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— Deixei um bilhete para você uma vez. Na mão do Governador, sabe?<br />
Deixei um bilhete para você uma vez. É impossível, uma ideia louca demais, e eu me ouço repetindo:<br />
— Você deixou um bilhete para mim?<br />
— Tenho quase certeza de que dizia alguma coisa idiota. Apenas “oi”, uma carinha sorrindo e meu<br />
nome. Mas então você parou de vir. — Ele dá de ombros. — Provavelmente, ainda está lá. Quer dizer, o<br />
bilhete. Provavelmente, não passa de uma pasta de papel agora.<br />
Ele me deixou um bilhete. Ele me deixou um bilhete. Para mim. A ideia — o fato, o fato de que ele<br />
tenha me notado e pensado em mim por mais de um segundo — é enorme e esmagadora, e faz minhas<br />
pernas formigarem e minhas mãos ficarem dormentes.<br />
Então, fico apavorada. É assim que começa. Mesmo que ele seja curado, mesmo que seja seguro... O<br />
fato é que eu não sou segura, e é assim que começa. Fase um: preocupação, dificuldade de concentração, boca seca,<br />
transpiração, suor nas mãos, tonteira e desorientação. Sinto uma mistura repentina de enjoo e alívio, uma<br />
sensação parecida com descobrir que todo mundo sempre soube seu pior segredo. Durante todo esse<br />
tempo tia Carol tinha razão, meus professores tinham razão, meus primos tinham razão. Sou exatamente<br />
como minha mãe, afinal. E a coisa, a doença, está dentro de mim, pronta para crescer em minhas<br />
entranhas a qualquer instante e começar a me envenenar.<br />
— Preciso ir.<br />
Recomeço a subir a colina, agora quase correndo, mas de novo ele vem atrás de mim.<br />
— Ei. Não tão depressa. — No topo da colina, ele estende o braço e põe uma das mãos em meu<br />
pulso para que eu pare. Seu toque me queima, e recolho minha mão rapidamente. — Lena. Espere um<br />
segundo.<br />
Mesmo sabendo que não deveria, paro. É a maneira como ele diz meu nome: como música.<br />
— Você não precisa se preocupar, tudo bem? Não precisa ter medo. — Sua voz soa divertida outra<br />
vez. — Não estou flertando com você.<br />
Sinto uma onda de vergonha passando por mim. Flertando. Um palavrão. Ele acha que eu acho que<br />
ele está flertando.<br />
— Eu não... Não acho que você estava... Eu jamais pensaria isso de você...<br />
As palavras colidem em minha boca, e agora sei que não há escuridão no mundo capaz de esconder<br />
a vermelhidão em meu rosto.<br />
Ele inclina a cabeça para o lado.<br />
— Então você está flertando comigo?<br />
— O quê? Não — disparo.<br />
Minha mente está girando às cegas, em pânico, e eu percebo que nem sei o que é flertar. Sei apenas<br />
pelos livros; sei apenas que é ruim. É possível alguém flertar sem saber que está flertando? Ele está<br />
flertando? Meu olho esquerdo treme sem parar.<br />
— Relaxe — diz ele, levantando as mãos, como se dissesse “não fique brava comigo”. — Eu estava<br />
brincando.<br />
Ele se vira ligeiramente para a esquerda, observando-me o tempo todo. A lua ilumina bem sua<br />
cicatriz de três pontas: um perfeito triângulo branco, uma cicatriz que faz pensar em ordem e<br />
regularidade. — Sou seguro, lembra? Não posso machucá-la.<br />
Ele fala em voz baixa, com um tom tranquilo, e eu acredito nele. No entanto, meu coração não para<br />
de bater freneticamente, girando cada vez mais alto, até que tenho certeza de que ele vai levantar voo.<br />
Sinto-me da mesma forma quando chego ao topo da Munjoy Hill e posso ver a rua Congress lá embaixo,<br />
com toda a Portland e suas ruas atrás de mim, um brilho de verdes e cinza — de longe, ao mesmo<br />
tempo linda e desconhecida —, pouco antes de abrir os braços e relaxar, saltitando, pulando e correndo<br />
pela colina. Sinto o vento bater no rosto e sequer tento me mexer; apenas deixo a gravidade me puxar.<br />
Sem fôlego; animada; à espera da queda.