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01- Delírio

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Drew dá de ombros.<br />

— Era o que eles tinham. Vodca sempre é a primeira bebida a acabar nessas ocasiões.<br />

Nessas ocasiões — quer dizer, essas ocasiões acontecem, quer dizer, mais de uma vez.<br />

— Não. — Eu tento devolver o copo. — Tome.<br />

Ele me dispensa com um aceno, obviamente não entendendo.<br />

— Tranquilo. Eu pego outro.<br />

Drew lança um sorriso rápido para Hana antes de desaparecer na multidão. Gosto do sorriso dele,<br />

da maneira como se entorta um pouco em direção à orelha esquerda, mas quando percebo que estou<br />

pensando sobre gostar do sorriso dele sinto o pânico se alastrando em mim, circulando em meu sangue,<br />

uma vida de sussurros e acusações.<br />

Controle. É tudo uma questão de controle.<br />

— Preciso ir — consigo dizer a Hana. Progresso.<br />

— Ir? — Ela franze a testa. — Você anda até aqui...<br />

— Eu vim de bicicleta.<br />

— Que seja. Você pedala até aqui e simplesmente vai embora?<br />

Hana tenta pegar minha mão, mas eu cruzo os braços rapidamente para evitá-la. Ela parece<br />

momentaneamente chateada. Finjo tremer de frio para que ela não se sinta mal, e me pergunto por que<br />

parece tão estranho falar com ela. Esta é minha melhor amiga, a menina que conheço desde o segundo<br />

ano do ensino fundamental, a menina que costumava dividir seus biscoitos comigo no almoço e que<br />

uma vez acertou um soco no rosto de Jillian Dawson, que disse que minha família era doente.<br />

— Estou cansada — digo. — E não deveria estar aqui.<br />

Quero dizer: Você também não deveria estar aqui. Mas me contenho.<br />

— Ouviu a banda? Eles são incríveis, não é?<br />

Hana está sendo legal demais, o que não é nem um pouco normal, e sinto uma dor profunda e afiada<br />

nas costelas. Ela está tentando ser educada. Está agindo como se não nos conhecêssemos. Ela também<br />

sente o desconforto.<br />

— Eu... Eu não estava ouvindo.<br />

Por algum motivo, não quero que Hana saiba que, sim, eu ouvi, e sim, achei que eles eram incríveis,<br />

mais do que incríveis. É algo muito íntimo — até embaraçoso, algo de que se envergonhar, e, apesar de<br />

ter vindo até a fazenda Roaring Brook e violado o toque de recolher e tudo mais, apenas para ver Hana<br />

e pedir desculpas, a sensação que tive hoje volta: não conheço mais minha amiga, e ela não me conhece<br />

de verdade.<br />

Estou acostumada à sensação de duplicidade, a pensar uma coisa e precisar fazer outra, um<br />

constante cabo de guerra. Mas, de algum jeito, Hana caiu completamente na outra metade, no outro<br />

mundo, no mundo dos pensamentos, coisas e pessoas inomináveis.<br />

Será possível que em toda a minha vida, enquanto eu estudava para provas e corria com Hana, este<br />

outro mundo simplesmente tenha existido, seguindo paralelamente e oculto do meu, vivo, pronto para<br />

escapar das sombras e dos becos assim que o sol se pusesse? Festas ilegais, músicas não aprovadas,<br />

pessoas tocando umas às outras sem temer a doença, sem temer por si próprias.<br />

Um mundo sem medo. Impossível.<br />

E embora eu esteja no meio da maior multidão que já vi, de repente me sinto muito sozinha.<br />

— Fique — diz Hana, em voz baixa. Mesmo sendo um comando, há um tom de hesitação em sua<br />

voz, como se ela estivesse fazendo uma pergunta. — Você pode ouvir a segunda parte.<br />

Balanço a cabeça. Eu preferiria não ter vindo. Preferiria não ter visto isso. Preferiria não saber o que<br />

sei agora, e poder acordar amanhã e pedalar até a casa de Hana, poder ficar em Eastern Promenade com<br />

ela e reclamar da chatice dos verões, como sempre fazemos. Preferiria poder acreditar que nada mudou.<br />

— Eu vou embora — digo, desejando que minha voz não tivesse saído trêmula. — Mas não tem

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