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— Lena, só estou dizendo que você precisa deixar isso para trás. Você não é nada como ela. E não<br />
vai acabar como ela. Isso não faz parte de você.<br />
— Vá se ferrar. — Ela está tentando ser gentil, mas minha mente está travada e as palavras saem<br />
sozinhas, caindo umas em cima das outras, e eu queria que cada uma fosse um soco para que eu pudesse<br />
bater no rosto dela: pá-pá-pá-pá. — Você não sabe nada dela. E não sabe nada de mim. Você não sabe<br />
nada.<br />
— Lena.<br />
Ela estende a mão para mim.<br />
— Não encoste em mim.<br />
Estou cambaleando para trás, pegando minha bolsa, esbarrando na escrivaninha ao caminhar para a<br />
porta. Minha visão está sem foco. Mal consigo enxergar o corrimão. Estou tropeçando, quase caindo<br />
pelas escadas, encontrando a porta da frente pelo tato. Acho que Hana deve estar me chamando, mas<br />
tudo se confunde em um rugido em meus ouvidos, dentro de minha cabeça. A luz do sol, luz branca,<br />
brilhante, brilhante... O ferro frio e duro sob meus dedos, o portão... Cheiros do oceano, gasolina.<br />
Ganidos soando cada vez mais alto. Um barulho ritmado: bip, bip, bip.<br />
Minha cabeça clareia subitamente e pulo para a calçada, para não ser atropelada por uma viatura<br />
policial que passa a toda velocidade por mim ainda buzinando, com a sirene soando, e fico no chão<br />
engasgada com sujeira e poeira. A dor em minha garganta se torna tão intensa que parece que vou<br />
vomitar, e quando finalmente permito que as lágrimas caiam, sinto um alívio enorme, como soltar algo<br />
pesado após carregá-lo por muito tempo. Depois que começo a chorar, não consigo mais parar, e<br />
durante todo o caminho para casa preciso esfregar os olhos, limpando as lágrimas só para poder ver por<br />
onde estou indo. Conforto-me pensando que em menos de dois meses isso não significará nada para<br />
mim. Tudo se desfará e eu me erguerei nova e livre, como um pássaro levantando voo.<br />
É isso o que Hana não entende, nunca entendeu. Para alguns de nós, não se trata só do deliria.<br />
Alguns de nós, os mais sortudos, terão a chance de renascer: mais novos, mais frescos, melhores.<br />
Curados, inteiros, perfeitos novamente, como uma chapa tosca de ferro que sai do fogo candente,<br />
brilhante, afiado.<br />
É tudo o que quero — tudo o que sempre quis. Essa é a promessa da cura.