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01- Delírio

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Começo o discurso que preparei, sobre fotografia, correr e me divertir com meus amigos, mas não<br />

estou concentrada. Vejo os avaliadores assentirem, e seus sorrisos tornam seus rostos mais relaxados<br />

enquanto fazem anotações, então sei que estou indo bem, mas não consigo sequer ouvir as palavras que<br />

saem de minha boca. Todo o meu foco está voltado para a mesa cirúrgica, e lanço olhares furtivos para<br />

ela pelo canto do olho, observando-a piscar e brilhar sob a luz como a ponta de uma lâmina.<br />

E, de repente, estou pensando em minha mãe. Minha mãe permaneceu sem cura mesmo após três<br />

intervenções, e a doença a dominou, tomou conta de seu interior, deixou seus olhos vazios e suas<br />

bochechas pálidas, assumiu o controle de seus pés e a conduziu, centímetro por centímetro, à beira de<br />

um penhasco arenoso e ao ar fino e claro do mergulho.<br />

Ou, ao menos, é o que me dizem. Eu tinha seis anos na época. Lembro-me apenas da pressão quente<br />

de seus dedos em meu rosto antes que eu adormecesse e das últimas palavras que ela sussurrou para<br />

mim: Eu amo você. Lembre-se disso. Eles não podem nos tirar isso.<br />

Fecho os olhos rapidamente, tomada pelo pensamento de minha mãe se contorcendo e de uma dúzia<br />

de cientistas em jalecos brancos observando-a e rabiscando em seus cadernos, impassíveis. Em três<br />

ocasiões, ela foi amarrada a uma mesa de metal; em três ocasiões, uma multidão a observou da galeria,<br />

anotando suas reações enquanto agulhas e depois lasers perfuravam a pele dela. Normalmente os<br />

pacientes são anestesiados durante a intervenção e não sentem nada, mas minha tia, certa ocasião, deixou<br />

escapar que na terceira vez de minha mãe eles se recusaram a sedá-la, pensando que a anestesia poderia<br />

interferir em sua resposta cerebral à cura.<br />

— Quer um pouco de água? — indaga a avaliadora “Um”, e aponta para uma garrafa e um copo na<br />

mesa.<br />

Ela notou minha hesitação momentânea, mas está tudo bem. Minha declaração pessoal está feita, e<br />

posso perceber, pela maneira como os avaliadores me olham — satisfeitos e orgulhosos, como se eu<br />

fosse uma criancinha capaz de encaixar todas as peças nos buracos certos —, que fiz um bom trabalho.<br />

Sirvo-me um copo de água e tomo alguns goles, grata pela pausa. Posso sentir o suor surgindo<br />

embaixo dos braços, no couro cabeludo e na base do pescoço, e peço a Deus para que eles não<br />

percebam. Tento manter os olhos fixos nos avaliadores, mas ali está ela, em minha visão periférica,<br />

sorrindo para mim: aquela maldita mesa.<br />

— Tudo bem, Lena. Agora, faremos algumas perguntas. Queremos que responda com sinceridade.<br />

Lembre-se, estamos tentando conhecê-la como pessoa.<br />

Como mais poderiam me conhecer?, a pergunta entra em minha cabeça antes que eu consiga contê-la.<br />

Como um animal?<br />

Respiro fundo e me forço a assentir e a sorrir.<br />

— Ótimo.<br />

— Quais são seus livros favoritos?<br />

— Amor, guerra e interferência, de Christopher Malley — respondo automaticamente. — Fronteira, de<br />

Philippa Harolde. — Não adianta tentar afastar as imagens: elas estão se erguendo como uma enchente.<br />

Aquela única palavra continua gravada em meu cérebro, como se estivesse sendo queimada ali. Dor. Eles<br />

queriam submeter minha mãe a uma quarta intervenção. Foram buscá-la na noite em que ela morreu,<br />

para a levarem ao laboratório. Mas, em vez disso, ela fugiu na escuridão e se lançou no ar. Em vez disso,<br />

ela me acordou com aquelas palavras, eu amo você; lembre-se disso; eles não podem nos tirar isso, que o vento<br />

parecia carregar de volta para mim tanto tempo após seu desaparecimento, repetindo-as nas árvores<br />

secas e nas folhas, sussurrando no amanhecer frio e cinzento. — E Romeu e Julieta, de William<br />

Shakespeare.<br />

Os avaliadores acenam com a cabeça e anotam. Romeu e Julieta é leitura obrigatória nas aulas de saúde<br />

do primeiro ano do ensino médio.<br />

— E por quê? — pergunta o avaliador Três.

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