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01- Delírio

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sensação comum de ser observada no colégio, nas ruas e até mesmo em casa, precisando ter cautela em<br />

relação a tudo o que se faz e se diz, aquela sensação totalizadora e indistinta com a qual todos acabam se<br />

acostumando.<br />

— É… — Hana chuta o chão de terra. Uma nuvem de poeira sobe e vai se assentando lentamente.<br />

— Uma segurança bem fraquinha para um complexo de laboratórios tão grande.<br />

— Uma segurança bem fraquinha até mesmo para um zoológico — digo.<br />

— Assim fico ofendido. — A voz surge atrás de nós, e tanto eu quanto Hana levamos um susto.<br />

Viro-me. O mundo parece congelar por um instante.<br />

Há um garoto atrás de nós, com os braços cruzados e a cabeça inclinada para o lado. Um garoto de<br />

pele cor de caramelo e cabelos em tom dourado e castanho, como as folhas das árvores no outono,<br />

prestes a cair.<br />

É ele. O garoto de ontem, da galeria de observação. O Inválido.<br />

Só que ele não é um Inválido, obviamente. Está usando um uniforme azul de guarda, com mangas<br />

curtas, e calça jeans, e tem um crachá plastificado de identificação do governo preso ao colarinho.<br />

— Saio por dois segundos para encher isto aqui — Ele gesticula para a garrafa d’água que está<br />

segurando. — e encontro uma completa invasão quando volto.<br />

Estou tão confusa que não consigo me mover, falar ou fazer qualquer coisa. Hana deve achar que<br />

estou assustada, porque reage rapidamente:<br />

— Não estávamos invadindo. Não estávamos fazendo nada. Só estávamos correndo e… hum, nos<br />

perdemos.<br />

O garoto cruza os braços na frente do peito, balançando-se sobre os calcanhares.<br />

— Não viram nenhuma das placas lá fora, então? “Não ultrapasse”? “Somente pessoas autorizadas”?<br />

Hana desvia o olhar. Está nervosa também. Posso sentir. Hana é mil vezes mais confiante que eu,<br />

mas não estamos acostumadas a ficar a céu aberto conversando com um garoto, principalmente um guarda,<br />

e deve ter ocorrido a Hana que ele já tem motivos suficientes para nos prender.<br />

— Acho que não reparamos — resmunga Hana.<br />

— Aham. — Ele ergue as sobrancelhas. Obviamente, não acredita em nós, mas pelo menos não<br />

parece irritado. — Elas são bem discretas. E existem apenas algumas dezenas delas. Entendo que talvez<br />

não tenham notado.<br />

Ele desvia o olhar por um segundo, cerrando os olhos, e tenho a sensação de que está tentando<br />

conter o riso. Não é como qualquer guarda que eu já tenha visto — pelo menos não como os guardas<br />

típicos que se veem na fronteira e ao redor de Portland: gordos, carrancudos e velhos. Penso em como<br />

ontem eu tive certeza, uma certeza sólida entranhada em mim, de que ele vinha da Selva.<br />

Eu estava enganada, obviamente. Quando ele vira a cabeça, vejo o sinal inconfundível da cura: a<br />

marca da intervenção, uma cicatriz com três pontos logo abaixo da orelha esquerda, onde os cientistas<br />

inserem uma agulha especial de três pontas utilizada exclusivamente para imobilizar o paciente a fim de<br />

que a cura possa ser administrada. As pessoas exibem suas cicatrizes como medalhas de honra;<br />

dificilmente se veem curados com cabelos longos, e as mulheres que não cortam os cabelos tomam o<br />

cuidado de usá-los amarrados.<br />

Meu medo diminui. Conversar com um curado não é ilegal. As regras de segregação não se aplicam.<br />

Não sei ao certo se ele me reconheceu. Caso o tenha feito, não demonstrou qualquer sinal.<br />

Finalmente, não aguento e solto:<br />

— Você. Eu o vi…<br />

No último segundo, não consigo concluir a frase. Eu o vi ontem.<br />

Você piscou para mim.<br />

Hana parece espantada.<br />

— Vocês se conhecem?

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