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01- Delírio

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luz, paralisado como um cervo diante dos faróis de um caminhão (os reguladores estão usando holofotes hoje), e<br />

uma voz explode na noite:<br />

— Parados! Os dois! Mãos na cabeça!<br />

Ao mesmo tempo, a voz de Alex finalmente me alcança, urgente:<br />

— Corra, Lena, vá!<br />

Ele já está recuando pela escuridão, mas meus pés levam mais tempo para se mover, e, quando<br />

consigo, correndo cegamente e sem rumo pela primeira rua que encontro, a noite já ganhou vida, cheia<br />

de sombras móveis — tentando me agarrar, gritando, puxando meu cabelo —, aparentemente centenas,<br />

descendo pela colina e se materializando do chão, das árvores, do ar.<br />

— Peguem-na! Peguem-na!<br />

Meu coração está explodindo no peito e não consigo respirar; nunca tive tanto medo; vou morrer de<br />

susto. Mais e mais sombras se transformam em pessoas: todas me agarrando, berrando, segurando armas<br />

brilhantes de metal, pistolas e cassetetes e latas de gás lacrimogêneo. Desvio e me esquivo de mãos<br />

ásperas, corro para a colina que vai dar na rua Brandon, mas não adianta. Um regulador me agarra por<br />

trás sem muita firmeza. Mal consigo me livrar de suas garras e já estou tentando me livrar de alguém de<br />

uniforme, sentindo outras mãos me segurando. O medo se tornou uma sombra agora, um cobertor:<br />

sufocando-me e tornando impossível respirar.<br />

Um carro de patrulha ganha vida a meu lado, suas luzes giratórias iluminam tudo apenas por um<br />

segundo, e o mundo à minha volta pisca em preto, branco, preto, branco, avançando em impulsos, em<br />

câmera lenta.<br />

Uma face contorcida em um grito horrível; um cachorro saltando da esquerda, mostrando os dentes;<br />

alguém gritando:<br />

— Derrubem-na! Derrubem-na!<br />

Não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar.<br />

Um assobio agudo, um grito; um cassetete momentaneamente paralisado no ar.<br />

Um cassetete caindo; um cachorro pulando e rosnando; uma dor absurda me atravessando como<br />

calor.<br />

Em seguida, a escuridão.<br />

* * *<br />

Quando abro os olhos, o mundo parece ter se quebrado em mil pedaços. Tudo o que vejo são pequenos<br />

cacos de luz, nebulosos, girando como se tivessem sido sacudidos em um caleidoscópio. Pisco diversas<br />

vezes e, lentamente, os cacos se reviram e se rearranjam em um lustre em forma de sino e em um teto<br />

creme com uma grande mancha de infiltração em forma de coruja. Meu quarto. Casa. Estou em casa.<br />

Por um segundo, sinto alívio: meu corpo está pinicando, como se eu tivesse sido espetada por agulhas<br />

em toda a pele, e tudo o que eu quero é deitar de novo em meus travesseiros macios, afundar na<br />

escuridão inconsciente do sono e esperar a dor aguda em minha cabeça se dissipar. E então eu me<br />

lembro: o cadeado, o ataque, a multidão de sombras. E Alex.<br />

Não sei o que aconteceu com Alex.<br />

Balanço meus braços, tentando me sentar, mas uma dor agonizante passa de minha cabeça para o<br />

pescoço e me força a deitar outra vez, sem ar. Fecho os olhos e ouço a porta do quarto se abrir: vozes<br />

chegam mais altas, vindas do andar de baixo. Minha tia está falando com alguém na cozinha, um homem<br />

cuja voz não reconheço. Um regulador, provavelmente.<br />

Passos atravessam o quarto. Mantenho os olhos fechados, fingindo dormir, enquanto alguém se

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