01- Delírio

onze
Pense assim: quando está frio e seus dentes estão batendo, você se enfia em um casaco de inverno, em cachecóis e em luvas para não
pegar uma gripe. Bem, as fronteiras são como chapéus, cachecóis e casacos de inverno para todo o país! Elas mantêm a pior
doença afastada, para que todos possamos continuar saudáveis!
Depois que as fronteiras foram fechadas, o presidente e o Consórcio tinham uma última questão a resolver antes que todos
pudéssemos estar seguros e felizes. O Grande Saneamento* (às vezes chamado de “a blitz”) durou menos de um mês, mas, depois,
todos os espaços selvagens foram limpos da doença. Fomos lá, pusemos a mão na massa e limpamos os pontos problemáticos,
exatamente como quando sua mãe esfrega a bancada da cozinha com uma esponja, tão fácil quanto bater palmas...
* Saneamento
1. A aplicação de medidas sanitárias visando a limpeza ou a proteção da saúde.
2. A eliminação de esgoto e lixo.
— Manual de história para crianças,
Dr. Richard, Capítulo Um.
Eis um segredo sobre minha família: minha irmã contraiu o deliria meses antes da data marcada para
sua intervenção. Apaixonou-se por um menino chamado Thomas, que também não era curado. Durante
o dia, eles passavam o tempo todo deitados em um campo de flores, protegendo os olhos do sol e
sussurrando promessas que jamais poderiam ser cumpridas. Ela chorava sem parar, e uma vez confessou
a mim que Thomas gostava de secar suas lágrimas com beijos. Ainda assim, quando penso naqueles dias
— eu tinha apenas oito anos —, penso no gosto de sal.
A doença foi tomando conta dela, como um animal mastigando-a por dentro. Minha irmã não
conseguia comer. O pouco que a convencíamos a engolir voltava tão rápido quanto entrava, e eu temi
por sua vida.
Thomas partiu seu coração, é claro, o que não foi surpresa para ninguém. A Shhh diz: “Amor deliria
nervosa produz alterações no córtex pré-frontal do cérebro, o que resulta em fantasias e ilusões que, uma
vez reveladas, levam à devastação psíquica” (ver “Efeitos”, p. 36). Depois, minha irmã não fez nada além
de ficar deitada na cama e ver as sombras se alterarem lentamente nas paredes, com as costelas aflorando
sob sua pele pálida como madeira emergindo na água.
Mesmo assim, ela recusava a intervenção e o conforto que receberia, e no dia em que a cura seria
administrada foram necessários quatro cientistas e diversas seringas cheias de tranquilizantes para que
ela se submetesse, para que parasse de usar suas unhas enormes e afiadas, que ficaram semanas sem ser
cortadas, gritando, xingando e chamando por Thomas. Eu os vi chegarem e levarem-na ao laboratório;
sentei em um canto, apavorada, enquanto ela cuspia, sibilava e chutava, e pensei em minha mãe e meu
pai.
Naquela tarde, mesmo faltando mais de uma década para minha segurança, comecei a contar os
meses que faltavam para minha intervenção.
No fim, minha irmã foi curada. Ela voltou para mim gentil e satisfeita, com as unhas impecáveis e
arredondadas e o cabelo preso em uma longa trança. Alguns meses depois, foi prometida a um técnico
de TI mais ou menos da idade dela, e algumas semanas após ter se formado na faculdade os dois se
casaram, com as mãos levemente unidas sob uma tenda, ambos olhando para a frente, como se