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01- Delírio

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É assustador: isso é o que devo dizer. É um conto de alerta, um aviso sobre os perigos do velho<br />

mundo, pré-cura. Minha garganta, porém, parece inchada e dolorida. Não há espaço para expulsar as<br />

palavras; elas estão presas como os pequenos cardos que se colam na roupa quando corremos em<br />

fazendas. E, nesse instante, é como se eu pudesse ouvir o rugido baixo do oceano, seu murmúrio<br />

distante e insistente, como se eu pudesse imaginar seu peso se fechando em torno de minha mãe, a água<br />

tão pesada quanto pedra. E o que sai é:<br />

— É lindo.<br />

Instantaneamente, os quatro rostos se levantam para me olhar, como marionetes controladas pela<br />

mesma corda.<br />

— Lindo?<br />

A avaliadora Um franze o nariz. Há uma tensão frígida e aguda no ar, e percebo que cometi um erro<br />

muito, muito grave.<br />

O avaliador que usa óculos se inclina para a frente.<br />

— É uma palavra interessante a utilizar. Muito interessante. — Dessa vez, quando ele mostra os<br />

dentes, isso me faz lembrar os caninos brancos e curvados de um cachorro. — Talvez considere o<br />

sofrimento lindo? Talvez você goste de violência?<br />

— Não. Não, não é isso. — Tento raciocinar, mas minha cabeça está cheia dos murmúrios sem<br />

palavras do oceano. Estão se tornando mais altos a cada segundo. E agora, bem ligeiramente, é como se<br />

eu pudesse ouvir gritos também, como se os gritos de minha mãe me alcançassem através do vão de uma<br />

década. — Apenas quis dizer que… Há alguma coisa tão triste a respeito da história…<br />

Estou lutando, tropeçando, parece que estou me afogando nesse instante na luz branca e nos<br />

murmúrios. Sacrifício. Quero falar alguma coisa sobre o sacrifício, mas a palavra não vem.<br />

— Vamos seguir em frente — diz a avaliadora Um, que soou tão doce quando me ofereceu a água<br />

mas que agora não aparentava qualquer intenção de parecer amigável. Ela está completamente séria. —<br />

Diga-nos algo simples. Como sua cor preferida, por exemplo.<br />

Parte de meu cérebro — a parte racional, educada, a parte eu lógica — grita Azul! Diga azul!, mas<br />

essa outra coisa dentro de mim, mais antiga, está deslizando pelas ondas sonoras, crescendo em um<br />

ruído cada vez mais alto.<br />

— Cinza — disparo.<br />

— Cinza? — retruca o avaliador Quatro.<br />

Meu coração está despencando até o estômago. Sei que estou fracassando, posso praticamente ver<br />

meus números caindo. Mas é tarde demais. Estou acabada — é o murmúrio em meus ouvidos,<br />

aumentando cada vez mais, uma debandada que impossibilita qualquer pensamento. Rapidamente,<br />

gaguejo uma explicação.<br />

— Não cinza, exatamente. Logo antes de o sol nascer há um momento em que o céu ganha uma cor<br />

pálida, inexistente, não é bem cinza, mas um pouco branca, de que sempre gostei porque me faz lembrar<br />

de esperar que alguma coisa boa aconteça.<br />

Porém, eles pararam de me ouvir. Todos olham atrás de mim, com a cabeça erguida e as expressões<br />

confusas, como se tentassem reconhecer palavras que lhes fossem familiares em um idioma estrangeiro.<br />

Em seguida, de repente, os rugidos e os gritos chegam em ondas e percebo que não estava imaginando<br />

aquilo tudo. As pessoas realmente estão gritando, e há um estrondo de tombar, rolar e martelar, como<br />

milhares de pés se movendo juntos. Há um terceiro som, mais baixo que os dois: um berro sem palavras<br />

que não soa humano.<br />

Em minha confusão, tudo parece desconexo, como acontece nos sonhos. A avaliadora Um se levanta<br />

um pouco, dizendo:<br />

— Mas o que diabo…?<br />

Ao mesmo tempo, Óculos comenta:

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