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em processo de formação. Na verdade, quanto mais velha for a pessoa, melhor, mas a maioria das<br />
intervenções é agendada para a data mais próxima possível do décimo oitavo aniversário.<br />
— Acho que consideram que vale a pena arriscar — diz Hana. — Melhor que a alternativa, sabe?<br />
Amor deliria nervosa. A mais mortal das coisas mortais.<br />
Essa é a frase de efeito presente em todas as cartilhas de saúde mental já escritas sobre deliria, e Hana<br />
a repete em um tom seco, fazendo meu estômago se apertar um pouco. Toda a loucura de ontem me fez<br />
esquecer o comentário de Hana antes das avaliações, mas agora me recordo, e recordo como ela estava<br />
estranha, com os olhos embaçados e insondáveis.<br />
— Vamos.<br />
Sinto um aperto nos pulmões e o início de uma cãibra na coxa esquerda. A única maneira de<br />
continuar é correr ainda mais rápido.<br />
— Vamos aumentar a velocidade, Lesma.<br />
— Mande ver.<br />
No rosto de Hana surge um sorriso, e aceleramos. A dor em meus pulmões se amplia e cresce até<br />
parecer estar em todo lugar, rasgando minhas células e meus músculos de uma só vez. A cãibra na perna<br />
me faz franzir o rosto cada vez que meu calcanhar atinge o chão. É sempre assim nos quilômetros três e<br />
quatro, como se todo o estresse, a ansiedade, a irritação e o medo se transformassem em pequenos<br />
pontos de dor, e é quase impossível respirar, imaginar-se avançando ou pensar em algo que não seja: Não<br />
consigo. Não consigo. Não consigo.<br />
E tão repentinamente quanto surgiu, ela some. Toda a dor se esvai, a cãibra desaparece, o aperto em<br />
meu peito relaxa e consigo respirar com facilidade. No mesmo instante, uma sensação de felicidade<br />
completa borbulha dentro de mim: a sensação sólida do chão sob os meus pés, a simplicidade do<br />
movimento impulsionando os meus calcanhares e me empurrando pelo tempo e pelo espaço, a liberdade<br />
total e o desprendimento. Olho para Hana. Posso perceber, por sua expressão, que ela está sentindo o<br />
mesmo. Ela cruzou a barreira. Hana sente que estou olhando e se vira para levantar os polegares para<br />
mim, seu rabo de cavalo louro formando um arco brilhante.<br />
É estranho. Quando corremos, sinto-me mais próxima de Hana que em qualquer outro momento.<br />
Mesmo quando não estamos conversando, é como se fôssemos ligadas por uma corda invisível,<br />
igualando nossos ritmos, braços e pernas, como se respondêssemos às batidas de um mesmo tambor.<br />
Cada vez mais me vem ocorrendo que também isso mudará depois de nossas intervenções. Ela voltará a<br />
West End e se tornará amiga de seus vizinhos, pessoas mais ricas e sofisticadas do que eu. Eu ficarei em<br />
alguma porcaria de apartamento em Cumberland e não sentirei sua falta nem lembrarei como é<br />
corrermos lado a lado. Eles me alertaram de que, após a intervenção, posso nem gostar mais de correr, e<br />
ponto. Outro efeito colateral da cura: as pessoas frequentemente alteram seus hábitos e perdem interesse<br />
pelos antigos hobbies e por aquilo que lhes dava prazer.<br />
“Os curados, incapazes de desejos intensos, estão, portanto, livres de dores tanto recordadas quanto<br />
futuras.” (“Após a intervenção”, Shhh, p. 132.)<br />
O mundo está girando, pessoas e ruas formam um laço longo de cores e sons que se desata.<br />
Passamos correndo por St. Vincent, a maior escola para garotos de Portland. Meia dúzia de meninos<br />
está do lado de fora jogando basquete, arremetendo a bola preguiçosamente e chamando uns aos outros.<br />
Suas palavras são um borrão, uma série incompreensível de gritos, grunhidos e curtas explosões de risos,<br />
do jeito como meninos sempre soam quando estão em grupo, quando os ouvimos em um canto, do<br />
outro lado da rua ou na praia. É como se tivessem um idioma próprio, e pela milésima vez penso em<br />
como me sinto grata pelas políticas de segregação nos manterem separados quase o tempo todo.<br />
Enquanto corremos, sinto uma pausa momentânea, uma fração de segundo em que todos aqueles<br />
olhos se levantam e se viram em nossa direção. Tenho vergonha demais para olhar. Meu corpo inteiro<br />
fica fervendo, como se alguém tivesse me enfiado de cabeça em um forno. Um segundo depois, porém,