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01- Delírio

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animal silencioso e diligente roendo uma cerca.<br />

De repente, a corda estala e estou livre. A dor em meus ombros é agonizante; em meus braços, sinto<br />

milhares de alfinetadas. Mas, mesmo assim, naquele momento de liberdade, eu poderia gritar e pular de<br />

alegria. Deve ter sido como minha mãe se sentiu quando o primeiro fragmento de luz do sol penetrou a<br />

fissura em suas paredes de pedra.<br />

Sento-me, esfregando os pulsos. Gracie fica apoiada na cabeceira, olhando para mim, e inclino-me<br />

para envolvê-la em um grande abraço. Ela está com cheiro de sabonete de maçã e um pouco de suor.<br />

Sua pele está quente, e não consigo pensar em como devia estar nervosa ao subir escondida para o<br />

quarto. Fico surpresa por quão magra e frágil ela está, tremendo levemente em meus braços.<br />

Mas ela não é frágil — nem um pouco. Gracie é forte, percebo, talvez mais forte que qualquer um<br />

de nós. Acho que ela tem colocado em prática a própria versão da resistência há algum tempo, e<br />

perceber que ela é uma resistente nata me faz sorrir com o rosto no meio de seu cabelo. Ela vai ficar<br />

bem. Vai ficar mais do que bem.<br />

Afasto-me um pouquinho para sussurrar em seu ouvido.<br />

— Tio William ainda está lá fora?<br />

Gracie confirma com um aceno e então põe as duas mãos no lado da cabeça, indicando que ele está<br />

dormindo.<br />

Inclino-me para a frente outra vez.<br />

— Tem algum regulador na casa?<br />

Gracie confirma novamente, levantando dois dedos, e meu estômago se embrulha. Não apenas um<br />

regulador, mas dois.<br />

Levanto-me, testando as pernas, que estão com cãibras após quase dois dias imobilizadas. Caminho<br />

nas pontas dos pés até a janela e abro as persianas o mais silenciosamente possível, consciente de que tio<br />

William está dormindo a apenas três metros de mim. O céu lá fora está roxo-escuro, cor de berinjela, e a<br />

rua está coberta por sombras, como se tivesse sido revestida de veludo. Tudo está parado e silencioso,<br />

mas no horizonte há um leve rubor, uma luz gradual: o amanhecer não está longe.<br />

Abro a janela cuidadosamente, com um desejo repentino de sentir o cheiro do oceano. Lá está ele: o<br />

aroma de sal e maresia, um aroma misturado, em minha mente, à ideia de constante revolução, uma maré<br />

eterna. Então, sinto-me terrivelmente triste. Sei que não conseguirei encontrar Alex no meio desta<br />

cidade enorme e adormecida e não conseguirei chegar sozinha à fronteira. A melhor alternativa é tentar<br />

ir até os penhascos e caminhar para a água até que ela se feche sobre minha cabeça. Imagino se vai doer.<br />

Imagino se Alex estará pensando em mim.<br />

Em algum lugar no meio da cidade um motor está funcionando, um rugido distante e grosseiro,<br />

como um animal ofegante. Em poucas horas o rubor da manhã afastará a escuridão, as formas se<br />

rearranjarão e as pessoas acordarão, bocejarão, farão café e se prepararão para o trabalho, tudo como<br />

sempre. A vida seguirá. Algo dói em meu âmago, algo antigo, profundo e mais forte do que palavras: o<br />

filamento que liga cada um de nós à raiz da existência, aquela coisa antiga se desenrolando, resistindo,<br />

agarrando-se desesperadamente, procurando um apoio, um modo de ficar aqui, respirar, continuar. Mas faço<br />

esse sentimento ir embora, faço-o se enrolar outra vez e me soltar.<br />

Prefiro morrer do meu jeito a viver do seu.<br />

O barulho do motor está mais alto agora, aproximando-se. E vejo uma motocicleta solitária, um<br />

pontinho escuro, subindo a rua. Por um segundo, paro, fascinada. Só vi uma moto funcionando duas<br />

vezes e, apesar de tudo, acho linda — a maneira como ela costura pela rua, quase imperceptível,<br />

cortando o escuro como a cabeça negra lustrosa de uma lontra na água. E o motoqueiro, também,<br />

apenas uma forma escura nas costas do veículo como se fosse um líquido, uma sombra, curvado para a<br />

frente, apenas o topo da cabeça visível, aproximando-se, tomando forma em cada detalhe.<br />

O topo da cabeça: como a cor das folhas no outono, queimando, queimando.

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