de corrida<br />

de carro quanto era jovem?<br />

Noto que meus ombros se relaxam ligeiramente.<br />

—Não, acho que a senhora saltou essa parte… —Resmungo entre dentes.<br />

—Ah, bem. Porque nunca participei de corridas de carro e teria sido<br />

mentira.<br />

Tento me encolher no assento, pensando que, depois de todas as desgraças<br />

que me aconteceram nas últimas vinte e quatro horas, seria um final perfeito<br />

terminar espalhado por todo o para-brisa.<br />

Se volta para olhar para mim e estamos a ponto de atropelar uma simpática<br />

família de quatro membros.<br />

—Bem, tenho que fingir que não sou intrometida ou vai me contar o que<br />

aconteceu com Julie?<br />

Sacudo a cabeça e minhas mãos agarram as beiradas do assento.<br />

—Por que acha que ela veio? Para foder tudo como… oh, meu Deus,<br />

cuidado!, Como ela sempre faz.<br />

Termino a frase fracamente quando está a ponto de alcançar por trás de um<br />

carro parado. No entanto, ela desvia, se metendo entre o tráfego, e vira a seguinte<br />

esquina na mesma velocidade.<br />

—Isso eu já posso imaginar, <strong>Bear</strong>. Devo admitir que me custou muito deixar<br />

vocês a sós com ela. Pensei que não aconteceria nada porque esse Oliver estava<br />

com vocês. É ainda maior que meu Joseph, que Deus o tenha em sua santa glória.<br />

Ao ouvi-la mencionar esse nome, esqueço que estamos viajando a noventa<br />

quilômetros por hora por vias urbanas. A tristeza substitui o medo.<br />

—<strong>Bear</strong>, carinho. Eu disse algo ruim? Essa expressão em teu rosto está<br />

partindo meu coração.


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Nego com a cabeça.<br />

—Não teria nada a ver com o fato de que ontem á noite você estivesse<br />

aprisionado contra a parede diante da porta de minha casa comendo seu rosto, não<br />

é?<br />

Oh, merda. Viro a cabeça de um só golpe até ela e, ainda que quero rogarlhe<br />

que não desvie o olhar da estrada, não percebo ódio nem repugnância em seus<br />

olhos. Somente amor e está destinado a mim.<br />

—Não deveria ter visto isto. —Murmuro.<br />

—Não vi grande coisa. —Me tranquiliza. —Ouvi um golpe do lado de fora,<br />

olhei pela janela e vi os dois. —Estende o braço e me dá uns tapinhas na coxa.—<br />

Devo admitir, no entanto, que nunca pensei que viveria o suficiente para ver <strong>Bear</strong><br />

sendo atacado.<br />

Solta uma risada baixa. Eu sorrio timidamente e penso em quão escuro<br />

estavam seus olhos, como tinha ficado sem ar ao notar suas mãos em mim, com as<br />

costas pressionadas contra a parede do apartamento. Como sua respiração se havia<br />

convertido na minha e como eu havia querido cuspir, gritar e esfregar-me contra<br />

ele ali mesmo. «Amo você», havia dito ele.<br />

«Eu sei. Acho que eu sempre soube.»<br />

Não deveria pensar nessas coisas. Não posso pensar em…<br />

(Oh, Deus.)<br />

Por um momento, eu me perdi, viajando de volta dias e semanas. Rebobino mais<br />

além do terremoto, do oceano, da feiura que foi minha covardia, mais além dela. Estou com<br />

ele.<br />

«Ele sorri para mim de sua posição entre minhas pernas, com o peito apertando meu<br />

pênis enquanto recosta sua cabeça sobre uma mão e traça formas sem sentido sobre meu<br />

estômago com a outra. Suas largas pernas se estendem suspendidas sobre a beirada da<br />

cama.<br />

»—Muito bem, o que eu escrevi desta vez? —Pergunta.<br />

»Dou de ombros.<br />

»—Não sei. Como diabos posso saber o que escreve? Isto é ridículo.<br />

»Revira os olhos.<br />

»—Não é ridículo. Você é ridículo.<br />

»E volta a desenhar as formas.<br />

»Fecho os olhos, tentando me concentrar no movimento de seus dedos. Ele vai mais<br />

devagar, e de novo, não tenho nem ideia do que tenta dizer. Os nervos da minha pele<br />

formigam enquanto ele escreve e escreve. Suas grande mãos são como o fogo. Rosno em voz<br />

baixa e dobro as costas, tentando aliviar a pressão que se acumula em minhas costelas. O


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ouço soltar um risinho e o noto baixar o peito.<br />

»—O que eu disse dessa vez? —Sussurra enquanto esfrega seu peito contra mim.<br />

»Não é justo.<br />

»—Espero que tenha dito o quanto deseja meu pênis em sua boca, ou darei um chute<br />

em suas bolas. —Digo, ofegante.<br />

»—Não. Vamos tentar de outro jeito.<br />

»Dessa vez usa a língua. Me esqueço da escrita.<br />

»Volto…<br />

»… mais longe e é…<br />

ȃ dois dias antes do lascivo concurso de ortografia. Estou no trabalho e soa o<br />

telefone. Mesmo antes de atender, sei que é ele.<br />

»—Olá. —Diz entusiasmado. —Hoje me esqueci por completo de dizer a você! Eu<br />

ainda não comprei o atum dolphin-safe.<br />

»Eu sorrio.<br />

»—Eu também amo você. —Digo, sentindo-me retardado e exultante ao mesmo<br />

tempo.<br />

»Nem sequer olho ao redor para ver se alguém está escutando.<br />

»Então é…<br />

»… mais atrás e…<br />

»… e acordo…<br />

»… acordo junto a ele, com sua respiração cálida em meu rosto, seu braço enroscado<br />

ao redor de meu pescoço. Seu coração bate em meu ouvido. Me movo com delicadeza para<br />

poder recostar meu queixo sobre seu mamilo e levanto o olhar para ele, desejando que<br />

acorde, querendo ver o brilho verde-ouro com que acabo de sonhar. E então é magia, é magia<br />

porque naquele justo momento ele abre os olhos e sorri para mim sonolento.<br />

»—Ei.<br />

»—Ei, você.<br />

»Estendo um braço e ele está pronto para mim, o apetite começa a tomar forma, e<br />

penso que nunca me encaixarei tão bem com alguém como me encaixo com ele.<br />

»… ainda mais atrás (quando?, por que?).<br />

»Se passaram uns dias desde que lhe disse que o amava pela primeira vez. Em cada<br />

ocasião que me vê é como se fosse a primeira.<br />

»—Ei. —Diz. —Você sabe que eu já sabia, não é?<br />

»Eu poderia fingir que não sabia do que ele estava falando, mas ele não se deixaria<br />

enganar.<br />

»—Eu sei.<br />

»Ele me beija na testa.


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»—Eu notei desde o princípio.<br />

»Ele me diz que me ama.<br />

»Sussurra que a luta por mim é tudo o que ele sabe.<br />

»Eu sei. Oh, Deus, claro que eu sei, e…, e…, e…<br />

»… e…<br />

»… então…<br />

»… vou…<br />

»… para frente.»<br />

Quase estamos chegando na casa de Anna.<br />

—Então se trata disso, não é? De Oliver —Diz a senhora Paquinn. —O que<br />

ela disse a você, <strong>Bear</strong>?<br />

«Quem é mais importante para você? Quem precisa mais de você?»<br />

—Disse o suficiente.<br />

Fico olhando pela janela o resto do trajeto.<br />

Página299<br />

******<br />

Paramos na entrada da garagem da casa de Anna. Estou prestes a abrir a<br />

porta quando a senhora Paquinn me segura suavemente pelo braço. Eu olho para<br />

ela.<br />

—Seja o que for que tenha acontecido, sairemos dessa. —Declara. —Juntos.<br />

Sei que você é forte e sei que é valente, mas ninguém deveria passar por isso<br />

sozinho.<br />

—E a senhora? —Pergunto tolamente. —A senhora está sozinha.<br />

Ela começa a rir.<br />

—Oh, <strong>Bear</strong>. Com você, Tyson e todos os outros que existem em minha vida,<br />

como posso estar sozinha?<br />

A porta principal da casa se abre de um só golpe e <strong>Kid</strong> sai. Dá a impressão<br />

que não posso descer do carro rápido o suficiente. Não, até que corro para ele, não,<br />

até que ele pula em meus braços, quando finalmente percebo o quão assustado eu<br />

estava. Quando você se deixa levar pelo pânico, é envolvente, aterrador, gélido.<br />

Me afasto um pouco dele e me dou conta do quão perto eu estava de enlouquecer.<br />

Ty soluça em meu ouvido o quanto ele sente, e eu percebo seu corpinho apertado<br />

contra mim e respiro profundamente, sentindo seu cheiro, e agora sei como eu<br />

estaria perdido sem <strong>Kid</strong> em meus braços. O afasto e limpo seu rosto torpemente,<br />

secando suas lágrimas. Ele levanta a mão e enxuga as minhas. Pego essas<br />

mãozinhas entre as minhas, as aperto contra meus lábios e fecho os olhos. Sua testa


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

toca a minha.<br />

—Oh, papai <strong>Bear</strong>. —Diz com voz afogada pela emoção. —Por favor, não<br />

fique bravo comigo. Eu só fui buscar ajuda. Não sou mais que uma criança. Não<br />

posso cuidar de você sozinho. Não queria que você ficasse bravo.<br />

—Você cuida de mim muito bem. —Respondo rapidamente. —Não estou<br />

bravo. Só fiquei um pouco assustado. Pensei que tinha ido embora.<br />

Isto faz com que comece outra vez, e chora contra o meu pescoço. O abraço<br />

mais forte, sussurrando em seu ouvido até que deixa de chorar e começa a soluçar.<br />

Passo uma mão em seu cabelo. Está comprido novamente. Necessita um corte.<br />

Terei que marcar um horário. Minhas mãos começam a tremer. Não sei por que.<br />

Olho por cima do meu ombro e vejo Anna de pé junto á senhora Paquinn, as<br />

duas com os olhos avermelhados e os rostos umedecidos. E, claro, ao lado de Anna<br />

está Creed, com os olhos suspeitosamente brilhantes. Passa o antebraço pelo rosto<br />

e, quando o baixa, seus olhos perderam o brilho. O que há neles agora é<br />

determinação. Ele sabe. E se ele sabe, Anna também.<br />

Foda.<br />

Sinto um puxão em meu queixo e olho para <strong>Kid</strong>, enroscado em meus braços.<br />

O nariz está um desastre e seu rosto inchado, mas continua sendo o mais<br />

maravilhoso que já vi em minha vida. E se pode saber o que há entre mim e <strong>Otter</strong><br />

e, ainda assim, olhar para mim como se eu tivesse criado o mundo, significa que eu<br />

devo estar fazendo algo bem.<br />

Suspiro e retribuo a atenção à minha pequena família, de pé diante de mim.<br />

—Acho que há certas coisas sobre as quais devemos falar. Podemos ir para<br />

dentro?<br />

Página300


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

13<br />

Quando <strong>Bear</strong> confessa tudo<br />

Página301<br />

Nós nos sentamos na sala de Anna, Tyson em meu colo e os demais diante<br />

de nós no sofá. <strong>Kid</strong> parece plenamente satisfeito agarrado nas minhas mãos, e devo<br />

dizer que me sinto muito bem com isso. Olho para os outros, que me observam em<br />

silêncio, e dentro de minha cabeça organizo um jogo para ver quanto tempo<br />

podemos passar até que alguém rompa o silêncio, como se fosse algo frágil. O suor<br />

que escorre por minhas costas não me deixa nenhuma dúvida de que serei eu.<br />

Noto um puxão em meu queixo.<br />

<strong>Kid</strong> olha para mim com seus grandes olhos. Faz um sinal para que eu me<br />

incline, aproxima seus lábios do meu ouvido, sua respiração faz cosquinha quando<br />

fala.<br />

—Eu não contei nada a eles.<br />

O olhar que me dirige é tão triste que volto a abraçá-lo com força.<br />

—Sei que não, <strong>Kid</strong>.<br />

E eu realmente sei.<br />

—Você realmente vai contar a eles? —Sussurra. —Isso significa que<br />

poderemos ver <strong>Otter</strong> quando terminarmos?<br />

Sorrio para ele com tristeza.<br />

—Não sei. —Respiro profundamente. —Tenho medo.<br />

Ele franze a testa e olha para Anna, Creed e a senhora Paquinn. Parece<br />

examiná-los durante um momento antes de se voltar para mim.<br />

—Por que?<br />

Isso mesmo: Por que?<br />

Conhecendo perfeitamente a resposta, mas necessitando ouvi-la mesmo<br />

assim, pergunto:<br />

—Depois do que eu disse a você, você ainda me ama, não é?<br />

O sorriso que aparece em seu rosto é deslumbrante, e posso ver mais<br />

lágrimas brotando em seus olhos. Me rodeia o pescoço com seus braços e me<br />

aperta como se nós dois fôssemos morrer se não me abraçasse com todas as suas<br />

forças. Sua respiração é áspera em meu ouvido.<br />

—Mais do que você imagina, papai <strong>Bear</strong>. Mais do que você imagina.<br />

Fecho os olhos e me concentro em seu coração, batendo junto ao meu. Ele é


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página302<br />

minha força. Ele é minha coragem. Se ele me diz que não acontecerá algo, pelo<br />

menos tenho que me arriscar e acreditar nele<br />

—Posso ter vocês dois, não é? —Sussurro. —Não tenho que escolher?<br />

Ele esfrega as mãos atrás da minha cabeça.<br />

—Você não tem que escolher. —Responde com voz baixa. —Nós já o<br />

escolhemos.<br />

Minha voz me sobressalta, pois não sei o que estou prestes a dizer ao grupo,<br />

até que ouço minhas palavras saindo altas e fortes, apressadas e firmes:<br />

—Antes de dizer qualquer coisa, há algo que quero pedir. Uma coisa que<br />

preciso que todos você façam. —Não afasto os olhos de <strong>Kid</strong>, mas sei que prestam<br />

atenção em mim. —Não digam nenhuma palavra até que eu termine. Deixem-me<br />

dizer o que tenho que dizer sem interrupções. É... é a única coisa que peço.<br />

Finalmente olho para eles.<br />

A senhora Paquinn e Anna acenam com a cabeça, mas Creed parece pensar<br />

que é a ideia mais absurda do mundo. Abre a boca, mas Anna dá uma cotovelada<br />

em suas costelas, fazendo-o estremecer e olhar para ela irritado. Um momento<br />

depois volta a dedicar sua atenção em mim e concorda com a cabeça, resignado.<br />

«Espero que ainda queira me olhar quando eu terminar.» —Penso. —«Espero que todos<br />

queiram.»<br />

Querendo adiar o inevitável o máximo que posso, abro a boca para falar<br />

sobre a visita da minha mãe ou demonstrar o poético que sou ao demonstrar o<br />

quanto eles significam para mim e eu que espero que o que estou a ponto de dizer<br />

não mude nada. Mas, como disse antes, minha boca costuma trapacear e começar a<br />

corrida antes do tempo, deixando meu cérebro, que pelo visto lhe <strong>amp</strong>utaram as<br />

pernas, tenha que tentar alcançá-la. Assim, as palavras brotam, e deveria ter me<br />

preparado para o que ia dizer. Talvez signifique algo. Talvez não signifique nada.<br />

Quem diabos já o sabe?<br />

Quais são minhas palavras imortais?<br />

—Creed, estou apaixonado pelo seu irmão, e eu acho que estraguei tudo.<br />

Bum!<br />

Bem, nada explode. De fato, vocês conhecem a expressão: «há tanto silêncio<br />

que se ouve o voo de uma mosca»? Pois bem, o silêncio é tal que se poderia ouvir o<br />

peido de uma molécula a três Estados de distância. Pelo visto não é necessário<br />

nenhum ruído para que três pares de olhos saiam de órbita. Apague isso, quatro<br />

pares. Olho para <strong>Kid</strong> e tem os olhos arregalados. Ri dissimuladamente e diz:<br />

—Uau, direto na jugular, não? —Se detém e volta a rir. —Não pretendia


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página303<br />

fazer nenhum trocadilho. Bem, talvez um pouco.<br />

Lhe dou um tapa suave atrás de sua cabeça. É a história da minha vida: uma<br />

execução péssima com comentários coloridos do vegetariano mais jovem do<br />

mundo. Isto não pode sair bem.<br />

Fiéis à sua palavra, os demais não falam. A senhora Paquinn um sorriso no<br />

rosto. O de Anna é impenetrável. Creed… bem, Creed tem o rosto vermelho o<br />

bastante para que pareça que vai defecar um Cadillac do início dos anos oitenta.<br />

Volto a olhar para <strong>Kid</strong>, que sorri em silêncio, ainda segurando meu dedo. Se<br />

alguém mais visse sua expressão, pensaria que se limita a escutar, a esperar que<br />

continue. Mas noto a rigidez de seu corpinho, o modo em que seu sorriso não<br />

reflete em seus olhos, enquanto observa a nossa família. O conheço, está esperando<br />

que alguém diga algo contra mim para poder despedaçá-lo membro a membro. Dá<br />

no mesmo que seja ou não capaz de fazê-lo. Agora sei que isto não é só por mim.<br />

Ele o necessita tanto quanto eu.<br />

—Estou apaixonado por seu irmão. —Repito, mais forte e mais<br />

rapidamente. — Ele também me ama, ainda que eu não tenha feito nada para<br />

merecê-lo. Eu fiz quase todo o possível para procurar que não acontecesse isso. Na<br />

realidade, me estranha que ainda não tenha fugido gritando para Califórnia. —Isto<br />

finca raízes em minha cabeça. «Oh, Deus», penso. Olho para Creed. —Ele foi? —<br />

Sussurro, sem esperar verdadeiramente uma resposta, mas desejando de todos os<br />

modos que seja não.<br />

Nega com a cabeça, mas não fala.<br />

—Ah. —Digo debilmente.<br />

<strong>Kid</strong> me deixa ter um momento de alívio antes de indicar que eu prossiga.<br />

Decidido a não pensar mais e deixar que as palavras venham por si mesmas. É<br />

mais fácil assim, sem ter que passar através deu um filtro de água salgada e lodo. É<br />

mais fácil que afogar-se.<br />

E sai mais ou menos assim:<br />

—Um dia, faz muito tempo, cheguei em casa e encontrei uma carta de nossa mãe<br />

que dizia que havia ido embora. Senti raiva, tristeza e me senti assustado ao mesmo tempo.<br />

Não sabia que era possível experimentar tantas emoções juntas. Pensei que ia morrer.<br />

Pensei que ficaria louco. Pensei em fazer o mesmo que ela, pegar minhas coisas, deixar uma<br />

carta e desaparecer, porque qualquer dessas coisas teria sido mais fácil que o que se esperava<br />

que eu fizesse. Penso que a maioria das pessoas não me teriam condenado se eu tivesse<br />

fugido como um covarde. Mas havia certas pessoas que enfrentariam a um problema<br />

maldito. Me refiro às pessoas que estiveram ao meu lado, que me deixaram ter meus<br />

momentos de desmoronamento quando os terremotos eram intensos demais. Essas foram as


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

poucas pessoas que estiveram ali para me ajudar a me recompor, quando achava que estava<br />

demasiado perdido para me refazer. Não quiseram me deixar chorar demais, não me<br />

permitiram me fechar em mim mesmo para não voltar a sair, ainda que era o que queria.<br />

Calaram todas as minhas sandices obstinadas e medíocres e sabiam o que era o melhor para<br />

mim. O que era o melhor para <strong>Kid</strong>.<br />

Página304<br />

»Não sei se eu já os agradeci alguma vez. Quer dizer, com certeza eu devo tê-lo feito<br />

antes, mas não sabem o quanto significou para nós. Saber que, em meio ao inferno que eram<br />

nossas vidas, sempre estava um de vocês ali. É muito difícil para eu reconhecer quando<br />

necessito de ajuda, mas vocês me conhecem o suficiente para saber quando necessito aquilo<br />

que não sei pedir. Assim que, muito obrigado por serem nossa família. Muito obrigado por<br />

serem as pessoas que quero ter em minha vida. E peço que me perdoem pelas mentiras que<br />

eu disse quando sei que sou uma pessoa melhor que isso.<br />

» Sabem? Estava faltando uma parte em mim. Não podia dizer a vocês exatamente o<br />

que era, mas aí estava. Não soube identificar o que era e deixei que formasse uma casca, mas<br />

a ferida nunca sarou completamente. Nunca desapareceu. Nunca cicatrizou. Agora que sei<br />

o que é, faz com que isso seja muito mais difícil, porque arranquei a casca e a ferida voltou a<br />

abrir-se e joguei sal por cima. Acho que nunca poderei ter o que quero, porque o<br />

arrebataram de mim. Estou disposto a dedicar toda a minha vida para proteger o que é meu,<br />

mas não sei como pedir que o devolvam a mim sem perder meu coração.<br />

»Ele era o que estava faltando. Ele regressou e me senti completo. Levou algum<br />

tempo para que eu pudesse descobrir isso, e houve vezes nas quais eu pensei que não o<br />

conseguiria nunca; mas eu consegui, e ele estava ali, esperando-me. Assim que optei por<br />

isso, e fui a um lugar que não imaginei possível. Todos me mantiveram são, mas ele me<br />

manteve são e salvo. Não digo isso para magoar nenhum de vocês, porque não é essa a<br />

minha intenção. Só quero ser franco com vocês a partir de agora. Tenho que fazê-lo, para<br />

manter-nos são, para nos manter seguros. Porque descubri que talvez, só talvez, eu também<br />

possa ter algo.<br />

»Estive mentindo mais para mim mesmo que para todos vocês. A única coisa que<br />

posso pedir, que posso suplicar, é que entendam que nunca tive a intenção de magoar<br />

nenhum de vocês, de afastá-los. Eu diz e fiz coisas das quais não me orgulho, mas acho que<br />

aprendi que já não posso nos manter afastados do mundo. Tenho direito a um lugar para<br />

considerar minha casa, e acho que agora eu sei que, se ele não está ali, nunca voltará a ser<br />

minha casa.<br />

»Talvez eu pudesse ter manejado isso de outra forma. Seguramente deveria tê-lo<br />

feito. Mas quando penso sobre isso e a retrospectiva é uma cadela brutal, eu acho que não sei<br />

muito bem porque tive tanto medo. Entenderei se vocês me odiarem, e esperarei que um dia


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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possam superá-lo. Não espero que tudo seja como antes, porque sei que nada voltará a ser o<br />

mesmo, e não perderei tempo fingindo que será. Necessito isto. Preciso dele. A luta por ele é<br />

tudo o que sei, e não é uma luta que esteja disposto a perder. Não mais.<br />

»Senhora Paquinn, a senhora tem estado aí para se assegurar de que <strong>Kid</strong> e eu não<br />

fraquejássemos. Posso não conseguir compreender o porquê, mas se doou altruisticamente e<br />

jamais esquecerei. Acho que falo em nome dos dois se lhe digo que a amamos.<br />

»Creed, você é meu irmão. Sei que teria me perdido sem você. Suas prioridades<br />

sempre foram se assegurar que Ty e eu nunca precisássemos de nada, ainda que eu fosse<br />

demasiado estúpido para pedi-lo. Amamos você.<br />

»Anna, não sei até que ponto é difícil para você estar aqui, mas, por favor, acredite<br />

em mim quando digo que nunca tive a intenção de que isso ocorresse. Eu senti por você, e<br />

creio que parte de mim sempre sentirá. Você é e sempre será minha lucidez. Amamos você.<br />

»Tyson, pode ser que eu seja seu irmão, mas posso assegurar que não existe nenhum<br />

pai que esteja mais orgulhoso de seu filho que eu. Você faz com que eu seja sincero. Faz com<br />

que me sinta vivo. E acredite em mim quando digo que você sabe cuidar de mim, porque o<br />

tem feito todo a sua vida. Amo você.<br />

»E quanto a ele? Oh, Deus. Tudo sempre volta para ele, e acho que sempre será<br />

assim. Mas cometi um erro, um erro que não sei como consertar.<br />

»Preciso de ajuda. Eu fodi com tudo, e preciso de ajuda.<br />

Me detenho, com a voz rouca. Minha visão embaça e meu peito arde. A sala<br />

parece muito mais clara que quando comecei e pude respirar. Em algum momento<br />

durante o que deve ter sido o discurso mais açucarado e banal que eu fiz, <strong>Kid</strong><br />

voltou a rodear-me com seus braços e agora me segura com força. Retribuo o<br />

abraço, querendo fechar os olhos contra ele, mas me obrigando a olhar para os três<br />

que estão sentados diante de mim.<br />

Parece que fiz todos chorarem novamente. Maldição. A partir de hoje<br />

proibirei toda esta merda sensível e pegajosa. A senhora Paquinn funga o nariz e<br />

nos sorri afetuosamente. Anna franze a testa através das lágrimas e, quando meu<br />

olhar a encontra, afasta os olhos. Creed se levanta de imediato e se aproxima de<br />

nós, praticamente correndo. Se inclina e vejo o brilho verde-ouro, apagado, mas<br />

está aí. Em tudo isto falta uma pessoa, eu sei. Deveria estar presente.<br />

—Posso falar agora? —Pergunta Creed em voz baixa.<br />

Concordo com a cabeça.<br />

Se inclina sobre <strong>Kid</strong> e acaricia seu cabelo.<br />

—Sinto muito, Ty, pelas palavras dolorosas que eu disse. Não voltarei a<br />

dizer nunca mais esse tipo de coisas. Agora entendo por que ficou tão furioso<br />

comigo, mas isso não é desculpa. Você merece um melhor tio que eu, mas se você


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Página306<br />

me der uma chance, tentarei ser o melhor daqui por diante.<br />

<strong>Kid</strong> se volta, salta do meu colo e se lança aos braços abertos de Creed. Este o<br />

faz girar e girar. Ele o sussurra ao ouvido, algo que não posso ouvir, mas sei que só<br />

é entre eles. Recua e deixa <strong>Kid</strong> de pé.<br />

—Você pode ir se sentar perto de Anna por um momento? Tenho que dizer<br />

uma coisa a papai <strong>Bear</strong>.<br />

<strong>Kid</strong> entrecerra os olhos, só por um momento, e então olha para mim. Aceno<br />

com a cabeça, e ele se volta para os braços abertos de Anna.<br />

—Levante-se, <strong>Bear</strong>. —Ordena Creed com voz dura.<br />

Obedeço.<br />

—Estou chateado com você. —Rosna.<br />

Oh, merda.<br />

—Como diabos não pôde me dizer isso? —Começo a gaguejar, mas ele<br />

sacode a cabeça de um lado para o outro. —Esta pergunta foi retórica, e não se<br />

atreva a respondê-la com retórica. Você já teve a sua vez para falar. Agora cabe a<br />

mim. Você poderá falar quando eu terminar. Está claro?<br />

Concordo com a cabeça.<br />

Ele me dá um tapa da nuca.<br />

—Sou seu fodido irmão, estúpido idiota! Como se atreve a não dizer-me o<br />

que sentia por ele, a não falar sobre tudo o que estava acontecendo? Pensei que<br />

pelo menos me respeitava o suficiente para dizer a maldita verdade!<br />

—Mas…<br />

—<strong>Bear</strong>! —Esbraveja. —Eu disse para você não falar!<br />

Estou prestes a sentar-me, mas ele segura o meu braço e, como ele pesa uns<br />

quinze quilos a mas que eu, não tenho possibilidade de me mover. Me agarra com<br />

força suficiente para me machucar.<br />

—Mas talvez, só talvez, eu possa ver de onde você está vindo, ainda que<br />

isso é uma idiotice. Talvez, apenas talvez, eu possa perdoá-lo por romper o coração<br />

do meu irmão, porque Deus sabe que você está rompendo o meu. Por que você não<br />

me contou? Você pensou que eu odiaria você? Que eu teria nojo? Se alguma vez eu<br />

dei essa ideia, então me desculpa.<br />

Sua voz se quebra ao dizer essa última parte, e não posso evitar ser um<br />

idiota e pensar: «Oh, Santo Deus, proibido chorar! Proibido para todos!»<br />

Então ele me surpreende estreitando-me contra ele, que me corta a<br />

respiração e virando o eixo do meu mundo. Até um momento atrás, planejava<br />

nossa fuga da cólera de Creed, mas agora não sei o que fazer. Não sei o que é até


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página307<br />

que me sussurra ao ouvido:<br />

—Você é meu irmão, seu marica. Amarei você sem me importar o que faça,<br />

a quem faça nem onde faça. Ficou bem claro?<br />

Ele funga o nariz ruidosamente.<br />

Aceno como posso, pois ainda tenho o rosto esmagado contra seu peito.<br />

Tudo o que eu quero fazer é ficar lá por um tempo e - espere um minuto. O que<br />

diabos ele disse?<br />

—Você vai me amar, não importa onde eu faço isso?<br />

Ele se afasta e sorri.<br />

—Bem, eu não sei em que você está metido agora que gosta de paus. Aposto<br />

que você está em alguma merda muito estranha. —Estreita os olhos. —Não se<br />

aproxime do meu quarto. —Adverte.<br />

Engulo a saliva através do nó que tenho na garganta.<br />

—Bem… sobre isso.<br />

—<strong>Bear</strong>! É melhor que você esteja brincado!<br />

Ele me dá um soco no braço. Com força.<br />

—Filho da puta. —Rosno, e lhe devolvo o golpe.<br />

Que esquiva, pisca para mim e está preste a dar a volta, quando vejo uma<br />

sombra que lhe atravessa os olhos. Se volta até mim.<br />

—O que diabos tem ele que eu não tenho?<br />

Me afogo. Desejo que a terra se abra e engula a este idiota.<br />

—Você está brincando, não é?<br />

Nega com a cabeça. —Talvez decidirei que isso é o que me deixa mais puto.<br />

Você acha que esse velho é mais quente que eu?<br />

—Isso é… muito grosseiro, Creed. É realmente muito ordinário.<br />

—Ai…! Obrigado por levantar-me o ego… Você agora gosta do ABBA?<br />

—Como você sabe quem são? Além do fato de que você gosta tanto?<br />

—E terei que ir às compras contigo e falar de meus sentimentos?<br />

— Eu vi a maneira como você se veste. Não seria mal para você.<br />

Ele sorri com malícia, se aproxima e se inclina para sussurrar no meu<br />

ouvido.<br />

—Você é o passivo, não é? Aposto que você adora.<br />

—A primeira vez que fizemos algo, fui eu que transei com seu irmão. —<br />

Respondo.<br />

Seu rosto empalidece, e sei que ganhei. Ele me dá uma palmadinha no<br />

ombro e me diz que se alegra por nós dois. Volta a ficar sério quando pergunta:


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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—Isso é forte?<br />

Concordo com a cabeça, apenas uma vez.<br />

Ele resmunga, pensativo, como só ele pode fazer e, com isso, sei que todos<br />

os temores que eu alimentei sobre ele eram infundados. Não posso evitar sentir-me<br />

como um imbecil por não ter tido suficiente fé para confiar em Creed. Me perco<br />

por um momento, pensando em uma época na qual tínhamos onze ou doze anos.<br />

«Estamos sozinhos, caminhando pela praia, açoitados por um vento que levanta a<br />

areia e atinge nosso rosto. Ele olha para mim e diz que sempre quis ter um irmão mais novo.<br />

Eu belisco seu braço e o recordo que sou maior que ele. Sorri, concorda com a cabeça e diz:<br />

»—Já sabe a que me refiro.<br />

»E eu sei. Experimentei o mesmo desde que tenho uso da razão. Parece duro ser filho<br />

único, mas não é um pensamento que compartilho, porque já não é verdade. Pego uma<br />

pedra e a lanço sobre as ondas e contemplo como ela rebate.<br />

»—Agora, seguramente, teremos que ser amigos para sempre.—Ele diz. —Você<br />

sabe disso, não?<br />

»Começo a rir, mas só porque sei que é correto. Mais tarde, quando fura um dedo,<br />

brota sangue enquanto espera que eu faça o mesmo. É infantil, é ridículo, e ambos sabemos.<br />

Mas isso não nos impede de unir as pontas de nossos dedos, misturando o DNA e segredos,<br />

para convertê-los em algo que somente nós podemos compreender.<br />

»—Agora sim, é para sempre. —Sussurra. Seus olhos brilham. —Isso é forte.<br />

»E é como levar um tapa na cara pelo sol.»<br />

—Creed? —Pergunto quando volta ao sofá, com uma expressão satisfeita no<br />

rosto. —Posso… eu posso corrigir isso?<br />

Não me atrevo a explicar, porque falar disso em voz alta demonstraria o<br />

frágil que é em realidade. Fecho os olhos e aguardo sua resposta.<br />

—Isso é forte? —Volta a perguntar com rispidez.<br />

Não sei como, mas sei que está se lembrando do mesmo que eu.<br />

—Sim. —Murmuro.<br />

—Então nunca é tarde para consertar as coisas. Eu vou lhe dizer uma coisa a<br />

esse respeito, e juro que não voltará jamais a me ouvir falar disso: você o destruiu,<br />

<strong>Bear</strong>.<br />

Abaixo a cabeça.<br />

—Sabe? Quando ele me contou tudo, a única coisa que me lembro, além de<br />

ficar estupefato é a expressão de seu rosto. No início não quis me dizer o que<br />

ocorria, mas não me custou muito tempo para averiguar. —Suspira. —Está<br />

destroçado, <strong>Bear</strong>, e eu não sei o que vai custar para consertar isso. Mas se é forte, se<br />

o que você disse hoje é certo, então, sabe tão bem como eu que tem que consertar


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

isso. E se não for possível… bem, não sei. As últimas vinte quatro horas tem<br />

demonstrado o pouco que sei em realidade. —Diz essa última parte sem rancor. —<br />

Você se importar de nos contar o que diabos aconteceu? Foi sua mãe, não foi?<br />

Então eu solto tudo: seu sarcasmos, suas ameaças de levar o que me<br />

pertence, a expressão de triunfo em seu olhos quando soube que me tinha<br />

encurralado e que eu não podia escapar. Falo com voz apagada, oca. Não há ira,<br />

nem tristeza. Estou recitando fatos com se tivessem acontecido com outra pessoa<br />

qualquer. É a única maneira que tenho para superá-lo. Chego à parte em que<br />

disputamos <strong>Kid</strong> como se fosse um peão, e acho que minha voz embarga. Penso que<br />

vou gaguejar e me calarei, mas continuo. Revivo tudo, detalhadamente. Quando<br />

reviso minhas palavras e meus atos da noite passada, odeio a mim mesmo por ter<br />

sido tão fraco, odeio a mim mesmo por ter caído em sua armadilha. Quem dera eu<br />

pudesse acreditar que suas ameaças são falsas, mas não posso. A pequena parte de<br />

mim que sonha com o oceano me lembra o fácil que seria para ela regressar, o fácil<br />

que seria levar <strong>Kid</strong>. Brota em meu interior e volta a ameaçar com dominar-me.<br />

Ainda não sei se sou o bastante forte para afastá-lo, para exterminá-lo. Eu disse a<br />

Creed que o que sinto por seu irmão é forte, e não era mentira. Não é mais que um<br />

aspecto da guerra que tento ganhar.<br />

«Você acaba de deixá-lo.» —Sussurra a voz—. «Você ficou ali, mentindo em sua<br />

cara e logo foi embora. O que faz você pensar que ele voltará a lhe dirigir a palavra? Você já<br />

ouviu Creed: ele está destroçado e você foi o responsável. Pelo menos foi o bastante forte<br />

para fazer isso, não? »<br />

Ah, umas palavras doces e reconfortantes.<br />

******<br />

Página309<br />

Termino o relato, que desejo ser o último durante um bom tempo. A única<br />

coisa que eu gostaria de fazer agora é ir para casa, dormir uma semana inteira e me<br />

preocupar com tudo quando eu acordar. Mas sei que não poderei, porque quando<br />

feche os olhos ele estará ali, sorrindo, dançando.<br />

E isso me dói.<br />

—O que mudou agora? —Pergunta Creed. —O que faz você querê-lo de<br />

volta, diferentemente da atrapalhada que você aprontou ontem à noite?<br />

Tento sorrir, mas acho que sai mais como uma careta. Estive esperando<br />

essas perguntas desde que abri a boca pedindo ajuda para consertar essa confusão


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página310<br />

que eu provoquei. Quase acho engraçado que não pareça existir nenhuma dúvida<br />

de que queira que ele volte, que muito provavelmente deveria ter evitado toda essa<br />

confusão. A questão agora é saber se <strong>Otter</strong> perderá ou não a cabeça e será capaz de<br />

ocupar a mesma habitação que eu. Mas isso não vem ao caso. Vacilei muito tempo<br />

e os demais estão olhando para mim, aguardando uma resposta. Tento encontrar<br />

as palavras para expressar o que significa se sentir esbofeteado pelo amor,<br />

dominado pela luxúria, ter o coração em pedaços. Preciso que entendam que não<br />

me sinto completo sem ele. Mas eu acho que já disse tudo o que foi possível sobre o<br />

assunto. Talvez seja o momento de deixar <strong>Otter</strong> dizer alguma coisa. Pego a carteira<br />

do bolso de trás e retiro a carta que guardo em segrego durante vinte meses. Não<br />

preciso lê-la novamente. Eu a sei de cor.<br />

“Sei que estava ferido e que tem bons motivos para estar magoado, mas quero que<br />

saiba que não passou um só dia sem que eu não tenha pensado em você e no Ty. Quem sabe<br />

isso seja meu castigo, saber que está bem, saber que eu não tive nada a ver com isso. Se isso<br />

serve para algo, estou orgulhoso de você por tê-lo feito tão bem, apesar de que algumas<br />

pessoas tenham quebrado as promessas que lhe fizeram.<br />

Foi muito bom lhe ver, mesmo que só por um momento. Me alegro de que eu tenha<br />

pelo menos isso. Sinto sua falta, papai <strong>Bear</strong>.”<br />

Anna é a primeira a pegar a carta. Quase me havia esquecido de que ela<br />

estava aqui. Só leva um momento para ler, e seu rosto se contrai um pouco. Ela a<br />

passa para a senhora Paquinn, que segura a folha gasta com maior cuidado. Anna<br />

me devolve o olhar com uma expressão séria.<br />

—Quando? —Pergunta. —Quando ele mandou isto?<br />

Por um momento quase penso em mentir. Mas não faço isso.<br />

—Deixou em meu carro há dois natais, quando veio para casa.<br />

Ela assente e afasta o olhar.<br />

A senhora Paquinn funga o nariz.<br />

—Parecia estar se despedindo.<br />

Creed termina e a passa para <strong>Kid</strong><br />

—Parecia tentar se desculpar por ter ido embora. —Diz Creed.<br />

Então <strong>Kid</strong> fala:<br />

—Não. —Diz, levantando os olhos do papel. O dobra com delicadeza e me<br />

devolve. Espera até que eu o guarde no local que lhe corresponde e então diz em<br />

voz baixa:— É uma carta de amor. Diz a <strong>Bear</strong> que o ama sem dizer essas palavras.<br />

<strong>Kid</strong> novamente enxerga aquilo que os outros de nós não pudemos. Eu já não<br />

deveria me surpreender quando demonstra uma perspicácia da qual todos os<br />

demais carecem.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página311<br />

—Desde aquela época…? —Pergunta Creed. —Há tanto tempo assim?<br />

E, então, Anna se levanta. Tem o corpo rígido, os punhos fechados, os olhos<br />

umedecidos e raivosos. Acho que nunca a vi assim, nem sequer quando<br />

rompemos. Está furiosa e sei que é culpa minha. Eu cometi muitos erros. Fui<br />

egoísta. Menti e Anna foi a mais atingida em tudo isso. Estive esperando pelo pior<br />

e parece que estou prestes a recebê-lo. É o que eu mereço.<br />

—Estúpido filho da puta! —Grita.<br />

Só me estremeço um pouco quando ela avança sobre mim e começa a me<br />

bater no peito. Levanto as mãos para defender-me, mas Creed já a tinha afastado, e<br />

vejo com mórbida diversão que <strong>Kid</strong> se interpôs entre ela e eu, tentando protegerme<br />

com seu corpinho.<br />

—Como se atreve? —Grita Anna, tentando escapar das mãos de Creed. —<br />

Maldito bastardo!<br />

Se volta para o ombro de Creed e soluça. <strong>Kid</strong> está tenso diante de mim.<br />

Abaixo o meu braço e coloco a mão no seu ombro, desejando que não tivesse que<br />

ser assim.<br />

Momentos depois, Anna se tranquiliza um pouco quando Creed lhe<br />

sussurra ao ouvido e se volta para mim outra vez, mas ele a segura e não permite<br />

que se aproxime de mim. Acho que talvez seja melhor deixá-la dizer o que tenha<br />

que dizer e acabar com isso, mas naturalmente não é assim como funciona.<br />

—Anna —Diz <strong>Kid</strong> apertando os dentes. —<strong>Bear</strong> cometeu erros. Ele já o<br />

admitiu. Você tem todo o direito de estar brava, mas se você voltar a bater nele,<br />

juro por Deus que eu mesmo vou bater em você. Não estou nem aí que você seja<br />

uma garota e seja maior que eu. Se o toca, será a última coisa que fará.<br />

Você quer saber o que se sente ao ser castrado? Tente ter um irmão de nove<br />

anos protegendo você de sua ex namorada depois de confessar que está<br />

apaixonado por um homem.<br />

Todos nós ficamos olhando para <strong>Kid</strong>, que tem o rosto pálido pela ira. Anna<br />

se volta e acho que se dispõe a ir embora e não a condenarei por isso. Mas me<br />

surpreende quando se detém. Por um momento tenho a sensação de que o silêncio<br />

vai nos esmagar a todos. E então:<br />

—Vocês alguma vez se preocuparam comigo?<br />

Creed sacode a cabeça e encolhe os ombros. Parece que quer se desculpar<br />

por ela, mas lhe corto com um gesto de mão. É pouco realista esperar que ela<br />

reagisse como Creed. Ela tinha mais o que perder, e não posso culpar a ninguém<br />

por isso, além de mim mesmo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página312<br />

—É claro que eu me preocupei. —Digo sinceramente. — Você tem que<br />

acreditar em mim. Eu ainda me preocupo.<br />

Anna se volta com um brilho intenso no olhar.<br />

—Já não sei se acredito em você. Eu dei a você muitas oportunidades para<br />

me dizer a verdade.<br />

A olho com a cabeça inclinada.<br />

—Você já sabia, não é?<br />

Isso saiu antes que eu pudesse evitar.<br />

Seu cabelo se agita com indignação quando assente.<br />

—Sabia… algo. Eu me recusava a acreditar. Mas não se pode estar tão<br />

unido, como estávamos eu e você e não perceber isso. A maneira como você ficava<br />

ao seu redor. Inclusive, quando por mais chateado que estava, ainda havia algo em<br />

sua voz quando falava dele. Eu dizia a mim mesma que era coisa da minha<br />

imaginação, que eu só estava...<br />

—Projetando? —Digo, incapaz de manter minha estúpida boca fechada.<br />

Ela ri, mas sem humor.<br />

—Filho da puta.—Repete. —Por que você não me contou?<br />

—Tinha medo.<br />

— De mim?<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Não. De tudo o mais. Eu não sabia quem eu era, e muito menos o que<br />

diabos eu estava fazendo. Eu pensei que já era bastante óbvio por agora.<br />

Ela olha para mim com a testa franzida e as bochechas molhadas. Deus, é<br />

tão bonita!<br />

—E agora? —Pergunta.<br />

«Sim, <strong>Bear</strong>, e agora o quê?» —Pergunta a voz. —«Ela tem razão, você sabe, não é?<br />

Deu muitas oportunidades a você. E aí a tem, fazendo novamente. Acho que esta vez será a<br />

última, então você pode muito bem sair como um estrondo, você não acha?»<br />

—Eu o amo, Anna. Com isso não pretendo ferir você, nem significa que o<br />

que sinto por você seja menos importante. Eu errei em muitas coisas, mas pelo<br />

menos eu sei que eu o amo. É o único que me resta.<br />

Baixo o olhar para o chão.<br />

—Eu amava você. —Diz ela fungando o nariz. —Não sei se alguma vez<br />

poderei superá-lo.<br />

—Você vai tentar? —É injusto perguntar, mas como essa conversa indicou,<br />

sou um fodido egoísta. — Não sei se posso fazer isso sem você.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página313<br />

—Você me disse isso uma vez. Lembra? E parece que você se arranjou<br />

muito bem sem mim.—A ira volta a aparecer em sua voz. —Aliás, quando foi isso?<br />

—O quê?<br />

Sei o que ela está perguntando, e tento ganhar tempo.<br />

—Quando você transou com ele. Quanto tempo passou depois que<br />

rompemos?—Entrecerra os olhos. —Ou ainda estávamos juntos? —Provoca entre<br />

dentes.<br />

—Isso importa?<br />

—Sim.<br />

—Logo depois.<br />

—Espero que tenha valido a pena. —Rosna.<br />

Olho para ela nos olhos.<br />

—Valeu a pena.<br />

Assente, com os braços cruzados.<br />

—Finalmente, um pouca da fodida sinceridade da sua parte. Eu disse que<br />

você partiu meu coração. Você se lembra? Você lembra do que eu disse logo<br />

depois?<br />

Eu me lembro.<br />

—Eu disse que você tinha partido meu coração, mas era meu para dá-lo.<br />

—Eu sei.<br />

Enquanto eu viver, jamais entenderei as mulheres. Volta a avançar contra<br />

mim e <strong>Kid</strong> levanta os punhos e penso de verdade que vai golpeá-la em um seio,<br />

mas grita quando fica esmagado entre nós dois, enquanto ela envolve seus braços<br />

no meu pescoço. Eu havia esquecido como era abraçá-la, senti-la contra mim.<br />

Mesmo não tendo o mesmo efeito de antes, ainda há algo aí, algo que se solta e que<br />

se abre. Choramos um no cabelo do outro e penso que seria muito bom se<br />

decretássemos a proibição amanhã.<br />

Após algum tempo, Anna se acalma. Soluça, se inclina sobre mim e seus<br />

lábios roçam meu ouvido.<br />

—É verdade mesmo? —Pergunta. —O que você disse a Creed? Isso é forte?<br />

Assinto com a cabeça, sem me atrever a falar.<br />

Ela ri com tristeza.<br />

—Nunca escolhe o caminho fácil, não é?<br />

—Não é meu estilo —Sussurro.<br />

Inclina a cabeça para trás e nossos rostos estão próximos enquanto nossos<br />

olhos se analisam.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página314<br />

—Não sei se algum dia superarei isso. —Repete. —Mas espero que me<br />

conceda tempo para tentar.<br />

—Eu disse de verdade, Anna. Amo você.<br />

—Eu sei, <strong>Bear</strong>. E talvez algum dia isso me baste.<br />

Abaixa os braços e volta para o sofá. A senhora Paquinn levanta as mãos e a<br />

recebe com um abraço.<br />

—Dê um tempo a ela, cara. —Murmura Creed com os olhos suplicantes. —<br />

Se acalmará. Não perca sua fé nela.<br />

—Não farei. —Respondo.<br />

Como poderia? Ela é da família.<br />

—E agora o quê? Você vai consertar isso agora? Com ele? —Pergunta.<br />

—Não posso.<br />

Então a sala explode.<br />

—Que diabos está dizendo? —Grita Creed.<br />

—Você está brincando comigo? —Grita <strong>Kid</strong>.<br />

—Você é um retardado? —Grita Anna.<br />

—Aaah! —Grita a senhora Paquinn.<br />

Santo Deus.<br />

—Eu o farei! —Grito por cima de todos eles. —Deixem-me falar, maldição!<br />

Todos ficam em silêncio, tendo, pelo menos, a decência de corar.<br />

Respiro fundo.<br />

—Não posso, pelo menos até que <strong>Kid</strong> esteja fora de perigo. Não até que<br />

tenha um plano, algo que impeça que minha mãe possa tirá-lo de mim. Toda essa<br />

fodida merda consiste nisso.<br />

—Não, <strong>Bear</strong>. —Intervém <strong>Kid</strong>. —Esta foi a festa de sua saída do armário.<br />

Não me meta no meio disso.<br />

—Seu merdinha. —Rosno enquanto o levanto e volto a estreitá-lo contra<br />

mim.<br />

Me sinto melhor sabendo que ele está por perto.<br />

—Sério, como diabos vamos fazer isso? —Pergunta Creed.<br />

Não faço menção de que tenha usado o plural, porque se eu aprendi algo<br />

hoje, é que esse tipo de decisão já não posso tomá-la sozinho. Seja o que for que<br />

decida, nos afetará a todos. Não cometerei esse erro nunca mais.<br />

—<strong>Bear</strong>, se você me permite… —Diz a senhora Paquinn. —Você nunca<br />

cogitou a possibilidade de conseguir a custódia de Tyson?<br />

—Como? —Pergunto como um bobo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página315<br />

—Legalmente. —Responde, revirando os olhos, sem ao menos dissimular.—<br />

Você não falou com nenhum advogado sobre isso?<br />

—Não conheço nenhum advogado. —Confesso, como se isto o explicasse<br />

tudo.<br />

—Pois eu sim. Estive trabalhando como ajudante de advogado em um<br />

escritório, sabe?<br />

—Mas que coincidência. —Murmura Creed.<br />

Não lhe dou importância.<br />

—Isso não é como a corrida de carro, não é?<br />

Ela me devolve um sorriso encantador.<br />

—Eu nunca participei de corridas de carro, <strong>Bear</strong>.<br />

—Exatamente.<br />

—Exatamente. —Ela concorda. —Você não concorda que um advogado que<br />

atua em direito de família possa lhe dar, pelo menos, algumas opções?<br />

—Eu tenho o poder legal. —Digo.<br />

Ela nega com a cabeça.<br />

—Não é o mesmo. Um poder legal é algo fácil de impugnar. A plena<br />

custódia não.<br />

—Não posso pagar por isso. —Eu me apresso a dizer, adivinhando o que<br />

viria em seguida.<br />

—Não se preocupe por isso. —Diz Creed.<br />

—Creed…<br />

—<strong>Bear</strong>, quem eu sou?<br />

Suspiro.<br />

—Meu irmão.<br />

Arqueia a sobrancelha.<br />

—Meu irmão mais velho.<br />

—Exato. E o que meus pais têm em abundância?<br />

—Paciência com alguém como você?<br />

Ele me fulmina com o olhar.<br />

Volta a suspirar.<br />

—Renda disponível.<br />

—E quem acaba de fazer um grande discurso sobre a família, o amor e<br />

outras coisas de gays?<br />

Maldição.<br />

—Eu.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—Então vou a mandar uma mensagem de texto aos meus pais agora<br />

mesmo, enquanto a senhora Paquinn faz algumas chamadas e solucionaremos isto.<br />

E logo se arrastará de joelhos rezando para que <strong>Otter</strong> tenha perdido o juízo por<br />

completo e volte a aceitar você.<br />

—Eu…<br />

—Você o quê?<br />

Fico olhando para o chão.<br />

—E se ele não me aceitar de volta?<br />

—Você o culparia por isso? —Pergunta Creed com curiosidade.<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Tenho medo. —Repito.<br />

Levanto os olhos para ele.<br />

Seus olhos se suavizam e volta a rodear-me com seus braços.<br />

—Eu também. Mas se não o arriscamos, de que servirá tudo isso?<br />

Estou bem, até que me beija a bochecha.<br />

Rodeado por minha família, para o bem e para o mal, me desmorono.<br />

Espero que pela última vez.<br />

Página316


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

14<br />

Quando <strong>Bear</strong> faz como Moisés e separa as águas<br />

Página317<br />

Assim, eu saí do armário (na qualidade de quê, eu ainda não sei). Eu ainda<br />

acredito no que eu disse a <strong>Otter</strong>, que não se pode ser gay por uma pessoa só, mas<br />

nesses últimos dias estou questionando isso cada vez mais, pois só quando eu<br />

penso nele eu suo frio. Já não sei o que diabos eu sou. Posso dar uma imagem<br />

favorável de mim mesmo, mas pelo visto, minha obsessão com ele pode se impor<br />

mais depressa do que qualquer outra coisa que eu já vivi. Por mais que eu gostasse<br />

de acreditar que controlo a situação, sei que sou apenas um passageiro.<br />

E para onde me levou essa viagem? Vou como um louco pelas ruas em meu<br />

carro na noite da festa de despedida de Creed, depois de receber uma chamada sua<br />

anunciando que <strong>Otter</strong> ia embora e tinha que ir imediatamente. Infrinjo toda a lei de<br />

trânsito de Oregon, sabendo que se um policial tentar me alcançar, o mais provável<br />

é que termine saindo no noticiário das onze, depois de protagonizar uma<br />

perseguição policial a 140 quilômetros por hora pelas ruas do centro de Seafare.<br />

Mas, de alguma forma, eu consigo.<br />

Há demasiados carros ao redor da casa, assim, como é natural, subo no meio<br />

fio e estaciono no jardim da frente, sem me lembrar de estacionar no pátio e sem<br />

me preocupar em desligar o carro, enquanto corro até o interior da casa. A música<br />

é alta e há pessoas em todos os lugares. O álcool corre à solta e alguns gritam meu<br />

nome surpreendidos, porque, em teoria, não deveria estar aqui. Havia decidido<br />

não aparecer. Subo as escadas correndo, derrubando as pessoas pelo caminho e me<br />

esquecendo de me desculpar, porque, em realidade, isso não importa, a única coisa<br />

que importa nesse momento é ele, e penso em me deter quando chego diante de<br />

sua porta, a placa que anuncia:«Quarto de <strong>Otter</strong>» não é mais que um fantasma que<br />

somente eu posso ver, mas não me detenho. Empurro a porta e esta se abre, o que<br />

sobressalta aos dois homens que estão lá dentro. <strong>Otter</strong> levanta os olhos da sua<br />

posição, apoiado contra sua velha mesa e a expressão de seu rosto está cheia de<br />

algo, algo que não consigo distinguir. Ele arregala os olhos quando os fixa em mim<br />

e o brilho verde-ouro se intensifica. Quero pedir a ele para ficar, que eu estou<br />

consertando as coisas, que sinto muitíssimo e que, por favor, ele volte a me amar,<br />

pois não posso imaginar minha vida sem ele ao meu lado. E é, então, quando<br />

reparo no outro homem. O moreno e bonito desconhecido que se encaminha até


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página318<br />

mim, com um sorriso cauteloso no rosto, enquanto estende a mão dizendo:<br />

—Você deve ser <strong>Bear</strong>. Sou Jonah, o namorado de Oliver.<br />

O quê…?<br />

Bem, como isso aconteceu? Como eu termino estreitando a mão de um<br />

homem que odeio, ainda que nunca o tenha visto?<br />

Vejamos.<br />

Creed me prometeu que não diria nada a <strong>Otter</strong> até que toda a situação fosse<br />

resolvida. Eu lhe disse que era porque queria assegurar-me de que tudo estivesse<br />

resolvido. Mas ele sabia tão bem como eu que era porque não queria arriscar-me a<br />

nos machucar novamente. Também era difícil para ele, porque agora o segredo<br />

tinha sido revelado, Creed parecia demasiado entusiasmado para que eu e <strong>Otter</strong><br />

estivéssemos juntos.<br />

«—Não posso acreditar que não tenha me dado conta antes.—Disse. —Vocês foram<br />

feitos um para o outro. Vocês terão que ser capazes de aguentar as besteiras um do outro e<br />

deixar-me fora disso.<br />

»— Nossa, você sabe como fazer um cara se sentir bem! —Respondi, e gemi assim<br />

que essas palavras saíram da minha boca.<br />

»Ele sorriu para mim maliciosamente.<br />

»—Não, pelo visto, essa é agora sua missão. —Seu sorriso se apagou e seus olhos<br />

adotaram um expressão pensativa. —Mas, em sério, dói? O sexo anal, quero dizer. Sempre<br />

me perguntei…<br />

»Saí fugindo correndo da sala.»<br />

Tentei não perguntar muito sobre <strong>Otter</strong>, porque o que dizia estava acabando<br />

com minha determinação. Disse que <strong>Otter</strong> mal saia de seu quarto, e quando o fazia,<br />

dava a impressão de não haver pregado o olho e só falava com rosnados. Creed<br />

ignorava o que seu irmão fazia durante todo o dia dentro de seu quarto, mas eu<br />

podia imaginar e é por isso que tentei trancar esses pensamentos no fundo de<br />

minha mente. Estava ali, flutuando nas ondas, misturado ao resto do ruído brando.<br />

Necessitava emendar as coisas. Por todos nós. Mas não podia fazê-lo se <strong>Otter</strong> era o<br />

único que ocupava minha mente. Assim, eu o coloquei lá no fundo, constante, mas<br />

calado.<br />

<strong>Kid</strong> entendeu meus motivos, mas não esteve de acordo com o modo em que<br />

eu o fazia. «Por que não diz a ele? » —Ele me sugeriu em mais de uma ocasião. —<br />

«Pelo menos, saberia que há algo que esperar com ânsia, algo pelo qual vale a pena lutar.»<br />

Tentar negar a lógica de um garoto de nove anos mais inteligente do mundo,<br />

tornava a separação muito mais difícil. Não sabia como expressar minhas ações<br />

com palavras, explicar a eles que eu preferia morrer a ver <strong>Otter</strong> olhando para mim


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página319<br />

como fez da última vez que o enfrentei. Covarde? Talvez. Injusto? É possível.<br />

Egoísta? Sem dúvida. Mas, dentro da minha cabeça, eu sabia que estava me<br />

preparando para me entregar a ele pelo tempo que ele me quisesse (se este plano<br />

daria certo ou não, e se ele me aceitaria de volta ou não, se misturavam<br />

frequentemente; percebi que seguramente me declarariam demente com a<br />

quantidade de vozes que tenho dentro da cabeça).<br />

T<strong>amp</strong>ouco ajudava muito que eu sonhasse com ele todas as noites.<br />

Não ajudava em nada que esses sonhos fossem tão terríveis, tão<br />

dilacerantes. Não ajudava em nada que normalmente me despertava com o pau<br />

mais duro que nunca, obrigado a resolver o assunto com minhas próprias mãos.<br />

Me encurvava no banheiro com o corpo se queixando a gritos da familiaridade de<br />

minha mão, suplicando que fosse a mão dele forte e áspera, com esse puxão mais<br />

experiente que eu não teria jamais. Nessas noites, gozar era doloroso, como se<br />

viesse de um lugar muito mais profundo do que é humanamente possível. Ficava<br />

esgotado, observando meu reflexo, me perguntando de onde saíram essas rugas ao<br />

redor da minha boca, por que meus olhos avermelhados não recuperavam seu<br />

aspecto normal. Aquilo tinha que funcionar. Tinha que funcionar.<br />

A senhora Paquinn foi fiel à sua palavra e marcou um encontro meu com<br />

Erica Sharp, uma advogada da renomada empresa Weiss, Goldstein e Eddington.<br />

Eu disse à senhora Paquinn que eu nunca tinha visto nenhum dos seus comerciais.<br />

Ela me respondeu que estava muito feliz que eu estivesse trilhando o meu próprio<br />

caminho para o mundo real. Acho que ela pretendia que fosse um insulto, mas não<br />

consegui determinar em que sentido. Pediu a retribuição de uns quantos favores, e<br />

alguns dias depois tinha um encontro com uma advogada de Portland.<br />

No dia do encontro me coloquei diante do espelho para tentar ajeitar a<br />

gravata, que por alguma razão parecia empenhada em estar ao contrário. Estava<br />

atento por uma possível batida na porta que anunciasse a chegada da senhora<br />

Paquinn que ficaria como babá, quando ouvi um suspiro.<br />

—Eu não entendo por que eu não posso ir com você. Afinal de contas, você<br />

pretende me adotar. Você não acha que talvez queiram ouvir minha opinião?<br />

—Eu já disse. —Murmurei, enquanto me perguntava como diabos a ponta<br />

estreita da gravata era mais larga que a grossa. —Só vou lá para um primeiro<br />

contato. Devo verificar primeiro se ela pode nos ajudar antes que decidamos fazer<br />

algo.<br />

Era evidente que a maldita gravata estava com defeito.<br />

Ty suspirou de novo, se colocou diante de mim e me empurrou para trás,


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página320<br />

para que me sentasse na cama. Afastou minhas mãos com as suas e eu levantei o<br />

queixo, me olhei no espelho e me perguntei se deveria ter cortado o cabelo. Ou ter<br />

raspado a incipiente barba que era rala em meu rosto.<br />

—Vai dar tudo certo. Afinal das contas, você usa gravata e tudo, não? —<br />

Disse, com um sorriso evidente na voz. — Você vai ficar bem quando tiver que<br />

flertar com ela?<br />

Olhei para ele com uma sobrancelha levantada.<br />

—Flertar com ela? Por que diabos eu iria fazer isso?<br />

«Talvez devesse trocar de camisa.» Pensei.<br />

— Bem, eu estava tentando pesquisar toda essa situação. —Respondeu,<br />

enquanto passava uma ponta da gravata ao redor da outra. —Assim, pensei que<br />

talvez eu deveria assistir a televisão para isso, porque a última vez que liguei o<br />

computador havia um papel de parede com um cara usando um jock strap 26 e<br />

segurava uma bola de futebol.—«Maldito Creed!». —O qual, por certo, seguramente<br />

você deveria se livrar, já que está tentando conseguir a custódia de um garoto de<br />

nove anos. Não acho que isso ficará muito bem nos julgamentos.<br />

Afoguei todo o pensamento que se dispunha a brotar de meus lábios.<br />

Reparei em que <strong>Kid</strong> continuava falando, alheio ao fogo que se propagava<br />

lentamente pelo meu pescoço.<br />

—Afinal de contas, por que alguém deveria usar isso? Os jock strap são de<br />

mau gosto, e você acha realmente que jogaria futebol sem as calças?<br />

—Isto… <strong>Kid</strong>, acho que seria uma boa ideia que este tema não voltasse a sair<br />

nunca mais, sobre tudo se recebermos a visita de uma assistente social para levar<br />

adiante todo esse assunto. Não creio que apreciassem as sutis matizes de sua linha<br />

de investigação.<br />

Subiu de um golpe só da gravata até meu pescoço, com o que cortou o resto<br />

me minha reprimenda.<br />

—Não ria de mim, Derrick. —Ele repreendeu.<br />

Eu me senti devidamente repreendido.<br />

—E a advogada? —O lembrei.<br />

Deu um passo atrás para revisar sua obra. Olhei-me no espelho e vi que a<br />

gravata estava impecável. Não conseguia entender como diabos ele sabia coisas<br />

como essa.<br />

—Certo. —Ele disse. —A advogada. Bem, como seu pornô estava em nosso<br />

computador, e pensei que seguramente já estava traumatizado pela vida toda,<br />

26<br />

Protetor dos órgãos genitais dos atletas para não se machucarem nessa região. Uma espécie de cueca.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página321<br />

então eu pensei que ver algum programa de advogados me ajudaria a entender<br />

advocacia.<br />

—E? —Perguntei, encaminhando-me até o banheiro para escovar os dentes.<br />

Ty me seguiu.<br />

—Bem, encontrei um programa, e a advogada era uma mulher linda. Bem,<br />

de fato, todas as mulheres eram lindas, o que me pareceu um descrição pouco<br />

realista do lugar de trabalho. Todas as mulheres que trabalham contigo não são<br />

todas bonitas, então eu acho que a realidade se perde um pouco com os produtores<br />

de TV.<br />

Eu resmungo minha resposta com a boca cheia de pasta de dente.<br />

—Enfim, todas as mulheres do escritório de advogados tinham certas<br />

dificuldades em sua vida amorosa, e havia um tipo que tentava convencer a<br />

advogada realmente bonita de que assumisse seu caso Pro Bono. Que, no caso de<br />

não saber o que significa...<br />

—Para o bem do povo —Eu disse, engasgando-me com a escova de dentes.<br />

—Bem, ele começou a paquerar com ela, dizendo que podia fazer com que o<br />

caso valesse seu tempo, e então ela tirou a blusa, ele tirou as calças e depois a<br />

mulher decidiu representá-lo. Por que o homem tinha um bom argumento e bons<br />

atributos.<br />

Fico olhando seu reflexo.<br />

—Que programa de advogados é esse?<br />

Ele deu de ombros.<br />

—Ele antecede «Dateline 27 ». A questão é que talvez tenha que paquerar com<br />

a advogada. A sociedade necessita que fomente o amor próprio de uma advogada.<br />

Ele quase havia terminado esta última frase quando sua aparência se<br />

relaxou e um sorriso iluminou seu semblante.<br />

—Seu merdinha! —Gritei para ele, que saiu correndo do banheiro, comigo<br />

em seus calcanhares.<br />

—Os vizinhos não nos darão um testemunho favorável se ouvem você<br />

maltratar uma criança!—Gritou por cima do ombro.<br />

Se deteve depois de rodear a mesa da cozinha, interpondo-a entre ambos.<br />

—Creio que os vizinhos passarão por alto esta ocasião. —Eu disse sorrindo.<br />

Fingi que ia para esquerda e fui para a direita. Ele pulou, eu o agarrei pelo<br />

braço e o virei de cabeça para baixo, com os pés na minha cara, os braços<br />

27<br />

Dateline NBC, ou Dateline, é uma revista eletrônica estadunidense exibida semanalmente pela National<br />

Broadcasting Company.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página322<br />

pendurados e o rosto vermelho.<br />

—Largue-me, seu macaco grande! —Gritou para mim. —Não é assim como<br />

se deve comportar alguém que usa gravata!<br />

—Sim, se a pessoa que usa tem um irmãozinho chato que pensa que é muito<br />

engraçado! —Eu gritei de volta.<br />

Eu segurei suas duas pernas com a dobra do meu braço quando me abaixei<br />

para fazer cosquinha em sua barriga.<br />

—Oh, que civilizado! — Ele bufou entre gritos de riso. — Tenho certeza que<br />

você vai arrasar com certeza. Devo fazer as malas agora para quando eles vierem<br />

para me levar embora?<br />

Isto me detém em seco. Todos os temores condensados em uma frase curta,<br />

expressada no riso de uma criança.<br />

O abaixei com cuidado, apoiando seus pés no chão, e me ajoelhei diante<br />

dele. Ainda ria tolamente, com lágrimas escorrendo pelo seu rosto vermelho. Eu<br />

levantei uma mão e afastei o cabelo da testa.<br />

—Você sabe que eu nunca permitiria isso, não é? —Murmurei.<br />

Ele sorri, e foi lindo. Ele pulou em meus braços e se limitou a responder:<br />

—Eu sei.<br />

Bateram à porta.<br />

—Talvez devesse abrir. —Disse, soltando-me.<br />

Me encaminhei até a porta esperando encontrar a senhora Paquinn, mas não<br />

Anna e Creed. Mas os três estavam ali.<br />

—Estamos todos prontos? —Perguntou Creed com um sorriso no rosto.<br />

—Estamos?<br />

Me empurrou para um lado e entrou, deixando espaço para Anna e para a<br />

senhora Paquinn. Todos ignoraram minhas narinas dilatadas e a veia que pulsava<br />

em minha testa.<br />

—Bem, sim. —Disse Creed. —Você já se deu conta de que não iria sozinho,<br />

não é? Não seja estúpido, <strong>Bear</strong>.<br />

—Sim, não seja estúpido. —Repetiram em coro Anna e a senhora Paquinn.<br />

—Sim, não seja…<br />

—<strong>Kid</strong>, não se atreva a dizer mais nenhuma palavra. —Provoquei. Me voltei<br />

para os demais. —Deixei muito claro que eu iria sozinho. Eu disse isso<br />

explicitamente. Houve alguma coisa nessas palavras que não foi compreendida?<br />

A senhora Paquinn revirou os olhos.<br />

—Não seja bobo, querido. Não foi você que disse todas essas coisas sobre


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

que éramos uma família e tudo isso? Me lembro de que me comoveu até me fazer<br />

chorar. A você não, Anna?<br />

Anna assentiu e me olhou nos olhos.<br />

—Claro que sim, senhora Paquinn. E nos disse quanto nos amava e que<br />

necessitava nossa ajuda. Não é verdade, <strong>Kid</strong>?<br />

«Oh, nossa, agora ela quer me ajudar.» Pensei.<br />

—Certo. —Respondeu <strong>Kid</strong>, e me perguntei se não haveria escrito o roteiro<br />

daquela cena, pois parecia um pouco demasiado perfeita. — E como na realidade<br />

se trata de mim, creio que deveria poder decidir quem irá.<br />

—E então? —Perguntou Creed.<br />

—Iremos todos —Respondeu Ty, sorrindo.<br />

—E Creed disse que eu conduzirei! —A senhora Paquinn disse em risada.<br />

—Você sabia que ela participou de corridas de carro? —Perguntou Creed.<br />

Ela sorri.<br />

******<br />

Página323<br />

—Você trouxe sua equipe de animadores, não é? —Disse a senhorita Erica<br />

Sharp, da Weiss, Goldstein y Eddington, olhando por cima do meu ombro para<br />

<strong>Kid</strong>, Anna, Creed e a senhora Paquinn, todos sentados detrás de mim em seu<br />

<strong>amp</strong>lo escritório.<br />

Fiz uma careta.<br />

—Pode-se dizer isso.<br />

Omiti lhe explicar que quando a secretária mencionou meu nome e me fez<br />

sinal para que entrasse na sala de Erica, todos se levantaram como se também<br />

fossem chamados.<br />

Sabia que todos sorriam como tontos detrás de mim.<br />

Erica mexeu alguns papéis sobre sua mesa.<br />

—Bem, depois de falar contigo por telefone e efetuar algumas<br />

comprovações para verificar seu emprego, domicilio e outros dados, tenho que lhe<br />

dizer, Derrick…<br />

—<strong>Bear</strong> —Corrigiu <strong>Kid</strong> às minhas costas.<br />

A mulher arqueou uma sobrancelha.<br />

—Perdão?<br />

Tirei a gravata. Estava me asfixiando.


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Página324<br />

—Seu verdadeiro nome é Derrick, mas todo o mundo o chama de <strong>Bear</strong>. —<br />

Explicou <strong>Kid</strong>, tomando-se todo o tempo do mundo.<br />

Erica concordou com a cabeça.<br />

—Bem, nesse caso, <strong>Bear</strong>, tenho que dizer que me parece que poderei lhe<br />

ajudar. Há quanto tempo disse que tem cuidado dele?<br />

—Hum… nos últimos três anos.<br />

—E sua mãe se… foi?<br />

Levantou um pouco a voz ao pronunciar esta última palavra.<br />

—Ela foi embora para um lugar desconhecido. —Eu respondi, como se isso<br />

explicasse tudo.<br />

—Sim, entendo. Você sabe para onde?<br />

Neguei com a cabeça. Percebi que todos faziam o mesmo às minhas costas.<br />

A advogada pressionou uma tecla de seu telefone.<br />

—Josh?<br />

—Sim, doutora Sharp?<br />

—Necessito que faça uma localização de difícil contato. —Consultou suas<br />

anotações. —Uma tal Julie McKenna. <strong>Bear</strong>, qual é sua data de nascimento?<br />

Eu disse e ela transmitiu a informação para Josh.<br />

—E o pai de Tyson? —Me perguntou.<br />

—Seu pai nunca teve nenhum papel nisso. Por que me pergunta a data de<br />

nascimento de minha mãe? O que é uma localização de difícil contato?<br />

Se inclinou para frente.<br />

—Bem, será necessário encontrar sua mãe e notificá-la sobre esse processo.<br />

—O quê? —Estalei. Como diabos se atrevia? Fiz menção de levantar-me,<br />

com a intenção de pegar <strong>Kid</strong> pela mão e sair como um furacão, quando notei<br />

quatro pares de mão sobre meus ombros, contendo-me. Isso só me enfureceu ainda<br />

mais. —Você não pode trazê-la de volta! —Provoquei. —Fará todo o possível para<br />

foder com tudo isso!<br />

Erica me observou com serenidade. Não cabia dúvida de que estava<br />

acostumada a que as pessoas gritassem com ela. Ao final das contas, era advogada.<br />

—Tecnicamente, ainda é sua mãe e tutora legal. Pelo que você me contou, a<br />

procuração que você recebeu não foi feita corretamente, sobretudo porque se refere<br />

a um menor. Somos obrigados a notificá-la, a dar-lhe uma oportunidade de<br />

responder. E o mesmo com seu pai, se ainda forma parte da vida de Tyson. Mas se<br />

o que diz é certo, e se desapareceu durante os últimos três anos sem nenhuma<br />

visita de cortesia, nenhuma ligação, nem nenhum dinheiro, então creio que não


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página325<br />

teremos nada em que nos basearmos.<br />

Gemi.<br />

—Maldição.<br />

—Há algo que eu deveria saber, Derrick?<br />

—Se chama <strong>Bear</strong> —Disseram em coro quatro vocês detrás de mim.<br />

—Oh, merda. —Eu passei as mãos pelo rosto. —Ela voltou de repente, faz<br />

uns dias. E…<br />

—E o quê?<br />

—Ela apareceu do nada! —Soltou Anna.<br />

—Como se nunca tivesse ido embora. —Resmungou Creed.<br />

—Foi realmente como um pesadelo. —Disse a senhora Paquinn, fungando.<br />

—E o ameaçou! —Exclamou <strong>Kid</strong>.<br />

Me perguntei se a doutora Erica Sharp, de Weiss, Goldstein e Eddington,<br />

não teria em sua mesa uma pistola que pudesse me emprestar para poder sair de<br />

minha desgraça.<br />

—Ameaçou você? —Perguntou Erica, já sem o sorriso em sua voz.<br />

—Hum, sim. Pode-se dizer isso.<br />

Voltou a se inclinar para frente e franziu a testa.<br />

—<strong>Bear</strong>, ou fez ou não fez. Com o que lhe ameaçou?<br />

Fiquei em silêncio. Não sabia o dizer àquela pessoa, até uns vinte minutos<br />

atrás, havia sido uma perfeita desconhecida. Me levou meses para confessar para<br />

as pessoas mais próximas de minha vida e agora tinha que soltá-lo para aquela<br />

mulher que olhava para mim como se fosse uma nova espécie de bicho? Fiquei em<br />

silêncio. Silencioso até que <strong>Kid</strong> se levantou de seu assento e rodeou a minha<br />

cadeira, afastou meus braços do meu colo, se instalou ali e se inclinou para<br />

sussurrar para mim:<br />

—Papai <strong>Bear</strong>, necessito que faça isso. <strong>Otter</strong> necessita que faça isso.<br />

Eu desafio vocês a tentar lutar contra essas palavras tão doces.<br />

Olhei para Erica por cima do ombro de <strong>Kid</strong>, enquanto o rodeava em meus<br />

braços. Os olhos da mulher se suavizaram e nos observou detidamente.<br />

—Ameaçou levar <strong>Kid</strong> se eu não rompesse com meu namorado.<br />

—E o que você fez? —Perguntou Erica com voz apagada.<br />

Fechei os olhos com força.<br />

—Terminei com meu namorado.<br />

—Compreendo. E como reagiu seu namorado a tudo isto?<br />

—Pois… isto… eu não lhe disse que foi por causa dela.


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Página326<br />

Ela bufou.<br />

—Presumo que ele não esteja bem?<br />

—Isso é um eufemismo. —Murmurou Creed.<br />

—Você terá que perdoar a Creed —Interviu a senhora Paquinn. —O<br />

namorado de <strong>Bear</strong> é seu irmão.<br />

Erica ficou nos olhando.<br />

—Entendo.<br />

—E Anna é a ex namorada de <strong>Bear</strong>. —Diz Creed.<br />

—E Creed é o melhor amigo de <strong>Bear</strong>. —Explicou Anna.<br />

—E eu sou a senhora Paquinn. —Exclamou a senhora Paquinn<br />

triunfalmente.<br />

—Isto é tanto por <strong>Otter</strong> como por mim. —Disse <strong>Kid</strong>.<br />

—<strong>Otter</strong>? —Perguntou Erica.<br />

—O namorado de <strong>Bear</strong>, o irmão de Creed. —Esclareceu a senhora Paquinn<br />

com paciência.<br />

—<strong>Bear</strong> e <strong>Otter</strong>? —Perguntou Erica.<br />

Devo dizer em seu favor que não se mostrou nada desconcertada.<br />

—<strong>Bear</strong> e <strong>Otter</strong>. —Concordaram todos.<br />

—E por que é tanto por ele como por Tyson?<br />

—Porque <strong>Bear</strong> meteu na cabeça que não pode recuperar <strong>Otter</strong> até que <strong>Kid</strong><br />

esteja fora de perigo. —Respondeu Creed.<br />

—E, para começar, o idiota de <strong>Bear</strong> não deveria ter terminado com ele<br />

nunca. Pelo menos não sem explicar o que realmente estava acontecendo —Disse<br />

Anna. E logo acrescentou: —Eu já deveria saber. Terminamos porque ele não foi<br />

capaz de me dizer que estava apaixonado por <strong>Otter</strong>.<br />

—Isso não é verdade. —Respondi. —Terminamos porque eu menti para<br />

você.<br />

—Sobre estar apaixonado por <strong>Otter</strong> —Disseram em coro Anna, Creed, a<br />

senhora Paquinn e <strong>Kid</strong>.<br />

—Esta situação não é tão complicada como parece. —Anunciei para Erica,<br />

que continuava nos olhando.<br />

<strong>Kid</strong> começou a rir.<br />

—Não, é muito pior. <strong>Bear</strong> e <strong>Otter</strong> querem ficar juntos, mas <strong>Bear</strong> não fará<br />

nada a respeito até que esteja seguro de que nossa mãe não me levará embora.<br />

—E por isso estamos aqui. —Concluiu a senhora Paquinn.<br />

Todos olharam com expectativa para a doutora Sharp.


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Página327<br />

—Deixe-me ver se entendi direito. —Diz, que logicamente, fez com que<br />

Creed e <strong>Kid</strong> rissem disfarçadamente. Os fulminei com o olhar e vi que também a<br />

senhora Paquinn ria baixinho. —Não só tenta conseguir a custódia de seu irmão<br />

mais novo, como também tudo isso determinará se volta com alguém, a quem é<br />

evidente que ama, mas a quem mentiu quando terminou com ele, e conta com o<br />

pleno apoio de seu irmão, sua ex namorada e seu irmão, do qual está tentando<br />

obter a custódia legal?<br />

—E da senhora Paquinn. —Acrescentou a senhora Paquinn, com o qual<br />

todos concordamos.<br />

—Isso parece correto. —Digo a Erica.<br />

—Você saia com <strong>Otter</strong> antes de sua mãe partir?<br />

Nego com a cabeça.<br />

—Isto é bastante recente.<br />

Meu clube de fãs soltou um risinho, mas ninguém falou.<br />

Erica franziu a testa e esfregou as mãos.<br />

—De modo que você diz que faz pouco tempo que começou a sair com<br />

<strong>Otter</strong>, e de repente sua mãe aparece do nada e pede que termine com ele? Como<br />

sabia de sua relação?<br />

«Diga a ele para voltar a San Diego.» Me havia dito. Recordei que havia<br />

sentido um calafrio por todo o corpo ao ouvir suas palavras. Mas com todo o<br />

ocorrido depois, havia esquecido disso. Como tinha descoberto tudo isso?<br />

—Eu não sei. —Respondi a Erica, ouvindo um zumbido agudo em meus<br />

ouvidos.<br />

—E disse que a única coisa que queria era que terminasse com <strong>Otter</strong> e<br />

depois foi embora?<br />

Assenti com a cabeça, percebendo só então, o ridículo que parecia.<br />

Erica suspirou, aparentemente pensando o mesmo.<br />

—Bem, parece que está tramando algo, mas não quero especular. Pelo que<br />

sabemos, ela poderia ter voltado para fazer exatamente o que fez, separar você de<br />

seu namorado, talvez tentando afirmar que ainda tinha certo controle sobre sua<br />

vida. Talvez contratou a um detetive privado para espionar a você e a <strong>Otter</strong>. Você<br />

viu ultimamente alguém que não tenha visto antes?<br />

Sacudi a cabeça, e ela olhou para o público reunido atrás de mim. Me voltei<br />

e todos negavam com a cabeça também. Procurei não demonstrar nada em meu<br />

rosto, mas as palavras de Erica me preocuparam muito. Por que minha mãe tinha<br />

voltado? O que queria? Havia alguém nos seguindo? Isso me assustava mais que


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as desconhecidas intenções de minha mãe. Talvez ela não soubesse que eu e <strong>Otter</strong><br />

estávamos juntos quando veio, mas sua presença em nossa casa e sua proteção<br />

sobre <strong>Kid</strong> e eu puderam explicar isso, ainda que <strong>Kid</strong> não tivesse dito nada.<br />

Erica deu de ombros.<br />

—Estou certa de que tudo isso se descobrirá em breve. Já parecem existir<br />

algumas perguntas que eu gostaria de fazer para sua mãe se tivesse ocasião.<br />

Eu gostaria tanto quanto ela.<br />

Ela me olha nos olhos.<br />

—Se isso der resultado e se conseguir a custódia de Tyson, você ficará com<br />

os dois? Com Tyson e com <strong>Otter</strong>?<br />

—Eu tenho que ficar. —Respondi em voz baixa. —São tudo o que eu tenho.<br />

Nos surpreendeu a todos rindo. Se levantou e me estendeu a mão,<br />

empurrando <strong>Kid</strong> de volta em meus braços.<br />

—Bem, Derrick e Tyson, será um prazer representá-los. Mas os advirto: este<br />

será um caminho duro de percorrer, e será necessário tomar decisões difíceis.<br />

Investigarão suas vidas como nunca se fez e levará muito tempo. A mãe de vocês<br />

pode ter motivos que ainda não conhecemos. E <strong>Bear</strong>, o mais provável é que saia à<br />

luz sua sexualidade, mas acho que temos uma boa possibilidade de vencer e o<br />

melhor é que você acredite nisso. Bem, necessito que preencha um monte de<br />

papéis, explicarei o que significa ser tutor legal e quando podemos esperar para ir<br />

a juízo. —Se deteve por um momento e olhou para nós. —Estão dispostos a fazêlo?<br />

<strong>Kid</strong> sorriu para mim. Notei o firme apoio às minhas costas.<br />

Como diabos poderia dizer não?<br />

******<br />

Página328<br />

—O que você quer dizer com não vai vir? —Gritou Creed por telefone. —<br />

Esta festa será grandiosa!<br />

Havia passado três dias desde nossa entrevista com a advogada, e havia<br />

estado temendo essa ligação desde que havia decidido não ir à festa de Creed. Não<br />

queria que a primeira vez que voltasse a ver <strong>Otter</strong> fosse entre uma centena de<br />

companheiros bêbados da universidade. Assim o expliquei a Creed.<br />

Ele suspirou.


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Página329<br />

—Poderia vir logo e falar com ele. Ainda não sei por que você está adiando<br />

isso por mais tempo. —Ele fez uma pausa antes de acrescentar: —Você não está<br />

pensando em mudar de ideia, não é?<br />

—Não! —Eu atirei. —Como diabos você pode me perguntar isso? Você não<br />

estava prestando atenção em mim nos últimos quatro dias?<br />

—É claro que sim. —Respondeu. —A única coisa que eu me lembro é <strong>Otter</strong><br />

isso, <strong>Otter</strong> aquilo. «Amo tanto <strong>Otter</strong> que digo coisas e faço chorar a todos os meus<br />

amigos.»<br />

—Não é culpa minha que seja emocionalmente sensível. —Rosno.<br />

—Imbecil. —Disse com afeto. —Bem, então quando? Não vai esperar todo o<br />

tempo que vai demorar para resolver o caso da custódia, não é?<br />

—Eu tinha considerado isso. —Admiti. —Mas Erica disse que pode levar<br />

meses, e não posso esperar tanto. Não é justo para ele.<br />

—Então vem agora e diz a ele antes da maldita festa!<br />

«Eu poderia.» —Pensei. —«Seria muito fácil para eu entrar no carro, ir a sua casa<br />

e esclarecer toda essa estupidez, e logo poderíamos transar, rir e chorar, e ele poderia dizer<br />

que me ama, e então nós desceríamos, ficaríamos bêbados e voltaríamos a subir e eu lhe<br />

demonstraria o quanto sinto realmente.»<br />

Era uma ideia muito sedutora. Mas nunca teria chegado onde estava (para o<br />

bem e para o mal) se não tivesse sido tão teimoso como demonstrei ser. Queria ser<br />

sincero com Creed e lhe explicar que o verdadeiro motivo era que me horrorizava<br />

ver <strong>Otter</strong>. A perspectiva de afrontá-lo depois das coisas que eu havia dito a ele me<br />

revirava o estômago, assim que tinha sido mais fácil dizer que me preocuparia<br />

disso no dia seguinte. No entanto, não o tirava da cabeça em nenhum momento, o<br />

qual fazia com que esse afastamento auto-imposto fosse mais difícil. Mas não<br />

conseguia fazer com que as palavras saíssem.<br />

—Quando, <strong>Bear</strong>? —Insistiu Creed.<br />

Foda-se.<br />

—Amanhã, então. —Concordei.<br />

Afastei o telefone do meu ouvido quando Creed começou a gritar como<br />

louco de contente.<br />

—E logo tudo poderá voltar à normalidade. —Disse alegremente.<br />

Eu bufei.<br />

—Voltar à normalidade? Você não tinha nem ideia do que estava<br />

acontecendo, então, como isso poderia voltar à normalidade?<br />

—Não seja difícil só porque você pode ser. —Resmungou Creed. —Não é


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Página330<br />

muito atraente. Talvez eu vá dizer a <strong>Otter</strong> agora mesmo para que saiba o que pode<br />

esperar amanhã.<br />

Me senti invadido pelo pânico.<br />

— Você não se atreveria.<br />

Ele riu maliciosamente.<br />

—Eu acho que sim.<br />

—Eu disse que farei isso amanhã!<br />

Ele começou a rir.<br />

—Eu deveria fazer planos, então? Para que vocês possam... se reconciliar?<br />

Pronunciou essa última palavra em voz baixa, rouca e ofegante. Eu revirei<br />

os olhos.<br />

—Bem, eu diria que sim, que você não deveria estar aí, mas a experiência do<br />

passado me indica que Anna, a senhora Paquinn, e <strong>Kid</strong> estarão presentes para me<br />

dar apoio, assim, não importa muito o que eu diga.<br />

—Deus, você tem uma grande família. —Declarou satisfeito.<br />

—Sim, sim. Eu já sei disso.<br />

—Tem certeza de que eu não posso convencer você?<br />

Suspirei.<br />

—Esta noite não. Vou passar essa noite tranquila com <strong>Kid</strong> e irei amanhã<br />

pela manhã. Vou ligar para você antes de sair.<br />

—Ok. E, hum…<br />

—O quê?<br />

Vacilou. E logo:<br />

—Depois que você terminar de falar ou fazer o que seja com <strong>Otter</strong>, preciso<br />

falar com você sobre uma coisa.<br />

Deixei escapar um gemido.<br />

—Você não vai me dizer que também tem um namorado, não é?<br />

Ele riu, mas percebi que estava desconfortável.<br />

—Não, santo Deus. O fato de que os dois principais caras da minha vida<br />

tenham passado para o lado obscuro não significa que eu tenha que fazê-lo<br />

também. Deixe-me fora de sua propaganda de conversão gay.<br />

—Nós somos seus principais caras? Quantos anos você tem, quinze?<br />

—Cale a boca, papai <strong>Bear</strong>.<br />

Senti curiosidade.<br />

—Está tudo bem? Aconteceu algo de ruim?<br />

—Não, tudo está bem. —Se apressou a responder.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—Então, por que não me diz agora?<br />

—Você virá para falar com <strong>Otter</strong> agora?<br />

—Ah, não. Não estou tão desesperado para saber, se não há nenhuma vida<br />

em perigo.<br />

—Não há.<br />

—Então amanhã, ok?<br />

—Amanhã. —Concordou.—E, <strong>Bear</strong>…<br />

—Sim?<br />

—Você sabe que tudo ficará bem, não é?<br />

Eu pensei por um momento.<br />

—Acho que sim. —Respondi lentamente. —Pode levar algum tempo, mas<br />

parece que assim será, não?<br />

—O que for preciso, cara. Você sabe, não é?<br />

—Sim. Creed, acho que eu não agradeci por você ter convencido seus pais<br />

para pagarem a...<br />

—Não tem que fazê-lo. —Ele interrompeu com voz rouca. Desejei poder ver<br />

seu rosto. —Basta pedir, e você sabe que farei tudo o que possa por você.<br />

—Eu sei. —Eu disse com voz baixa.<br />

—Até logo, papai <strong>Bear</strong>.<br />

Na próxima vez que falei com ele, Creed estava dominado pelo pânico.<br />

Página331<br />

*****<br />

<strong>Kid</strong> não gostou que eu tenha ficado em casa, mas aceitou a contragosto<br />

minhas razões para isso. Esqueceu sua frustração quando lhe disse que iria ver<br />

<strong>Otter</strong> na manhã seguinte para tentar recuperá-lo. Pulou no meu colo e balbuciou<br />

alegremente no meu ouvido.<br />

Eu decidi fazer o que ele quisesse para o jantar e ele foi para a internet e<br />

encontrou uma coisa vegetariana de aspecto asqueroso, que parecia ter sido<br />

retirado da parte inferior de um tronco úmido. Lhe disse que eu não tinha nenhum<br />

dos ingredientes para fazer aquilo. Me respondeu que era por isso que Deus havia<br />

inventado os supermercados. Em contrapartida eu lhe disse que Deus não havia<br />

inventado os supermercados. Ele respondeu que eu não dispunha de nenhuma<br />

prova disso e se eu não me sentiria estúpido se quando eu morresse fosse para o<br />

céu e visse o Food Mart de Deus. Lhe comentei que esse era um nome tonto para<br />

um supermercado. Me desafiou a encontrar um melhor. Eu lhe disse que o<br />

supermercado de Deus se chamava Maravilhoso Supermercado de Deus e que


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

tinham um oferta especial de pães de massa fermentada do Corpo de Cristo. Ele<br />

então me acusou de sacrílego. Lhe respondi que não éramos nada religiosos.<br />

Nós tínhamos acabado de sair do apartamento para ir até a loja quando a<br />

senhora Paquinn colocou a cabeça para fora.<br />

—Eu tomarei conta de <strong>Kid</strong> amanhã quando você for até à casa de <strong>Otter</strong>.<br />

Podemos combinar por volta das nove?<br />

Fiquei olhando para ela.<br />

—Como…? Maldição, Creed já ligou para a senhora?<br />

—Não banque o difícil, <strong>Bear</strong>. Não é muito atraente.<br />

Estreitei os olhos.<br />

—Andou falando com Creed.<br />

Ela sorriu.<br />

—Amanhã? Por volta das nove.<br />

Revirei os olhos.<br />

—Sim, a essa hora estaria bem. A senhora gostaria de jantar conosco?<br />

—Não, obrigada. Tenho que me deitar cedo para poder acordar cedo<br />

amanhã e estar pronta para cuidar de Tyson. Às nove.<br />

—Eu já entendi, senhora Paquinn. Eu já entendi.<br />

*****<br />

Página332<br />

Chegamos ao meu trabalho e deixei que <strong>Kid</strong> se ocupasse da lista, enquanto<br />

eu ia ao escritório para consultar o horário para a próxima semana. Eu estava de<br />

folga amanhã e não teria que estar lá até a tarde do dia seguinte. Era uma coisa<br />

boa. Me daria o tempo suficiente para me arrastar de joelhos, pedindo perdão a<br />

<strong>Otter</strong>, o qual com um pouco de sorte me obrigaria a ficar de joelhos por outros<br />

motivos, ou me daria tempo suficiente para localizar a ponte mais próxima de<br />

onde me jogaria quando ele me desprezasse.<br />

«Tem que dar certo.» Pensei.<br />

—Amanhã pela manhã estarei por lá às quinze para as nove.—Disse Anna,<br />

sobressaltando-me.<br />

Não a ouvi se aproximar. Vi como passava seu cartão de ponto pelo relógio<br />

para sair.<br />

—Amanhã? —Perguntei, confuso.<br />

—Bem, a senhora Paquinn me havia dito que cuidaria de <strong>Kid</strong>, e Creed disse


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

que você irá pela manhã, então eu pensei que poderia levá-lo e pegar Creed.<br />

Santo Deus.<br />

—Eu acabei de ter essas conversas. Como diabos você já sabe de tudo isso?<br />

—Gemi.<br />

Sorriu e deu de ombros.<br />

—Creed me ligou, e depois ligou para a senhora Paquinn. Não é tão difícil<br />

de entender, <strong>Bear</strong>.<br />

—Bem, me alegro muito que todos estejam interessados tão ativamente por<br />

isso.—Me queixei.<br />

Anna balançou o cabelo.<br />

—Bem, isso afeta a todos nós, sabe? —Ressaltou.<br />

Eu não sabia.<br />

—Como você sabe? —Perguntei, com evidente sarcasmo em minha voz.<br />

Seus olhos brilharam.<br />

—Não banque o difícil, <strong>Bear</strong>. Não é muito…<br />

—Atraente. Já sei, já sei.<br />

Ela esboçou um sorriso.<br />

—Procure estar pronto quando eu chegar, sem desculpas nem atrasos.<br />

Entendido? —Fez uma careta. —Talvez devesse cortar o cabelo antes de ir, de<br />

modo que <strong>Otter</strong> não pense que está concordando em amar uma pessoa sem-teto.<br />

Eu me esforcei ao máximo para não dizer tudo o que eu gostaria de dizer.<br />

Era uma batalha quase perdida, assim, me limitei a concordar com a cabeça.<br />

—Bem, agora tenho que sair correndo para ajudar Creed a preparar tudo. A<br />

que horas amanhã, <strong>Bear</strong>?<br />

—Às oito e quarenta e cinco.<br />

Ela sorriu e partiu.<br />

Que gente intrometida.<br />

*******<br />

Página333<br />

<strong>Kid</strong> gostou muito do jantar, afirmando que tinha sido genial. Eu disse que<br />

tinha gosto de serragem, de modo que eu coloquei ketchup e pedaços de bacon no<br />

meu prato. Ty me disse que achava que os gays tinham que ser elegantes, mas<br />

então olhou para mim de cima a baixo e acrescentou que até o estereótipos bons<br />

podem ser um prejuízo para a sociedade, porque parecia evidente que eu não era<br />

elegante. Ameacei colocar pedaços de bacon em tudo o que eu cozinhasse dali para


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página334<br />

frente. <strong>Kid</strong> respondeu que queria voltar para sua mãe. Eu disse que não tinha<br />

graça. Ele sorriu e sentenciou:<br />

—Algum dia terá.<br />

Eu deveria ter-me dado conta de que aconteceria algo. Sempre parece haver<br />

uma última coisa que ocorre antes que o protagonista de uma história encontre seu<br />

final feliz. Eu achava que essa última coisa já havia acontecido, com minha mal<br />

informada decisão de colocar fim a tudo e o fato de que havia aprendido Uma Lição<br />

Muito Valiosa. É assim como funcionam as histórias, não? Nosso protagonista<br />

comete um grande erro, ao fazê-lo, aprende algo importante que muda sua<br />

percepção do mundo. E com essa Lição Muito Valiosa aprendida, pode-se voltar<br />

atrás e desfazer todos seus enganos e, então, ele e o homem de seus sonhos<br />

poderão transar como coelhos ao pôr do sol. É assim como sempre funcionam as<br />

coisas. Por mais assustado que eu estivesse, fosse como fosse como acreditava que<br />

seria a conversa, eu não tinha nenhuma dúvida de que <strong>Otter</strong> tentaria, pelo menos,<br />

me escutar. Ele é muito melhor que eu nesse aspecto. Eu sabia que mesmo que não<br />

saísse como eu esperava, ainda que não conseguisse meu final feliz, não seria<br />

porque ele não me ouviu.<br />

A noite transcorreu com normalidade. Jantamos. Vimos TV. Conversamos,<br />

rimos, discutimos afetuosamente. Como sempre, os olhos de <strong>Kid</strong> começaram a<br />

fechar, dando cabeçadas e mesmo que tenha dito que não estava cansado o<br />

levantei em meus braços. Escovamos os nosso dente. Coloquei o pijama nele. Subiu<br />

na cama com as cobertas até o queixo. Falamos um pouco mais, de coisas que acho<br />

que ficarão somente entre nós, entre irmãos. Ele brincou com meus dedos<br />

enquanto falava, olhando-me fixamente. Por fim seus olhos se fecharam e um<br />

suave ronco escapou de sua boca entreaberta. Me inclinei, o beijei na testa e fechei<br />

a porta.<br />

Lavei a roupa. Limpei a cozinha. Limpei o banheiro. Vi um pouco mais de<br />

TV. Tentei não pensar muito no que aconteceria no dia seguinte, percebendo que<br />

eu poderia planejar cada palavra que eu ia dizer, mas minha boca se abriria e<br />

falaria por sua conta, assim que isso não servia de nada. Pelo menos se eu puder<br />

lhe dizer que eu o amo, que sempre o amarei, acho que estaria de acordo com todo<br />

o resto.<br />

Não me dei conta de que havia adormecido até que o barulho do telefone<br />

me despertou bruscamente. Olhei para o relógio: onze e quarenta e dois. Fiquei<br />

inconsciente apenas trinta minutos. O telefone voltou a tocar.<br />

Creed.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Revirei os olhos e atendi.<br />

—Já estamos ligando bêbados? Não é um pouco cedo para isso? Esperava<br />

que o fizesse a partir da uma.<br />

—<strong>Bear</strong>? —A voz de Creed soou forçada. Pude ouvir alguém murmurando<br />

ao fundo. Atrás, um estrondoso martelar de música. —<strong>Bear</strong>, você pode me ouvir?<br />

—Quanto você já bebeu? —Perguntei, rindo.<br />

—Cale a boca e escute! —Gritou.<br />

Sentei-me reto ao perceber o pânico em sua voz.<br />

—O que está acontecendo, Creed? Está tudo bem?<br />

—Não, não está nada bem. Ele está indo embora.<br />

—O quê? Quem?<br />

—<strong>Otter</strong>! Está fazendo as malas e vai embora!<br />

—O quê? —Sussurrei. —Para onde?<br />

—Para onde diabos você acha? Para Califórnia. <strong>Bear</strong>, você tem que resolver<br />

isso agora. Você não pode deixar que ele vá embora!<br />

—Mas…<br />

—Nada de mas! —Gritou Creed. —Agora!<br />

—Creed?<br />

—Sim, <strong>Bear</strong>?<br />

—É forte. Eu vou resolver isso.<br />

Ele respirou fundo.<br />

—Eu sei. Você vem agora?<br />

—Vou deixar <strong>Kid</strong> com a senhora Paquinn e saio em seguida. Não deixe que<br />

ele vá embora.<br />

—Se apresse. —Disse Creed e desligou.<br />

*******<br />

Página335<br />

Eu já disse a vocês que dirigi como um louco pelas ruas de Seafare. Também<br />

disse que subi no meio fio e deixei o carro ligado. E que subi correndo as escadas e<br />

invadi o quarto de <strong>Otter</strong>. Sabem o que me esperava dentro. O que não sabem é que<br />

quando ultrapassei um sinal vermelho (com certeza deixando a senhora Paquinn<br />

orgulhosa), notei que os tremores começavam novamente em minhas entranhas, o<br />

início de um terremoto que me fez bater os dentes. No entanto, sabia que de<br />

alguma maneira esse era diferente. Quaisquer que fossem os últimos vestígios que<br />

pareciam me agarrar, começaram a mover-se e agitar com o balanço da linha de


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

falha. O ruído brando, o quebrar das ondas, a escuridão do oceano, tudo estava<br />

sendo tragado pelo abismo que se abria em meu interior. Sabia que esse era o<br />

último momento, no qual podia avançar ou retroceder. Pisei no acelerador mais<br />

fundo, sabendo o que me esperava e que nunca jamais retrocederia. Sabia que sem<br />

ele eu não existiria. Ingênuo, eu sei. Equivocado, sem dúvida. Mas não importava.<br />

Havia aprendido minha Lição Muito Valiosa. Eu era o protagonista daquela fodida<br />

história. Começava a chegar ao meu maldito final feliz.<br />

Oh, Deus, teria que ter me dado conta.<br />

«Proibido estacionar. Merda. Quanta gente conhece Creed? E de onde? Suba no<br />

meio fio. O telefone toca. Uma mensagem de voz. Eu o olharei mais tarde. <strong>Kid</strong> está bem,<br />

acabo de deixá-lo. Tenho que chegar até <strong>Otter</strong>. Coloquei o carro no estacionamento. Esqueci<br />

as chaves! A porta principal. A música está alta. Tire-os da frente! Desculpe, desculpe,<br />

desculpe, perdão, perdão. SE MOVA! Onde diabos estão Creed e Anna? Escada. Corredor.<br />

Porta. QUARTO DE OTTER. Bato primeiro? Não, entro e aí está. Talvez seja… muito<br />

tarde. A porta se abre. <strong>Otter</strong>, junto à sua mesa. Em que estaria pensando? Tem os olhos<br />

arregalados. Verde-ouro. Deus, é tão bonito. Deus, como senti sua falta. Deus, como amo…<br />

quem diabos é esse cara? Por que sorri para mim? Por que se aproxima? Por que aperto sua<br />

mão?»<br />

—Você deve ser <strong>Bear</strong>. Eu sou Jonah, o namorado de Oliver.<br />

Página336<br />

BEM-VINDO ao presente. Com certeza desejara não ter vindo.<br />

Dou a mão a Jonah, e ouço <strong>Otter</strong> sussurrar algo, mas não posso distinguir o<br />

que seja pela pulsação do sangue em meus ouvidos. Quero erguer os olhos para<br />

olhar para <strong>Otter</strong>, e receber alguma maldita explicação sobre isso, mas não posso<br />

deixar de apertar a mão de Jonah. Ele aperta com força, mas não mais que eu.<br />

Quero quebrar seus dedos. Quero lhe arrancar o braço. Quero bater na cabeça de<br />

<strong>Otter</strong> com ele. É evidente que não precisa de mim. Volta para Califórnia com ele.<br />

Solto a mão de Jonah, dou a volta e saio do quarto, ouvindo <strong>Otter</strong> gritar atrás de<br />

mim. Pretendo virar à direita, mas em vez disso viro à esquerda, desejoso de<br />

encontrar Creed e quebrar sua cara também, por ter deixado Jonah entrar na casa.<br />

Por ter fodido comigo. O odeio. Odeio a todos. Ouço alguém correndo atrás de<br />

mim. Justo quando chego diante da porta de Creed e estou prestes a abri-la, ouço<br />

<strong>Otter</strong> gritar: «Não, espera!» Não espero e a porta se abre de um só golpe. O quarto<br />

está iluminado, a música está alta, mas minha vista está nítida, fria, concisa. A<br />

porta se abre, mas Creed e Anna não são rápidos o bastante, a voz de <strong>Otter</strong> não é<br />

forte o bastante, e vejo seus lábios grudados. Os braços de Creed rodeando a<br />

cintura de Anna, seus seios apertados contra o peito dele e, de repente, os últimos


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página337<br />

meses fazem todo o sentido. Onde Creed desaparecia, onde estava indo nas<br />

minhas costas. Eles se separam bruscamente, mas já é tarde demais. Eu já vi o<br />

suficiente. Meu coração grita, minha cabeça grita, meu corpo grita, ainda que eu<br />

permaneça calado. Quero me mover, mas não sei em qual direção. Meus olhos<br />

ficam nublados, minha mandíbula se aperta. Mas não posso me mover. Tenho os<br />

pés como se estivessem cravados no chão. Quero sair, quero sair<br />

desesperadamente e me afastar de tudo isso, chegar ao oceano e me afogar, pois<br />

não era mentira esse último terremoto? Não era uma ilusão? Será que eu não podia<br />

ouvir as palavras de Creed dentro da minha cabeça? Ele disse que precisava…<br />

«preciso falar com você sobre algo.»<br />

… dizer-me algo. Disse que…<br />

«está tudo bem.»<br />

… não era importante. Disse que podia esperar. E nesse momento, não dá a<br />

impressão de que Creed fala como <strong>Otter</strong>? Não ouço as vozes se misturarem e se<br />

fundirem até que Creed e <strong>Otter</strong> dizem…<br />

«não voltarei a falar com Jonah.»<br />

… coisas que soam como mel em meus ouvidos, como veneno em minhas<br />

veias? Não ouço <strong>Otter</strong>/Creed dizer que…<br />

«a luta por você é tudo o que eu sei.»<br />

… ele me ama? Tudo se desembocou nisso? É isto o que eu estava<br />

esperando?<br />

«CALE DE UMA VEZ E ESCUTE!» —Grita a voz—. «NÃO FAÇA ISSO,<br />

BEAR! PENSE DURANTE UM FODIDO SEGUNDO!» Eu a afasto.<br />

—<strong>Bear</strong>? —Diz Anna, com o rosto pálido. —<strong>Bear</strong>, por favor, me escute…<br />

—Eu ia lhe contar! —Suplica Creed. —Simplesmente aconteceu, e eu não<br />

sabia como dizer algo…<br />

Mas tudo isso desaparece quando noto suas mãos sobre meus ombros, suas<br />

grandes mãos, essas mãos que jurei que seriam sempre minhas.<br />

— Você estava sabendo disso? —Pergunto, minha voz como um terremoto.<br />

—Você sabia?<br />

Não resta a menor dúvida para quem essa pergunta está dirigida, e noto<br />

que suas mãos ficam tensas contra meus ombros, apertam dolorosamente. Se<br />

inclina para frente, sinto sua respiração quente em meu pescoço e me estremeço<br />

sem querer.<br />

—Eu descobri essa noite mesmo. —Sussurra <strong>Otter</strong>, apoiando sua testa<br />

contra meu cabelo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página338<br />

Recostar-me sobre ele seria fácil. Muito fácil.<br />

Eu me afasto.<br />

Creed se adianta, mas balanço a cabeça como um aviso e ele se detém. Seu<br />

rosto transmite o pânico que devemos experimentar todos. Mas o seu está tingido<br />

de culpa e isso é a minha perdição.<br />

—Você sabia? —Pergunto agora para Creed.<br />

—Saber? —Diz, confuso. —Saber o quê?<br />

—De Jonah.— Esclareço.<br />

Lança um olhar por cima do meu ombro, e sei que está olhando para <strong>Otter</strong>.<br />

Não me viro. Não posso.<br />

—O ex de <strong>Otter</strong>? O que tem ele? —Pergunta Creed, mas então Anna dá um<br />

passo para frente e lhe sussurra rápido em seu ouvido. Creed empalidece ainda<br />

mais, se é que é possível. —Esse era Jonah? <strong>Bear</strong>, juro por Deus que eu não sabia!<br />

Você acha realmente que eu teria o deixado entrar se eu soubesse? <strong>Otter</strong> nunca…<br />

—O que está acontecendo aqui? —Pergunta Jonah da porta.<br />

—Uma reunião familiar. —Respondo, dando a volta. —Eu já estava de<br />

saída.<br />

Dou um passo junto a <strong>Otter</strong>, que estica um braço para me segurar, mas eu<br />

afasto com um tapa. Jonah está apoiado no marco da porta, aparentemente<br />

tranquilo. E ainda conserva um sorriso no rosto. Antes de me dar conta do que<br />

faço, impulsiono um punho para trás e solto o braço e esmago meus dedos em seu<br />

nariz. Ele grita enquanto o sangue escorre das pontas de meus dedos e passo ao<br />

seu lado lhe dando um empurrão. Agora já não sorri. Filho da puta.<br />

A música martela quando percorro o corredor como um furacão, ignorando<br />

os olhares que atraio e a pulsante dor em minha cabeça. Ouço gritarem meu nome.<br />

Ouço gente correndo atrás de mim. Quase tropeço ao descer as escadas, golpeando<br />

foliões bêbados por toda a parte. A bebida de alguém sai voando. As pessoas<br />

devem estar vendo a expressão em meu rosto, o séquito que corre atrás de mim,<br />

porque se afastam, e sou como Moisés guiando os judeus, e todo o mundo se afasta<br />

do caminho. Volto a sair para o jardim. Meu carro ainda está ligado, com as luzes<br />

acesas. Entro, mas, lógico, o carro está de frente para a porta principal e começa a<br />

sair gente aos tropeções. <strong>Otter</strong>, Anna e Creed estão em frente. Vejo sangue de<br />

Jonah na camiseta de <strong>Otter</strong>. Me pergunto se <strong>Otter</strong> o terá abraçado para manchar<br />

seu ombro assim. Será que disse a ele que tudo se resolveria? É isso o que ele lhe<br />

disse?<br />

Todos gritam, mas eu não dou importância. Dou marcha ré e freio


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página339<br />

novamente. De alguma maneira, não atinjo nada nem ninguém. Levanto o olhar e<br />

vejo <strong>Otter</strong> avançando até mim, então eu piso no acelerador e dou o fora de lá.<br />

Mas não posso resistir: olho pelo retrovisor e vejo <strong>Otter</strong> correndo atrás de<br />

mim, descendo pela rua escura.<br />

Acelero.<br />

Minutos depois, meu celular toca. Uma chamada perdida de Creed. Tenho<br />

uma mensagem nova e uma mensagem gravada. A de Creed é de antes que<br />

chegasse à festa. «Ei, cara, não se mate vindo até aqui. Anna acha que talvez eu tenha te<br />

assustado demais. Além disso, creio que acaba de chegar um dos amigos dele. Não sei quem<br />

é. Lhe disse onde estava o quarto de <strong>Otter</strong>, mas que fosse rápido, porque você estava a<br />

caminho e era muito importante que falasse com ele o mais cedo possível. Se não lhe vejo<br />

quando chegar, já sabe que estarei por perto. Sempre.»<br />

A segunda mensagem é uma que estive guardando durante semanas. É de<br />

<strong>Otter</strong> e somente diz: «Amo você.»<br />

Estaciono em algum lugar. Não sei onde. Pego o celular e ligo para senhora<br />

Paquinn. Ainda não entraram em contato com ela.<br />

—Como foi, querido? —Pergunta com entusiasmo.<br />

—Bem. —Respondo alegremente. Demasiado alegre, mas ela não percebe.<br />

—<strong>Kid</strong> está bem?<br />

—Sim. Ainda dorme. Não acordou desde que você saiu.<br />

—Não sei se voltarei para casa esta noite. —Anuncio sem me alterar. —Tem<br />

algum problema Tyson ficar com a senhora? Chegarei em casa de manhã cedo,<br />

com um pouco de sorte antes que ele acorde.<br />

Ela começa a rir.<br />

—Não tem problema. Se ele acordar antes de você chegar, direi a ele onde<br />

você está e pedirei a ele para te ligar.<br />

—Obrigado.—Digo, com vacilação na voz.<br />

Ela o nota.<br />

—<strong>Bear</strong>, está tudo em ordem?<br />

—Tudo bem.<br />

Ouço um clic em seu telefone.<br />

—<strong>Bear</strong>, recebi outra chamada, mas não sei quem pode ser a estas horas.<br />

Divirta-se essa noite, ok? Tenha cuidado e dê lembranças a <strong>Otter</strong>.<br />

Concordo com a cabeça, sem me atrever a falar. Desligo o celular e deixo<br />

que as ondas me engulam.<br />

Momentos depois, levanto o olhar. Ouço o oceano, e sei que não é só dentro


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página340<br />

da minha cabeça. Saio do carro e solto um gemido em voz baixa, quando, em<br />

minha infinita sabedoria sob a pressão de uma crise psicológica, vejo que dirigi até<br />

a praia. Nossa praia. Aquela em que disse a <strong>Otter</strong> pela primeira vez que eu o<br />

amava. Já passa da meia noite, portanto não há ninguém. Estou sozinho. Não<br />

tenho nenhum outro lugar para ir, assim, suponho que dá no mesmo.<br />

Tiro os sapatos e caminho sobre a areia, notando como se separa e se move<br />

sob meus pés. A maré está alta e vejo que o lugar onde instalei minha mesinha,<br />

minha pequena surpresa para <strong>Otter</strong>, está completamente submersa. A água fria<br />

lambe meus pés e me sento na borda, sentindo o sal ao redor de meus tornozelos.<br />

Soa o celular. «<strong>Otter</strong>.» Ignorar.<br />

Soa o celular. «Creed.» Ignorar.<br />

Soa o celular. «Anna.» Ignorar.<br />

«Senhora Paquinn. <strong>Otter</strong>. <strong>Otter</strong>. Creed. Anna. <strong>Otter</strong>.» Chama uma e outra vez.<br />

Quero apagar, mas não posso. E se Tyson precisa de mim?<br />

Então eu me desligo.<br />

Eu deito sobre a areia, e a crista das ondas sussurra às minhas costas. Sinto<br />

como seu eu estivesse flutuando. A lua é brilhante e as estrelas são pedaços de<br />

gelo, esperando que o mundo pare de girar. Mas ficar a deriva desse modo parece<br />

bem. A voz quer falar, para dizer-me que reagi de forma exagerada, que não tinha<br />

nenhum direito a me comportar como fiz. A afasto, e avança flutuando no mar. É<br />

melhor não ter que pensar nesse momento.<br />

Meu celular emite um apito. Mensagem. Mensagem.<br />

O levanto com calma e o levo ao ouvido.<br />

<strong>Otter</strong>: «Creed me contou tudo, maldito idiota». —diz com voz pastosa e<br />

indignada. — «Oh, Deus, me contou tudo. Me disse porque. Me disse o que você vinha<br />

fazer aqui. Eu não sabia que Jonah viria! Ele apareceu do nada. Se você não atender esse<br />

maldito telefone, juro por Deus que o matarei.»<br />

Sua voz. Suas palavras. Avançam também no mar.<br />

Creed: «ATENDA O FODIDO TELEFONE! Como se atreve a fugir desse modo?<br />

Depois de tudo o que dissemos um ao outro, durante a última semana, como diabos se<br />

atreve? ATENDA O TELEFONE!»<br />

Anna: «<strong>Bear</strong>, estamos todos assustados. Creed e <strong>Otter</strong> estão perdendo a cabeça, e<br />

acho que eu também. Sinto muito que tenha descoberto isso assim. Por favor. Ligue para<br />

um de nós e diga onde você está.»<br />

Senhora Paquinn: «Ah, filhinho. Deveria ter me dito. Você tem que me ligar. Não<br />

quero que fique sozinho nesse momento. Não deixe que Tyson saiba assim.»


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

<strong>Otter</strong>: «Vamos para sua casa. Você tem que estar ali. Tem que estar.»<br />

<strong>Otter</strong>: «Por favor, <strong>Bear</strong>. Por favor, responda.»<br />

Tudo vai para o mar, onde se afasta à deriva.<br />

Tenho as costas recoberta de areia. Tenho frio. Há mais chamadas. As<br />

ignoro. Há mais mensagens, mas eu as apago.<br />

*******<br />

Página341<br />

O sol desponta sobre o horizonte da água quando <strong>Kid</strong> desce pela praia. No<br />

início pensei que fosse parte de um sonho, que ele também seria tragado pelo<br />

oceano, mas então se inclina para frente, passa as mãos pelo meu cabelo e parece<br />

muito real.<br />

—Como? —Pergunto.<br />

Ele bufa.<br />

—Não foi muito difícil adivinhar onde você estaria. Me estranha que<br />

ninguém mais soubesse.<br />

Me incorporo e noto areia endurecida contra as minhas costas. Me observa<br />

com seus olhos sagazes e inteligentes. Não olho ao redor porque sei que não pode<br />

ter vindo sozinho. Mas não noto a presença de ninguém mais na praia, assim que<br />

sei que estamos somente nós dois. Por agora.<br />

—Por que não veio para casa? —Pergunta.<br />

Dou de ombros.<br />

—Não pude.<br />

Ele nega com a cabeça e sobe no meu colo. Ainda está usando o pijama e<br />

não quero que se molhe, mas não se importa com meus protestos e se reclina sobre<br />

mim.<br />

Permanecemos uns momentos em silêncio. Até que:<br />

—Você confia em mim?<br />

O olho com surpresa.<br />

—Sempre.<br />

—Se lembra quando eu disse que não era mais que uma criança, que não<br />

podia cuidar de você sozinho?<br />

Concordo com um gesto de cabeça.<br />

Se inclina para trás e coloca suas mãos em meu rosto.<br />

—Confia em mim para que cuide de você?<br />

Não posso evitar: o esmago contra mim, sentindo seu calor.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página342<br />

—Sei que estraguei tudo.<br />

Ele ri em voz baixa.<br />

—Sim, você fez. Mas você é muito afortunado por ter alguém como eu para<br />

dizer isso.<br />

—Eles mentiram para mim.<br />

—Anna e Creed?<br />

Concordo com a cabeça.<br />

—Não mentiram sobre nada. Você nunca perguntou a eles. Somente<br />

optaram por não dizer a você. Não até que estivessem preparados para dizer a<br />

todo o mundo. Soa familiar?<br />

—Mas…<br />

Ele volta a sacudir a cabeça.<br />

—Não há maneira de continuar com isso, papai <strong>Bear</strong>. Eles fizeram<br />

exatamente o que você fez. E você se lembra de como terminou, não é? Todos<br />

apoiaram você, apesar de tudo.<br />

Abaixo a cabeça.<br />

—Pode ser que eu não seja o maior garoto do mundo, nem o mais<br />

inteligente, e pode ser que eu não tenha visto muito do mundo para aprender tudo<br />

o que há para saber, mas isso eu sei: as pessoas apaixonadas cometem as maiores<br />

idiotices. Você deveria saber melhor do que ninguém. Afinal de contas, você teve a<br />

sorte de amar a duas pessoas que lhe amaram. Mas você se afastou de <strong>Otter</strong>. Por<br />

duas vezes. Sem lhe dar nenhuma oportunidade em nenhumas das duas. Isso é<br />

justo?<br />

Não adiantaria nada discordar dele. Então, não o faço.<br />

—Você tem muita gente maravilhosa em sua vida, pessoas que estão<br />

dispostas a fazer qualquer coisa por você.—Sua voz começa a aquecer. —Eles se<br />

desdobraram por você e a única coisa que você fez foi afastá-los. Quanto tempo<br />

demorará para afastar a mim?<br />

Fecho os olhos com força.<br />

—Eu jamais…<br />

—Você diz isso agora! —Grita, cuspindo veneno e me surpreendendo com<br />

sua cólera. —Mas eu t<strong>amp</strong>ouco acreditava que algum dia afastaria a alguém<br />

próximo a nós! Como posso esperar cuidar de você se nem sequer quer cuidar de si<br />

mesmo?<br />

Não respondo.<br />

<strong>Kid</strong>, sentado em meu colo, continua dizendo:


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Página343<br />

—A gente tem tantas pessoas em nossas vidas, tantas pessoas que nos<br />

amam incondicionalmente. Por que você acha que é assim? Eu acho que é devido a<br />

ocasiões como esta, ocasiões nas quais acredita que todos foram embora e somente<br />

vê o vazio que deixaram em seu coração. E é grande, não é mesmo, <strong>Bear</strong>? Todos<br />

somos um quebra-cabeças, e quando um de nós se vai, falta essa peça e estamos<br />

incompletos. Você mais do que ninguém deveria ter se dado conta disso.<br />

― Você tem uma oportunidade, uma oportunidade de fazer algo por você,<br />

algo que seja somente por você, mas que pode compartilhar com o resto do<br />

mundo. Como se atreve a jogar isso em nossa cara?<br />

De repente <strong>Kid</strong> se levanta de frente para mim, e da a impressão de medir<br />

três metros de altura.<br />

Seus olhos brilham, ele aperta os dentes, e penso no quanto ele se parece a<br />

mim.<br />

—O <strong>Bear</strong> que conheço não deixaria que isso acontecesse. O <strong>Bear</strong> que<br />

conheço chutaria, gritaria e abriria caminho a todo custo para proteger o que é seu.<br />

O <strong>Bear</strong> que conheço não desistiria. E lutaria. E lutaria até que não sobrasse nada,<br />

porque o <strong>Bear</strong> que conheço nunca se renderia.<br />

—Eu dei um soco na cara de Jonah.—Digo como um bobo.<br />

<strong>Kid</strong> solta um risinho.<br />

—Eu já sei. <strong>Otter</strong> me disse. Eu falava em sentido figurado, burro.<br />

Seguramente não deveria bater em ninguém. Sabe por que?<br />

Sacudo a cabeça, ele se inclina e aperta os lábios contra a minha bochecha.<br />

—Porque não é mais que um garotinho. —Diz.—E necessita que todos nós o<br />

ajudemos a lutar. Deixe-nos fazê-lo, pelo menos desta vez.<br />

Levanto o olhar para ele.<br />

—Eu posso fazer isso? —Pergunto, esperançoso.<br />

Ele, que é grande, sábio e bondoso, diz que eu posso.<br />

Olho atrás dele, para o oceano, o sol e as ondas. Nenhuma de suas palavras<br />

admitem discussão. E sei, como sempre soube, que quando meu ecoterrorista<br />

vegetariano de nove anos em desenvolvimento me pede que faça algo, é melhor eu<br />

fazer.<br />

Estendo minhas mãos para ele que me ajude a levantar. O atraio para meu<br />

lado e me assombra que sua cabeça apenas chega à altura do estômago.<br />

—Sem você eu estaria perdido. —Digo sinceramente.<br />

Ele começa a rir.<br />

—É mesmo?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Olho o estacionamento, no alto da duna, e não vejo nada além do meu carro.<br />

—Você veio andando? —Pergunto.<br />

Ele nega com a cabeça.<br />

—Todos me trouxeram. Queriam descer e correr até você, mas lhes disse<br />

que fossem para casa. Que me deixassem sozinho. Que, às vezes, o que deve ser<br />

dito, somente deve ser dito entre irmãos.<br />

—Para onde vamos? —Pergunto, o que significa agora, ou seja para sempre.<br />

<strong>Kid</strong> olha para mim e me deslumbra mais uma vez.<br />

—Vamos para casa, papai <strong>Bear</strong>. Eles estão nos esperando.<br />

—Todos?<br />

—Todos.<br />

*******<br />

Página344<br />

O trajeto é silencioso. <strong>Kid</strong> me dá a mão, brincando com os meus dedos.<br />

Penso que tudo o que tínhamos que dizer um ao outro já foi dito, mas então o ouço<br />

murmurar algo para si enquanto olha para a janela. Quando ouço as palavras,<br />

sorrio:<br />

<strong>Otter</strong>! <strong>Otter</strong>! <strong>Otter</strong>!<br />

Não leve vacas ao abatedouro!<br />

Tenho que dizer que amo você<br />

Deveria tê-lo dito antes<br />

E você não deve comprar atum de golfinhos!<br />

Agora tudo está dito.<br />

Subimos as escadas até meu apartamento, com <strong>Kid</strong> levando-me pela mão.<br />

Tira a chave de seu esconderijo em sua roupa interior («Os pijamas não têm bolsos,<br />

<strong>Bear</strong>, não ria!») e a coloca na fechadura. A chave encaixa e gira. A porta se abre e<br />

<strong>Kid</strong> me puxa para dentro.<br />

No mesmo instante, se produz um est<strong>amp</strong>ido dentro da sala quando nossa<br />

família se aglomera no corredor, encabeçada por <strong>Otter</strong>. Nos vê no umbral da porta<br />

e vacila. Anna, Creed e a senhora Paquinn olham por cima de seu ombro. Todos<br />

ficamos plantados quietos, olhando uns para os outros. Deveria ser estranho, mas<br />

não é. Me sacio deles, dele. Seu peito sobe e desce rapidamente enquanto respira.<br />

Os músculos duros de seus peitorais esticam o tecido de sua camiseta de um modo<br />

alarmante. Seus braços se amontoam maciçamente quando os cruza sobre o peito.<br />

Tem a boca rígida, as fossas nasais dilatadas, a testa enrugada, mas seus olhos são


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

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o mesmo. Acho que sempre o serão.<br />

—Sinto muito. —Digo.<br />

Eu não tiro os olhos dele, sabendo que se de alguma maneira eu o faça,<br />

desaparecerá, e perceberei que isso não era nada mais que um sonho. Tento falar<br />

com voz firme, mas foi uma noite excessivamente longa para que isso ocorra.<br />

Minha voz treme um pouco e algo dentro de <strong>Otter</strong> se rompe e começa a correr, sem<br />

que a determinação abandone seus olhos em nenhum momento, e de algum modo<br />

eu sei que me rodeará com seus braços e o que se deve dizer não será dito. Levanto<br />

a mão para tentar detê-lo e dou um passo atrás. Rezo a Deus para não ter que<br />

voltar a ver nunca mais esse olhar, o que me dirige agora ao deter-se.<br />

—Ainda não… não, <strong>Otter</strong>. Primeiro tenho que falar com todos. Depois… já<br />

veremos.<br />

Ele balança a cabeça fortemente, dá meia volta e empurra todos para a sala.<br />

<strong>Kid</strong> puxa meu braço e, surpresa, o único lugar livre para sentar se encontra ao lado<br />

de <strong>Otter</strong>. <strong>Kid</strong> olha para mim com expectativa e assinala com o queixo o assento<br />

desocupado. Ele me solta e vai sentar no colo de Creed.<br />

Avanço com cuidado, calculando o número de passos que me separam de<br />

<strong>Otter</strong>. Sete. Levo três segundos para sair do devaneio e me sentar. Estalo os dedos<br />

quatro vezes. Conto mentalmente até dez. Levo doze segundos para pensar no que<br />

vou dizer, cinco mais percebendo que não terei nenhum controle sobre isso,<br />

dezessete segundos discutindo comigo mesmo, outros dez silenciando as vozes<br />

dentro da minha cabeça e então já se passaram um minuto inteiro em absoluto<br />

silêncio. Se alguém presenciasse essa cena sem saber o que ocorria, com certeza<br />

pensariam que éramos mímicos que faziam mímicas. Apenas tristes mímicos...<br />

Finalmente a senhora Paquinn age como a senhora Paquinn e interrompe<br />

meu inteligente monólogo interior dizendo:<br />

—<strong>Bear</strong>, acho que ter areia na bunda deve ser muito desconfortável. Talvez<br />

devesse ir se trocar. Você não vai querer contrair carrapatos de areia. De que<br />

adianta contraí-los, quando não está se divertindo fazendo isso?<br />

—Caranguejos de areia? —Eu esbravejo.<br />

—Caranguejos de areia. —Repete. —Posso imaginar que o resto de seu dia<br />

não seria muito bom se tivesse que procurar um médico e explicar-lhe como<br />

contraiu uma doença de transmissão sexual sem ter tido relações sexuais.<br />

—É considerado uma DST se são caranguejos de areia? — Argumenta Creed<br />

em voz alta.<br />

—Oh, sim. —Responde a senhora Paquinn. — Eu diria que isso é uma coisa


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real, mas eu não posso dizer com certeza porque eu estaria mentindo. Mas pareceme<br />

que certamente soa como uma coisa real, não é?<br />

— Você pode obter caranguejos de um assento sanitário. —Acrescenta <strong>Kid</strong>.<br />

— A MSNBC fez essa coisa de luz negra em quartos de hotel, e ele mostrou<br />

caranguejos no banheiro e ejaculado no teto.<br />

Isto realmente está acontecendo?<br />

—Meu Deus. —Suspira a senhora Paquinn. —Como chegaram até ali?<br />

—Os caranguejos? —Intervém Anna. —Bem, estou certa de que eles podem<br />

pular…<br />

—Não, querida, —A senhora Paquinn a interrompe. —As ejaculações no<br />

teto. Não parece humanamente possível. Nunca conheci um homem que pudesse<br />

fazer tal coisa. Não que eu tenha muita experiência no assunto. Meu Joseph, que<br />

Deus o tenha em sua santa glória, não era capaz de semelhante proeza sobrehumana.<br />

—Eu não sei. —Diz <strong>Kid</strong>, dando de ombros e com a testa enrugada pela<br />

concentração. ― Não disseram como chegaram até ali. Além do mais, o que é<br />

ejaculação? Eles não explicaram, mas quero saber por que aparece sob a luz<br />

infravermelha.<br />

A senhora Paquinn muda um pouco de posição para se dirigir a <strong>Kid</strong>.<br />

—Bem, Tyson, quando um homem e uma mulher, ou um homem e um<br />

homem, ou uma mulher e uma mulher, ainda que não acredito que funcione da<br />

mesma maneira, se amam muito e decidem ter relações, a ejaculação é o que sai e<br />

faz os bebês. Bem, faz bebês se é entre um homem e uma mulher. Se são dois<br />

homens, eu diria que o único que faz é uma bagunça.<br />

Ela olha para mim e <strong>Otter</strong> esperando um esclarecimento. Não damos<br />

nenhum.<br />

—Ah… —Diz <strong>Kid</strong>. —Então os açoites e o fisting fazem bebês também? Se for<br />

entre um homem e uma mulher, quero dizer?<br />

Eu sinto que engasgo.<br />

A senhora Paquinn fica séria.<br />

—Não sei nada sobre isso. Meu Joseph, que Deus o tenha em sua santa<br />

glória, jamais gostou desse tipo de coisas. Era muito «baunilha», como creio que o<br />

chamam hoje em dia.<br />

—Baunilha? —Pergunta <strong>Kid</strong>. —Uma vez eu experimentei sorvete de soja de<br />

baunilha e é asqueroso. Mesmo em se tratando de sorvete de soja.<br />

Creed começa a rir.


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—Acho que não é só a baunilha, <strong>Kid</strong>. Todos os sorvetes de soja são<br />

asquerosos.<br />

<strong>Kid</strong> lança um olhar furioso para ele.<br />

— Você diz isso, mas eu aposto que é apenas sua culpa induzida pelas<br />

vitelas falando.<br />

—Vitela é vaca, <strong>Kid</strong>. —Argumenta Creed. —Para que servem as vacas se<br />

você não pode comê-las?<br />

—As vitelas são os bebês das vacas! Por que você deveria comer os bebês<br />

das vacas?<br />

—As vitelas são os bebês das vacas? —Pergunta Creed, com um ar inocente<br />

e horrorizado.— Como é possível eu não saber disso?<br />

Anna lhe dá uns golpes no braço. Os observo com atenção enquanto ela diz:<br />

—Creio que há muitas coisas que você não sabe.<br />

—Está tudo bem, Anna. —Diz <strong>Kid</strong>, soltando um sofrido suspiro. —Tenho<br />

certa literatura que Creed pode levar para ler. Mudará sua vida.<br />

A senhora Paquinn funga.<br />

—Eu t<strong>amp</strong>ouco como vitelas, porque cada vez que imagino suas carinhas...<br />

me sinto culpada. Mas como um bife de vez em quando, já que ninguém considera<br />

que as vacas adultas sejam bonitas.<br />

—Realmente vitela são os bebês das vacas? —Sussurra Creed.<br />

—Foda, vocês todos enlouqueceram? —Grito.<br />

A senhora Paquinn aplaude.<br />

—Oh, bem, finalmente <strong>Bear</strong> decidiu falar.<br />

—Já era a fodida hora. —Murmura <strong>Kid</strong>.<br />

—Cuidado com a boca. —O adverte Anna, lhe golpeando com suavidade o<br />

dorso de sua mão. Logo dá um tapa na nuca de Creed. ― Ele tira esses palavrões<br />

de você, assim que cuide de sua linguagem também.<br />

—<strong>Bear</strong> acaba de dizer foda! —Se queixa Creed, esfregando o que sei que é<br />

uma ferida aberta em sua cabeça.<br />

—Bem, <strong>Bear</strong> se sentia excluído da conversa, e passou uma noite ruim. —<br />

Justifica a senhora Paquinn. — Acho que «foda» era o caminho mais direto para o<br />

que ele queria dizer.—De repente ela leva a mão à boca e solta um risinho ao<br />

mesmo tempo que cora. ― Foda era o caminho mais direto? Oh, o que acham?<br />

Estou dizendo frases graciosas hoje.<br />

Creed e Ty começam a rir. Anna volta a lhe dar uma cacetada. Todos se<br />

calam e olha para mim. Abro a boca para falar.


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Página348<br />

<strong>Otter</strong> me beija.<br />

Ouço exclamações de assombro entre nosso público quando ele segura o<br />

meus rosto com as mãos. Meus olhos se arregalam e olho para ele fixamente. Ele<br />

passa a ponta de seus dedos por minhas sobrancelhas e a testa, alisando todas as<br />

rugas e ondulações. Seus lábios estão quentes quando se movem sobre os meus,<br />

seus dedos deixam um rastro de fogo pelo caminho. E ainda assim, ele me olha. O<br />

verde-ouro está tão próximo que posso me enxergar em seu reflexo. Pareço a ponto<br />

de explodir. Então meu corpo de derrete, suspiro suavemente em sua boca, e ele<br />

beija o lado da minha mandíbula até a bochecha, a testa, o cabelo, os olhos. Me<br />

deixo cair sobre ele, ele me aperta com força entre seus grandes braços e eu solto<br />

tudo. Ele me acalenta para frente e para trás e o ouço sussurrar: «Nunca mais, você<br />

está ouvindo? Nunca mais. Se algo acontecer, você tem que me dizer. Preciso que você me<br />

diga. Eu preciso de você.» Aceno às cegas contra seu peito e ele me acaricia o cabelo.<br />

Ele me deixa ficar ali por um momento antes de levantar meu rosto e secar minhas<br />

lágrimas com seus beijos.<br />

—Quero que eles saiam. —Murmuro.<br />

Ele acena com a cabeça e exibe o sorriso torto em toda a sua intensidade.<br />

—Em breve. Antes Creed e Anna têm que falar com você. Depois iremos<br />

aonde você quiser. Somente eu e você.<br />

Volta a me beijar com delicadeza e me acomoda no sofá, me enrolando na<br />

dobra do seu braço protetor. Eu aperto sua mão com força, sem querer soltá-la.<br />

Acho que ele está sendo indulgente comigo, mas uma parte de mim acha que ele<br />

também não quer soltá-la, a julgar pelo modo que me agarra. Ele cheira tão<br />

malditamente bem. Esfrego meu rosto em seu peito, tentando secar a umidade. Seu<br />

coração bate apressado, e coloco minha mão livre sobre ele. <strong>Otter</strong> rosna em voz<br />

baixa, pega a minha mão e a estreita com mais força. Creio saber o que tenta dizer.<br />

Me sinto um pouco melhor sabendo que, pelo menos teremos ocasião de falar<br />

antes de... o que seja que aconteça.<br />

Olho para os demais, sentados frente a nós, e me surpreende os sorrisos em<br />

seus rostos, de Anna inclusive. O sorriso de Creed é um tanto forçado, pois estou<br />

certo de que ver seu irmão e seu melhor amigo se assumindo como um casal não<br />

está no topo de sua lista de tarefas, mas pelo menos tenta. Observo suas mãos<br />

entrelaçadas. O polegar de Creed acaricia o de Anna.<br />

—E vocês dois? —Pergunto, e tentando saber se ainda estou com raiva. —<br />

Isto é novo?<br />

Eles olham um para o outro e coram ligeiramente.


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Página349<br />

Anna fala pelos dois.<br />

Era uma vez, quando Anna terminou com seu namorado gay estúpido. Ela<br />

não sabia com certeza se ele era gay , mas sempre surgia algo em seu rosto cada<br />

vez que pronunciava a palavra mágica: <strong>Otter</strong>. Anna tentou não dar importância<br />

aos indícios, da sensação na boca do estômago que lhe roía por dentro. Aquilo não<br />

podia ser certo, não? Claro que seu estúpido namorado gay estava sempre a seu<br />

lado, sempre estava pronto para... atuar quando lhe pedia, então, por que aqueles<br />

pensamentos não desapareciam nunca?<br />

Um dia, a palavra mágica tomou uma decisão tonta e partiu ao mítico e<br />

distante território da Califórnia. Anna nunca conseguiu entender o motivo, pelo<br />

menos naquela época, mas os sussurros dentro de sua cabeça viram como seu<br />

namorado se retraiu, como se tornou frio e distante. Ela tentou descobrir um<br />

sentido, mas nunca soube a resposta correta. Sabia que algo tinha acontecido, algo<br />

ruim do qual não estava sabendo e nunca deixou de se perguntar o que poderia<br />

ser. Seguiu adiante com sua vida, tentando juntar as peças que foram deixadas<br />

para trás.<br />

Era cansativo, mas sabia que não havia outro jeito. Ninguém podia passar<br />

pelo que seu namorado passou sem desmoronar. Mas, ainda que tenha tentado<br />

animá-lo, as peças não se encaixavam, e não importa o que fizesse não podia ajudálo<br />

a se refazer. Anna começou a duvidar de si mesma, mas também começou a<br />

olhar com mais atenção.<br />

O fez durante três longos anos.<br />

Até que um dia, não faz muito tempo, a palavra mágica voltou. Anna não<br />

sabia por que. Viu como seu namorado se enfurecia no início, mais do que tinha<br />

visto em muito tempo. Depois o viu despertar lentamente, como de um sono<br />

profundo. Algo nele se reavivou e Anna soube que não era nada que tivesse feito.<br />

As vozes que lhe falavam, que lhe sussurravam coisas sinistras, diziam que não<br />

poderia nunca ser o que era <strong>Otter</strong>. Anna tomou algumas decisões erradas (mas,<br />

acaso não eram as únicas que podia tomar?) e houve palavras ásperas. Ao mesmo<br />

tempo que seu coração se fazia em pedaços, ela terminou com seu namorado. Não<br />

acreditava que aquilo fosse possível. A fez duvidar de seus atos, a fez acreditar que<br />

tinha tomado a decisão equivocada. Até que, naquela noite fatídica, ligou para<br />

<strong>Otter</strong>. Não o acusou, não revelou seus temores. Ao contrário, <strong>Otter</strong> lhe contou uma<br />

história sobre suas aventuras na Califórnia. Lhe disse que havia voltado para se<br />

encontrar consigo mesmo, que não era feliz onde estava. E ainda que ela tenha<br />

acreditado em suas palavras, ela intuía que naquela história faltava algo, que


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estava partida em algum ponto. Tão partida que soava falsa a seus ouvidos.<br />

Empurrou <strong>Otter</strong> para seu ex namorado e rezou para que o que pressentia fosse<br />

mentira.<br />

Mas, em seu coração, sabia que não era.<br />

Ela lhes deu espaço, lhes deu tempo. Não quis pressionar mais porque, se<br />

estivesse errada, tudo seria pior devido a isso. No entanto, na próxima<br />

oportunidade que o viu, parecia diferente. Se mostrou cauteloso com ela, lhe<br />

custava dizer as palavras certas. Mas estava ali, havia algo por trás de seu olhos,<br />

que bailavam como nunca o havia visto fazer. Quis gritar, bater e espernear, mas<br />

não pôde. Esperou. E esperou. E esperou.<br />

E, enquanto esperava, algo curioso aconteceu. Se apoiou em alguém em<br />

quem nunca se havia apoiado antes. A palavra mágica tinha um irmão, sabem? E,<br />

ainda que houvesse andado ao redor dela durante quase toda a sua vida, nunca lhe<br />

havia considerado como algo mais que um amigo. Mesmo ainda tendo o coração<br />

partido, sentiu que algo despertava em seu interior. Se questionou se aquilo era<br />

resultado da ira. Do ciúmes (ainda que o ignorasse). Ela não estava tentando voltar<br />

com seu estúpido ex namorado quando aconteceu pela primeira vez. Nem sequer<br />

sabe como aconteceu. Estavam falando de nada em particular e alguém se inclinou,<br />

o outro se inclinou para mais perto, até que seus lábios se encontraram e foi<br />

violento e lhe pareceu estranho, e aqueles lábios lhe pareceram distantes, mas não<br />

se deteve.<br />

Naturalmente, tanto ela como Creed se sentiram culpados. Como poderia<br />

ser de outro modo? Ambos tinham a sensação de estar traindo a única coisa que os<br />

unia. Mas, mesmo jurando que não voltaria a acontecer nunca mais, aconteceu.<br />

Ocorreu uma e outra vez. E então ela já não quis parar. Era feliz, ou pelo menos tão<br />

feliz como podia se permitir sentir. Acreditava merecer. Entendia que devia isso a<br />

ela. Decidiu que não tinha feito nada de errado, mesmo se achando uma mentirosa.<br />

Aquilo continuou, como costuma acontecer nesse tipo de coisas. Houve dias<br />

bons e ruins. Anna se sentia forte, fraca, compassiva e rancorosa, tudo ao mesmo<br />

tempo. E, após algum tempo, sentiu que estava se apaixonando pelo irmão, o<br />

melhor amigo, do constante que tinha sido o ruído de fundo durante a maior parte<br />

de sua vida.<br />

Mas, ainda assim, não deixou de se perguntar.<br />

Então chegou o dia em que o irmão entrou correndo em seu quarto, com os<br />

olhos neuróticos e o corpo tremendo. Essa noite ela o abraçou por um longo tempo.<br />

Ele não queria dizer o que tinha acontecido, nem sequer lhe deu uma pista, de


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maneira que se limitou a abraçá-lo. Acabaram dormindo… e os despertou uma<br />

furiosa batida na porta. Anna deixou o irmão onde estava, abriu a porta e viu <strong>Kid</strong><br />

plantado diante dela. Estava apavorado e com raiva e, de alguma maneira, a<br />

verdade, aquela verdade que havia suspeitado durante um tempo, se fez<br />

conhecida. <strong>Kid</strong> não teve necessidade de dar detalhes concretos, apenas dizer que<br />

seu irmão havia se refugiado demais dentro de si mesmo. Por culpa de sua mãe.<br />

Sua mãe tinha voltado e lhe havia levado tudo. Anna pensou na noite anterior, no<br />

outro irmão deitado em sua cama. E foi então quando soube. E enquanto apertava<br />

o trêmulo <strong>Kid</strong> em seus braços, sua ira voltou a brotar, espontânea, mas presente.<br />

Ligou para seu ex, ocultando-se atrás de um véu.<br />

E quando ele chegou, quando apertou <strong>Kid</strong> em seus braços, quando os olhou<br />

com determinação em seus olhos, Anna soube. E então <strong>Bear</strong> disse...<br />

Anna olha para suas mãos.<br />

—Você disse que estava apaixonado por ele, que tinha que consertar isso.<br />

Havia tanto desespero em sua voz e soube que nunca tinha sentido isso por mim.<br />

—Sacode a cabeça, interrompendo meus protestos. —Sei que me amava. Mas<br />

isto… isto era diferente e não se atreva a dizer o contrário.—Ela esfrega os olhos,<br />

tentando clarear a vista. —Eu joguei isso em sua cara. Porque, pela primeira vez,<br />

odiei ter razão. Mas isso não me deteve, porque tornava tudo o que tivemos<br />

aparentemente falso. Como se eu tivesse sido uma substituta durante todos esses<br />

anos, enquanto você encontrava a si mesmo.<br />

Creed esfrega o joelho e olha para nós.<br />

—Eu não pretendia que isso tudo acontecesse, papai <strong>Bear</strong>. Você tem que<br />

entender isso. Nunca quis atuar às suas costas, nem magoá-lo. Existem coisas que<br />

simplesmente acontecem. Você já deveria saber melhor que ninguém. Você estava<br />

fazendo o mesmo<br />

—Suponho que é uma forma de encarar isso. —Digo lentamente, sem<br />

querer reconhecer ainda.<br />

Creed volta a cabeça para mim, repentinamente furioso.<br />

—Uma forma de ver? —Rosna. — Você estava transando com meu irmão<br />

sem se incomodar em dizer a ninguém que havia mudado de time, e isso é a única<br />

coisa que lhe ocorre a dizer? Filho da puta insensível, como diabos se atreve a nos<br />

julgar?<br />

—Tínhamos acabado de terminar! —Me defendo. — Você disse que nunca<br />

quis atuar às minhas costas, mas isso é precisamente o que você fez! Você esteve<br />

esperando por todos esses anos para que terminássemos e poder dar o passo?


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— E você? —Responde com voz gélida. —Ela está certa? Ela foi somente<br />

alguém a quem utilizou até que tivesse um parceiro e aceitasse por fim quem era<br />

realmente? Esqueça que, seja qual seja o parentesco que compartilhe com os que<br />

estão aqui, seja quem for com quem você esteja transando ou esteja transando com<br />

você, eu sou o mais parecido a você. Conheço a culpa que deve ter sentido cada<br />

vez que olhava para <strong>Otter</strong> na cara, porque conheço a culpa que eu sentia cada vez<br />

que olhava para Anna. Pode ficar aí soltando suas besteiras, mas não pense nem<br />

por um segundo que não sei exatamente o que você fez. <strong>Otter</strong> não teve que me<br />

dizer. Anna não teve que me dizer. E, com certeza, <strong>Kid</strong> não disse nada. Mas não<br />

precisei ouvir deles, porque no instante que descobri, nesse mesmo instante, soube<br />

exatamente como era para você.<br />

—Mas isso não deteve você, não é? —Provoco.<br />

—T<strong>amp</strong>ouco deteve você. Para começar, Anna sabe por que <strong>Otter</strong> partiu?<br />

<strong>Kid</strong> sabe? A senhora Paquinn sabe? Não? Ninguém?<br />

Ele sorri para mim.<br />

Fico pálido quando <strong>Otter</strong> rosna:<br />

—Basta, Creed. Você já disse o que tinha que dizer.<br />

Mas ele ainda não terminou. Se volta para Anna e acrescenta:<br />

—Sabe a noite em que <strong>Otter</strong> se foi? <strong>Bear</strong> se embebedou, beijou <strong>Otter</strong> e em<br />

seguida se assustou com isso. <strong>Otter</strong> pensou que, de alguma forma, estava<br />

influenciando <strong>Bear</strong>, se assustou também e abandonou a cidade. Esse é o verdadeiro<br />

motivo por ter ido embora. Todo o resto é mentira.<br />

Ao mesmo tempo que diz isso, a cólera de sua voz se desvanece e o sangue<br />

some de seu rosto, quando parece perceber exatamente o que acaba de fazer.<br />

Pronuncia o final em um sussurro.<br />

Anna olha para mim, com a dor transparente como o cristal. Espero que<br />

chegue o inevitável, sabendo que, diga o que disser em troca, as palavras de Creed<br />

soam certas, e o odeio por isso. O odeio por ser muito mais forte do que eu poderia<br />

ser nunca. Espero, até que, de repente, Anna levanta a mão e esbofeteia Creed, com<br />

um som tão nítido que parece arrepiante. Sua cabeça balança para trás e todos nós<br />

ficamos olhando, atônitos.<br />

—Isso eu já sabia, seu idiota. —Diz Anna sem alterar a voz. —Eu descobri<br />

sozinha. Pode ser que tenha razão sobre <strong>Bear</strong>, mas, pelo menos, ele nunca feriu<br />

alguém intencionalmente como você. Peça desculpas. Agora mesmo.<br />

Creed olha para ela com incredulidade.<br />

—Você acabou de me bater. —Ele se queixa.


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Página353<br />

Ela o fulmina com o olhar.<br />

—Você tem sorte por ter sido eu em vez de <strong>Otter</strong>. Pode ser que tenha se<br />

dado conta de que estava abrindo velhas feridas, mas ele está a ponto de fazer<br />

muito pior do que fiz.<br />

Todos olhamos para <strong>Otter</strong>, e estremeço ao ver que seus olhos estão escuros.<br />

Não sei por que não percebi que seu braço ficou tenso ao redor de meu ombro, sua<br />

respiração se agitava e seu rosto endurecia. Quase quero deixá-lo cuidar disso, mas<br />

não posso. Agarro seu rosto e o aproximo do meu e, ainda que a situação não esteja<br />

resolvida entre nós (como poderia estar, com tantas coisas ainda por dizer?), seu<br />

olhar se suaviza quando se encontra com o meu, e vejo que o que seja que passa<br />

por sua cabeça começa a minguar. Posso fazer isso por ele e, talvez, seja isto o que<br />

significa estar apaixonado: poder resgatar alguém da beira do abismo.<br />

—Estamos bem? —Murmuro, de modo que só ele ouça.<br />

Ele concorda com a cabeça.<br />

Volto a olhar para Creed e, ainda que eu veja a vergonha escrita em seu<br />

rosto, vejo também o peso de suas palavras. Penso que talvez sua aceitação<br />

imediata de <strong>Otter</strong> e eu não foi mais que uma ação para ocultar sua própria culpa.<br />

Foi muito fácil conquistar, foi rápido demais em saltar ao saltar em minha defesa<br />

pelo que teria que ser uma mudança impossível na maneira que funciona seu<br />

ordenado mundo. Me deixo ficar triste por um momento, perguntando-me se as<br />

coisas voltarão a ser como antes entre nós dois. Espero que sim, porque tinha razão<br />

quando disse que éramos iguais. Independentemente do que ocorra, pelo menos<br />

isso eu sei.<br />

—Sinto muito. —Murmura Creed.<br />

—O que acontecerá agora? —Pergunto, detestando o fio de voz que sai da<br />

minha garganta.<br />

Creed olha para mim por um momento antes de afastar os olhos.<br />

—Seguimos em frente.<br />

—É assim que você quer?<br />

Ele concorda com um gesto de cabeça.<br />

—Por enquanto. Talvez… Não sei. Talvez um dia, <strong>Bear</strong>.<br />

Me levanto e noto as mãos de <strong>Otter</strong> baixando por minhas costas. Me<br />

aproximo de Creed e me agacho diante dele. Continua sem olhar para mim, mas<br />

não importa. Ele me ouve.<br />

—O que for preciso, cara. Estarei aqui esperando por você. Quanto for<br />

preciso.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página354<br />

Ele solta um profundo suspiro, e vejo que seu corpo se estremece. Levantome<br />

e quando dou a volta para retornar com <strong>Otter</strong>, ele estica o braço e me agarra<br />

pela cintura. Eu espero.<br />

—Você acha… você acha que poderá deixar de ficar furioso?—Ele pergunta<br />

em voz baixa. —Que tudo isso possa terminar? Eu não pretendia magoar você.<br />

—Eu sei.<br />

Ele se levanta de um salto, me rodeia com os braços e eu o retribuo. Isso foi<br />

rápido. Eu esperava que passassem pelo menos seis horas mais, até que<br />

voltássemos a chorar abraçados um ao outro. Sua voz soa rouca em meu ouvido:<br />

—Sabe? Antes não éramos tão fodidamente emotivos. A culpa é sua.<br />

Eu rio em voz baixa.<br />

—Quem teve a ideia de nos tornarmos irmãos de sangue?<br />

Ele se afasta, com uma expressão de assombro no rosto.<br />

—Você também pensava nisso, não é? No dia em que nos contou sobre você<br />

e <strong>Otter</strong>.<br />

Aceno com a cabeça, concordando.<br />

—É forte, Creed. Você e eu é um caminho sem volta. Isso é forte. O que eu<br />

tenho com <strong>Otter</strong> também é forte. Você vai se conformar com isso?<br />

—Não tenho alternativa, não é?<br />

Eu dou de ombros.<br />

—Sempre há uma alternativa.<br />

Ele ri entre dentes.<br />

—Em nosso caso não. É um caminho sem volta, lembra?<br />

Eu me lembro.<br />

—Isso foi tão lindo. —Comenta a senhora Paquinn, fungando o nariz.<br />

—É uma forma de dizer. —Rosna <strong>Otter</strong>.<br />

—Oh, alguém está se sentindo excluído?<br />

Creed ri tremulamente e se afasta. Eu observo como seus olhos cintilam com<br />

suas palavras. Espero que algum dia ele se sinta bem com isso.<br />

—Falando nisso. —Intervém Anna, olhando diretamente para <strong>Otter</strong> e para<br />

mim.— Acho que nós todos já dissemos o que tínhamos que dizer. Por enquanto.<br />

Agora são vocês. Não gostariam de ir para algum outro lugar?<br />

Concordo com timidez e olho para meu irmão.<br />

—<strong>Kid</strong>, você ficará bem por algum tempo? —Pergunto, requerendo sua<br />

autorização, necessitando que volte a dizer que tudo ficará bem.<br />

Nos manda embora com um gesto de mão.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—Vão e acabem com isso. Espero que quando voltem tudo tenha voltado a<br />

normalidade.<br />

Outra vez essa palavra. Normalidade.<br />

<strong>Otter</strong> se levanta e me estende a mão.<br />

—Está pronto, <strong>Bear</strong>?<br />

Aceito o que é oferecido.<br />

Página355


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

15<br />

<strong>Bear</strong> e <strong>Otter</strong><br />

Página356<br />

Ele dirige, o que provavelmente é mais seguro, porque não posso tirar os<br />

olhos dele. Sorri levemente e sei que pode notar meu olhar em seu rosto. Faz todo<br />

o possível por ignorar-me, mas não importa. Apenas quero olhar para ele. De<br />

alguma maneira, parece mais velho. Talvez sejam as bolsas ao redor de seus olhos.<br />

Talvez sejam as rugas ao redor de sua boca. Não sei. Não me importa. A mim ele<br />

parece tão bonito como sempre. Quero esticar o braço e tocá-lo, passar as mãos por<br />

seu cabelo loiro e espesso, mas eu não o faço. Ainda não sei se isso é real.<br />

—O que você está olhando? —Pergunta em voz baixa.<br />

«Você, sempre você», é isso que quero responder. Mas, pelo que todos<br />

sabemos até agora, minha boca não funciona desse modo.<br />

—Eu quebrei o nariz de Jonah?<br />

Ele começa a rir e sacode a cabeça.<br />

—Que tipo de resposta você quer que eu dê?<br />

Penso por um momento.<br />

—A correta.<br />

Chegamos em um semáforo em vermelho, e ele detém o carro antes de se<br />

voltar para mim.<br />

—Você não quebrou seu nariz. Embora eu cheguei a pensar que havia<br />

quebrado pelo impulso que você deu em seu punho. —Ele sorri ligeiramente. —<br />

Isto fez você se sentir melhor?<br />

Desvio o olhar e dou de ombros.<br />

—Ele não deveria ter sido tão presunçoso. —Rosno.<br />

—Tem certeza de que não estava projetando?<br />

Giro o pescoço e o fulmino com o olhar.<br />

—Isso não tem graça. —Digo enquanto ele exibe esse riso tonto.<br />

—Oh, <strong>Bear</strong>, algum dia será muito engraçado. —Ele pega minha mão<br />

machucada e a beija. —Algum dia vamos rir de quando socou um cara porque<br />

estava com ciúmes de mim.<br />

Eu fecho a cara.<br />

—Isso me disseram. E eu não estava com ciúmes. Além do mais, que diabos<br />

ele fazia ali? —Meus olhos se estreitam. ― Foi você que o chamou?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página357<br />

O semáforo fica verde e avançamos. <strong>Otter</strong> desvia o olhar. Maldição, queria<br />

ver seu rosto quando me respondesse.<br />

—Não, <strong>Bear</strong>, eu não o chamei. —Responde com voz apagada.<br />

—Então, o que diabos fazia ali?<br />

—O que você acha?<br />

Minhas mãos golpeiam nervosamente sobre meus joelhos.<br />

—Queria que você voltasse com ele. Por que ele disse que era seu<br />

namorado? Você estava tentando voltar com ele?<br />

Esta última pergunta sai antes que eu possa impedi-la, e me encolho no<br />

assento, detestando o tom queixoso que adquiriu minha voz. Não é uma pergunta<br />

que eu queria fazer, mas havia estado aí, me observando desde que vi Jonah<br />

naquele quarto. Não deveria ter estado ali. Fecho a cara novamente.<br />

<strong>Otter</strong> me lança um olhar.<br />

—Mas é claro que não. —Zomba de mim. —Por que diabos deveria<br />

acreditar nisso?<br />

Eu não sei.<br />

—Estávamos… não importa. —Digo, fazendo um gesto com a mão. —Você<br />

não sabia que eu voltaria.<br />

—Bem, sim. —Admite. —Mas isso não significa que fosse voltar correndo<br />

para ele. Eu já disse a você, <strong>Bear</strong>: independentemente do que tenha acontecido<br />

entre mim e ele acabou tão logo quando eu parti para voltar para casa.<br />

—Sim, parece que ele entendeu muito bem. —Murmuro, brincando com o<br />

buraco da manga do meu suéter.<br />

Não sei como fiz isso. Ainda está bastante úmida, da mesma forma que<br />

minhas calças, e noto areia no meu traseiro. Começa a coçar tão logo penso na<br />

senhora Paquinn e seus caranguejos de areia. Ficar deitado toda a noite na praia e<br />

com as ondas foi uma ideia muito ruim de uma longa sequências de ideias ruins. É<br />

melhor que isso dê certo, porque é evidente que preciso que <strong>Otter</strong> pense por mim.<br />

Tenho demasiadas ideias por conta própria. Tal como não trocar de roupa antes de<br />

sair do apartamento.<br />

—Jonah é assim. —Sentencia <strong>Otter</strong>, resgatando-me dos pensamentos. —<br />

Quando ele quer algo, procura consegui-lo.<br />

—Uau, que cara tão elegante. —Comento, me sentindo mal. — Ele parece<br />

ser do tipo que bate em seus namorados. Ele bateu em você? Ele deixou você sair<br />

de casa por conta própria?<br />

—Ei. —Diz com severidade. —Pelo que eu me lembre, o único que bateu em


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página358<br />

alguém foi você.<br />

—Sim, bem, é só não bancar o presunçoso comigo. Especialmente quando<br />

você está mexendo com o que é meu. —Rosno.<br />

—Seu, heim?<br />

Ele volta a olhar para mim, com uma expressão vaga.<br />

De repente me sinto envergonhado. Eu coro e olho pela janela. Não quero<br />

parecer tão possessivo, tão necessitado. Foram ditas muitas idiotices entre nós,<br />

sobretudo da minha parte, e aqui estou, falando besteiras sem nenhum maldito<br />

filtro. E, no entanto, sinto coisas ainda piores subindo por minha garganta, como a<br />

bile, e me obrigo a engolir. Que se foda o filtro, necessito de uma mordaça.<br />

—Para onde vamos? —Pergunto, mudando de assunto elegantemente.<br />

—Você já verá.<br />

—Ah.<br />

Silêncio, só durante uns momento. E, então:<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

—Sim?<br />

—Ele voltou para San Diego. Veio aqui para tentar me convencer que<br />

voltasse com ele.<br />

—Ah.<br />

—<strong>Bear</strong>?<br />

—Sim?<br />

—Eu disse que não.<br />

Minutos depois entramos em um bairro que não reconheço. As casas são<br />

bastante velhas, talvez de classe média baixa. Em algumas há brinquedos<br />

espalhados pelo gramado. Uma tem flamingos rosas no jardim. Outra ainda tem<br />

colocadas as luzes de natal. Ou já as tem colocada, não sei. Esta é a temporada e<br />

blablablá...<br />

<strong>Otter</strong> detém o carro diante de uma casa situada no final da rua. É pequena e<br />

está pintada de uma estranha tonalidade verde. Há uma cerca de tela metálica até a<br />

cintura, rodeando o que suponho deve ser o jardim da frente, se fosse grande o<br />

suficiente para chamá-lo de jardim. A entrada da garagem está quebrada. A porta<br />

da garagem dá a impressão de que, se fosse aberta, cairia. Os corretores certamente<br />

a anunciarão como uma casa acolhedora e uma grande casa de festa. Os corretores<br />

são uns mentirosos.<br />

<strong>Otter</strong> desliga o motor do carro e golpeia nervosamente o volante com as<br />

mãos. Olha para a casa e respira fundo.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página359<br />

—Você queria voltar com ele? —Deixo escapar sem querer.<br />

Agora que penso nisso, certamente não seria suficiente nem mesmo uma<br />

mordaça.<br />

Ele exala explosivamente e ri.<br />

—Não.<br />

—Então por que ele quis vir aqui?<br />

Ele dá de ombros.<br />

—Eu já disse. Jonah é assim. Não gosta de receber um não como resposta.<br />

Você se lembra quando eu disse que se eu não atendesse o telefone quando ele<br />

ligasse, ele ameaçou vir aqui?<br />

Concordo com um aceno de cabeça.<br />

—Eu não atendi o telefone. E ele veio. É simples assim. Embora eu achasse<br />

que aconteceria muito mais cedo.<br />

Bem, um viva para isso.<br />

—Não fique tão decepcionado. —Digo com sarcasmo.<br />

Ele olha para mim com a sobrancelha arqueada.<br />

—Você não vai tornar isso fácil, não é?<br />

—Não. —Respondo. Faço uma pausa. —Tornar o que fácil?<br />

—Saia do carro. —Ordena nesse tom de voz que fica tão bem nele.<br />

Eu saio do carro rapidamente. Meus joelhos estalam, e me inclino para trás<br />

para esticar as costas. Noto areia descendo pela parte posterior das pernas, fazendo<br />

cócegas em minha pele e aderindo-se nos pelos. <strong>Otter</strong> dá a volta no carro, fica junto<br />

a mim e dá uma olhada na casa. Necessita um telhado novo. Necessita de calhas<br />

novas. Deveriam derrubá-la e converter em um estacionamento para um Walmart<br />

que levaria todos os comércios do bairro à falência. Por que diabos estamos aqui?<br />

Quero voltar para casa, tomar um banho, mudar de roupa e depois tirar a roupa e<br />

transar como coelhos. Isto é engraçado, na verdade. Não faz nem mesmo uma<br />

hora, eu estava disposto a falar com ele até ficar com o rosto azul, e agora estou<br />

farto de falar dos meus sentimentos, dos seus sentimentos e dos sentimentos de<br />

todos os outros. Essas coisas podem esperar até amanhã. Abro a boca para dizer<br />

isso, mas <strong>Otter</strong> se adianta. Desta vez não o interrompo.<br />

—Ele veio aqui para tentar me convencer que fosse embora com ele. —Diz,<br />

sem deixar de olhar para a casa. —Não sei se ele acreditava que pudesse me<br />

convencer, mas isso não o impediu de tentar. Eu fiquei chocado quando ele entrou<br />

em meu quarto, mas não me surpreendi. Eu já disse a você que eu achava que viria<br />

mais cedo ou mais tarde. Mas não sabia que iria escolher o pior momento possível.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página360<br />

Permaneço em silencio. Não afasto os meus olhos do seu perfil.<br />

—Não vou mentir, <strong>Bear</strong>. Sou humano. Eu considerei isso, mesmo que tenha<br />

sido só por um segundo. E esse foi o pior segundo da minha vida. Apesar de tudo<br />

o que tinha ocorrido durante os últimos dias, esse foi o pior momento de todos.<br />

Que eu chegasse a considerar ir com ele. Senti como se estivesse traindo você, pior<br />

ainda, que estivesse traindo a mim mesmo.<br />

Eu recupero a voz.<br />

—Creed me ligou. Por isso eu fui. Disse que você estava voltando para<br />

Califórnia.<br />

Ele se volta para mim.<br />

—Isso é verdade, e não me olhe desse jeito. Creed tinha razão: vocês dois<br />

são iguais. Nunca me deixam terminar de falar. —Sua reprimenda é suave, mas<br />

ainda assim é uma reprimenda. — Eu disse que estava voltando para San Diego, e<br />

Creed perdeu a cabeça e começou a gritar que eu não podia fazer isso. Então me<br />

chamou de maldito filho da puta e saiu correndo do quarto. —Se detém. —Acho<br />

que nesse momento já estava com muitos copos de bebida na cabeça.<br />

—Então, o que você estava fazendo?<br />

—Eu ia voltar para recolher o resto das minhas coisas. —Diz enquanto dá<br />

outro passo até mim. —Ia para recolher o resto das minhas coisas e finalmente<br />

anunciar em meu trabalho que não voltaria. Entende? Mesmo que esse cara tenha<br />

partido meu coração, eu não ia fugir novamente.<br />

Outro passo mais perto. Agora posso sentir seu cheiro de <strong>Otter</strong>.<br />

—Ah, não? —Digo olhando para ele, incapaz de me mover.<br />

Nega com a cabeça.<br />

—Eu tinha planos para ele e para mim. E não ia permitir que uma coisa<br />

insignificante, como ele dizendo que eu era um erro e que não queria me ver de<br />

novo, me fizesse desistir do que eu queria.<br />

Outro passo. Agora posso levantar a mão e tocá-lo, se estivesse disposto a<br />

fazê-lo.<br />

—Ah, não? —Digo brilhantemente.<br />

—Claro que não. —Seus olhos emitem um brilho verde-ouro. —Como eu ia<br />

saber que esse cara tentava me proteger, como tentava proteger a todos os demais?<br />

Como eu ia saber o que havia realmente por trás das palavras que me disse? Eu<br />

não sabia, mas sabia que esse garoto, meu garoto, não as teria dito sem nenhum<br />

motivo, sem que algo tivesse sentido, pelo menos para ele.<br />

Outro passo e seu peito choca contra o meu. Nossas mãos permanecem


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página361<br />

caídas ao lado. Sua respiração aquece meu rosto.<br />

—Eu deveria ter contado a você. —Murmuro, contemplando as sardas de<br />

seu rosto e um pouco de barba que passou por alto ao lado de sua mandíbula<br />

quando se barbeava.<br />

—Sim, sim, você deveria ter me dito. Deveria ter me contado muitas coisas.<br />

Sabe o quanto me doeu ter que ouvir isso de Creed? Ouvir do meu irmão mais<br />

novo e não do homem que amava?<br />

Engulo saliva.<br />

—Amava?<br />

No passado?<br />

—Que amava. —Repete. —Que amo. —Agora meu coração bate mais<br />

depressa. —Sabe como me senti? Me senti como se não fosse digno de confiança<br />

para ajudá-lo a resolver toda essa estúpida situação, que eu não fosse capaz de<br />

entender o quão assustado devia estar meu garoto. Mas, então, percebi o quão<br />

egoísta eu estava sendo, que somente pensava em mim, eu tudo era eu, eu e eu.<br />

Mas nunca se tratou somente de você e eu. Nem sequer se tratava somente de <strong>Kid</strong>,<br />

ainda que você acreditasse que fosse assim. Se tratava de todos nós, papai <strong>Bear</strong>.<br />

Todos nós.<br />

—Era?<br />

Eu respiro.<br />

Ele levanta suas fortes mãos e as coloca em minha cintura. A tênue conexão<br />

se estabeleceu. A eletricidade flui através do meu corpo. Começo a tremer.<br />

—Era. Ainda é. E assim deveria ser sempre. E sempre será dessa maneira.<br />

Você deveria ter me contato o que tinha acontecido, <strong>Bear</strong>. Deveria ter me contado<br />

para que tivesse alguém em quem se apoiar, alguém que fizesse com que o mundo<br />

não parecesse um lugar assustador. Entendo por que fez o que fez, mas deveria ter<br />

confiado o suficientemente em mim para que eu me ocupasse disso, para cuidar de<br />

nós.<br />

Por alguma razão, isto me deixa indignado. Me solto dele e seus braços<br />

caem ao seu lado.<br />

—Como assim, eu deveria ter confiado em você para cuidar disso?—Rosno.<br />

—O que diabos você teria feito? Ela ameaçava me tirar <strong>Kid</strong>! Me obrigou a escolher<br />

entre vocês dois e, que Deus me ajude, a odiei por isso. Mas fiz o que tinha que<br />

fazer. Não diga que você teria se ocupado disso, porque você não poderia ter feito<br />

nada!<br />

—Você tem razão. —Ele concorda e isto faz que me acalme um pouco. —


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página362<br />

Você se ocupou disso sozinho, não foi? Mas não é isso o que estou dizendo, <strong>Bear</strong>.<br />

Estou dizendo que, se você pode muito bem fazer, não deveria ter feito.<br />

Agito as mãos no ar e começo a andar de um lado para o outro diante dele.<br />

—Estamos muito bem sozinhos, <strong>Otter</strong>. Seguimos em frente durante os<br />

últimos três anos. Assim que, os últimos três meses foram maravilhosos, foi como<br />

se estivesse no sétimo céu. Não necessitamos que você cuide de nós!—Quem é essa<br />

pessoa que está falando? Quem é essa pessoa que só há alguns momentos queria<br />

que ele me dissesse o que fazer? Por que não posso ficar calado por uma vez em<br />

minha vida? Esses velhos argumentos seguem despontando e sempre sou eu quem<br />

os puxa. ― Ele é a única coisa que eu tenho! —Exclamo com voz embargada.<br />

—Você está enganado.<br />

Eu me volto.<br />

—O quê?<br />

Ele volta a se aproximar e me rodeia com seus braços. Ele é muito grande,<br />

eu não sou mais que um garoto e não posso me mover. Tento resistir, me afastar,<br />

mas então ele passa as mãos pelas minhas costas, aproxima seus lábios do meu<br />

ouvido e sua respiração quente se desliza sobre minha bochecha.<br />

—Você está enganado. —Repete com voz rouca. —Você tem a mim.<br />

—Por quê? —Grito. —Eu afasto você, lhe afasto uma e outra vez e você<br />

sempre volta. Por quê?<br />

—Porque eu amo você, seu idiota. —Rosna em meu ouvido. —Por que<br />

diabos você acha que eu compraria uma fodida casa para você se eu não o amasse?<br />

Torno a escapar de seus braços de golpe só.<br />

—Você fez o quê?<br />

—Oh, merda. —Diz envergonhado, massageando os cabelos. Então sinaliza<br />

a monstruosidade verde que se ergue às nossas costas. ― Surpresa.<br />

—Você comprou uma fodida casa para mim! —Grito.<br />

Ele se apressa a olhar ao redor.<br />

—Sim, mas abaixe um pouco a voz. Não quero que nossos vizinhos pensem<br />

que estão matando uma mulher aqui fora.<br />

—Nossos vizinhos! —Esbravejo.<br />

Ele se encolhe.<br />

—Sim, nossos vizinhos. Esta casa é para você, para mim e para <strong>Kid</strong>. Poderia<br />

frequentar a mesma escola e tudo o mais. Já sei que agora não parece grande coisa,<br />

mas...<br />

—Você comprou uma casa em duas semanas? —Grito.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página363<br />

—Bem, não, <strong>Bear</strong>, comprar uma casa pode levar alguns meses. Ofereci um<br />

pagamento em dinheiro e pude fechar a compra em quarenta e cinco dias, que foi...<br />

― Ele consulta o relógios— Há dezessete horas.<br />

—Você estava comprando uma casa durante os últimos mes…!<br />

Meu grito fica interrompido quando ele tapa a minha boca com a mão.<br />

—Santo Deus, em voz baixa! —Ele provoca.<br />

O fulmino com o olhar por cima de seus dedos. Quero cuspir na palma da<br />

sua mão, mas espirraria pela minha cara, então, reviro os olhos e retira sua mão.<br />

—Você iniciou a compra de uma casa para nós há dois meses? —Sussurro<br />

com força, mostrando minha voz baixa.<br />

—Sempre foi tão inteligente assim? Ou é algo que adquiriu nestes últimos<br />

dias?<br />

—Não tem graça, e não mude de assunto.<br />

<strong>Otter</strong> sorri.<br />

—Sou engraçado. E sim, iniciei a compra da casa há quase dois meses. Ora,<br />

você quer continuar no apartamento? Não se ofenda, mas é muito mais difícil<br />

transar com você contra a parede, quando compartilha o quarto com seu irmão<br />

mais novo.<br />

Meu sangue começa a ferver.<br />

—Mas eu terminei com você. —Solto, o lodo ainda escorrendo de mim. —<br />

Você fechou a compra da casa ainda quando estávamos separados? Você poderia<br />

ter voltado atrás.<br />

—Eu poderia. —Diz lentamente. —Mas não fiz.<br />

—E nada disso gritava a você que estava indo rápido demais?<br />

Ele nega com a cabeça e exibe o típico sorriso de <strong>Otter</strong>.<br />

—Nada vai depressa demais se significa para sempre, <strong>Bear</strong>.<br />

—Mas como você sabe?<br />

—Tenho fé. —Se limita a responder.<br />

E, dito isso, todo o argumento, toda a dúvida, tudo aquilo que me deteve se<br />

dissolve a nada. Eu me jogo sobre ele de um salto só e ele me pega (claro), aperto<br />

avidamente minha boca contra a sua e um leve gemido escapa dele e entra em<br />

mim. O saboreio, e saboreio seus lábios e sua língua quentes enquanto exploram<br />

minha boca. Quem iria dizer que comprar um casa para mim me excitaria tanto?<br />

Me pergunto que ocorreria se ele me comprasse um iate. Ou ações da Microsoft.<br />

Nos amassamos um pouco mais («amassos» pode ser um eufemismo; na<br />

realidade eu estou devorando seu rosto) até que ele se afasta, arfante.


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página364<br />

—É melhor entrarmos para não darmos um espetáculo diante de todo o<br />

mundo.<br />

Tenho o pau duro como uma pedra e não me oporei a isso. Me esfrego<br />

contra ele para demonstrá-lo.<br />

—É melhor que tenha a fodida chave da nossa fodida casa, ou teremos<br />

derrubar a fodida porta agora mesmo. — Lhe digo com voz arfante.<br />

—Está em meu bolso. —Responde, e geme quando meto a mão em seu<br />

bolso e acaricio sua ereção bruscamente enquanto busco a chave.— No bolso de<br />

trás. — Diz ele, inclinando-se para morder meu lábio, lambendo a nítida aspereza.<br />

Estico os braços e introduzo ambas as mãos em seus bolsos de trás,<br />

apalpando seu traseiro até que noto a forma de uma chave. A chave de uma casa.<br />

A chave da nossa casa. A pego e a retiro, e nunca vi nada tão prodigiosamente<br />

aterradora ou catastroficamente inevitável em toda a minha vida. Ele pega minhas<br />

mãos nas suas, as beija com delicadeza e pega a chave de meus dedos trêmulos.<br />

<strong>Otter</strong> me arrasta até a porta principal, que é da mesma estranha tonalidade verde<br />

que o resto da casa, mas já não parece me importar muito. A fechadura cede com<br />

um raspão. Ele abre a porta. Vejo um botão ao lado e o aperto. Soa uma<br />

c<strong>amp</strong>ainha, muito parecida com a minha. É a minha.<br />

—Essa casa requer muito trabalho. —Ele me adverte ao fechar a porta atrás<br />

de mim. —Teremos que retirar o tapete, mas me disseram que debaixo tem um<br />

piso de madeira muito bonito. Acho que teremos que...<br />

Eu já ouvi o bastante. Agora mesmo não me importa a casa (mas, sério, ele<br />

comprou uma casa para nós? Que estúpida e épica loucura é essa?). Corto seu<br />

falatório sobre a madeira, tapete e todo o resto que se propõe a dizer quando<br />

aperto minha boca contra a sua. O modo que coloca suas mãos em cima de mim no<br />

mesmo instante, me demonstra que não se importa com a interrupção. Fico<br />

maravilhado com seus talentosos dedos, que vão diretamente para o meu traseiro<br />

enquanto me atrai bruscamente contra ele. Solto um gemido contra seu rosto.<br />

—Não há cama, papai <strong>Bear</strong>. —Resmunga em minha boca enquanto lambe e<br />

morde.<br />

—Você disse algo sobre me foder contra a parede? —Digo sem fôlego.<br />

Somente disponho de um instante para arrepender-me de minhas palavras<br />

quando seus olhos brilham perigosamente. <strong>Otter</strong> manuseia com desespero o botão<br />

das minhas calças. Meu pau se libera e o ar está frio, até que sinto sua boca sobre<br />

mim, tentando chupar-me até me deixar seco. Reviro os olhos, minha visão fica<br />

nublada e todo o pensamento racional desaparece. Mas eu não me importo. De


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página365<br />

qualquer forma eu sempre penso demais.<br />

Ele lambe a ponta do pênis e olha para mim, levantando uns olhos trêmulos<br />

e lindos.<br />

—Não tenho lubrificante. —Diz, enquanto me acaricia os testículos com o<br />

nariz.<br />

E é o mais romântico que já me disse, quando por fim entendo suas<br />

palavras.<br />

—Não, maldição! — Eu uivo.<br />

O levanto de repente, com uma força que desconhecia em mim. Eu rasgo a<br />

parte da frente da sua calça jeans e o botão se rompe. Nós não nos importamos. Me<br />

certifico de que me observa, cuspo em minha mão e a deslizo sobre seu pau<br />

aquecido. Ele abre os olhos arregalados enquanto inclina a cabeça para trás e geme.<br />

—Isto vai doer, bebê. —adverte, sem conseguir que eu me oponha.<br />

Sua palavra carinhosa me faz estremecer: ele nunca tinha me chamado<br />

assim antes. Isso me desconcerta. Me comove. Faz com que seja ainda mais urgente<br />

que entre em mim agora mesmo. Eu seguro a parte de trás de sua cabeça e atraio<br />

seus olhos para os meus. Levo sua mão até a minha boca e chupo dois dedos com<br />

avidez, umedecendo-os tudo o que posso. Cuspo sobre eles sem nenhuma<br />

cerimônia. A baba escorre de meus lábios.<br />

—Me prepare. — Ordeno a ele.<br />

E ele o faz.<br />

Quando entra em mim, queima, e a pontada sobe e baixa por todo o meu<br />

corpo. Acho que talvez bastará dizer que isto não foi uma boa ideia, mas então ele<br />

se situa em um ângulo diferente e o céu se abre, os anjos descem e um coro canta o<br />

evangelho segundo o sexo gay: PRÓSTATA! Uma onda atrás da outra se rompem<br />

sobre mim, prazer e dor, mas estou preso a ele e nesse momento começa, começa...<br />

«… Começa como um vento que sopra ao meu lado, sobre mim, através de mim,<br />

levando a tempestade que se aproxima para o mar. O sol irrompe por entre as nuvens e se<br />

inicia um profundo estrondo que vem do interior das ondas. A terra se move, treme e<br />

finalmente se abre. O oceano, esse oceano detestável, começa a precipitar-se para o abismo<br />

que se abriu, formando um redemoinho que uiva e grita enquanto gira. Há descargas de<br />

raios, os trovões retumbam, mas agora está muito distante. Diante de meus olhos, o oceano<br />

emite um último ronco quando o leito do mar se transforma em um deserto. A tempestade<br />

se extingue. O sol brilha. A superfície da terra está rachada, ressecada. Mas resiste. Uma<br />

leve brisa acaricia meu cabelo, me recordando o que eu fiz para chegar até aqui. Fecho os<br />

olhos e respiro profundamente, e dali, dali... »<br />

… dali, a única coisa que posso fazer é me segurar em sua preciosa vida, me


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

segurar enquanto esse homem, meu <strong>Otter</strong>, me demonstra até que ponto ele me<br />

ama. Só espero que ele o note também. Espero que entenda que eu lhe darei tudo o<br />

que eu posso. Espero que entenda que estou nisso por um longo tempo.<br />

E vocês sabem de uma coisa, todos os que estiveram comigo até o final?<br />

Eu acho que ele entendeu isso perfeitamente.<br />

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Epílogo<br />

Ou<br />

O ponto de vista de <strong>Otter</strong>, por assim dizer (<strong>Bear</strong> vai surtar)<br />

Seis meses depois.<br />

<strong>Kid</strong> grita para mim quando salta do ônibus escolar. Dá a volta para saudar<br />

com a mão uma menina que se pendura na janela que grita para ele. Ele revira os<br />

olhos quando se volta para mim.<br />

—Quem é essa? —Pergunto, sorrindo.<br />

Ele franze a testa.<br />

—Uma aluna do sexto ano que meteu na cabeça que é adorável que um<br />

menino de nove anos esteja no quinto. Ela disse que sou valioso.<br />

Eu começo a rir.<br />

—Mulheres mais velhas, heim? Não deixe que papai <strong>Bear</strong> saiba disso. Ainda<br />

está histérico por tê-lo deixado pular um ano.<br />

Ele me dá a mão e me puxa para dentro.<br />

—Nem me lembre. —Rosna por cima do ombro. —Ele escreveu outro<br />

bilhete e colocou novamente no meu almoço.<br />

Solto um gemido enquanto tiro sua mochila das costas.<br />

—O que dizia desta vez?<br />

<strong>Kid</strong> faz uma careta, e quando sua voz sai, é uma imitação ridícula de <strong>Bear</strong>:<br />

—Por favor, <strong>Kid</strong>, não corrija novamente o seu professor na sala de aula. Não<br />

quero que me chamem para outra reunião de irmão-professor para que me digam<br />

que terá que pular o primeiro ano da universidade. Meu coração não resistiria.<br />

—Bem, ele tem um pouco de razão.<br />

<strong>Kid</strong> nega com a cabeça.<br />

—Como é possível que um mestre qualificado não saiba escrever<br />

constituição? Não me estranha que Anderson Cooper 28 diga que nosso sistema<br />

escolar está falhando com os alunos.<br />

—E todos sabemos que se Anderson Cooper diz que é verdade, deve ser<br />

Página367<br />

28<br />

Anderson Hays Cooper é um jornalista e escritor estadunidense, ganhador de um prêmio<br />

Emmy na categoria de jornalismo. Ele é o principal âncora do programa da CNN, Anderson Cooper 360°


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

mesmo.<br />

Ele estreita seus olhos.<br />

—Eu estaria de acordo com você, mas é evidente que você está gozando de<br />

mim.<br />

Eu bagunço o seu cabelo.<br />

—É evidente. Falando do sistema, não se esqueça que a assistente social virá<br />

amanhã às três da tarde.<br />

—Como poderia me esquecer de Olga Ehrlichman? —Diz com a testa<br />

franzida. —Juro que intensifica seu sotaque alemão só para me desconcertar.<br />

—Eu não acho que ela seja alemã, <strong>Kid</strong>.<br />

Ele agita as mãos no ar.<br />

—Isso é o que você pensa. Sei que ela está tentando que eu faça parte do<br />

Schutzstaffe 29 l. Não podemos assustá-la e conseguir uma nova? Poderíamos lhe<br />

dizer que somos judeus.<br />

Eu balanço a cabeça, tentando ocultar meu sorriso.<br />

—Não acho que seja uma boa ideia. No mês que vem temos outro encontro<br />

com o juizado e não devemos correr o risco de que seja o momento em que sua<br />

mãe apareça.<br />

—Não sei por que temos que ir tantas vezes ao juizado.—murmura. —Se<br />

tivesse coragem para tentar algo, acho que já teria feito.<br />

Eu acho que ele tem razão, mas não digo a ele. Não até que <strong>Bear</strong> e eu<br />

possamos estar seguros. E não estaremos seguros até que <strong>Kid</strong> pertença legalmente<br />

a <strong>Bear</strong>. Não deveria levar muito mais tempo, pelo menos segundo sua advogada.<br />

O juiz havia tentado ficar um pouco histérico a respeito de todo o assunto da<br />

procuração («Essa procuração conseguida ilegalmente, que se adquiriu mediante uma<br />

troca de cigarros?»), mas Erica Sharp, do ilustre escritório Weiss, Goldstein e<br />

Eddington, havia exibido seu sorriso de tubarão e repreendido o juiz severamente.<br />

Foi algo brutal de se ver, sobretudo quando lançou mão de <strong>Kid</strong> como se fosse um<br />

cachorro de concurso e este atuou de forma melodramática, recorrendo a seu<br />

melhor olhar de Oliver Twist 30 («Por favor, senhor, posso comer um pouco mais?») que<br />

Página368<br />

29<br />

ASchutzstaffel (em português "Tropa de Proteção"), abreviada como SS, ϟ ϟ ou (em Alfabeto rúnico) foi<br />

uma organização paramilitar ligada ao partido nazista e a Adolf Hitler. Seu lema era "Meine Ehre heißt<br />

Treue" ("Minha honra chama-se lealdade")<br />

30<br />

Oliver Twist é um romance de Charles Dickens que relata as aventuras e desventuras<br />

de um rapaz órfão


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

Página369<br />

ele faz tão bem. Tinha os olhos arregalados e o lábio inferior tremia ligeiramente, e<br />

juro por Deus que pude ouvir como derretia o coração do juiz da minha posição no<br />

tribunal, a seis metros de distância. Diabos, esteve a ponto de colocar-se de pé e<br />

pedir a custódia de <strong>Kid</strong> pessoalmente, de tão boa foi sua atuação.<br />

As visitas da assistente social estão bem, apesar das observações de <strong>Kid</strong><br />

sobre sua herança. Ele não é tonto e sempre se comporta impecavelmente em sua<br />

presença. Antes de sua primeira visita, eu havia me perguntado se diria algo sobre<br />

<strong>Bear</strong> e eu. Mas, logicamente, nem sequer pestanejou quando surpreendeu <strong>Bear</strong> me<br />

beijando com doçura, mesmo quando <strong>Bear</strong> começou a corar e a murmurar para si<br />

mesmo que nos haviam flagrado. Seguramente essa mulher já viu coisas muito<br />

piores em outras casas, para se preocupar com dois caras se beijando.<br />

—Veremos. —Digo a <strong>Kid</strong>. —Não seja duro com Frau Ehrichmann.<br />

<strong>Kid</strong> se encaminha até a geladeira e pega as ervilhas de sua merenda.<br />

—Tudo pronto para essa noite? —Ele pergunta, mudando discretamente de<br />

assunto.<br />

Suspiro.<br />

—Tão pronto quanto possível. —Abaixo o braço e apalpo os dois pequenos<br />

objetos que há dentro do meu bolso dianteiro. Pela enésima vez durante a última<br />

hora. —Você tem certeza disso?<br />

Ele mastiga as ervilhas e olha para mim.<br />

—E você?<br />

Aceno uma vez.<br />

Ele dá de ombros.<br />

—Bem, então, claro que tenho certeza. —Ele se detém e ri tolamente. —<br />

Papai <strong>Bear</strong> vai surtar. Quem dera eu pudesse estar lá para ver. —Acrescenta<br />

pensativo.<br />

—Obrigado, <strong>Kid</strong>. Como se eu já não estivesse o bastante nervoso. —Rosno<br />

para ele.<br />

Ele começa a rir.<br />

—Você vai fazer bem. Tem tudo o que eu disse?<br />

Concordo novamente.<br />

—E tem o que escrevemos?<br />

Reviro os olhos.<br />

—Sério? Realmente acredita que eu deveria dizer isso?<br />

<strong>Kid</strong> sorri.<br />

—Sério. Você acha que ele vai captar a mensagem oculta?


<strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> - <strong>Bear</strong>, <strong>Otter</strong> e o <strong>Kid</strong> 1 – TJ <strong>Klune</strong><br />

—<strong>Kid</strong>, pode ser que você seja a pessoa mais inteligente que vive sobre a face<br />

da terra, mas não é um mestre da sutileza.<br />

Ele se encaminha até o seu quarto.<br />

—Com <strong>Bear</strong>... —Diz por cima do ombro.— Você tem que ser direto. Do<br />

contrário, ele não entenderá nada.<br />

— E esse é o objetivo do que eu vou fazer hoje?—Eu grito às suas costas.<br />

—Não ouço você! —Responde. Pequeno mentiroso. —Tenho que me<br />

preparar antes que a senhora Paquinn chegue. E você tem que se vestir. Eu<br />

preparei seu terno essa manhã.<br />

Eu solto um gemido e sento na mesa, notando as duas pequenas peças<br />

metálicas pressionando meu músculo. Tiro minha carteira e encontro o pedaço de<br />

papel que <strong>Kid</strong> enfiou ali há alguns dias. Passamos horas nos esforçando sobre isso,<br />

mas, ao final, ficou bom, pelo menos segundo <strong>Kid</strong>. Sorriu enquanto volto a ler as<br />

palavras, que já memorizei.<br />

<strong>Kid</strong> tem razão. <strong>Bear</strong> vai surtar.<br />

<strong>Bear</strong>! <strong>Bear</strong>! <strong>Bear</strong>!<br />

Tenho que dizer algo! Não tenha medo.<br />

O bacon é mal! A carne bovina é fatal!<br />

A doença da Vaca Louca permanece em você por um tempo muito longo.<br />

Eu quero que você seja meu, você não pode ver?<br />

Por isso estou assim, de joelhos!<br />

Ainda não é legal,<br />

Mas é melhor do que comer carne animal.<br />

Assim pois, você, por favor, quer se casar comigo?<br />

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