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01- Delírio

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O jantar se arrasta muito além do toque de recolher. Quando minha tia me ajuda a retirar os pratos,<br />

já são quase onze horas, e ainda assim Rachel e o marido não dão qualquer sinal de que vão embora. É<br />

outro motivo para me animar: em trinta e seis dias não precisarei me preocupar mais com o toque de<br />

recolher.<br />

Depois do jantar meu tio e David vão para a varanda. David trouxe dois charutos — baratos, mas<br />

trouxe —, e o cheiro da fumaça, doce, temperado e um pouco oleoso, flutua pelas janelas, se mistura aos<br />

sons de suas vozes e preenche a casa com uma névoa azulada. Rachel e tia Carol ficam na sala de jantar,<br />

bebendo xícaras de café fraco, que tem uma cor pálida de água suja. Ouço o ruído de pés se movendo no<br />

andar de cima. Jenny vai implicar com Grace até ficar entediada, até subir na cama, mal-humorada e<br />

insatisfeita, permitindo que o tédio e a mesmice de mais um dia a façam dormir.<br />

Lavo as louças — muito mais que o normal, considerando que Carol insistiu em tomarmos uma<br />

sopa (quente de cenoura, que todos engolimos, suando) e um cozido cheio de alho e de aspargos moles,<br />

provavelmente resgatados do fundo da cesta de legumes, e alguns biscoitos velhos. Estou empanturrada,<br />

e o calor da água da torneira em meus pulsos e cotovelos — junto aos ritmos familiares das conversas, o<br />

ruído de pés no andar de cima, a densa fumaça azulada — me deixa muito sonolenta. Carol finalmente<br />

se lembrou de perguntar sobre os filhos de Rachel; Rachel descreve as conquistas deles como se recitasse<br />

uma lista que tivesse acabado de decorar, e com dificuldade — Sara já está lendo; Andrew disse sua<br />

primeira palavra com apenas um ano e um mês.<br />

— Batida, batida. Isto é uma batida. Por favor, obedeçam às ordens e não tentem resistir...<br />

Levo um susto com a voz ecoando na rua. Rachel e Carol interromperam momentaneamente a<br />

conversa, e escutam a comoção na rua. Também não ouço David e tio William. Até Jenny e Grace<br />

pararam de brincar lá em cima.<br />

Ruídos de estática na rua; o som de centenas e centenas de botas pisando o chão em sincronia; e<br />

aquela voz horrível, amplificada por um megafone:<br />

— Isto é uma batida. Atenção, isto é uma batida. Por favor, estejam prontos com seus documentos de identificação...<br />

Uma noite de batida. No mesmo instante penso em Hana e na festa. A cozinha começa a girar.<br />

Estendo o braço, segurando a bancada.<br />

— Parece muito cedo para uma batida — diz Carol em tom suave na sala de jantar. — Tivemos<br />

uma há poucos meses, eu acho.<br />

— Dezoito de fevereiro — diz Rachel. — Eu lembro. David e eu tivemos que sair de casa com as<br />

crianças. Houve algum problema com o SSV naquela noite. Ficamos meia hora na neve até verificarem<br />

nossos documentos. Depois, Andrew teve pneumonia por duas semanas. — Ela conta essa história<br />

como se estivesse falando de uma pequena inconveniência na lavanderia, como se tivesse perdido uma<br />

meia.<br />

— Já faz tanto tempo assim? — Carol dá de ombros e toma um gole de café.<br />

As vozes, os pés, o ruído de estática — tudo se aproxima. As patrulhas se movem em uníssono, indo<br />

de casa em casa — às vezes batendo a todas as portas em uma rua, às vezes pulando quarteirões inteiros,<br />

às vezes indo casa sim, casa não. É aleatório. Ou, ao menos, supostamente aleatório. Certas casas são<br />

sempre mais procuradas que outras.<br />

Porém, mesmo que você não esteja em uma lista, pode acabar na neve, como Rachel e o marido,<br />

enquanto os reguladores e a polícia tentam comprovar sua validade. Ou — pior ainda — enquanto os<br />

reguladores entram em sua casa, derrubam paredes e procuram sinais de atividades suspeitas. As leis<br />

relativas à propriedade privada são suspensas em noites de batida. Praticamente todas as leis são<br />

suspensas em noites de batida.<br />

Todos ouvimos histórias terríveis: mulheres grávidas despidas e examinadas na frente de todo<br />

mundo, pessoas jogadas na cadeia por dois ou três anos só por terem olhado torto para um policial ou<br />

tentado impedir que um regulador entrasse em determinado cômodo.

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