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01- Delírio

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calma, e tenho certeza de que meu rosto mantém a cor normal, pois Carol apenas me dá mais um de<br />

seus sorrisos fugazes e diz que parece ótimo.<br />

Às seis e meia monto na bicicleta e sigo para a praia em East End, onde Alex e eu combinamos de<br />

nos encontrar.<br />

Há muitas praias em Portland. A de East End, provavelmente, é uma das menos populares — razão<br />

pela qual, é claro, era uma das preferidas de minha mãe. O mar aqui é mais forte que em Willard ou em<br />

Sunset Park. Não sei ao certo por quê. Não me importo. Sempre fui uma boa nadadora. Depois daquela<br />

primeira vez — quando minha mãe soltou minha cintura e senti ao mesmo tempo o pânico crescente e a<br />

empolgação, o entusiasmo —, aprendi bem rápido, e aos quatro anos eu já estava nadando sozinha<br />

depois da arrebentação.<br />

Há outras razões pelas quais as pessoas evitam a praia em East End, embora fique bem perto de<br />

Eastern Promenade, um dos parques mais populares. A praia não passa de uma faixa estreita de areia<br />

com pedras e cascalhos. Fica atrás do lado mais afastado do complexo de laboratórios, onde estão os<br />

galpões e as caçambas de lixo, o que não constitui um cenário particularmente bonito. E ao nadar em<br />

East End é possível ver com clareza a ponte Tukey e o pedaço de território não regulamentado entre<br />

Portland e Yarmouth. Muitas pessoas não gostam de estar tão perto da Selva. Elas ficam nervosas.<br />

Também fico nervosa, mas há uma parte em mim — uma parte pequena e ínfima — que gosta. Por<br />

algum tempo depois que minha mãe morreu, eu costumava imaginar que ela não estava realmente morta,<br />

e que meu pai também não estava morto — que eles haviam fugido para a Selva para ficar juntos. Ele<br />

tinha ido cinco anos antes, para preparar tudo, construir uma casinha com um forno a lenha e com<br />

móveis talhados a partir de troncos de árvores. Em algum momento, eu imaginava, eles voltariam para<br />

me buscar. Pensei, inclusive, em meu quarto, até o menor detalhe: um tapete vermelho-escuro, uma<br />

pequena colcha de retalhos vermelha e verde, uma cadeira vermelha.<br />

Imaginei isso apenas algumas vezes antes de perceber o quão estava errada. Se meus pais tivessem<br />

escapado para a Selva, seriam simpatizantes, seriam resistentes. Era melhor que estivessem mortos. Além<br />

disso, aprendi rapidamente que minhas fantasias sobre a Selva eram apenas isso: faz de conta, coisa de<br />

criança. Os Inválidos não têm nada; não têm nenhuma maneira de comercializar ou de obter colchas de<br />

retalho vermelhas, cadeiras, nada. Rachel uma vez me disse que eles devem viver como animais:<br />

imundos, famintos, desesperados. Ela diz que por isso o governo não se incomoda em fazer nada com<br />

eles e sequer reconhece sua existência. Morrerão em breve, todos eles, congelados, famintos ou<br />

dominados pela doença, brigando entre si, furiosos, lutando e arrancando os olhos uns dos outros.<br />

Ela disse que, até onde se sabe, isso talvez já tenha acontecido — disse que a Selva pode estar vazia<br />

agora, escura e morta, cheia apenas de sussurros e ruídos de animais.<br />

Ela provavelmente tem razão em relação às outras coisas — sobre os Inválidos viverem como<br />

animais —, mas, obviamente, está enganada a esse respeito. Eles estão vivos, estão lá, e não querem que<br />

nos esqueçamos. Por isso organizam manifestações. Por isso soltaram as vacas nos laboratórios.<br />

Não me sinto nervosa até chegar à praia em East End. Apesar de o sol estar baixando atrás de mim,<br />

ele ilumina a água e faz tudo brilhar. Protejo os olhos da claridade e vejo Alex perto da água, uma longa<br />

pincelada escura naquela vastidão azul. Volto à noite anterior, aos dedos de uma de suas mãos tocando<br />

minhas costas com tanta delicadeza que era como se eu estivesse sonhando — e sua outra mão<br />

segurando a minha, seca e confortante como um pedaço de madeira aquecido pelo sol. E dançamos<br />

mesmo, o tipo de dança que acontece em casamentos, após a formalização do pareamento, mas, de<br />

alguma forma, foi melhor, mais solta e menos artificial.<br />

Ele está de costas para mim, olhando o mar, e eu fico feliz. Sinto-me pouco à vontade ao descer os<br />

degraus instáveis e corroídos pela maresia que levam do estacionamento à praia, parando para<br />

desamarrar e tirar os tênis e pegá-los com uma das mãos. A areia está morna sob meus pés descalços<br />

enquanto caminho em sua direção.

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