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estacionados — tal como nos lares mais ricos de West End —, mas estes, obviamente, foram resgatados<br />
de ferros-velhos. Estão colocados em cima de blocos de cimento e cobertos de ferrugem. Vejo uma<br />
árvore saindo pelo teto solar de um dos carros, como se ele tivesse caído do céu e sido atravessado pela<br />
planta, e outro carro está com o capô aberto e sem o motor. Quando passo por ali, um gato sai de seu<br />
esconderijo escuro, miando e piscando para mim.<br />
Depois que atravesso o rio Fore, as casas desaparecem de vez e há apenas campo após campo,<br />
fazenda após fazenda, nomes como MeadowLane, Sheepsbay e Willow Creek, que as fazem soar<br />
aconchegantes e agradáveis: lugares em que alguém pode estar assando muffins ou batendo nata fresca<br />
para fazer manteiga. Mas a maioria dessas fazendas pertence a grandes empresas, estão todas cheias de<br />
gado e costumam usar órfãos como mão de obra.<br />
Sempre gostei daqui, mas o lugar é um pouco assustador no escuro, aberto e totalmente vazio, e não<br />
consigo deixar de pensar que, se eu realmente encontrar alguma patrulha, não haverá onde me esconder,<br />
nenhum beco onde entrar. Do outro lado dos campos, vejo as silhuetas baixas e escuras de celeiros e<br />
silos, alguns bem novos, outros caindo aos pedaços, presos à terra como dentes encravados em alguma<br />
coisa. O ar tem um aroma levemente doce, cheira a plantas e adubo.<br />
A fazenda Roaring Brook fica junto da fronteira sudoeste. Está abandonada há anos, desde que<br />
metade da casa-grande e os dois silos de grãos foram destruídos em um incêndio. Uns cinco minutos<br />
antes de chegar acho que consigo distinguir uma batida rítmica quase imperceptível sob a melodia rouca<br />
dos grilos, mas, por um tempo, não sei se é apenas minha imaginação ou se é o barulho de meu coração,<br />
que voltou a se acelerar. Quando avanço um pouco mais, porém, tenho certeza. Mesmo antes de chegar<br />
à pequena estrada de terra que leva ao celeiro — ou, ao menos, à parte do celeiro que ainda está de pé<br />
—, surgem rastros de música, cristalizando-se no ar noturno como chuva se transformando de repente<br />
em neve e flutuando até o solo.<br />
Agora estou com medo outra vez. Tudo que consigo pensar é: errado, errado, errado, uma palavra que<br />
martela em minha cabeça. Tia Carol me mataria se soubesse o que estou fazendo. Ela me mataria, me<br />
jogaria nas Criptas ou me levaria aos laboratórios para uma intervenção antecipada, no estilo Willow<br />
Marks.<br />
Salto da bicicleta quando vejo a curva para Roaring Brook e a grande placa metálica que diz:<br />
PROPRIEDADE DE PORTLAND. NÃO INVADIR . Levo minha bicicleta para o bosque na beira da estrada.<br />
Ainda faltam uns cento e cinquenta, cento e oitenta metros pela estrada até a casa e o velho celeiro, mas<br />
não quero levar minha bicicleta mais adiante. Porém, não passo a corrente. Não quero nem pensar no<br />
que aconteceria se houvesse uma batida policial, mas, se acontecer, não quero ficar lutando com um<br />
cadeado no escuro. Precisarei de velocidade.<br />
Contorno a placa de advertência. Estou me tornando especialista em ignorá-las, percebo, lembrandome<br />
de quando Hana e eu pulamos o portão para os laboratórios. Fazia um bom tempo que eu não<br />
pensava naquela tarde, e imediatamente uma imagem de Alex se ergue diante de mim: uma lembrança de<br />
tê-lo visto na galeria de observação, com a cabeça inclinada para trás e rindo.<br />
Preciso concentrar-me na terra a meu redor, no brilho da lua, nas flores do campo na estrada. Isso<br />
me ajuda a combater a sensação de que vou vomitar a qualquer instante. Não sei de fato o que me fez<br />
sair de casa, por que senti que precisava provar que Hana estava errada em relação a alguma coisa, e<br />
tento ignorar a ideia — muito mais perturbadora do que qualquer outra coisa — de que minha<br />
discussão com ela foi apenas uma desculpa.<br />
Que, talvez, no fundo, eu estivesse apenas curiosa.<br />
Não estou curiosa agora. Estou assustada. E me sentindo muito, muito burra.<br />
A casa e o velho celeiro ficam em um pedaço de terreno entre duas colinas, um pequeno vale, como<br />
se as construções estivessem bem no meio dos lábios contraídos de alguém. Por causa da maneira como<br />
a terra se inclina, ainda não consigo ver a casa, mas, conforme me aproximo do topo da colina, a música