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01- Delírio

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De repente, percebo como tudo está silencioso. A banda parou de tocar e a multidão se calou. O<br />

único ruído é o vento batendo na grama. De onde estamos, a quinze metros do cume, o celeiro e a festa<br />

são invisíveis. Imagino brevemente que somos as únicas pessoas na escuridão — que somos as únicas<br />

pessoas acordadas e vivas na cidade, no mundo.<br />

Então, suaves fiapos de música começam a se entrelaçar pelo ar, gentis, suspirando, tão sutis<br />

inicialmente que confundo os sons com o vento. A música é totalmente diferente das anteriores —<br />

suave e frágil, como se cada nota fosse de cristal ou um fio de seda girando no ar noturno. Mais uma<br />

vez, sou atingida por aquela beleza absoluta, diferente de tudo o que já ouvi, e do nada sou tomada pelo<br />

desejo ambíguo de rir e chorar.<br />

— Essa é minha música preferida. — Uma nuvem encobre rapidamente a lua, e sombras dançam<br />

pelo rosto de Alex. Ele ainda me olha, e eu queria saber o que ele está pensando. — Você já dançou?<br />

— Não — respondo, um pouco brusca demais.<br />

Ele ri suavemente.<br />

— Tudo bem. Não vou contar.<br />

Imagens de minha mãe: a suavidade de suas mãos enquanto ela me girava pelo piso de longas tábuas<br />

de madeira polida em nossa casa, como se fôssemos patinadoras no gelo; a característica melodiosa de<br />

sua voz enquanto ela acompanhava as músicas que saíam dos alto-falantes e ria.<br />

— Minha mãe costumava dançar — falo.<br />

As palavras escapam, e eu me arrependo quase instantaneamente.<br />

Mas Alex não me interroga nem ri. Continua me observando com firmeza. Por um instante parece<br />

prestes a dizer alguma coisa. Depois apenas estende a mão para mim através do espaço, da escuridão.<br />

— Gostaria? — pergunta ele, e mal consigo ouvir sua voz naquele vento, tão baixa que não passa de<br />

um sussurro.<br />

— Gostaria de quê?<br />

Meu coração está urrando, batendo em meus ouvidos, e ainda que haja muitos centímetros entre a<br />

minha mão e a dele há uma energia zumbindo e murmurando que nos conecta, e pelo calor inundando<br />

meu corpo parece até que estamos colados um no outro, mão com mão, rosto com rosto.<br />

— Dançar — diz ele ao mesmo tempo que se aproxima, eliminando com aqueles últimos<br />

centímetros. Então, ele encontra minha mão e me puxa para perto; naquele segundo, a música soa uma<br />

nota aguda, e eu confundo as duas impressões, a mão dele e a elevação da música.<br />

Dançamos.<br />

* * *<br />

Muitas coisas, mesmo os maiores movimentos na Terra, começam com algo pequeno. O terremoto que<br />

destrói uma cidade pode ter início com um tremor, uma trepidação, um suspiro. A música começa com<br />

uma vibração. A enchente que alagou Portland há vinte anos, após quase dois meses de chuva<br />

ininterrupta, que tomou os laboratórios e danificou mais de mil casas, arrastou pneus, sacos de lixo e<br />

sapatos velhos e fedidos, fazendo-os boiar pelas ruas como prêmios, e que deixou para trás uma fina<br />

camada de lodo verde e um fedor de podridão e decadência que durou meses, começou com uma gota<br />

de água mais fina que um dedo, lambendo as docas.<br />

E Deus criou todo o universo a partir de um átomo do tamanho de um pensamento.<br />

A vida de Grace desmoronou por causa de uma única palavra: simpatizante. Meu mundo explodiu<br />

por causa de outra: suicídio.<br />

Correção: aquela foi a primeira vez em que meu mundo explodiu.

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