01- Delírio

os olhos, cerrados por causa da claridade. — Você não quer arrumar problemas.
Ele fala de forma descomprometida, mas por um instante penso ouvir algo duro sob suas palavras,
uma corrente de raiva ou agressão. Porém, digo a mim mesma que estou sendo paranoica.
Independentemente do que os reguladores façam, eles existem para nossa proteção, para nosso próprio
bem.
O grupo de reguladores passa por mim, de modo que, por alguns segundos, fico cercada por uma
correnteza de ombros grosseiros e jaquetas de algodão, perfumes estranhos e suor. Os rádios ganham
vida e voltam a desaparecer à minha volta. Capto alguns fragmentos de palavras e transmissões: rua
Market, uma menina e um menino, possivelmente infectados, música não aprovada em St. Lawrence, alguém parece estar
dançando… Braços, peitos e cotovelos esbarram em mim de ambos os lados, até que finalmente o grupo
vai embora e volto a emergir de seu meio, sozinha na rua enquanto os passos dos reguladores ficam cada
vez mais distantes atrás de mim. Espero até não ouvir mais o zumbido dos rádios ou o impacto das
botas no pavimento.
Então, parto, de novo com uma sensação arrebatadora no peito, aquela mesma impressão de
felicidade e liberdade. Não acredito em como foi fácil sair de casa. Eu nunca soube que era capaz de
mentir para minha tia — nunca soube que era capaz de mentir, ponto —, e quando penso que escapei
por um triz de horas de interrogatório pelos reguladores, tenho vontade de dar pulos e socar o ar. Esta
noite o mundo inteiro está a meu favor. E estou a apenas poucos minutos da enseada Back. Meu coração
se acelera quando penso em descer rapidamente pelo gramado da colina íngreme e ver Alex emoldurado,
ao fundo os últimos raios brilhantes do sol — quando penso naquela única palavra suspirada em meu
ouvido. Cinza.
Disparo pela avenida Baxter, que faz várias curvas no último quilômetro até a enseada. E então paro
de repente. Os prédios ficaram para trás, dando lugar a galpões em ruínas, espalhados aqui e ali dos dois
lados da estrada esburacada e decadente. Mais adiante, uma faixa estreita de mato alto desce até a
enseada. A água é um espelho enorme, com uns toques de cor-de-rosa e dourado do céu. Naquele
instante luminoso em que faço a curva, o sol — curvado sobre o horizonte como um arco de ouro
maciço — lança seus últimos raios de luz, destruindo as trevas da água e deixando tudo branco por uma
fração de segundo, e em seguida cai, afundando, arrastando consigo o cor-de-rosa, o vermelho e o roxo
do céu, toda a cor escorrendo instantaneamente e deixando apenas a escuridão.
Alex tinha razão. Era lindo — um dos mais bonitos que já vi.
Por um instante não consigo me mover ou fazer nada além de ficar ali, respirando com força,
olhando fixamente. Em seguida, um torpor se apodera de mim. Cheguei tarde demais. Os reguladores
deviam estar errados em relação ao horário. Já deve passar de oito e meia. Mesmo que Alex decida
esperar por mim em algum lugar da longa curva da enseada, não tenho a menor chance de encontrá-lo e
chegar em casa antes do toque de recolher.
Meus olhos ardem e o mundo diante de mim fica embaçado, embaralhando cores e formas. Por um
segundo penso que devo estar chorando, e fico tão espantada que esqueço tudo — esqueço a decepção e
a frustração, esqueço Alex na praia, o pensamento de seu cabelo refletindo os últimos raios de sol,
reluzindo como cobre. Não consigo me lembrar da última vez em que chorei. Foi há muitos anos. Seco
os olhos com o dorso da mão, e minha visão volta ao normal. É apenas suor, percebo, aliviada; estou
suando, as gotas estão caindo em meus olhos. Mesmo assim, a sensação de enjoo e de embrulho não sai
de meu estômago.
Fico ali por mais alguns minutos, mexendo na bicicleta e apertando o guidom com força até me
acalmar um pouco. Parte de mim quer dizer Que se dane, impulsionar a bicicleta, estender as duas pernas
e voar colina abaixo em direção à água, com o vento batendo no cabelo — dane-se o toque de recolher,
danem-se os reguladores, danem-se todos. Mas não posso; não poderia; jamais poderia. Não tenho
escolha. Preciso ir para casa.