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01- Delírio

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varanda, há uma explosão de estática. Um regulador está gritando no rádio. O outro está carregando<br />

uma arma. Estranhamente, em meio a todo o caos, penso em algo muito idiota: Eu não sabia que<br />

reguladores podiam andar armados.<br />

— Vamos! — grita Alex.<br />

Subo atrás dele na moto, abraçando-o firmemente na cintura.<br />

A primeira bala ricocheteia na grade bem à nossa direta. A segunda atinge a calçada.<br />

— Vai! — grito, e Alex arranca exatamente quando a terceira bala passa por nós, tão perto que<br />

posso sentir o ar vibrando.<br />

Avançamos em disparada para o fim da via. Alex vira bruscamente para a direita, e alcançamos a rua<br />

tão inclinados que meu cabelo arrasta no asfalto. Meu estômago dá um salto enorme e penso Está tudo<br />

acabado, mas, por um milagre, a moto se ajeita e então aceleramos pela rua escura enquanto os gritos e o<br />

barulho dos tiros ficam para trás.<br />

Mas o silêncio não dura. Ao virarmos na rua Congress ouço o barulho de sirenes, aumentando cada<br />

vez mais, um berro. Quero dizer para Alex ir mais rápido, mas meu coração está batendo tão forte que<br />

não consigo falar. Além disso, minha voz se perderia no vento que se agita à nossa volta, e sei que ele<br />

está indo o mais rápido que pode. Nos dois lados da rua as construções são um borrão cinzento e<br />

amorfo, como uma massa de metal derretido. A cidade nunca me pareceu tão alienígena, tão horrível e<br />

deformada. As sirenes são tão altas que o barulho é como uma lâmina fina, vibrando furiosamente<br />

através de mim. Luzes começam a piscar nos prédios à nossa volta à medida que as pessoas são<br />

acordadas. O horizonte tem um toque vermelho: o sol está nascendo, um tom enferrujado, cor de<br />

sangue velho, e sinto muito medo e agonia, uma sensação dilacerante pior que qualquer pesadelo que eu<br />

já tive.<br />

Então, do nada, dois carros do pelotão se materializam no fim da rua, bloqueando nosso avanço.<br />

Reguladores e policiais — dezenas deles, cabeças, braços e bocas berrantes — surgem pela rua. Vozes<br />

explodem, amplificadas e distorcidas por rádios e megafones.<br />

— Parem! Parem! Parem ou atiramos!<br />

— Segure-se! — Alex grita, e posso sentir seus músculos se contraindo.<br />

No último segundo, ele vira o guidom para a esquerda e quase derrapamos para outro beco estreito,<br />

arranhando a parede de tijolos. Grito quando minha perna direita é espremida contra a parede. Minha<br />

canela fica ralada quando nos arrastamos durante vários segundos na fachada do prédio até Alex<br />

retomar o controle da moto e seguirmos adiante. Assim que saímos da rua, outras duas viaturas vêm<br />

correndo atrás de nós.<br />

Estamos tão acelerados que meus braços tremem enquanto tento me segurar, e, naquele instante,<br />

tenho um momento de calma e de clareza ao perceber que jamais conseguiremos. Nós morreremos hoje<br />

à noite, fuzilados, esmagados ou explodidos em algum ato terrível de fogo e de metal retorcido, e<br />

quando nos enterrarem, estaremos tão derretidos e entrelaçados que não conseguirão separar nossos<br />

corpos; pedaços de Alex irão comigo e pedaços meus irão com ele. É estranho, mas esse pensamento<br />

nem me incomoda. Estou quase pronta para desistir, pronta para meu último suspiro, colada às costas<br />

dele, sentindo suas costelas e seu peito se moverem comigo pela última vez.<br />

Mas Alex, obviamente, não está pronto para desistir. Ele corta pelo beco mais estreito que consegue<br />

encontrar, e dois dos carros que nos seguiam param de repente, esmagando um ao outro e bloqueando a<br />

entrada, forçando os outros carros a parar também. Buzinas disparam. O cheiro pungente de fumaça e<br />

de borracha queimada faz meus olhos lacrimejarem por um segundo, mas, então, seguimos em frente,<br />

avançando pela avenida Franklin.<br />

Mais sirenes agora, ao longe: há reforços a caminho.<br />

Mas a enseada aparece à nossa frente, estendendo-se — calma, lisa e cinza, como vidro ou metal. O<br />

céu arde em suas margens, um fogo crescente de tons cor-de-rosa e amarelo. Alex vira na via Marginal, e

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