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01- Delírio

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estava chorando. Deve ter concluído sua avaliação. Reconheço-a vagamente como uma das primeiras<br />

que entrou no prédio.<br />

Não consigo evitar sentir pena dela. Avaliações normalmente duram de trinta minutos a duas horas,<br />

mas todo mundo sabe que, quanto mais tempo, melhor você está se saindo. É claro que isso nem sempre<br />

é verdade. Há dois anos, Marcy Davies entrou e saiu do laboratório em notórios quarenta e cinco<br />

minutos e recebeu um dez. E, no ano passado, Corey Winde teve o tempo recorde de avaliação, a mais<br />

longa da história — três horas e meia —, e mesmo assim recebeu apenas um três. Existe um sistema por<br />

trás das avaliações, obviamente, mas há sempre certo grau de aleatoriedade. Às vezes, parece que todo o<br />

processo é feito para ser o mais intimidante e confuso possível.<br />

Tenho uma fantasia repentina sobre disparar por esses corredores limpos e estéreis, abrindo todas as<br />

portas aos chutes. Sinto-me culpada no mesmo instante. Esse é o pior momento possível para ter<br />

dúvidas quanto às avaliações, e amaldiçoo Hana mentalmente. É culpa dela, por ter dito aquelas coisas<br />

na entrada. Não é possível ser feliz a não ser que às vezes se sinta infeliz. Uma escolha limitada. Podemos escolher<br />

dentre as pessoas que escolheram para nós.<br />

Fico feliz que a escolha seja feita para nós. Fico feliz por não precisar escolher — porém, mais do<br />

que isso, fico feliz por não precisar fazer com que alguém me escolha. Isso seria bom para Hana, é claro,<br />

se as coisas fossem como antigamente. Hana, com seu cabelo dourado e angelical, olhos cinzentos e<br />

brilhantes, dentes perfeitos e alinhados e sua risada que faz com que todos em um raio de três<br />

quilômetros se virem, olhem para ela e riam também. Até a falta de jeito funciona em Hana: faz com que<br />

a pessoa queira estender a mão e ajudá-la a recolher os livros. Quando tropeço sozinha ou derrubo café<br />

na blusa, as pessoas desviam o olhar. Quase posso ouvi-las pensando “Que desastre”. E, quando estou<br />

cercada por estranhos, minha mente se torna vaga, nebulosa e cinza, como as ruas começando a<br />

descongelar após uma nevasca — ao contrário de Hana, que sempre sabe o que dizer.<br />

Nenhum garoto em sã consciência me escolheria quando existem pessoas como Hana no mundo:<br />

seria como se contentar com um biscoito sem gosto quando o que você realmente quer é uma grande<br />

vasilha com sorvete, chantili, cerejas e chocolate granulado. Então, ficarei feliz ao receber minha folha de<br />

“Compatibilidades Aprovadas”. Pelo menos significa que terei alguém. Não fará diferença se ninguém<br />

nunca me achar bonita (apesar de, às vezes, eu desejar que alguém achasse, só por um segundo). Não<br />

faria diferença se eu tivesse um olho só.<br />

— Entre aqui. — A enfermeira para, enfim, à frente de uma porta idêntica às outras. — Pode deixar<br />

suas roupas e objetos na antessala. Por favor, vista a camisola separada para você, com a abertura para<br />

trás. Sinta-se à vontade para se preparar, beber água ou meditar um pouco.<br />

Imagino centenas e centenas de garotas sentadas no chão com as pernas cruzadas e as mãos nos<br />

joelhos, entoando “Om”, e preciso sufocar outro forte impulso de gargalhar.<br />

— Por favor, lembre-se, no entanto, que, quanto mais tempo demorar, menos tempo seus<br />

avaliadores terão para conhecê-la.<br />

Ela dá um sorriso rígido. Tudo nela é rígido: a pele, os olhos, o jaleco. Embora ela olhe bem para<br />

mim, tenho a impressão de que não está realmente prestando atenção, de que, em sua cabeça, ela está<br />

voltando à sala de espera com o toc-toc de seus sapatos, pronta para conduzir outra menina por outro<br />

corredor e repetir essa mesma lenga-lenga. Sinto-me muito sozinha, cercada por essas paredes espessas<br />

que abafam todos os sons, isolada do sol, do vento e do calor — tudo perfeito e artificial.<br />

— Quando estiver pronta, siga pela porta azul. Os avaliadores esperam por você no laboratório.<br />

Depois que a enfermeira sai, entro na antessala, que é pequena e tão iluminada quanto o corredor.<br />

Parece uma sala comum de exame médico. Há um enorme equipamento médico em um dos cantos,<br />

emitindo bipes contínuos, uma mesa de exame coberta com um papel fino e um cheiro pungente e<br />

antisséptico. Tiro minhas roupas, tremendo, enquanto o ar-condicionado causa arrepios por toda a<br />

minha pele e os pelos em meus braços se arrepiam um pouquinho. Ótimo. Agora os avaliadores

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