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animal silencioso e diligente roendo uma cerca.<br />
De repente, a corda estala e estou livre. A dor em meus ombros é agonizante; em meus braços, sinto<br />
milhares de alfinetadas. Mas, mesmo assim, naquele momento de liberdade, eu poderia gritar e pular de<br />
alegria. Deve ter sido como minha mãe se sentiu quando o primeiro fragmento de luz do sol penetrou a<br />
fissura em suas paredes de pedra.<br />
Sento-me, esfregando os pulsos. Gracie fica apoiada na cabeceira, olhando para mim, e inclino-me<br />
para envolvê-la em um grande abraço. Ela está com cheiro de sabonete de maçã e um pouco de suor.<br />
Sua pele está quente, e não consigo pensar em como devia estar nervosa ao subir escondida para o<br />
quarto. Fico surpresa por quão magra e frágil ela está, tremendo levemente em meus braços.<br />
Mas ela não é frágil — nem um pouco. Gracie é forte, percebo, talvez mais forte que qualquer um<br />
de nós. Acho que ela tem colocado em prática a própria versão da resistência há algum tempo, e<br />
perceber que ela é uma resistente nata me faz sorrir com o rosto no meio de seu cabelo. Ela vai ficar<br />
bem. Vai ficar mais do que bem.<br />
Afasto-me um pouquinho para sussurrar em seu ouvido.<br />
— Tio William ainda está lá fora?<br />
Gracie confirma com um aceno e então põe as duas mãos no lado da cabeça, indicando que ele está<br />
dormindo.<br />
Inclino-me para a frente outra vez.<br />
— Tem algum regulador na casa?<br />
Gracie confirma novamente, levantando dois dedos, e meu estômago se embrulha. Não apenas um<br />
regulador, mas dois.<br />
Levanto-me, testando as pernas, que estão com cãibras após quase dois dias imobilizadas. Caminho<br />
nas pontas dos pés até a janela e abro as persianas o mais silenciosamente possível, consciente de que tio<br />
William está dormindo a apenas três metros de mim. O céu lá fora está roxo-escuro, cor de berinjela, e a<br />
rua está coberta por sombras, como se tivesse sido revestida de veludo. Tudo está parado e silencioso,<br />
mas no horizonte há um leve rubor, uma luz gradual: o amanhecer não está longe.<br />
Abro a janela cuidadosamente, com um desejo repentino de sentir o cheiro do oceano. Lá está ele: o<br />
aroma de sal e maresia, um aroma misturado, em minha mente, à ideia de constante revolução, uma maré<br />
eterna. Então, sinto-me terrivelmente triste. Sei que não conseguirei encontrar Alex no meio desta<br />
cidade enorme e adormecida e não conseguirei chegar sozinha à fronteira. A melhor alternativa é tentar<br />
ir até os penhascos e caminhar para a água até que ela se feche sobre minha cabeça. Imagino se vai doer.<br />
Imagino se Alex estará pensando em mim.<br />
Em algum lugar no meio da cidade um motor está funcionando, um rugido distante e grosseiro,<br />
como um animal ofegante. Em poucas horas o rubor da manhã afastará a escuridão, as formas se<br />
rearranjarão e as pessoas acordarão, bocejarão, farão café e se prepararão para o trabalho, tudo como<br />
sempre. A vida seguirá. Algo dói em meu âmago, algo antigo, profundo e mais forte do que palavras: o<br />
filamento que liga cada um de nós à raiz da existência, aquela coisa antiga se desenrolando, resistindo,<br />
agarrando-se desesperadamente, procurando um apoio, um modo de ficar aqui, respirar, continuar. Mas faço<br />
esse sentimento ir embora, faço-o se enrolar outra vez e me soltar.<br />
Prefiro morrer do meu jeito a viver do seu.<br />
O barulho do motor está mais alto agora, aproximando-se. E vejo uma motocicleta solitária, um<br />
pontinho escuro, subindo a rua. Por um segundo, paro, fascinada. Só vi uma moto funcionando duas<br />
vezes e, apesar de tudo, acho linda — a maneira como ela costura pela rua, quase imperceptível,<br />
cortando o escuro como a cabeça negra lustrosa de uma lontra na água. E o motoqueiro, também,<br />
apenas uma forma escura nas costas do veículo como se fosse um líquido, uma sombra, curvado para a<br />
frente, apenas o topo da cabeça visível, aproximando-se, tomando forma em cada detalhe.<br />
O topo da cabeça: como a cor das folhas no outono, queimando, queimando.