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01- Delírio

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encolho. Burra, burra.<br />

De repente, percebo que Jenny está falando comigo.<br />

— O quê?<br />

Pisco, olhando para Jenny, enquanto ela entra em foco. Observo suas mãos cortando uma torrada<br />

em quatro pedaços exatamente iguais.<br />

— Eu perguntei: “O que há de errado com você?” — Para trás e para a frente, para trás e para a<br />

frente. A faca bate na borda de seu prato. — Você parece prestes a vomitar ou algo parecido.<br />

— Jenny — repreende-a Carol. Ela está na pia, lavando a louça. — Não enquanto seu tio estiver<br />

tomando o café.<br />

— Estou bem. — Quebro um pedaço de torrada, passo na manteiga que se derrete no meio da mesa<br />

e me forço a comer. A última coisa de que preciso é um interrogatório familiar. — Estou apenas<br />

cansada.<br />

Carol se vira para mim. Seu rosto sempre me lembrou o de uma boneca. Mesmo quando está<br />

falando, mesmo quando está irritada, feliz ou confusa, a expressão se mantém estranhamente imutável.<br />

— Não conseguiu dormir?<br />

— Dormi — respondo. — Tive um pesadelo, só isso.<br />

Na ponta da mesa meu tio William surge por cima do jornal.<br />

— Meu Deus! Sabe, você acabou de me lembrar. Eu também tive um sonho ontem.<br />

Carol ergue as sobrancelhas, e até Jenny parece interessada. É extremamente raro que as pessoas<br />

sonhem após a cura. Carol me contou, certa vez, que, nas poucas ocasiões em que ainda sonha, as<br />

imagens são cheias de louças, com pilhas e mais pilhas subindo até o céu, e às vezes ela as escala, prato a<br />

prato, subindo até as nuvens, tentando chegar ao topo, mas a pilha nunca acaba, estende-se até o infinito.<br />

Até onde sei, minha irmã Rachel não sonha mais.<br />

William sorri.<br />

— Eu estava calafetando a janela no banheiro. Lembra que outro dia eu disse que havia uma<br />

corrente de ar, Carol? Enfim, eu estava calafetando, mas, sempre que eu acabava, o trabalho se desfazia,<br />

quase como neve, o vento entrava e eu precisava começar tudo outra vez. Sem parar. Durante o que<br />

pareceram horas.<br />

— Que estranho — diz minha tia, sorrindo e vindo até a mesa com um prato de ovos fritos. Meu tio<br />

gosta deles muito moles, e no prato as gemas tremem como dançarinas, cobertas de óleo. Meu estômago<br />

se revira.<br />

— Não é à toa que estou tão cansado — diz William. — Trabalhei a noite inteira nesta casa.<br />

Todos riem, menos eu. Engulo outro pedaço de torrada, imaginando se sonharei depois de curada.<br />

Espero que não.<br />

* * *<br />

Este é o primeiro ano desde a sexta série que não tenho aulas com Hana, então nos vemos somente<br />

depois das aulas, quando nos encontramos no vestiário para correr, apesar de a temporada de cross-country<br />

ter acabado cerca de duas semanas atrás. (A viagem da equipe para disputar o campeonato estadual foi<br />

apenas minha terceira vez fora de Portland e, embora tenhamos percorrido apenas sessenta quilômetros<br />

pela autoestrada municipal, cinzenta e erma, eu mal conseguia engolir, pois a irritação em minha<br />

garganta estava forte demais.) Ainda assim, Hana e eu tentamos correr juntas sempre que possível,<br />

mesmo durante as férias.<br />

Comecei a correr quando tinha seis anos, depois que minha mãe cometeu suicídio. No dia do

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