04.04.2017 Views

01- Delírio

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

cinco<br />

Pisar numa fenda, dor tremenda.<br />

Pisar num cordão, fim em solidão.<br />

Pisar num pau, enfermo com o Mal.<br />

Cuidado ao andar, mortos você vai chamar.<br />

— Cantiga infantil popular, entoada geralmente ao som<br />

de palmas ou pulando corda.<br />

Naquela noite tenho outra vez o mesmo sonho.<br />

Estou à beira de um penhasco branco feito de areia. O solo não é firme. O lugar onde estou começa<br />

a desmoronar, desfazer-se e cair, cair, cair — milhares de metros abaixo de mim, no oceano, que bate e<br />

arrebenta contra o penhasco, tanto que parece um ensopado gigante e espumante, todo ele de ondas e<br />

águas violentas. Fico apavorada diante do medo de cair, mas por algum motivo não consigo me mexer<br />

ou recuar, mesmo quando sinto o chão se esvair sob mim e milhões de moléculas se reorganizarem no<br />

espaço, no vento: a qualquer segundo, vou cair.<br />

E, pouco tempo antes de descobrir que não há nada além de ar sob meus pés — que a qualquer<br />

segundo sentirei o vento uivando a meu redor enquanto caio na água —, as ondas que chicoteiam lá<br />

embaixo se abrem por apenas um instante e vejo o rosto de minha mãe flutuando abaixo da superfície,<br />

pálido, inchado e com marcas azuis. Seus olhos estão abertos, os lábios separados, como se estivesse<br />

gritando, e os braços estendidos para os lados, boiando naquela corrente, como se esperassem me<br />

abraçar.<br />

Então, acordo. É nesse momento que sempre acordo.<br />

Meu travesseiro está úmido e tenho uma sensação de garganta arranhada. Chorei durante o sono.<br />

Gracie está encolhida a meu lado, a bochecha espremida nos lençóis e movendo uma das mãos em<br />

repetições infinitas e silenciosas. Ela sempre sobe em minha cama quando tenho esse sonho. Ela<br />

consegue sentir, de algum jeito.<br />

Tiro os cabelos do rosto dela e puxo os lençóis, ensopados de suor, de seus ombros. Vou lamentar<br />

deixar Grace quando me mudar. Nossos segredos nos aproximaram, eles nos uniram. Ela é a única que<br />

sabe sobre a Frieza: uma sensação que às vezes surge quando estou deitada na cama, uma sensação negra<br />

e vazia que me arranca o fôlego e me faz ofegar como se eu tivesse sido atirada em água gelada. Em<br />

noites como esta — apesar de ser errado e ilegal —, penso naquelas palavras estranhas e terríveis — eu<br />

amo você — e imagino que sabor teriam em minha boca enquanto tento me lembrar da cadência que<br />

tinham na língua de minha mãe.<br />

E é claro que mantenho o segredo de Grace guardado. Sou a única que sabe que ela não é retardada<br />

nem burra: não há nada errado com ela. Sou a única que já a ouviu falar. Numa noite, depois que ela<br />

veio dormir em minha cama, acordei muito cedo, enquanto as sombras noturnas desapareciam de nossas<br />

paredes. Ela chorava baixinho no travesseiro a meu lado, pronunciando a mesma palavra sem parar,<br />

enchendo a boca com os lençóis de modo que eu mal conseguia escutá-la: “Mamãe, mamãe, mamãe.”<br />

Como se ela tentasse mastigar aquela sensação, como se ela a sufocasse em seu sono. Pus os braços em<br />

volta dela e apertei-a, e depois do que pareceram horas repetindo a palavra à exaustão ela voltou a<br />

dormir, relaxando o corpo lentamente, com o rosto quente e inchado por causa de tantas lágrimas.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!