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01- Delírio

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nos dedos. — Mentiu sobre sequer ter estado dentro dos laboratórios no Dia da Avaliação.<br />

— Tudo bem, tudo bem. — Ele levanta as mãos. — Desculpe, tudo bem? Olhe, sou eu quem deve<br />

pedir desculpa. — Ele me encara por um segundo e, em seguida, suspira. — Eu falei que seguranças não<br />

podem entrar nos laboratórios durante as avaliações. Para manter o processo “puro” ou algo assim, não<br />

sei. Mas eu precisava muito de um café, e uma máquina no segundo andar do complexo C tem um café<br />

bom, com leite de verdade e tudo, então usei meu código para entrar. Foi isso. Foi só isso. E depois<br />

precisei mentir. Eu poderia perder meu emprego. E só trabalho na porcaria do complexo de<br />

laboratórios para pagar minha faculdade... — diz ele. Pela primeira vez não parece confiante. Parece<br />

preocupado, como se tivesse medo de que eu realmente o denunciasse.<br />

— Então, por que você estava na galeria de observação? — pressiono. — Por que estava me<br />

olhando?<br />

— Nem cheguei ao segundo andar — responde ele, olhando-me atentamente, como se julgasse<br />

minha reação. — Entrei e... E simplesmente ouvi um barulho louco. Aquele som agitado, estridente. E<br />

outra coisa, também. Gritos ou algo parecido.<br />

Fecho os olhos brevemente, relembrando a sensação das luzes brancas intensas e minha impressão<br />

de ouvir o oceano batendo do lado de fora dos laboratórios e os gritos de minha mãe a uma década de<br />

distância. Quando abro os olhos novamente, Alex continua me observando.<br />

— Enfim, eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Pensei... Não sei, é idiota... Mas pensei que<br />

talvez os laboratórios estivessem sofrendo um ataque ou algo do tipo. Então, enquanto estou ali, de<br />

repente aparecem, tipo, umas cem vacas avançando para cima de mim... — Ele dá de ombros. — Havia<br />

uma escadaria à minha esquerda. Fiquei nervoso e subi correndo. Imaginei que vacas não subiam<br />

escadas. — Um sorriso aparece de novo, dessa vez fugaz, hesitante. — Fui parar na galeria de<br />

observação.<br />

Uma explicação perfeitamente normal e razoável. Sinto-me aliviada e com menos medo dele agora.<br />

Ao mesmo tempo, há algo crescendo em meu peito, uma sensação de abatimento, uma decepção. E um<br />

pouco de teimosia, uma parte de mim que ainda duvida dele. Lembro-me de como ele estava na galeria<br />

de observação, com a cabeça inclinada para trás e rindo; a maneira como piscou para mim. Como ele<br />

parecia estar: divertido, confiante, feliz. Totalmente sem medo.<br />

Um mundo sem medo...<br />

— Então você não sabe nada sobre como... como aconteceu?<br />

Não acredito que estou sendo tão corajosa. Fecho os punhos com força, torcendo para que ele não<br />

perceba minha voz falhando de repente.<br />

— Você quer dizer a confusão nas entregas? — diz ele com suavidade, sem uma pausa ou hesitação<br />

na voz, e minhas últimas dúvidas desaparecem. Como qualquer curado, ele não questiona a história<br />

oficial. — Eu não estava encarregado de assinar pelas entregas naquele dia. O cara que estava, Sal, foi<br />

demitido. É preciso verificar a carga. Acho que ele pulou essa etapa. — Ele inclina a cabeça para um<br />

lado e abre as mãos. — Satisfeita agora?<br />

— Satisfeita — respondo.<br />

Mas a pressão em meu peito continua. Ainda que mais cedo eu estivesse desesperada para sair de<br />

casa, agora eu só queria piscar e estar em casa, sentada na cama, empurrando as cobertas e percebendo<br />

que tudo, a festa e o encontro com Alex, foi apenas um sonho.<br />

— Então...? — Ele inclina a cabeça em direção ao celeiro. A banda está tocando alguma coisa alta e<br />

agitada. Não sei por que a música me atraiu antes. Parece apenas barulho agora, um barulho acelerado.<br />

— Acha que conseguimos chegar perto sem sermos pisoteados?<br />

Ignoro o fato de que ele acabou de dizer “nós”, uma palavra que, por algum motivo, parece muito<br />

atraente quando pronunciada com seu sotaque melódico e risonho.<br />

— Na verdade, eu estava indo para casa.

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