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01- Delírio

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do sistema. Você deveria ver algumas das coisas que as pessoas escrevem. Sobre... sobre a cura. Não são<br />

apenas os Inválidos que não acreditam nela. Há pessoas aqui, em todos os lugares, que não acham... —<br />

Estou olhando tão fixamente para ela que Hana abaixa os olhos e muda de assunto. — E você deveria<br />

ouvir a música. Músicas incríveis, maravilhosas, diferentes de tudo o que você já escutou, músicas que<br />

quase arrancam sua cabeça, sabe? Que fazem você querer gritar, pular, quebrar coisas, chorar...<br />

O quarto de Hana é grande — quase duas vezes maior que o meu —, mas sinto como se as paredes<br />

estivessem me pressionando. Se o ar-condicionado ainda está funcionando, não consigo sentir seu efeito.<br />

O ar parece quente e pesado, como um bafo úmido, então me levanto e vou até a janela. Hana, enfim,<br />

para de falar. Tento abrir a janela, mas ela não se mexe. Empurro, forçando o corpo contra o parapeito.<br />

— Lena — diz Hana, tímida, após um minuto.<br />

— Não quer abrir.<br />

Tudo que consigo pensar é: preciso de ar. Meus outros pensamentos são estática de rádio, luzes<br />

fluorescentes, jalecos de laboratório, mesas de aço, bisturis... uma imagem de Willow Marks sendo<br />

arrastada para os laboratórios aos berros, sua casa coberta de pichações.<br />

— Lena — diz Hana, mais alto. — Por favor...<br />

— Está emperrada. A madeira deve estar empenada por causa do calor. Se ao menos a janela abrisse.<br />

Levanto-a com esforço e a janela enfim se abre de repente. Ouço um estalo, e o trinco que mantinha<br />

a janela no lugar se solta e vai parar no meio do quarto. Por um segundo Hana e eu ficamos ali paradas,<br />

olhando-o. O ar que entra pela janela não me ajuda a melhorar. Lá fora está ainda mais quente.<br />

— Desculpe — sussurro. Não consigo olhar para ela. — Não quis... Eu não sabia que estava<br />

trancada. As janelas em minha casa não têm tranca.<br />

— Não se preocupe com a janela. Não ligo para a porcaria da janela.<br />

— Uma vez, Grace saiu do berço quando era pequena e quase chegou ao telhado. Ela apenas abriu a<br />

janela e começou a subir.<br />

— Lena. — Hana estende os braços e segura meus ombros. Não sei se estou com febre ou algo<br />

parecido, sentindo calor e frio a cada cinco segundos, mas seu toque me provoca um calafrio, e me<br />

afasto rapidamente. — Você está brava comigo.<br />

— Não estou brava. Estou preocupada.<br />

Mas isso é só uma meia-verdade. Estou brava... furiosa, aliás. Esse tempo todo eu a acompanhei<br />

cegamente, fui a amiga idiota, pensando no último verão de verdade que passamos juntas, preocupandome<br />

com as opções compatíveis que eu receberia, as avaliações, os testes e outras coisas normais enquanto<br />

ela balançava a cabeça e dizia Aham, é, eu também e Tenho certeza de que vai ficar tudo bem, mas, pelas minhas<br />

costas, estava se transformando em uma pessoa que não conheço, alguém com segredos, e hábitos e<br />

opiniões estranhas sobre coisas em que não devemos nem pensar. Agora sei por que fiquei tão espantada<br />

no Dia da Avaliação, quando ela se virou para sussurrar para mim, com os olhos arregalados e<br />

brilhantes. Era como se ela tivesse sumido por um segundo, minha melhor amiga, minha única amiga de<br />

verdade, e em seu lugar estivesse uma estranha.<br />

É o que vem acontecendo durante todo esse tempo: Hana está se transformando em uma estranha.<br />

Viro-me para a janela.<br />

Uma lâmina afiada de tristeza me atravessa, profunda e rapidamente. Acho que isso ia acabar<br />

acontecendo, mais cedo ou mais tarde. Eu sempre soube que aconteceria. Todo mundo em quem<br />

confiamos, todos aqueles com os quais pensamos que podemos contar, com o tempo acabam nos<br />

decepcionando. Quando se veem livres para fazer o que querem, as pessoas mentem, guardam segredos,<br />

mudam, desaparecem, algumas, atrás de um rosto ou uma personalidade diferente, outras, atrás de uma<br />

densa névoa matutina junto a um penhasco. Por isso a cura é tão importante. Por isso precisamos dela.<br />

— Escute, não serei presa apenas por olhar alguns sites. Ou ouvir música ou o que quer que seja.<br />

— Você poderia ser presa. Pessoas já foram presas por menos.

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