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01- Delírio

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o tivesse machucado, mas isso não faz o menor sentido.<br />

— Você pensava em ir à Selva quando era pequeno? Quer dizer, só por diversão, como uma<br />

brincadeira.<br />

Alex estreita os olhos, vira o rosto e faz uma careta.<br />

— É, pensei sim. Muito. — Ele estende o braço e bate nas boias. — Nada disso aqui. Sem muros.<br />

Sem olhares. Liberdade e espaço, lugares nos quais fosse possível nos espalharmos. Ainda penso na<br />

Selva.<br />

Encaro-o. Ninguém mais usa palavras como aquelas: liberdade, espaço. Palavras antigas.<br />

— Ainda? Mesmo depois disto?<br />

Sem querer, sem pensar, estendo a mão e toco uma única vez meus dedos na cicatriz de três pontas<br />

em seu pescoço.<br />

Ele se afasta como se eu o houvesse queimado, e abaixo o braço, envergonhada.<br />

— Lena... — diz ele, com uma voz muito estranha: como se meu nome fosse algo azedo, uma<br />

palavra com um gosto ruim.<br />

Sei que não deveria ter tocado nele daquele jeito. Ultrapassei os limites, e ele vai me dizer isso, vai<br />

me lembrar do que significa não ser curada. Acho que vou morrer de humilhação se ele me repreender,<br />

então, para encobrir meu desconforto, começo a tagarelar.<br />

— A maioria dos curados não pensa nisso. Carol, minha tia, sempre diz que é uma perda de tempo.<br />

Sempre diz que não há nada além de animais, terra e insetos lá, e que toda essa conversa sobre Inválidos<br />

é um faz de conta, coisa de criança. E diz que acreditar nos Inválidos é o mesmo que acreditar em<br />

lobisomens ou vampiros. Você se lembra de como as pessoas diziam que havia vampiros na Selva?<br />

Alex sorri, porém o gesto mais parece uma careta.<br />

— Lena, preciso lhe contar uma coisa.<br />

Sua voz está um pouco mais forte, mas algo em seu tom me faz sentir medo de deixá-lo falar.<br />

Agora não consigo parar de falar.<br />

— Doeu? Quer dizer, a intervenção. Minha irmã diz que não foi nada demais, por causa de todos os<br />

analgésicos que eles deram, mas minha prima Marcia diz que é a pior coisa do mundo, pior que um<br />

parto, apesar de seu segundo bebê ter demorado umas quinze horas para nascer... — Paro de falar,<br />

ruborizando, xingando-me mentalmente pela mudança ridícula de assunto. Gostaria de poder voltar no<br />

tempo para a festa da noite passada, quando meu cérebro estava vazio; é como se eu tivesse tudo<br />

acumulado, vomitando as palavras agora. — Mas não estou com medo — quase grito enquanto Alex<br />

abre a boca novamente. Estou desesperada para salvar a situação de alguma forma. — Minha<br />

intervenção está se aproximando. Sessenta dias. É ridículo, não é? Que eu conte. Mas mal posso esperar.<br />

— Lena. — A voz de Alex está ainda mais forte, mais imponente, e finalmente fico quieta. Ele se<br />

vira para ficarmos frente a frente. Naquele instante meus pés tocam levemente o fundo e percebo que a<br />

água está quase em meu pescoço. A maré está subindo rapidamente. — Escute. Não sou quem... Não<br />

sou quem você pensa que sou.<br />

Preciso lutar para continuar de pé. De repente, as correntes me arrastam e me puxam. Sempre<br />

pareceu ser assim. A maré desce como que por um ralo lento e volta apressada.<br />

— Como assim?<br />

Seus olhos — de um tom inquieto, dourado, âmbar, os olhos de um animal — examinam meu rosto,<br />

e sem saber a razão sinto medo outra vez.<br />

— Nunca fui curado — diz ele.<br />

Por um instante fecho os olhos e imagino que não entendi direito, imagino que apenas confundi o<br />

barulho das ondas com sua voz. Mas quando abro os olhos, ele continua ali, encarando-me, parecendo<br />

culpado e mais alguma coisa — triste, talvez? —, e sei que entendi corretamente. Ele continua:<br />

— Nunca passei pela intervenção.

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