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01- Delírio

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em processo de formação. Na verdade, quanto mais velha for a pessoa, melhor, mas a maioria das<br />

intervenções é agendada para a data mais próxima possível do décimo oitavo aniversário.<br />

— Acho que consideram que vale a pena arriscar — diz Hana. — Melhor que a alternativa, sabe?<br />

Amor deliria nervosa. A mais mortal das coisas mortais.<br />

Essa é a frase de efeito presente em todas as cartilhas de saúde mental já escritas sobre deliria, e Hana<br />

a repete em um tom seco, fazendo meu estômago se apertar um pouco. Toda a loucura de ontem me fez<br />

esquecer o comentário de Hana antes das avaliações, mas agora me recordo, e recordo como ela estava<br />

estranha, com os olhos embaçados e insondáveis.<br />

— Vamos.<br />

Sinto um aperto nos pulmões e o início de uma cãibra na coxa esquerda. A única maneira de<br />

continuar é correr ainda mais rápido.<br />

— Vamos aumentar a velocidade, Lesma.<br />

— Mande ver.<br />

No rosto de Hana surge um sorriso, e aceleramos. A dor em meus pulmões se amplia e cresce até<br />

parecer estar em todo lugar, rasgando minhas células e meus músculos de uma só vez. A cãibra na perna<br />

me faz franzir o rosto cada vez que meu calcanhar atinge o chão. É sempre assim nos quilômetros três e<br />

quatro, como se todo o estresse, a ansiedade, a irritação e o medo se transformassem em pequenos<br />

pontos de dor, e é quase impossível respirar, imaginar-se avançando ou pensar em algo que não seja: Não<br />

consigo. Não consigo. Não consigo.<br />

E tão repentinamente quanto surgiu, ela some. Toda a dor se esvai, a cãibra desaparece, o aperto em<br />

meu peito relaxa e consigo respirar com facilidade. No mesmo instante, uma sensação de felicidade<br />

completa borbulha dentro de mim: a sensação sólida do chão sob os meus pés, a simplicidade do<br />

movimento impulsionando os meus calcanhares e me empurrando pelo tempo e pelo espaço, a liberdade<br />

total e o desprendimento. Olho para Hana. Posso perceber, por sua expressão, que ela está sentindo o<br />

mesmo. Ela cruzou a barreira. Hana sente que estou olhando e se vira para levantar os polegares para<br />

mim, seu rabo de cavalo louro formando um arco brilhante.<br />

É estranho. Quando corremos, sinto-me mais próxima de Hana que em qualquer outro momento.<br />

Mesmo quando não estamos conversando, é como se fôssemos ligadas por uma corda invisível,<br />

igualando nossos ritmos, braços e pernas, como se respondêssemos às batidas de um mesmo tambor.<br />

Cada vez mais me vem ocorrendo que também isso mudará depois de nossas intervenções. Ela voltará a<br />

West End e se tornará amiga de seus vizinhos, pessoas mais ricas e sofisticadas do que eu. Eu ficarei em<br />

alguma porcaria de apartamento em Cumberland e não sentirei sua falta nem lembrarei como é<br />

corrermos lado a lado. Eles me alertaram de que, após a intervenção, posso nem gostar mais de correr, e<br />

ponto. Outro efeito colateral da cura: as pessoas frequentemente alteram seus hábitos e perdem interesse<br />

pelos antigos hobbies e por aquilo que lhes dava prazer.<br />

“Os curados, incapazes de desejos intensos, estão, portanto, livres de dores tanto recordadas quanto<br />

futuras.” (“Após a intervenção”, Shhh, p. 132.)<br />

O mundo está girando, pessoas e ruas formam um laço longo de cores e sons que se desata.<br />

Passamos correndo por St. Vincent, a maior escola para garotos de Portland. Meia dúzia de meninos<br />

está do lado de fora jogando basquete, arremetendo a bola preguiçosamente e chamando uns aos outros.<br />

Suas palavras são um borrão, uma série incompreensível de gritos, grunhidos e curtas explosões de risos,<br />

do jeito como meninos sempre soam quando estão em grupo, quando os ouvimos em um canto, do<br />

outro lado da rua ou na praia. É como se tivessem um idioma próprio, e pela milésima vez penso em<br />

como me sinto grata pelas políticas de segregação nos manterem separados quase o tempo todo.<br />

Enquanto corremos, sinto uma pausa momentânea, uma fração de segundo em que todos aqueles<br />

olhos se levantam e se viram em nossa direção. Tenho vergonha demais para olhar. Meu corpo inteiro<br />

fica fervendo, como se alguém tivesse me enfiado de cabeça em um forno. Um segundo depois, porém,

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