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01- Delírio

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Sra. Jablonski no segundo ano, que foi como nos tornamos amigas. O sobrenome de Hana é Tate, e as<br />

duplas foram formadas por ordem alfabética (na época, eu já usava o sobrenome de minha tia, Tiddle).<br />

Pergunto-me se ela preferiria ter como dupla Rebecca Tralawny, Katie Scarp ou até mesmo Melissa<br />

Portofino. Às vezes, sinto que ela merece uma melhor amiga que seja só um pouco mais especial. Uma<br />

vez, Hana me disse que gosta de mim porque sou de verdade — porque realmente sinto as coisas. Mas o<br />

problema todo é esse: o quanto eu sinto as coisas.<br />

— Olá? — chamo, assim que entro na casa de Hana. O hall está escuro e frio como sempre. Meus<br />

braços estão arrepiados. Por mais que eu venha à casa de Hana, sempre fico impressionada com a<br />

intensidade do ar-condicionado, que murmura em algum lugar dentro das paredes. Por um instante, fico<br />

parada, inalando os cheiros agradáveis do lustra-móveis, do limpa-vidros e das flores frescas. Ouve-se<br />

música vindo do quarto de Hana no andar de cima. Tento identificar a canção, mas não consigo<br />

entender nenhuma palavra, apenas sinto o baixo pulsando pelo assoalho.<br />

No alto da escada, paro. A porta do quarto de Hana está fechada. Definitivamente, não reconheço a<br />

música que está tocando — berrando, na verdade, tão alta que preciso lembrar a mim mesma que a casa<br />

de Hana é toda cercada por árvores e gramados, e ninguém a denunciará aos reguladores. Não é como<br />

nenhuma música que eu já tenha ouvido. É uma espécie de música aguda, gritada, intimidadora: nem<br />

consigo dizer se é cantada por um homem ou uma mulher. Pequenas correntes de eletricidade sobem<br />

por minha espinha, uma sensação que eu costumava ter quando era muito nova e entrava na cozinha<br />

para tentar surrupiar mais um biscoito na despensa — a sensação imediatamente anterior ao rangido e<br />

aos passos de minha mãe na cozinha, atrás de mim, quando eu me virava, culpada, com as mãos e o<br />

rosto cheios de migalhas.<br />

Afasto a sensação e abro a porta do quarto de Hana. Ela está sentada diante do computador, com os<br />

pés em cima da mesa, balançando a cabeça e batucando um ritmo nas coxas. Assim que me vê, ela se<br />

move para a frente e bate em uma tecla. A música é interrompida na mesma hora. É estranho, mas o<br />

silêncio que se segue parece igualmente alto.<br />

Ela joga o cabelo por cima de um ombro e se afasta da mesa. Algo surge em seu rosto, uma<br />

expressão que passa rápido demais para que eu possa definir.<br />

— Oi — diz ela, um pouco alegre demais. — Não ouvi você entrar.<br />

— Duvido que tivesse ouvido se eu arrombasse a porta. — Ando até a cama e me deixo cair no<br />

colchão. Hana tem uma cama enorme, com três travesseiros de plumas. É como o paraíso. — O que era<br />

aquilo?<br />

— O que era o quê?<br />

Ela levanta os joelhos até o peito e gira na cadeira. Apoio meu corpo nos cotovelos e olho para ela.<br />

Hana só se finge de idiota assim quando está escondendo alguma coisa.<br />

— A música. — Ela continua me encarando sem expressão. — A música que estava berrando<br />

quando entrei. Aquela que quase arrebentou meus tímpanos.<br />

— Ah... isso. — Hana sopra a franja do rosto. Mais uma atitude que a denuncia. Sempre que está<br />

blefando no pôquer, ela mexe sem parar na franja. — Apenas uma banda nova que encontrei na intranet.<br />

— Na BMFA? — insisto.<br />

Hana é obcecada por música, e costumava passar horas navegando pela BMFA, a Biblioteca de<br />

Músicas e Filmes Autorizados, quando estávamos no ensino fundamental.<br />

Hana desvia o olhar.<br />

— Não exatamente.<br />

— Como assim “não exatamente”?<br />

A intranet, assim como tudo nos Estados Unidos, é controlada e monitorada, para nossa proteção.<br />

Todos os sites, todo o conteúdo, são escritos por agências do governo, inclusive a Lista de<br />

Entretenimentos Autorizados, que é atualizada duas vezes ao ano. Livros digitais entram na BLA — a

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