04.04.2017 Views

01- Delírio

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Percebo que estou com raiva dele, sem saber a razão — por ele não ser quem eu pensei que fosse,<br />

talvez, ainda que eu devesse estar agradecida por ele ser normal, curado e seguro.<br />

— Para casa? — repete ele, incrédulo. — Você não pode ir para casa.<br />

Sempre tive cuidado para não ceder a sentimentos de raiva ou irritação. Não posso me permitir isso<br />

na casa de Carol. Devo muito a ela — além do mais, após os poucos escândalos que dei na infância, eu<br />

detestava a maneira como ela passava dias me olhando torto, como se me analisasse, me medisse. Eu<br />

sabia o que ela estava pensando: Exatamente como a mãe. Mas agora eu cedo e deixo a raiva crescer. Estou<br />

cansada de ver as pessoas agirem como se este mundo, este outro mundo, fosse o normal e eu, a louca.<br />

Não é justo: como se todas as regras tivessem mudado de repente e as pessoas tivessem se esquecido de<br />

me avisar.<br />

— Posso e vou.<br />

Dou meia-volta e começo a subir a colina, concluindo que ele me deixará em paz. Para minha<br />

surpresa, não é o que ele faz.<br />

— Espere!<br />

Ele me segue colina acima.<br />

— O que está fazendo?<br />

Giro para encará-lo, mais uma vez surpresa com a confiança em minha voz, considerando que meu<br />

coração está acelerado e aos saltos. Talvez seja esse o segredo para falar com meninos — talvez baste<br />

simplesmente estar sempre irritada.<br />

— O que você quer dizer? — Estamos relativamente sem fôlego por causa da subida, mas ele ainda<br />

consegue sorrir. — Só quero conversar com você.<br />

— Você está me seguindo. — Cruzo os braços, o que me ajuda a ter a sensação de que estou<br />

demarcando o espaço entre nós. — Está me seguindo outra vez.<br />

Pronto. Ele recua, e eu sinto uma pontada momentânea e perversa de prazer por tê-lo surpreendido.<br />

— Outra vez? — repete ele.<br />

Fico feliz com o fato de que, ao menos uma vez, não sou eu quem está gaguejando ou tentando<br />

encontrar as palavras.<br />

As palavras voam de minha boca:<br />

— Acho um pouquinho estranho que eu tenha passado a vida inteira sem vê-lo e, de repente,<br />

comece a encontrá-lo em todos os lugares.<br />

Eu não havia planejado dizer isso — na verdade, eu não havia achado aquilo estranho —, mas assim<br />

que as palavras saem de minha boca percebo que são verdadeiras.<br />

Acho que ele vai ficar irritado, mas para minha surpresa ele inclina a cabeça para trás e ri, uma risada<br />

longa e alta, enquanto a luz do luar pinta de prata a curva de suas bochechas, seu queixo e seu nariz.<br />

Estou tão surpresa com sua reação que simplesmente fico parada ali, encarando-o. Finalmente, ele olha<br />

para mim. Apesar de ainda não conseguir distinguir seus olhos — o luar torna tudo duro, destacando<br />

algumas partes com sua luz prateada brilhante e cristalina e deixando outras na escuridão —, tenho uma<br />

impressão de calor e de luminosidade, a mesma que tive naquele dia nos laboratórios.<br />

— Talvez você só não estivesse prestando atenção — diz ele, em voz baixa, inclinando-se levemente.<br />

Dou um passo involuntário e um pouco arrastado para trás. Percebo que estou assustada com sua<br />

proximidade, com o fato de que, mesmo que nossos corpos estejam separados por muitos centímetros,<br />

eu me sinto como se nos tocássemos.<br />

— O que... O que você quer dizer?<br />

— Quero dizer que você está errada. — Ele para, observando-me, e eu me esforço para manter meu<br />

rosto composto, ainda que sinta meu olho esquerdo contraído e trêmulo. Com sorte, ele não tem como<br />

perceber isso na escuridão. — Já nos vimos muitas vezes.<br />

— Eu me lembraria se tivéssemos nos conhecido antes.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!