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01- Delírio

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Às vezes sinto que se simplesmente ficasse observando o mundo, simplesmente ficasse quieta e<br />

deixasse o mundo existir, às vezes, juro que, por apenas um segundo, o tempo congela e o mundo para.<br />

Apenas por um segundo. E se de alguma forma fosse possível dar um jeito de viver naquele segundo, eu<br />

viveria para sempre.<br />

— A maré está descendo — diz Alex.<br />

Ele lança mais uma concha, em um arco alto, e ela atinge a arrebentação.<br />

— Eu sei. — O oceano está deixando para trás uma mistura suja de algas verdes, galhos e<br />

caramujos, e o ar tem um cheiro forte de sal e peixe. Uma gaivota cisca pela praia, deixando minúsculas<br />

pegadas de garras. — Minha mãe me trazia aqui quando eu era pequena. Caminhávamos um pouco na<br />

maré baixa, pelo menos até onde dava para ir. A areia fica cheia de coisas bizarras: caranguejosferradura,<br />

mariscos gigantes e anêmonas. Fica tudo para trás quando a água recua. Ela também me<br />

ensinou a nadar aqui. — Não sei ao certo por que as palavras borbulham para fora de mim neste<br />

momento, por que tenho o impulso repentino de falar. — Minha irmã ficava na areia, construindo<br />

castelos, e fingíamos que eram cidades de verdade, como se tivéssemos nadado até o outro lado do<br />

mundo, até os lugares não curados. Mas em nossas brincadeiras eles não eram nem um pouco doentes,<br />

arruinados ou horríveis. Eram lindos e pacíficos, e feitos de vidros, luzes etc.<br />

Alex permanece em silêncio, traçando formas na areia com um dedo. Mas posso ver que está<br />

ouvindo.<br />

As palavras continuam saindo:<br />

— Lembro que minha mãe me balançava na água, na altura de seu quadril. E, uma vez, ela<br />

simplesmente me soltou. Quer dizer, não totalmente. Eu estava com aquelas coisinhas infláveis nos<br />

braços. Mas fiquei tão assustada que berrei desesperadamente. Eu só tinha alguns anos, mas lembro, juro<br />

que lembro. Fiquei bastante aliviada quando ela me pegou. Mas... mas também decepcionada. Como se<br />

tivesse perdido a chance de fazer algo incrível, sabe?<br />

— E o que aconteceu? — Alex inclina a cabeça para olhar para mim. — Vocês não vêm mais aqui?<br />

Sua mãe não gosta mais do mar?<br />

Desvio o olhar, voltando-o para o horizonte. A baía está relativamente calma hoje. Lisa, repleta de<br />

tons de azul e de roxo enquanto a água recua da praia com um leve ruído de sucção. Inofensiva.<br />

— Ela morreu — respondo, surpresa com a dificuldade de dizer isso. Alex fica quieto a meu lado,<br />

então continuo: — Ela se matou. Quando eu tinha seis anos.<br />

— Sinto muito — diz ele, tão baixo e suave que quase não ouço.<br />

— Meu pai morreu quando eu tinha oito meses. Não me lembro dele. Acho... acho que isso a<br />

quebrou um pouco, sabe? Quer dizer, minha mãe. Ela não era curada. Não funcionou. Não sei por quê.<br />

Ela passou pela intervenção três vezes, mas não... não ficou curada.<br />

Paro, respirando, com medo de olhar para Alex, que continua tão imóvel e silencioso a meu lado<br />

quanto uma estátua, quanto um pedaço de sombra esculpido. Ainda assim, não consigo parar de falar.<br />

Percebo, estranhamente, que nunca contei a história de minha mãe antes. Nunca precisei. Todos à minha<br />

volta, todos na escola, todos os vizinhos e os amigos de minha tia sabiam de minha família e de seus<br />

segredos vergonhosos. Por isso, sempre me olharam com pena, de esguelha. Por isso, durante anos<br />

encarei ondas de sussurros em toda sala na qual entrava, golpeada com um silêncio súbito assim que eu<br />

cruzava a porta… silêncio e expressões de espanto e culpa. Até Hana sabia, antes de sermos parceiras de<br />

turma no segundo ano. Eu lembro porque ela me encontrou em uma das cabines do banheiro, chorando<br />

em uma toalha de papel, enfiando-a na boca para que ninguém me ouvisse, e ela abriu a porta com um<br />

chute e ficou ali me encarando. É por causa de sua mãe?, perguntou ela, as primeiras palavras que dirigiu a<br />

mim.<br />

— Eu não sabia que havia algo errado com ela. Não sabia que ela estava doente. Eu era muito nova<br />

para entender. — Mantenho os olhos focados no horizonte, uma linha fina e sólida, tensa como uma

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