04.04.2017 Views

01- Delírio

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

sobrancelhas de Carol e contraindo seus lábios.<br />

— Vocês não têm nenhuma aula juntas. E seus testes acabaram. Quão importante isso pode ser?<br />

— Não é para a escola. — Reviro os olhos, tentando invocar um pouco da indiferença de Hana,<br />

apesar de minhas palmas suarem e meu coração martelar no peito. — É uma espécie de guia cheio de<br />

dicas. Para as avaliações. Ela sabe que eu preciso me preparar mais, considerando que quase engasguei<br />

ontem.<br />

Mais uma vez, minha tia direciona um rápido olhar para meu tio.<br />

— O toque de recolher é em uma hora — diz ela. — Se você for pega depois do horário…<br />

O nervosismo atiça meu temperamento.<br />

— Eu sei sobre o toque de recolher — disparo. — Ouço falar dele desde que nasci.<br />

Sinto-me culpada no segundo em que as palavras saem de minha boca e abaixo os olhos para evitar<br />

olhar para Carol. Nunca a contestei antes, sempre tentei ser tão paciente, obediente e boa quanto<br />

possível — sempre tentei ser tão invisível quanto possível, uma boa menina que ajuda com a louça e as<br />

crianças, faz o dever de casa e ouve sem enfrentar. Sei que devo a Carol por cuidar de Rachel e de mim<br />

depois que minha mãe morreu. Se não fosse por ela, eu provavelmente estaria largada em um dos<br />

orfanatos, sem receber educação nem atenção, talvez destinada a um emprego em um abatedouro,<br />

limpando tripas de ovelhas, bosta de vaca ou algo do tipo. Talvez — talvez! —, se eu tivesse sorte,<br />

conseguiria trabalhar na área de limpeza.<br />

Ninguém adotaria uma criança cujo passado foi manchado pela doença.<br />

Gostaria de poder ler a mente dela. Não faço ideia do que se passa em sua cabeça, mas Carol parece<br />

estar me analisando, tentando ler minha expressão. Penso várias vezes Não estou fazendo nada errado, é<br />

inofensivo, estou bem, seco as palmas das mãos na parte de trás da calça jeans e, com certeza, estou<br />

deixando uma marca de suor.<br />

— Seja rápida — diz ela, afinal, e, assim que as palavras deixam sua boca, corro para o andar de<br />

cima e troco minhas sandálias por tênis. Então, desço às pressas e voo pela porta. Minha tia mal teve<br />

tempo para levar as louças para a cozinha. Ela diz alguma coisa quando passo, mas já estou atravessando<br />

a porta da frente e não escuto. O antigo relógio na sala de estar começa a soar exatamente quando a<br />

porta se fecha atrás de mim. Oito horas.<br />

Destranco minha bicicleta e pedalo pela entrada da casa até a rua. Os pedais rangem, gemem e<br />

tremem. Essa bicicleta era de minha prima Marcia e deve ter, no mínimo, quinze anos. Deixá-la fora da<br />

casa o ano todo não está ajudando a preservá-la.<br />

Sigo em direção à enseada Back, que felizmente é colina abaixo. As ruas ficam sempre vazias a esta<br />

hora da noite. A maioria dos curados está em casa, jantando, tomando banho ou se preparando para<br />

mais uma noite sem sonhos, e todos os não curados estão em casa ou a caminho, observando, nervosos,<br />

os minutos se passarem até o toque de recolher às nove horas.<br />

Minhas pernas ainda doem por causa da corrida de hoje. Se eu conseguir chegar à enseada Back a<br />

tempo e Alex estiver lá, estarei toda acabada, suada e nojenta. Mas continuo assim mesmo. Agora que<br />

estou fora da casa, afasto todas as dúvidas e perguntas da cabeça e me concentro em avançar tão<br />

rapidamente quanto as cãibras em minhas pernas me permitem, pedalando pelas ruas vazias rumo à<br />

enseada, pegando todos os atalhos em que consigo pensar e observando o sol descer tranquilamente até<br />

a resplandecente linha dourada do horizonte, como se o céu — agora de um tom vivo e enérgico de azul<br />

— fosse água e a luz o estivesse atravessando.<br />

Só estive sozinha na rua a esta hora algumas vezes, e a sensação é estranha — ao mesmo tempo<br />

assustadora e excitante, como conversar livremente com Alex hoje à tarde: como se o olho giratório que<br />

sei que está sempre observando tivesse sido cegado por uma fração de segundo, como se a mão que você<br />

segurou a vida inteira de repente desaparecesse e o deixasse livre para se mover em qualquer direção.<br />

Luzes vazam das janelas a meu redor, principalmente de velas e lanternas; esta é uma área pobre, e

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!