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01- Delírio

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centímetros que separavam sua boca de meu ouvido, pavor, culpa e entusiasmo ao mesmo tempo.<br />

— Estou falando sério.<br />

Faço o possível para franzir o rosto para ele.<br />

O sorriso dele diminui, mas não desaparece. Ele solta o ar pela boca.<br />

— Vim ouvir a música — diz ele. — Como todo mundo.<br />

— Mas você não pode... — Estou lutando para encontrar as palavras certas, sem saber como dizer o<br />

que quero. — Mas isso é...<br />

— Ilegal? — Ele dá de ombros. Uma mecha de cabelo cai em seu olho esquerdo, e quando ele se<br />

vira para olhar a festa reflete a luz do palco e brilha com aquele tom bizarro de castanho e dourado. —<br />

Não tem problema — diz ele, mais baixo, obrigando-me a me inclinar para a frente para escutá-lo por<br />

cima da música. — Ninguém está machucando ninguém.<br />

Você não sabe disso, começo a dizer, mas sou contida pela maneira como suas palavras mostram um<br />

toque de tristeza. Alex passa a mão no cabelo e vejo a pequena cicatriz escura de três pontas atrás de sua<br />

orelha esquerda, perfeitamente simétrica. Talvez só esteja triste por tudo o que perdeu após a cura. A<br />

música não toca as pessoas da mesma maneira, por exemplo, e apesar de ele também não poder mais se<br />

sentir arrependido, a intervenção funciona de forma diferente em cada pessoa e nem sempre é perfeita.<br />

Por isso meus tios ainda sonham às vezes. Por isso minha prima Marcia se via chorando histericamente,<br />

de uma hora para outra e sem motivo aparente.<br />

— E você? — Ele se vira para mim de novo, e seu sorriso está de volta, assim como a mesma<br />

característica provocadora em sua voz. — Qual é sua desculpa?<br />

— Eu não queria vir — digo, rapidamente. — Precisei... — interrompo-me, percebendo que não<br />

tenho certeza quanto ao motivo pelo qual tive de vir. — Precisei entregar uma coisa a uma pessoa —<br />

falo, afinal.<br />

Ele ergue as sobrancelhas, claramente não convencido disso. Apresso-me:<br />

— Para Hana. Minha amiga. Você a conheceu naquele dia.<br />

— Eu me lembro — diz ele. Nunca vi ninguém manter um sorriso por tanto tempo. É como se seu<br />

rosto fosse naturalmente moldado dessa forma. — Aliás, você ainda não pediu desculpas.<br />

— Por quê?<br />

A multidão continuou se aproximando do palco, então Alex e eu não estamos mais cercados. De vez<br />

em quando, alguém passa, balançando uma garrafa de alguma coisa ou cantando junto com a banda,<br />

ligeiramente fora de ritmo, mas ficamos sozinhos durante quase todo o tempo.<br />

— Por me dar um bolo. — Um canto de sua boca se eleva um pouco, e novamente tenho a sensação<br />

de que ele está dividindo algum segredo delicioso comigo, que está tentando me dizer alguma coisa. —<br />

Você não apareceu na enseada Back naquele dia.<br />

Sinto um surto de triunfo — ele estava me esperando na enseada Back! Ele queria que eu o<br />

encontrasse! Ao mesmo tempo, a ansiedade cresce em mim. Ele quer alguma coisa de mim. Não sei<br />

exatamente o que é, mas posso sentir, e isso me amedronta.<br />

— Então? — Ele cruza os braços e se balança nos calcanhares, ainda sorrindo. — Você vai pedir<br />

desculpas ou não?<br />

Sua tranquilidade e confiança me enervam, exatamente como nos laboratórios. É tão injusto, tão<br />

diferente de como me sinto, como se estivesse prestes a ter um ataque cardíaco ou me derreter por<br />

completo.<br />

— Não peço desculpas a mentirosos — digo, surpresa com a firmeza de minha voz.<br />

Ele faz uma careta.<br />

— Como assim?<br />

— Por favor. — Reviro os olhos, sentindo-me mais confiante a cada segundo. — Você mentiu a<br />

respeito de ter me visto nas avaliações. Mentiu sobre me reconhecer. — Estou contando suas mentiras

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