04.04.2017 Views

01- Delírio

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Amém, irmã, penso, e então esvazio o prato todo e peço para repetir.<br />

Mais minutos: um longo arrastar, como um peso me puxando. Então, de repente, a luz no quarto<br />

assume a cor suave do mel, e depois o amarelado irregular da manteiga, e em seguida começa a<br />

desaparecer completamente das paredes, como água escoando pelo ralo. Não achei mesmo que Alex<br />

apareceria antes do anoitecer — isso teria sido suicídio —, mas, ainda assim, sinto uma dor latejante no<br />

peito. Quase não há mais tempo.<br />

No jantar, há mais sopa, com pedaços de pão encharcado. Dessa vez é Carol quem traz a refeição<br />

enquanto Rachel fica na porta. Carol solta minhas mãos brevemente depois que imploro para que me<br />

deixe usar o banheiro, mas ela insiste em me acompanhar e em ficar ali enquanto uso o vaso, o que é<br />

mais do que humilhante. Minhas pernas não estão firmes, e a dor de cabeça piora quando me levanto.<br />

Há sulcos profundos em meus pulsos — a corda de nylon me marcou —, e meus braços são como pesos<br />

mortos, pendendo sem vida de meus ombros. Quando Carol tenta me prender novamente, considero<br />

resistir — apesar de ela ser mais alta que eu, com certeza sou mais forte —, mas penso melhor. A casa<br />

está cheia de gente, inclusive meu tio, e, até onde eu sei, pode haver ainda reguladores lá embaixo. Eles<br />

me prenderiam e me sedariam em poucos minutos, e não posso me dar o luxo de ser dopada outra vez.<br />

Preciso estar acordada e alerta esta noite. Se Alex não vier, precisarei bolar um plano meu.<br />

Apenas uma coisa é certa: não farei a intervenção amanhã. Prefiro morrer.<br />

Concentro-me então em deixar meus músculos o mais tensos possível enquanto Carol me amarra.<br />

Quando relaxo de novo, sobra um pequeno espaço, apenas uma fração de centímetro. Talvez o<br />

suficiente para que eu tenha chance de me livrar das algemas improvisadas. Mais boas notícias: à medida<br />

que o dia foi passando, todo mundo ficou mais relaxado com a guarda constante do quarto, exatamente<br />

como eu esperava. Rachel abandona o posto por cinco minutos para ir ao banheiro; Jenny passa quase<br />

todo o tempo explicando a Grace as regras de um jogo que ela inventou; Carol se ausenta durante meia<br />

hora para lavar a louça. Depois do jantar, tio William assume. Fico feliz. Ele trouxe um rádio portátil.<br />

Espero que cochile como sempre faz depois de comer.<br />

E, então, talvez — apenas talvez — eu consiga sair daqui.<br />

Às nove horas toda a luz do quarto já se apagou, e fico na escuridão, com sombras cobrindo as<br />

paredes como se fossem cortinas. A lua está grande e clara, entrando pelas persianas e deixando tudo<br />

ligeiramente iluminado com um brilho prateado. Tio William continua na porta, ouvindo rádio em<br />

volume baixo, um ruído estático indecifrável. Barulhos passam pelo chão — água correndo na cozinha e<br />

no banheiro do andar de baixo, vozes murmurando e pés se arrastando —, as últimas tosses e balanços<br />

antes que a casa se cale para a noite, como uma pessoa em convulsão prestes a morrer. Jenny e Grace<br />

ainda não podem dormir no quarto comigo. Presumo que todos estejam se arrumando para dormir na<br />

sala.<br />

Rachel entra uma última vez, trazendo um copo de água. É difícil perceber na escuridão, mas o<br />

líquido parece suspeitamente embaçado, como se tivesse algo dissolvido nele.<br />

— Não estou com sede — digo.<br />

— Só alguns goles.<br />

— Sério, Rachel. Não estou com sede.<br />

— Não seja difícil, Lena. — Ela senta na cama e força a água em meus lábios. — Você foi tão boa o<br />

dia inteiro.<br />

Não tenho escolha senão tomar alguns goles — sentindo um gosto forte de remédio.<br />

Definitivamente, a água foi batizada com algo — mais remédios para dormir, sem dúvida. Mantenho a<br />

água na boca, recusando-me a engolir, e, assim que ela se levanta e se volta para a porta, viro a cabeça e<br />

solto a água no travesseiro e em meu cabelo. É um pouco nojento, mas é melhor que a alternativa. Meu<br />

travesseiro fica molhado, amenizando temporariamente a dor em meus ombros.<br />

Rachel hesita na porta, como se estivesse tentando pensar em algo profundo para dizer. Mas só o

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!