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01- Delírio

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Por um segundo faz-se silêncio. Ficamos nos encarando, e o ar entre nós parece carregado e<br />

perigoso, como uma fina resistência elétrica prestes a explodir.<br />

— E quanto a mim? — digo, afinal, esforçando-me para impedir que minha voz falhe.<br />

— Será muito bem-vinda. Dez e meia, na fazenda Roaring Brook, em Stroudwater. Música. Dança.<br />

Sabe... Diversão. O tipo de coisa que deveríamos estar fazendo antes que eles cortem fora metade de<br />

nosso cérebro.<br />

Ignoro a última parte do comentário.<br />

— Acho que não, Hana. Caso você tenha esquecido, temos outros planos para hoje à noite. Temos<br />

planos para hoje há, bem, quinze anos.<br />

— Bem, as coisas mudam.<br />

Ela vira as costas para mim, mas sinto como se tivesse levado um soco no estômago.<br />

— Certo. — Minha garganta está se fechando. Dessa vez sei que é para valer, e estou quase<br />

chorando. Vou até a cama dela e começo a juntar minhas coisas. É claro que minha bolsa tombou de<br />

lado e cobriu o edredom com papeizinhos, embalagens de chiclete, moedas, canetas. Começo a colocar<br />

tudo de volta na bolsa, resistindo às lágrimas. — Vá em frente. Faça o que quiser hoje à noite. Não me<br />

importo.<br />

Talvez Hana se sinta mal, porque sua voz se suaviza um pouco.<br />

— Sério, Lena... Você deveria pensar em ir. Tudo vai dar certo, eu prometo.<br />

— Você não pode prometer isso. — Respiro fundo, desejando que minha voz pare de vacilar. —<br />

Você não sabe. Não pode ter certeza.<br />

— E você não pode continuar sentindo tanto medo o tempo todo.<br />

É isso: é a gota d’água. Viro-me furiosa, sentindo algo profundo, escuro e antigo se erguer dentro de<br />

mim.<br />

— É claro que estou assustada. E tenho razão de estar assustada. E se você não está, é só porque tem<br />

uma vidinha perfeita, uma familiazinha perfeita, e para você tudo é perfeito, perfeito, perfeito, perfeito.<br />

Você não entende. Você não sabe.<br />

— Perfeita? É isso o que você pensa? Acha que minha vida é perfeita?<br />

Sua voz está baixa, mas cheia de raiva.<br />

Quero me afastar dela, mas me forço a continuar ali.<br />

— É. Acho.<br />

Mais uma vez, ela solta uma risada breve e áspera, uma explosão rápida.<br />

— Então você acha que é isso, é? Melhor impossível?<br />

Ela faz uma volta completa, com os braços esticados, como se abraçasse o quarto, a casa, tudo.<br />

A pergunta me espanta.<br />

— O que mais existe?<br />

— Tudo, Lena. — Ela balança a cabeça. — Escute, não vou pedir desculpas. Sei que você tem seus<br />

motivos para estar assustada. O que aconteceu com sua mãe foi horrível...<br />

— Não envolva minha mãe nessa conversa.<br />

Meu corpo fica rígido, carregado.<br />

— Mas você não pode continuar culpando-a por tudo. Ela morreu há mais de dez anos.<br />

A raiva me engole, como uma névoa espessa. Minha mente se acelera ferozmente, como rodas sobre<br />

o gelo, debatendo-se entre palavras aleatórias: Medo. Culpa. Não se esqueça. Mãe. Amo você. E agora vejo<br />

que Hana é uma cobra — esperou muito tempo para me dizer isso, esperou para se esgueirar, tão<br />

profunda e dolorosamente quanto fosse possível, e então morder.<br />

— Vá se ferrar.<br />

No final, são estas as palavras que saem.<br />

Hana levanta as mãos.

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