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01- Delírio

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* * *<br />

As duas semanas seguintes são as mais ocupadas de minha vida. O verão explode em Portland. No<br />

começo de junho, o calor estava ali, mas não as cores — os verdes ainda eram pálidos e hesitantes, as<br />

manhãs tinham um frio cortante —, mas na última semana de aula tudo estava em tecnicolor e cores<br />

fortes, com céus escandalosamente azuis, tempestades roxas, noites negras como tinta e flores vermelhas<br />

tão brilhantes quanto gotas de sangue. Todos os dias, depois das aulas, há um encontro, uma cerimônia<br />

ou uma formatura para ir. Hana é convidada para todas; eu sou convidada para a maioria, o que<br />

considero surpreendente.<br />

Harlowe Davis — que mora com Hana em West End e cujo pai faz alguma coisa para o governo —<br />

me convida para uma “despedida casual”. Eu nem imaginava que ela soubesse meu nome — sempre que<br />

está falando com Hana, seus olhos me atravessam, como se não valesse a pena me dar atenção. Vou à<br />

despedida mesmo assim. Sempre quis saber como era sua casa, e é tão espetacular quanto eu imaginava.<br />

A família dela também tem um carro, e por todos os lados há eletrodomésticos, que obviamente são<br />

utilizados todo dia, lavadoras, secadoras e lustres imensos com dezenas e dezenas de lâmpadas. Harlowe<br />

convidou quase toda a turma de formandas — somos sessenta e sete no total, e provavelmente há<br />

cinquenta na festa —, o que faz com que eu me sinta menos especial, mas, ainda assim, é divertido.<br />

Sentamos no quintal enquanto a empregada entra e sai da casa carregando pratos e pratos de comida —<br />

salada de repolho e de batata e outras coisas de churrasco — e o pai de Harlowe vira costeletas e<br />

hambúrgueres na grelha enorme. Como até me sentir prestes a explodir e deito no cobertor que estou<br />

dividindo com Hana. Ficamos ali quase até o horário do toque de recolher, quando as estrelas começam<br />

a surgir atrás de uma cortina azul-marinho e todos os mosquitos se levantam juntos, e então voltamos<br />

todas para a casa, aos gritos e risos, tentando espantá-los. Depois, penso que este foi um dos dias mais<br />

agradáveis que tive em um bom tempo.<br />

Mesmo garotas de quem não gosto muito — como Shelly Pierson, que me odeia desde o sexto ano,<br />

quando ganhei o prêmio da feira de ciências e ela ficou em segundo lugar — começam a ser legais. Acho<br />

que é porque sabemos que o fim está próximo. Grande parte da turma não se verá de novo depois da<br />

formatura e, mesmo que nos encontremos, será diferente. Nós seremos diferentes. Seremos adultas —<br />

curadas, marcadas, rotuladas, emparelhadas, identificadas e colocadas decisivamente em nossos caminhos<br />

para a vida, bolinhas de gude perfeitamente redondas preparadas para descer rampas lisas e bemdefinidas.<br />

Theresa Grass completa dezoito anos antes do fim das aulas e é curada; Morgan Dell, também. Elas<br />

faltam alguns dias de aula e voltam à escola pouco antes da formatura. A mudança é incrível. Elas<br />

parecem em paz agora, maduras e, de alguma forma, distantes, como se estivessem cobertas por uma fina<br />

camada de gelo. Há apenas duas semanas, o apelido de Theresa era Theresa Gross, e todas as garotas<br />

caçoavam dela por ser desleixada, por mastigar as pontas dos cabelos e por ser, em geral, uma bagunça<br />

completa, mas agora ela caminha ereta, com os olhos fixos à frente e os lábios ligeiramente curvados em<br />

um sorriso, e todo mundo se afasta um pouco nos corredores para que ela passe com facilidade. O<br />

mesmo ocorreu com Morgan. É como se toda a ansiedade e a insegurança delas tivessem sido removidas<br />

junto com a doença. Até as pernas de Morgan pararam de tremer. Sempre que ela precisava falar em sala<br />

de aula, a tremedeira era tão intensa que balançava a mesa. No entanto, após a intervenção, simples<br />

assim, pá! A tremedeira desapareceu. É claro que elas não são as primeiras garotas da turma a serem<br />

curadas — Eleanor Rana e Annie Hahn foram curadas no outono, e outra meia dúzia de alunas passou<br />

pela intervenção neste último semestre —, mas nelas a diferença é, de alguma forma, mais acentuada.<br />

Continuo com minha contagem regressiva. Oitenta e um dias, depois oitenta, depois setenta e nove.<br />

Willow Marks nunca retornou à escola. Ouvimos alguns rumores — de que ela passou pela

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