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01- Delírio

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Um homem velho está vindo da água, carregando uma vara de pesca. Ele me lança um olhar<br />

desconfiado e se vira para encarar Alex, e em seguida olha para mim de novo e franze o rosto. Abro a<br />

boca para dizer Ele está curado, mas o velho simplesmente resmunga algo quando passa por mim, e não<br />

imagino que ele vá se incomodar em ligar para os reguladores, então não digo nada. Mas também não<br />

teremos grandes problemas se formos pegos — foi isso o que Alex quis dizer com “sou seguro” —, mas<br />

não quero responder a um monte de perguntas e ter minha identidade verificada pelo SSV e tudo mais.<br />

Além disso, se os reguladores realmente se arrastassem até a praia de East End para verificar um<br />

“comportamento suspeito” apenas para descobrir que se tratava de um curado fazendo caridade a uma<br />

fulana de dezessete anos, eles, definitivamente, ficariam irritados — e, com certeza, descontariam em<br />

alguém.<br />

Fazendo caridade. Afasto rapidamente as palavras de minha cabeça, surpresa com quão difícil é sequer<br />

pensar nelas. Durante todo o dia tentei não me preocupar com qual seria o motivo para Alex ser tão<br />

gentil comigo. Até imaginei — por um segundo breve e idiota — que talvez, após minha avaliação, eu<br />

fosse pareada com ele. Alex já recebeu sua página impressa, suas compatibilidades recomendadas — ele<br />

teria recebido a lista antes mesmo da cura, logo após as avaliações. Ainda não está casado porque está na<br />

faculdade, só isso. Mas se casará assim que se formar.<br />

E, claro, depois comecei a imaginar o tipo de garota recomendado para ele — alguém como Hana,<br />

concluí, com cabelos louro-claros e a habilidade desagradável de fazer com que até mesmo o simples ato<br />

de prendê-los seja algo gracioso, como uma dança coreografada.<br />

Há outras quatro pessoas na praia: uma mãe com uma criança, a uns trinta metros de distância, a<br />

mãe sentada em uma cadeira dobrável de tecido desbotado, com o olhar perdido no horizonte, enquanto<br />

a menina — que provavelmente não tem nem três anos de idade — brinca nas ondas, é derrubada, solta<br />

um grito (de dor? de prazer?) e se esforça para se levantar. Mais adiante, um homem e uma mulher<br />

caminham juntos, sem se tocar. Devem ser casados. Ambos estão com as mãos juntas diante do corpo e<br />

olham para a frente, sem conversar — e sem sorrir —, mas calmos, como se cada um estivesse cercado<br />

por uma bolha protetora invisível.<br />

E então me aproximo de Alex, que se vira, me vê e sorri. O sol se reflete no cabelo dele, deixando-o<br />

branco por um instante. Em seguida, ele volta à cor normal, castanha e dourada.<br />

— Oi — diz ele. — Que bom que você veio.<br />

Sinto-me tímida de novo, idiota, segurando meus tênis gastos em uma das mãos. Posso sentir minhas<br />

bochechas se aquecendo, então olho para baixo, solto os tênis e os viro com o dedão do pé.<br />

— Eu disse que viria, não foi?<br />

Eu não tinha a intenção de que as palavras soassem tão duras, e faço uma careta, xingando-me<br />

mentalmente. É como se houvesse um filtro em meu cérebro, mas em vez de melhorar as coisas ele<br />

distorce e faz com que tudo que sai de minha boca seja totalmente errado, totalmente diferente do que<br />

eu estava pensando.<br />

Felizmente, Alex ri.<br />

— Eu só quis dizer que você me deu bolo da outra vez. Quer se sentar?<br />

— Claro — respondo, aliviada.<br />

Sinto-me muito mais à vontade quando nos acomodamos na areia. É menor a chance de eu cair ou<br />

fazer algo idiota. Trago as pernas até o peito, apoiando o queixo no joelho. Alex deixa um bom espaço<br />

entre nós, quase um metro.<br />

Ficamos em silêncio por alguns minutos. No começo, busco desesperadamente alguma coisa para<br />

dizer. Cada segundo de silêncio parece estender-se infinitamente, e eu tenho a certeza de que Alex deve<br />

pensar que sou muda. Mas então ele pega uma concha parcialmente enterrada na areia e a joga ao mar, e<br />

eu percebo que ele não está nem um pouco desconfortável. Depois disso, relaxo. Sinto-me até feliz com<br />

o silêncio.

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