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01- Delírio

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vislumbrassem um futuro de dias intocados por preocupações, descontentamentos ou discórdia, um<br />

futuro de dias idênticos, como uma série de bolhas de sabão cuidadosamente sopradas.<br />

Thomas também se curou. Casou-se com Ella, outrora a melhor amiga de minha irmã, e agora todos<br />

são felizes. Rachel me contou, há alguns meses, que os dois casais se encontram com frequência em<br />

piqueniques e em eventos da vizinhança, pois vivem relativamente perto, em East End. Os quatro<br />

sentam e conversam educadamente, sem qualquer sombra do passado para perturbar a calma e a<br />

plenitude do presente.<br />

Essa é a beleza da cura. Ninguém menciona aqueles dias quentes perdidos no campo, em que<br />

Thomas secava as lágrimas de Rachel com beijos e inventava mundos apenas para que pudesse prometêlos<br />

a ela, e em que ela arrancava a pele dos próprios braços só de pensar em viver sem ele. Tenho certeza<br />

de que ela sente vergonha daquela época, se é que se lembra. É verdade que não a vejo com tanta<br />

frequência agora — só uma vez a cada dois meses, quando ela lembra que precisa nos visitar — e, nesse<br />

aspecto, acho que se pode dizer que, mesmo com a intervenção, perdi um pouco dela. Mas a questão não<br />

é essa. A questão é que ela está protegida. A questão é que está segura.<br />

Contarei mais um segredo, esse para seu próprio bem. Você pode pensar que o passado tem algo a<br />

dizer. Pode pensar que deveria ouvi-lo, que deveria se esforçar para entender seus murmúrios, que<br />

deveria se inclinar ao máximo para escutar sua voz sussurrada se erguendo do chão, dos lugares mortos.<br />

Pode pensar que há algo ali para você, algo para ser entendido ou decifrado.<br />

Mas eu sei a verdade: sei pelas noites de Frieza. Sei que o passado vai arrastá-lo para trás e para<br />

baixo, fazendo com que você tente se agarrar aos sussurros do vento e aos ruídos das folhas das árvores<br />

batendo umas nas outras, tente decifrar algum código, tente consertar o que foi quebrado. Não tem<br />

jeito. O passado não passa de um fardo. Ele pesará dentro de você como uma pedra.<br />

Vá por mim: se ouvir o passado falando com você, se senti-lo puxando suas costas e deslizando os<br />

dedos por sua coluna, a melhor reação — a única reação — é correr.<br />

* * *<br />

Nos dias após a confissão de Alex, verifico constantemente se tenho sintomas da doença. Enquanto<br />

estou trabalhando no caixa da loja de meu tio, inclino-me para a frente sobre o cotovelo mantendo a<br />

mão apoiada na bochecha para esticar os dedos até o pescoço e conferir se minha pulsação está normal.<br />

De manhã, respiro profunda e lentamente, tentando ouvir falhas ou roncos nos pulmões. Lavo as mãos<br />

constantemente. Sei que o deliria não é como uma gripe — não se pode contraí-lo com um espirro —,<br />

mas, mesmo assim, é contagioso, e quando acordei no dia seguinte a nosso encontro em East End, com<br />

os membros ainda pesados, a cabeça leve como uma bolha e uma dor na garganta que se recusava a ir<br />

embora, meu primeiro pensamento foi que eu havia sido infectada.<br />

Após alguns dias, sinto-me melhor. A única coisa estranha é a maneira como meus sentidos parecem<br />

entorpecidos. Vejo tudo meio lavado, como uma cópia colorida ruim. Preciso encher minha comida de<br />

sal antes de prová-la, e sempre que minha tia fala comigo sua voz soa abafada. Mas li a Shhh inteira,<br />

todos os sintomas reconhecidos do deliria, e não encontro nada que se encaixe, então, no final, concluo<br />

que estou segura.<br />

Ainda assim, tomo precauções, determinada a não dar um passo em falso, determinada a provar a<br />

mim mesma que não sou como minha mãe — que aquilo com Alex foi um deslize, um erro, um terrível,<br />

terrível acidente. Não posso ignorar quão perto estive do perigo. Nem quero pensar no que aconteceria<br />

se alguém descobrisse o que Alex é, se alguém soubesse que estivemos juntos, tremendo na água, que<br />

conversamos, rimos, nos tocamos. Passo mal só de pensar. Preciso repetir para mim mesma que faltam

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