04.04.2017 Views

01- Delírio

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

— Não seja boba. Se o noticiário disse, então, definitivamente, não é verdade. Além disso, quem<br />

confunde vacas e medicamentos? Não é difícil perceber a diferença.<br />

Balanço os ombros. Ela tem razão, é óbvio, e continua olhando para mim, então me inclino<br />

ligeiramente para trás. Nunca me senti à vontade com meu corpo, como Hana e algumas garotas da<br />

Academia St. Anne; nunca superei a sensação estranha de que fui formada de maneira um pouco errada<br />

em alguns lugares-chave. Como se eu tivesse sido desenhada por um artista amador: olhando de longe,<br />

não parece ruim, mas preste atenção e todas as manchas e erros se tornarão bastante claros.<br />

Hana estica uma das pernas e começa a se alongar, recusando-se a esquecer aquele assunto. Hana é<br />

mais fascinada pela Selva que qualquer outra pessoa que conheço.<br />

— Se parar para pensar, é bem incrível. O planejamento e tudo mais. Devem ter sido necessárias, no<br />

mínimo, quatro ou cinco pessoas, talvez mais, para coordenar tudo.<br />

Penso brevemente no garoto que vi na galeria de observação, nos cabelos brilhantes com a cor das<br />

folhas das árvores no outono, e na maneira como ele jogou a cabeça para trás quando riu, permitindo<br />

que eu visse a parte escura no interior de sua boca. Não contei a ninguém sobre ele, nem mesmo para<br />

Hana, mas agora sinto que deveria.<br />

— Alguém devia ter os códigos de segurança — prossegue Hana. — Talvez um simpatizante…<br />

Uma porta bate com um estrondo na frente do vestiário, e Hana e eu saltamos, encarando uma à<br />

outra com olhos arregalados. Passos percorrem rapidamente o piso de linóleo. Após alguns segundos de<br />

hesitação, Hana se lança suavemente em um assunto seguro: a cor dos vestidos para a festa de formatura,<br />

que neste ano serão laranja. No mesmo instante, a Sra. Johanson, diretora desportiva, surge entre os<br />

armários, girando o apito em um dedo.<br />

— Ao menos não serão marrons, como no Colégio Fielston — digo, apesar de mal ouvir o que<br />

Hana diz.<br />

Meu coração está acelerado e ainda penso no garoto e imagino se Johanson nos ouviu dizer a palavra<br />

simpatizante. Ela não faz nada além de acenar com a cabeça ao passar por nós, então, é pouco provável.<br />

Aprendi a ser muito boa nisso — dizer uma coisa quando estou pensando em outra, agir como se<br />

estivesse ouvindo quando não estou, fingir estar calma e feliz enquanto, na verdade, estou<br />

completamente descontrolada. É uma das habilidades que aperfeiçoamos quando crescemos. É preciso<br />

aprender que as pessoas sempre estão ouvindo. Na primeira vez que usei o telefone celular que minha tia<br />

e meu tio compartilham, fiquei surpresa com as interferências irregulares que interrompiam<br />

constantemente minha conversa com Hana, em intervalos aleatórios, até minha tia explicar que eram<br />

apenas os dispositivos de escuta do governo, que invadem arbitrariamente ligações entre telefones<br />

celulares, gravando-as e monitorando as conversas à procura de palavras como amor, inválidos ou<br />

simpatizantes. Ninguém é um alvo em particular; tudo é feito de forma aleatória, para ser justo. Mas, dessa<br />

forma, é quase pior. Quase sempre me sinto como se um olho giratório gigantesco estivesse prestes a<br />

passar por mim a qualquer momento, iluminando pensamentos ruins como um animal imobilizado pelo<br />

facho de um farol.<br />

Às vezes, sinto-me como se houvesse duas de mim, uma exatamente acima da outra: a superficial,<br />

que assente quando deve assentir e diz o que deve dizer, e outra parte, mais profunda, a que se<br />

preocupa, sonha e diz “cinza”. Na maioria das vezes, elas se movem em sincronia e mal percebo a<br />

distinção, mas, outras vezes, parece que sou duas pessoas completamente diferentes e que posso me<br />

desfazer em pedaços a qualquer instante. Uma vez, confessei isso a Rachel. Ela simplesmente sorriu e<br />

disse que tudo melhoraria depois da intervenção. Tudo seria calmo e suave, todos os dias seriam fáceis<br />

como contar até três.<br />

— Pronto — digo, fechando o armário.<br />

Ainda conseguimos ouvir a Sra. Johanson assobiando em um dos banheiros. Uma descarga é<br />

acionada. Uma torneira é aberta.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!