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01- Delírio

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— Cinquenta e seis.<br />

— Nove vezes seis?<br />

— Cinquenta e dois.<br />

Por outro lado, não existe lei alguma que nos proíba de falar com um curado. Curados são seguros.<br />

Eles podem ser mentores ou orientadores para não curados. Apesar de Alex ser apenas um ano mais<br />

velho que eu, estamos separados, irreparável e totalmente, pela intervenção. Daria no mesmo se ele fosse<br />

meu avô.<br />

— Sete vezes onze?<br />

— Setenta e sete.<br />

— Lena. — Minha tia saiu da cozinha, passou espremida pela mesa da sala de jantar, e está atrás de<br />

Jenny. Pisco duas vezes, tentando focalizá-la. O rosto de Carol está contraído pela preocupação. —<br />

Algum problema?<br />

— Não. — Abaixo os olhos rapidamente. Detesto quando minha tia me olha desse jeito, como se<br />

estivesse lendo todas as partes ruins de minha alma. Sinto-me culpada só de pensar em um garoto,<br />

mesmo que seja um curado. Se soubesse, ela diria: Ah, Lena… Cuidado. Lembre-se do que aconteceu com sua<br />

mãe. Diria: Essas doenças tendem a circular pelo sangue. — Por quê?<br />

Mantenho os olhos fixos no tapete gasto embaixo de mim. Carol se inclina para a frente, tira o livro<br />

de exercícios de Jenny de meus joelhos e fala alto, em sua voz clara e aguda:<br />

— Nove vezes seis é igual a cinquenta e quatro. — Ela fecha o livro. — Não cinquenta e dois, Lena.<br />

Presumo que você saiba a tabuada?<br />

Jenny mostra a língua para mim.<br />

Minhas bochechas começam a esquentar quando percebo meu erro.<br />

— Desculpe. Acho que estou apenas um pouco… distraída.<br />

Há uma pausa momentânea. Os olhos de Carol não deixam minha nuca. Posso senti-los queimando<br />

minha pele. Tenho a sensação de que vou gritar, chorar ou confessar, se ela continuar me encarando.<br />

Finalmente, ela suspira.<br />

— Você ainda está pensando nas avaliações, não é?<br />

Libero o ar preso em minhas bochechas e sinto o peso da ansiedade deixar meu peito.<br />

— É, acho que sim.<br />

Arrisco um olhar para ela, que responde com seu sorriso rápido.<br />

— Sei que está decepcionada por ter de enfrentar o processo outra vez. Mas pense que dessa vez<br />

você estará ainda mais preparada.<br />

Balanço a cabeça, tentando demonstrar entusiasmo, embora um leve sentimento de culpa tenha<br />

começado a me incomodar. Nem pensei nas avaliações desde hoje cedo, quando descobri que os<br />

resultados seriam desconsiderados.<br />

— É, você tem razão.<br />

— Vamos, então. Hora do jantar.<br />

Minha tia estica o braço e passa um dedo em minha testa. Ele é frio e reconfortante, e se vai tão<br />

rapidamente quanto a mais leve brisa. Minha culpa sobe às alturas e, naquele instante, não consigo<br />

acreditar que sequer considerei voltar à enseada Back. É uma coisa absolutamente, cem por cento, errada a<br />

ser feita, e me levanto para o jantar sentindo-me limpa, leve e feliz, como no primeiro momento de<br />

saúde após uma longa febre.<br />

Mas durante o jantar minha curiosidade — e, com ela, minhas dúvidas — volta. Mal consigo<br />

acompanhar a conversa. Só consigo pensar em: Vou? Não vou? Vou? Não vou? Em certo momento, meu<br />

tio conta uma história sobre um de seus clientes, e percebo que todos estão rindo, então eu rio também,<br />

mas o riso sai um pouco alto e longo demais. Todos se viram para mim, até Gracie, que franze o nariz e<br />

inclina a cabeça como um cachorrinho farejando algo novo.

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